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História de vida e prática docente em História: a interface tempo e memória
RENAN RUBIM CALDAS1*
1. Introdução e apresentação do tema
“Entre os muitos desafios da história oral, destacam-se, portanto, o da relação entre
as múltiplas temporalidades, visto que, em uma entrevista ou depoimento, fala o
jovem do passado, pela voz do adulto, ou do ancião do tempo presente. Adulto que
traz em si memórias de suas experiências e também lembranças a ele repassadas,
mas filtradas por ele mesmo, ao disseminá-las. Fala-se em um tempo sobre um outro
tempo. Enfim, registram-se sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em
uma narrativa entrecortada pelas emoções do ontem, renovadas ou ressignificadas
pelas emoções do hoje.” (NEVES, 2010: 18)
Tempo, memória, experiências, expectativas e narrativas, eis os elementos que fazem
do território da história oral um campo rico e, ao mesmo tempo, complexo de se caminhar e
perscrutar. A partir do trecho acima, escrito pela historiadora Lucília de Almeida Neves
Delgado, pode-se perceber que a metodologia da história oral é desafiadora por lidar com
sujeitos históricos que vivem concretamente o cotidiano de suas vidas, permeadas por
projetos, desejos, expectativas, emoções, sonhos, frustrações, etc. Esses sujeitos possuem
variadas histórias de vida, diversas memórias e experiências do passado que são narradas,
interpretadas e ressignificadas no tempo presente, à luz de expectativas futuras.
Tendo em mente o panorama e a abrangência dos múltiplos sujeitos e agentes da
história, optou-se, no projeto de mestrado2, por estudar um grupo específico e muito
importante: os professores de História da educação básica. Por meio da metodologia da
história oral baseada na gravação de entrevistas, buscar-se-á analisar suas narrativas, suas
histórias de vida, suas memórias, suas experiências e expectativas pessoais e profissionais,
individuais e coletivas (ELIAS, 1994). Concomitantemente a este movimento, será realizado
outro, de análise das aulas desses mesmos professores, buscando perceber como eles utilizam
suas histórias de vida, trajetórias, memórias, experiências e expectativas na sua prática
docente para ensinar história. No entanto, para este artigo em particular, estabeleceu-se um
1* UFF, Mestrando em História, apoio CAPES 2 Projeto de mestrado orientado pela Profº Drº Juniele Rabelo de Almeida, PPGH-UFF
recorte dentro desse projeto mais amplo, tendo como foco as entrevistas registradas de uma
professora que se encontra vinculada a uma escola estadual do Rio de Janeiro.
O material empírico analisado encontra-se integrado ao grupo de pesquisa, coordenado
pelo Profº Drº Fernando Penna, “Negociando a distância entre passado, presente e futuro em
sala de aula: a relação entre o tempo histórico e a aprendizagem significativa no ensino de
história”, do qual faço parte, e está vinculado ao Laboratório de Ensino de História da UFF.
2. Problemas historiográficos, justificativa e relevância do tema
O tema da relação entre as histórias de vida de professores e a prática docente em
história levanta algumas questões importantes que contribuem para reflexões teóricas tanto no
campo da história oral, quanto no campo do ensino de história, tendo a teoria da história como
pano de fundo: Como, por meio das entrevistas e de um trabalho de história oral de vida de
professores, podemos refletir sobre questões do ensino de história? Como as trajetórias e
histórias de vida de professores são mobilizadas em sala de aula para ensinar história? Qual a
importância da relação entre a história de vida de um professor, suas narrativas, memórias e
experiências e sua prática docente em sala de aula? Em que isso pode contribuir para uma
educação de qualidade e uma aprendizagem significativa em história?
Ao pesquisar as histórias de vida dos professores, busca-se relatos de memórias,
experiências e expectativas que vão desde a sua infância, perpassam a sua adolescência e seu
período de estudo no ensino básico, depois a sua fase adulta e o período de formação na
universidade, até chegar ao seu trabalho como docente nas escolas. As análises das entrevistas
serão feitas baseadas na maneira como os entrevistados constroem “narrativas de si” (ALVES,
2008; GOMES, 2004), ou seja, como eles elaboram uma história própria buscando dar sentido
e coerência a uma vida marcada por descontinuidades. A intenção é analisar não apenas o que
eles fizeram, mas o que eles queriam fazer, o que eles acreditavam estar fazendo, o que eles
agora pensam que fizeram, e o que eles querem fazer (PORTELLI, 1991). Desse modo, a
identificação das memórias, das experiências e das expectativas que foram e são mais
significativas nas vidas desses professores será de fundamental importância para refletir sobre
que identidade eles querem construir de si mesmos.
Nesses relatos, também será analisado como os professores enxergam a sua própria
prática docente, ou seja, como é o cotidiano nas escolas, quais são suas experiências e
memórias tanto dentro quanto fora de sala de aula, o que eles esperam e consideram
importante no ensino de história, quais são suas referências para ensinar história, como são
suas relações com os alunos, com seus pares e com a comunidade escolar, quais são as
dificuldades do seu trabalho, etc.
Mas por que estudar as histórias de vida dos professores? Os professores de História
do ensino básico são um dos principais responsáveis pela atribuição de sentido no ensino de
história. São eles quem mobilizam, com relativa autonomia, os saberes sociais e os saberes da
prática docente dentro de sala de aula. Esses saberes docentes são saberes disciplinares,
curriculares, profissionais/pedagógicos e, principalmente, saberes experienciais, ou seja, suas
histórias, suas memórias, seus valores e suas formas de pensar e agir no mundo (saber-fazer e
saber-ser), incorporados ao longo do tempo, durante sua trajetória de vida pessoal, familiar,
profissional e coletiva (TARDIF, 2002). E são esses saberes experienciais que nos interessam
e serão investigados nesta pesquisa.
Durante a realização desses dois movimentos, as entrevistas e as aulas, a problemática
sobre o tempo será outro aspecto fundamental para o estudo das histórias de vida dos
professores. Por meio da apropriação das categorias de espaço de experiências e horizonte de
expectativas propostas por Reinhart Koselleck, é importante pensar a relação entre as histórias
de vida dos professores e a maneira como os mesmos articulam as dimensões temporais do
passado e do futuro nas suas narrativas produzidas no tempo presente (KOSELLECK, 2006).
Sabemos que o tempo é um elemento fundamental no estudo da História, devido ao
seu caráter de múltiplas faces, que implica permanências, mudanças, convenções,
representações, simultaneidades, continuidades, descontinuidades e sensações (lentidão e
rapidez). Como nos diz Lucília Neves, o tempo “é um processo em eterno curso e em
permanente devir. Orienta perspectivas e visões sobre o passado, avaliações sobre o presente
e projeções sobre o futuro” (NEVES, 2010: 33).
Além disso, vale ressaltar outra questão importante no que diz respeito às aulas de
história: os professores não só falam de suas histórias, memórias, experiências e expectativas
em sala, mas também de histórias de vida, memórias, experiências e expectativas de outros
sujeitos históricos. Desse modo, é válido analisar também como os professores utilizam essas
outras histórias de vida dentro de sala de aula para ensinar história. Acredita-se que os usos
dessas histórias de vida, tanto as próprias histórias dos professores quanto as histórias de vida
de outros sujeitos históricos, podem contribuir para a diminuição das distâncias entre os
alunos e o professor, entre os alunos e a construção do conhecimento histórico, e também
entre a vida dos alunos no presente, a realidade passada e a perspectiva futura, tornando,
assim, o ensino de história mais interessante e mais significativo (PENNA, 2014b;
MONTEIRO, PENNA, 2011).
Assim sendo, a proposição dessas questões e problemas visa colaborar para reflexão
teórica no que diz respeito tanto aos estudos de história oral quanto as produções na área de
ensino de história, buscando estabelecer diálogos e aproximações entre esses domínios do
conhecimento. Esta pesquisa também tem a intenção de contribuir para enriquecer a discussão
em torno dos conceitos de história de vida, memória, tempo, experiência e expectativa,
narrativa e prática e saber docente, que são noções fundamentais para a história oral, para a
teoria da história e para o ensino de história.
3. Fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa
3.1 Discussões conceituais em torno da história oral: tempo, memória e identidade
A metodologia da história oral, entendida como um procedimento, um caminho, para
produção do conhecimento histórico, estimula a reflexão de diversas questões e problemáticas
não só particulares à própria prática da história oral, mas também concernentes à teoria da
história. Com esse método busca-se, através da entrevista, do registro da narrativa e do
trabalho de construção da fonte oral, provocar testemunhos, versões e interpretações sobre a
história em seus aspectos factuais, temporais, espaciais, conflituosos e consensuais.
A pesquisa em história oral é marcada por uma combinação: de um lado, temos a
ilusão de restabelecimento do vivido através de um relato que tende a superar as
descontinuidades de uma trajetória de vida, e que encanta e fascina tendo como base a
vivacidade do passado de um indivíduo, único e singular; de outro, temos a construção
narrativa entendida como um processo de seleção, interpretação e (re)significação do passado,
baseada na experiência concreta e viva do sujeito que narra, e que envolve o trabalho de
memória e o trabalho de linguagem (ALBERTI, 2004)
Tendo em vista a impossibilidade de apreender a totalidade de uma vida inteira e de
restabelecer o vivido de maneira objetiva, como uma coisa dada, a história oral, então,
“privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (NEVES, 2010:
16), ou seja, por meio de sua subjetividade, através das suas interpretações e representações,
em diálogo com o entrevistador. Assim, como nos diz Lucília Neves, a metodologia da
história oral “não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas, sim, o registro de
depoimentos sobre essa história vivida” (NEVES, 2010: 15-16)
Os conceitos de tempo, memória e identidade na história oral são fundamentais para a
compreensão da relação entre indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade. Segundo
Lucília Neves, a fonte oral é caracterizada por múltiplos tempos, ou seja, pelo tempo passado
pesquisado, pela trajetória de vida do entrevistado, pelo tempo presente que estimula e orienta
as visões, as interpretações, as perguntas e as respostas sobre o passado (NEVES, 2010: 16), e
também pelo tempo futuro, já que essas orientações também estão relacionadas com as
expectativas de cada um.
É importante ter em mente que em conjunturas e contextos diferentes da história, os
sujeitos e agentes constroem análises e representações específicas sobre o tempo, sobre o
acontecido e sobre o vivido. O tempo, então, é uma categoria construída e compartilhada
socialmente. Numa entrevista, essa relação entre as temporalidades não nos diz apenas do
sujeito que narra, mas nos diz também sobre as dinâmicas sociais em que ele estava e está
inserido.
A memória, outro elemento fundamental nas fontes orais, segundo Ecléa Bosi, “é um
cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 2006: 39), e expressa tanto as
dimensões do tempo individual quanto as dimensões do tempo coletivo. Durante a entrevista,
o narrador realiza um trabalho de memória que pode ser caracterizado tanto pela busca e
seleção de algumas lembranças específicas quanto pelo silenciamento e esquecimento de
outras, dentro de uma pluralidade de lembranças de acontecimentos relacionados à sua vida
pessoal e social. Esse trabalho de memória é um processo ativo de criação de significados
feito pelo próprio narrador, que (re)interpreta seu passado e sua trajetória de vida no momento
que relata a sua história e suas experiências. Ao (re)contar sua vida, e aqui baseado em Pollak,
o narrador tenta estabelecer certa coesão e continuidade por meio de laços lógicos entre
acontecimentos-chave.É um trabalho de (re)construção de si mesmo que o sujeito/agente
tende a passar. Um trabalho de (re)construção de identidade que tende a definir seu lugar
social e suas relações com os outros, e isso acontece tanto no nível individual quanto no nível
coletivo (POLLACK, 1989).
A memória, sendo um importante recurso para transmissão de experiências
consolidadas ao longo do tempo, já que é materializada na oralidade, é base construtora de
identidades e solidificadora de consciências individuais e coletivas. Ela é inseparável da
vivência concreta da temporalidade, expressa uma historicidade (indica o lugar, o tempo e a
percepção que formam o sujeito histórico) (ALMEIDA, 2013), atualiza o tempo passado,
presentificando-o e tornando-o pleno de significados. Dessa maneira, como sintetiza muito
bem Lucília Neves,
“Tempo e memória, portanto, constituem-se em elementos de um único processo,
são pontes de ligação, elos de corrente, que integram as múltiplas extensões da
própria temporalidade em movimento. A memória, por sua vez, como forma de
conhecimento e como experiência, é um caminho possível para que sujeitos
percorram os tempos de sua vida” (NEVES, 2010: 38).
3.2 “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: passado e futuro
presentificados
Ao analisar as histórias de vida dos professores, temos como base a definição de
tempo histórico elaborada por Reinhart Koselleck, no sentido de que em um determinado
presente histórico, os sujeitos/agentes históricos articulam as dimensões temporais do passado
e do futuro de diferentes maneiras. Pensando nisso, o autor concebeu que o uso das categorias
de “experiência” e “expectativa” é essencial para refletir sobre o tempo histórico. Desse
modo, as duas categorias podem ser definidas como:
“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados
e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional
quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não
precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada
um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada a
experiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida
como conhecimento das histórias alheias. [...] Algo semelhante se pode dizer da
expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal,
também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda não,
para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo,
desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou
a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.”(KOSELLECK, 2006: 309-
310).
Neste trecho, pode-se destacar que a experiência é tudo aquilo que é incorporado ao
longo de uma trajetória de vida, é o passado tornado presente, atualizado, através da memória
e do ato de lembrar. As experiências, assim como a memória e as representações de tempo
como foi dito acima, são compartilhadas socialmente e são transmitidas de geração em
geração. Já a expectativa, é futuro tornado presente, é o ainda não experimentado, que se
encontra apenas no horizonte, mas que também é ao mesmo tempo pessoal e coletivo.
Portanto, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são duas categorias
constitutivas da história e do seu conhecimento, e são importantes para pensarmos a relação
entre as histórias de vida dos professores e o tempo histórico, já que elas entrelaçam, no
tempo presente, passado e futuro, hoje e amanha, ao mesmo tempo, que dirigem e orientam as
ações concretas no mundo, ou como diz Koselleck, no movimento social e político
(KOSELLECK, 2006: 308) O mesmo ainda enfatiza que,
“[...] o tempo histórico não apenas é uma palavra sem conteúdo, mas também é uma
grandeza que se modifica com a história, e cuja modificação pode ser deduzida da
coordenação variável entre experiência e expectativa.” (KOSELLECK, 2006: 309).
Com isso, pode-se afirmar que as diferentes maneiras de articulação entre “espaço de
experiência” e “horizonte de expectativa” em um determinado presente geram diferentes
concepções de tempo histórico.
3.3 Narrativa: expressão da experiência humana no tempo
A narrativa, nesta pesquisa, é entendida como um dos principais fundamentos do
trabalho de história oral. Esta metodologia, como já foi dito acima, baseia-se na gravação de
entrevistas de caráter histórico com sujeitos/agentes que possuem suas histórias, modos de
vida, suas memórias, e que viveram e experienciaram acontecimentos, conjunturas e
movimentos durante as suas trajetórias pessoais e coletivas. Dessa maneira, a expressão e
transmissão dessas situações vividas pelos entrevistados só podem ser feitas por meio da
narração.
A “narrativa no ensino de história” se constitui de maneira distinta da “narrativa na
entrevista de história oral de vida”, e possui outras características, objetivos e formas de
análises. O professor dentro de sala de aula não está ali para transmitir conhecimento, e sim
para estabelecer diálogos e reflexões com os alunos e estimular uma produção conjunta de
conhecimento. Nessa narrativa, os professores também integram suas histórias, suas
memórias, suas experiências e suas expectativas aos conteúdos dados dentro de sala de aula.
Desse modo, para analisar essas narrativas, é valida a apropriação do conceito de
narrativa proposto por Ricoeur, tendo em mente suas possíveis articulações com os escritos de
Koselleck (REIS, 2006), quando o mesmo afirmou que “a experiência temporal manifesta-se
à superfície da linguagem, de maneira explícita ou implícita” (KOSELLECK, 2006: 15).
Como nos diz Ricoeur, “o tempo torna-se tempo humano, na medida em que está articulado
de modo narrativo; em compensação a narrativa é significativa na medida em que esboça os
traços da experiência temporal.” (RICOEUR 1994: 17).
Como nos diz Almeida, para Ricoeur,
“‘Só há tempo pensado quando narrado’; a narrativa histórica como uma ‘quase
intriga’ reúne explicação e compreensão. A história expressa representações, o seu
caráter ‘quase ficcional’ é controlado pela documentação, cronologia e leitura. O
mundo cultural é compartilhado e ressignificado pela narrativa histórica, que se
traduz nas variações interpretativas do passado. A construção do conhecimento
histórico como narrativa, não prevê a pretensão de reconstituição absoluta do
passado.” (ALMEIDA, 2013: 50).
Sendo entendida dessa forma, como expressão da ação e da experiência humana no
tempo, a narrativa (múltipla, variável e “quase ficcional”) é a transformação daquilo que foi
vivenciado em linguagem, é o processo de seleção e organização dos eventos de acordo com
determinado sentido, feito pelos sujeitos/agentes no ato de contar. Segundo Alberti, é um
“trabalho de transformar lembranças, episódios, períodos da vida (infância, adolescência,
etc.), experiência, em linguagem.” (ALBERTI, 2004: 79).
3.4 Os saberes experienciais no ensino de história
A prática docente, como um todo, é marcada pela composição de vários saberes
provenientes de diferentes fontes. Segundo Maurice Tardif, esses saberes são os saberes
disciplinares, curriculares, profissionais e experienciais, e constituem o que ele chama de
saber docente (TARDIF, 2002: 33). Esse saber docente é plural e formado pela amálgama,
mais ou menos coerentes, desses saberes, que são colocados em prática na sala de aula.
Para Tardiff, os saberes experienciais são saberes que os professores desenvolvem no
exercício de suas funções e na prática de sua profissão, baseados em seu trabalho cotidiano e
no conhecimento do seu meio, em valores e maneiras de ser e agir que foram incorporados
durante sua trajetória de vida pessoal, familiar e profissional, individual e coletiva (TARDIF,
2002: 38-39).
Porém, dentre essa gama de saberes, Tardiff destaca que os saberes experienciais
surgem como núcleo vital do saber docente, já que os próprios professores interrogados
afirmam que os saberes adquiridos através da experiência constituem os fundamentos da
prática docente (TARDIF, 2002: 48). Desse modo,
“Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes
práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la,
mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e
formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam,
compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as
dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação” (TARDIF,
2002: 49)
Durante os acompanhamentos nas aulas e também nas entrevistas os saberes
experienciais dos professores serão identificados e analisados. Na sala de aula a atenção será
voltada para maneira como os professores integram suas histórias de vida, suas memórias,
suas experiências e expectativas, pessoais e profissionais, na sua prática docente cotidiana. E
nas entrevistas, será dada atenção à maneira como os professores atribuem sentido e
significados a esses saberes experienciais na sua construção narrativa, e como esses saberes
encontram-se intimamente ligados a sua identidade como professor.
4. Análise do material empírico
Conforme dito anteriormente, este artigo priorizou a análise de um material específico
da pesquisa: as entrevistas da Regina, uma professora da rede estadual de ensino do Rio de
Janeiro 3. A primeira entrevista abordou questões sobre sua trajetória pessoal, familiar e
profissional, a escolha pelo curso de História, o papel do professor atualmente, a função da
história e do ensino da história, a relação entre passado e presente, a relação entre professor e
aluno, etc. A segunda entrevista, feita depois do acompanhamento e observação das aulas,
abordou questões mais cotidianas e práticas da atividade docente dentro de sala de aula e
dentro da escola, ou seja, preparação de aula, o método de ensino da professora, a relação da
professora com a direção e a SEEDUC, etc. Como será visto a seguir, por meio dos trechos
das entrevistas, Regina possui um perfil de uma professora militante, com posicionamento
político forte, e que faz questão que seus alunos tenham também consciência política e uma
visão crítica da realidade em sua volta.
Primeiramente, vale destacar alguns trechos considerados importantes da primeira
entrevista, selecionados de acordo com as problemáticas e os objetivos descritos acima. O
primeiro trecho trata sobre a opção pelo curso de história:
"Regina: E aí eu me decidi, eu não vou fazer literatura, eu vou fazer história, eu
queria descortinar as coisas, né? E o que é interessante, porque eu venho de uma
família...de militares, meu pai e meus tios todos assim de alta patente. Meu pai só
não chegou ao generalato porque teve problema de saúde, mas os meus dois tios, um
da Aeronáutica e um da Marinha assim né...Então eu achava que alguma coisa ali
não...eu já contei essa história em sala, não funcionava. Criança e ouvindo assim
umas conversas né...sobre os subversivos e a repressão...gente não estou entendendo
3 A primeira entrevista foi realizada no dia 13/08/2014 e a segunda entrevista foi realizada no dia 15/12/2014, após o acompanhamento e registro das aulas. Ambas foram conduzidas pelo Profº Drº Fernando Penna, acompanhada pela Renata, uma integrante do grupo de pesquisa. O processo de elaboração de perguntas e, posteriormente, de debate das entrevistas foi realizado pelo grupo.
esse...Então, à medida que eu fui ficando adolescente, mais velha, eu comecei a
processar aquela...eu falei 'tem coisa errada aí e eu quero descobrir o que é né'
[risos]. E as aulas do professor Emir então me...elucidaram bastante, e aí eu falei 'é
isso, eu quero estudar história'."
Neste trecho, pode-se perceber como a entrevistada começa a construir uma linha
narrativa procurando dar sentido a sua história de vida e sua trajetória como professora de
história. De início, ela diz que trocou o curso de Literatura pelo curso de História porque
queria "descortinar as coisas". Logo em seguida, ela faz uma relação estreita entre isso e sua
história familiar, contando que seus pais e tios são militares, e que desde criança ela ouvia
umas conversas "sobre os subversivos e a repressão" e que não entendia no momento, mas
quando ficou mais velha começou a entender, e julgava que tinha alguma coisa errada naquilo
e queria descobrir o que era. Em outro momento da entrevista, ela inclusive comenta que teve
uma relação difícil com o pai, por ele ser militar, "linha dura", e por ele ser contra ela fazer o
curso de História, porque era curso de "subversivos e comunistas". Ela diz que ele queimava
seus livros de Karl Marx, e que inclusive ficou um tempo sem falar com ele e se mudou para
ir morar com uma tia.
No início do trecho acima, percebemos como essa referência a uma história familiar
está relacionada com o forte posicionamento político e crítico da professora, que é um
elemento constante nas entrevistas. Logo nas suas primeiras palavras ela já traça uma
continuidade entre o passado e o presente, estabelecendo como marco a própria história
familiar, suas memórias e experiências que ela traz consigo desde pequena. E isso também é
vinculado com a sua escolha de fazer o curso de história. É interessante destacar também que
ela já contou essa história em sala, ou seja, é uma das indicações de que ela leva suas
memórias e experiências pessoais/familiares para dentro de sala de aula para ensinar história.
Ao comentar sobre quando fazia o curso de História, Regina fala sobre um problema
de saúde que a impediu de continuar o curso e ela teve que trancar um período:
Regina: Aí eu tive que trancar um período...e é por isso que eu tava falando que
história passou a fazer parte da minha vida, sabe? E eu me sentia...perdida,
vazia... mas eu precisei me afastar, porque realmente foi um processo bem
complicado, bem complexo. Mas serviu também para me dar uma certeza, sabe,
que...era muito mais do que um curso que eu estava fazendo para me direcionar
profissionalmente...era uma questão existencial...fundamental assim...tanto quanto o
ar que eu estava respirando, né? [...] E aí eu procuro passar isso pra eles, sabe? Eu
sou tão apaixonada, eu sou tão...sabe, assim...vidrada. Acho que história, ao mesmo
tempo que ela te dá muitas respostas ela te traz tantas angústias né...ela te faz tão
feliz mas ela te faz sofrer tanto... entendeu? Que é...é viciante, é muito viciante.
Então, eu procuro transmitir isso pra eles, eu fico, "mesmo que vocês não venham a
ser professores de história"...eu não consigo entender, sabe, um profissional seja ele
da área de saúde, administrativa, da informática, que não tenha, sabe, essa
visão, essa conscientização. Então história está acima de tudo e de todos..."vocês
tem que estudar história!" [Fernando: A história não é só para o historiador né?]
Não! Sabe..."vocês tem que fugir da alienação"..."vocês não podem se deixar
manipular"...e aí assim eu vou...vou conversando com eles"
Podemos ver, no trecho acima, que a relação entre a história de vida pessoal/familiar
da professora e a maneira como ela enxerga a história e o próprio ensino de história fica mais
evidente. No primeiro momento, para ela, história é muito mais do que um curso para
profissionalizar, é uma questão existencial, e seu afastamento da universidade quando estava
doente lhe deu a certeza de que ela precisava estudar história na sua vida. Apaixonada e
viciada pela ciência histórica, novamente a professora cita os alunos e diz que tenta transmitir
essa paixão e essa visão para eles, de que a história é fundamental na vida. No segundo
momento, ela novamente demonstra sua forte posição política, sua visão de mundo e seu
objetivo ao ensinar história, dizendo que os alunos precisam ser conscientes, e precisam "fugir
da alienação" e "não podem se deixar manipular". Em outro trecho, essa questão volta a
aparecer com mais clareza:
"Fernando: Qual é a função da história hoje? Que é uma pertinência que você tem
que criar com os seus alunos toda hora.
Regina: Bom...olha só Fernando é...eu acho que ainda é muito pertinente até
porque estamos falando de Brasil, você fazer um trabalho direcionado assim para
conscientização, para eles entenderem bem o que é cidadania sabe, para que eles
consigam fugir o máximo possível das manipulações...Hoje eu estava dando uma
aula na 3001, e eu tava falando sobre os efeitos da guerra fria aqui na América
Latina, falando das ditaduras, ali do Chile, do Allende que eu...eu gosto muito de
trabalhar essa questão, fui para Argentina, aí eu também me detenho porque eu
gosto muito dos Hermanos, falei do futebol, aí foi aquela brincadeira toda, e depois
vim chegando aqui no Brasil. E aí eles me perguntaram, e eu achei tão legal a
pergunta, 'professora, nós temos uma democracia de fato? O que nós vivemos hoje é
uma democracia?' [Fernando: Boa pergunta né?] [Renata: Podia ter gravado
essa aula] Eu achei tão...sensacional aquilo né? E aí eu fui respondendo com outras
perguntas, para que eles...chegassem às conclusões deles. Fui...ali direcionando,
jogando outras perguntas, e eles falaram 'é...é um/a mera formalidade', e eu falei
'pois é, né?'."
Nesse momento da entrevista, a professora deixa claro a sua visão de história e
também do ensino de história, quando diz que a função da história é conscientizar
politicamente, é fazer com que os alunos tenham uma visão crítica da realidade, e que eles
entendam o que é cidadania. Logo em seguida, relata uma situação que aconteceu dentro de
sala de aula, quando os alunos perguntaram se havia uma democracia de fato no Brasil. Será
que esse relato não pode ser interpretado como uma indicação de que a história de vida
pessoal/familiar da professora, suas memórias e experiências durante sua trajetória, estão
afetando os seus alunos e gerando uma reflexão?
Na segunda entrevista, feita após o acompanhamento das aulas, as perguntas foram
formuladas com base nas gravações realizadas em sala. Uma das perguntas feitas foi
exatamente qual o objetivo da professora em usar suas experiências e de seus familiares nos
temas abordados em sala e se ela acha importante levar essas experiências para os seus
alunos. Ela responde:
"Regina: É, eu acho sim. Como eu vivenciei aquilo...eu nem sei mesmo pra te falar
a verdade, o quanto isso...eu ainda não fiz essa avaliação de uma forma mais
objetiva mesmo. É...se é válido realmente...mas é um impulso talvez, né? Eu vivi
aquilo e... Quando eu trabalho Vargas, é uma coisa que foi muito marcada em mim,
o meu avô. Meu avô era varguista e anti varguista. Como assim? Ele era totalmente
anti varguista no sentido de...de não concordar, e meu avô não era muito instruído,
com toda a política ditatorial de Vargas, o Estado Novo, aquela coisa [...] Por outro
lado, ele tinha um fascínio pela forma dele atuar. Por isso que ele era um anti
varguista, mas ele me dizia isso: 'mas eu não consigo deixar de ver, é uma
inteligência que ele usa para coisas que eu discordo' [...] E ele cantava uma
musiquinha...olha eu nunca esqueci aquela musiquinha, 'bota o retrato de Vargas
outra vez, bota...'. Então, quando eu trabalho a Era Vargas, eu trago pra eles essas
coisas...porque sei lá, aquilo tá tão vivo dentro de mim, aí eu mostro pra eles, 'olha o
meu avô e tal, ele...'. Eu nem pensava em estudar história, eu ainda era garota, e
ele passava pra mim essas mensagens, né?"
É interessante perceber que ao ser indagada, a professora não tem nenhuma resposta
pronta, já que ela não fez uma avaliação objetiva sobre isso, ela apenas diz que é um
"impulso", já que ela vivenciou aquilo. Ao contar do avô em sala de aula quando trata da Era
Vargas, ela leva para sala de aula não somente as memórias e as experiências do seu avô que
foram passadas para ela oralmente, mas também ela leva as suas próprias memórias e as
experiências de sua infância. As frases que o avô dizia, as musicas que ele cantava, ainda está
muito vivo dentro dela, como a mesma diz.
Seguindo a entrevista, o professor Fernando, condutor da entrevista, indaga-a
novamente sobre o porquê do uso das suas experiências em sala, tentando elaborar uma
resposta junto com ela, construindo a fonte histórica em conjunto, na relação entrevistador-
entrevistado. Então, ela conta de outras experiências e memórias de familiares que ela utiliza
em sala de aula:
Fernando: Não pode ser outra maneira, como se faz com o filme, de concretizar
aquilo?
Regina: Pode ser. É verdade, pode ser. [Fernando: Que aí você traz uma
experiência de alguém que viveu, uma coisa menos abstrata né?] Isso, que
viveu. Minha tia, ela não é nem minha tia é minha prima, é prima da minha mãe...e
convive com a gente, ela tá com 95 anos, bem à beça. O marido dela, ele foi
integrante da FEB, e ele foi pra Itália, e ele foi lutar mesmo, ele não ficou só
comandando tropa, ele participou de todas aquelas movimentações ali no Monte
Castelo. Quando minha tia, eu chamo de tia, a gente foi criada muito junta - "ai tia
tia tia" - quando...e ela conta isso pra nós, que quando ele voltou, ele voltou
mal...mal psicologicamente, não fisicamente, muito mais psicologicamente. Ele
passou por um longo período de readaptação, de trabalhos piscológicos. Depois ele
já tava melhor, ele começou a contar as experiências [...] Então, quando eu trabalho
toda essa participação do Brasil na guerra, eu também falo dessa experiência do meu
tio, que eu mal conheci, mas que minha tia sempre manteve viva essa memória
dele, contando pra mim, para minhas irmãs essa participação do meu tio na
guerra. Eu acho que é como isso que você me falou mesmo...pra não parecer que é
só uma coisa de livro né? As pessoas viveram aquele momento."
Novamente a professora relata um caso de um parente, agora o tio que era da FEB e
participou da Segunda Guerra Mundial. Quando ela trata do tema em sala de aula, ela leva as
experiências e as memórias do tio, da tia e as suas próprias para os seus alunos, com a
intenção de tornar a história mais viva para os mesmos e não parecer "só uma coisa de livro".
O interessante é pensar que ela fez uma avaliação do seu próprio método de ensino de história
durante a entrevista, durante a narração das suas próprias experiências, já que no momento da
pergunta ela não tinha uma resposta pronta.
5. Conclusão
Após a análise dos trechos da entrevista e com base nas referências teórico-
metodológicas apontadas acima, pode-se concluir que a professora entrevistada estabelece
uma relação íntima entre sua história de vida e o ensino de história, e utiliza constantemente
suas memórias, suas experiências e suas expectativas pessoais/familiares e coletivas para
tornar a história mais significativa para os seus alunos.
Sua visão de mundo politizada, elaborada a partir de suas experiências compartilhadas
durante sua trajetória de vida, é o que fundamenta a sua prática docente em história. É uma
identidade que ela constrói de si mesma na prática cotidiana da sala de aula, na relação de
ensino-aprendizagem com seus alunos, e no momento em que ela narra as lembranças e os
episódios da sua vida. Desse modo, percebemos como o saber experiencial é um elemento
crucial no modo como a professora Regina ministra suas aulas e concebe o ensino de história.
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