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#10 - Actualidade, reflexão, estudo e alternativas · Gestão fiscal intra legem ... pela formação e informação, ... é igualmente necessário referir os conflitos de interesse

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Esta edição da revista Crítica inclui alguns estudos, três deles inéditos. O primeiro é sobre a fuga ao

fisco por Carlos Pimenta e o segundo é sobre as estatísticas da União Europeia e as suas revelações

acerca da convergência ou divergência entre os países, por Ernesto Figueiredo. O terceiro estudo é de

Eugénio Rosa sobre as responsabilidades da nova administração da CGD e a estratégia que deve ser

seguida na banca pública.

Na rubrica de atualidade discute-se a solução aprovada pelo governo para a redução da TSU patro-

nal no caso das empresas que têm trabalhadores a salário mínimo (João Ramos de Almeida), bem

como o discurso de Assunção Cristas comparado com a prática do seu governo (Nuno Serra).

Um dossier sobre a questão do Novo Banco inclui textos de Ricardo Cabral e Francisco Louçã argu-

mentando em favor da solução do controlo público.

Finalmente, João Rodrigues apresenta um livro de Michael Lowy e Renato do Carmo reflete sobre o

filme de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake”. António Carlos Santos escreve uma recensão sobre “Estado de

Crise”, de Bordoni e Zauman.

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Índice

1. estudosBreves apontamentos sobre a redução da fuga ao fisco-Conhecer e Agir, Carlos Pimenta......................................................... 5

Europa ou União Europeia: Baluartes da Coesão ou Espaço de Clivagem? Ernesto V.S. Figueiredo ........................................................17

Os desafios que se colocam à nova administração do “bloco central” da CGD e ao próprio governo , Eugénio Rosa ............................................................. 28

2. AtuAlidAdeTSU: O gado devia ter sido melhor negociado, João Ramos de Almeida ................. 44

Desigualdades e globalização, Manuel Carvalho da Silva ........................................... 46

Amar como o partido de Cristas amou, Nuno Serra ................................................... 48

O voo dos abutres, Amarílis Felizes .............................................................................. 52

3. sistemA BAncÁRioResolução para o Ano Novo: mais nenhuma “Resolução” de improviso!, Ricardo Cabral ...................................... 52

Flibusteiros à abordagem do Novo Banco, Francisco Louçã ..................................... 53

Nacionalizar o Novo Banco é preciso!, Ricardo Cabral .............................................. 55

Quanto custa o elefante que mora na sala?, Francisco Louçã ................................... 56

4. livRos e filmesUtopias há mesmo muitas, João Rodrigues ................................................................. 59

A Condição Privada, Renato do Carmo ......................................................................... 61

Estado de Crise, António Carlos dos Santos .................................................................. 63

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cARlos PimentA

intRodução

1. Este título exige dois comentários prévios para que o leitor não seja induzido em erro.

O primeiro refere-se à terminologia “fuga ao fisco”. Sabemos que estamos a fazer a trans-posição de um terminologia do conhecimento corrente para o que pretendemos ser uma lei-tura científica da problemática a estudar. Sabemos que o rigor aconselharia uma terminologia mais cuidada: “devem ser consideradas três categorias principais de comportamentos fiscais: Gestão fiscal intra legem (o planeamento legal), extra legem (elisão fiscal ou planeamento fiscal abusivo) ou contra legem (fraude fiscal ou evasão fiscal em sentido estrito)” (Moreira 2014, 11). Sabemos que a análise poderia ser mais fina, referindo-se especificamente quais as leis reinterpretadas ou violadas em cada um dos procedimentos ou “adoptar a distinção planea-mento fiscal vs ilicitude fiscal ou tributária, inserindo os comportamentos abusivos no conceito de planeamento fiscal abusivo” considerando que este está “dentro da legalidade tributária, nomeadamente não existindo ocultação ou alteração de factos” não estando “preenchido o requisito da intencionalidade” (Glória Teixeira in Cruz et al. 2013, 572/3). Contudo se a nossa formulação é aparente mais imprecisa ela está mais conforme com as estimativas quantifica-das susceptíveis de cálculo e, sobretudo, adopta uma maior abrangência: não está em acusa apenas a violação ou não da lei mas a própria natureza ética da legislação existente. Estamos a considerar o que a lei diz e o que ela não diz intencionalmente, as suas afirmações e também as suas ambiguidades, a diferenciação entre a inflexibilidade perante alguns e a docilidade bene-

BREVES APoNtAMENtoS SoBRE A REdução dA FugA Ao FiSCo

CoNhECER E AgiR1

EStudoS

1. Este singelo texto começou a assumir forma na intervenção feita no dia 22 de outubro de 2016, em Lisboa, na sessão sobre «Política Fiscal» no encontro do Bloco de Esquerda «Que Orçamento para Portugal?». Apesar do afirmado ser da minha inteira responsabilidade apraz-me dizer que os eventuais conhecimentos revelados resultam essencialmente do trabalho no observatório de Economia e gestão de Fraude (http://www.gestaodefraude.eu), associação, sem fins lucrativos, para a aquisição de novos saberes sobre a fraude e a corrup-ção, contribuindo, pela formação e informação, para a sua detecção e prevenção. É política do oBEgEF responder a todas as solicitações que lhe sejam feitas visando uma sociedade mais ética.

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01. estudos

volente perante outros. Tanto é condenável a violação da lei como a lei que permite a violação da ética social e a igualdade de todos perante a lei. Tanto se refere às leis, decisões judiciais e acordos firmados, como às práticas sociais que lhe correspondem, havendo frequentemente uma “domesticação do imposto” e das práticas com ele correlacionadas2. Não basta ter em conta a legislação existente, é igualmente necessário referir os conflitos de interesse que mui-tas vezes conduzem à sua produção.

O segundo tem a ver com o prazo de referência. Porque hoje o curto prazo domina os mundos do negócio e da informação, porque estas dinâmicas influenciam fortemente as prá-ticas políticas, reforçadas pelo ciclo político e eleitoral e pelas dinâmicas interna, europeia e internacional, frequentemente conflituosas e instáveis, tende-se a analisar o combate à fuga ao fisco como parte desse processo, umas vezes consubstanciado em interpretações sólidas da realidade social, outras ao sabor da ideologia ou dos debates efémeros de ocasião. Não menosprezando essa actuação sobre o momento, a capacidade de assumir intervenções rápi-das — antes pelo contrário quando elas reforçam a ética e a democracia — a nossa posição é diferente. A nossa referência é saber para actuar com mais eficácia, é combinar o curto com o médio e o longo prazo.

Feitos estes esclarecimentos para situar o leitor, lancemos algumas poucas, mas que repu-tamos como relevantes, pistas de trabalho.

A quAntificAção PossÍvel dA fugA Ao fisco

2. Quando nos referimos à “fuga ao fisco” surge-nos quase espontaneamente a imagem da sonegação de informações. A constatação do realismo desta hipótese conduz-nos de imediato para operações económicas de que não existem estatísticas oficiais, que escapam à contabi-lidade nacional3.

O Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) tem procedido ao cálculo da economia não registada em Portugal ao longo dos últimos anos até 2015, último ano para que existe informações. Dessas estimativas podemos constatar dois factos:

• A economia não registada (“não observada” na terminologia da OCDE ou “paralela” na linguagem corrente) ronda actualmente os 50 mil milhões de euros, representando 26% a 27% do produto interno bruto (PIB)

• Tem registado ao longo de décadas uma tendência de aumento de peso no PIB.

Se o primeiro facto revela a imensidão da economia não-registada, manifestamente acima da média da OCDE4, a segunda — resultado essencialmente das alterações do capitalismo

2. Embora de âmbito muito localizado, esta terminologia foi recordada por Spire (2011). Voltaremos ao tema a propósito dos paraísos fiscais, jurisdições de sigilo.3. Para quem se queira familiarizar rapidamente com esta terminologia sugerimos Pimenta (2016) ou gonçalves (2014)4. Alertemos que pelas técnicas adoptadas (a necessidade de tomar um valor como referência) uma análise diacrónica pode apresentar valores ligeiramente diferentes de uma sincrónica.

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mundial nas últimas décadas e da inserção espontânea ou deliberada do nosso país nessa globalização5 — é indicativa de uma espontânea tendência para se gerar uma auto-reprodução da economia não registada.

3. Contudo a economia não registada engloba essencialmente três parcelas significativas e relevantes para a nossa análise, e só uma delas está directa e deliberadamente relacionada com a fuga ao fisco.

Utilizando a terminologia da OCDE (2002)6 a economia não registada decompõe-se em a economia subterrânea, a economia ilegal e a economia informal, sendo a primeira a que mere-ce especial atenção por parte daquele organismo internacional:

“todas as actvidades legais de produção ocultadas deliberadamente das autoridades públicas por uma das seguintes razões:

• evitar o pagamento dos impostos sobre o rendimento o valor acrescentado ou outros

• evitar o pagamento das contribuições para a segurança social

• evitar o cumprimento de certas normais legais tais como salário mínimo, horas ex-traordinárias, normas de segurança e saúde, etc.

• evitar o cumprimento de certos procedimentos administrativos tais como questioná-rios estatísticos ou formulários administrativos.” (pág. 139)

Mais do que a economia não registada é a economia subterrânea que nos interessa, ao tra-tarmos da fuga às obrigações fiscais. Qual o seu peso nos 50 mil milhões? Não sabemos. As de-duções susceptíveis de serem feitas a partir das metodologias adoptadas não são coincidentes:

• No cálculo da economia não registada calculada pelo OBEGEF tem sido adoptado pre-ferencialmente o modelo MIMIC (Múltiplos Indicadores Múltiplas Causas)7. Tendo em conta os indicadores quantificados pelo sistema estatístico nacional susceptíveis de serem utilizados como indicadores ou causas, somos tentados a afirmar que a economia ilegal está insuficien-temente reflectida no resultado obtido, pelo que a grande percentagem do referido montante será de economia subterrânea.

• Estes resultados são confirmados pelas estimativas de Schneider8 que designa o resul-tado da utilização do modelo MIMIC, com as variáveis escolhidas, como economia sombra, a qual se aproxima do que anteriormente designamos por economia subterrânea9.

5. Porque esta é uma palavra polissémica precisemos que referimo-la aqui no sentido atribuído em Pimenta (2004), associada à financia-rização e à “livre” circulação do capital.6. Revelando a grande importância atribuída pela OCDE a esta temática, refira-se que este livro é o resultado do longo trabalho de um grupo constituído para o efeito. Em 2002 foi editado em inglês, no ano seguinte em francês e em 2008 em espanhol. Mais, defende que a economia não registada deve ser incorporada na contabilidade nacional e propõe novas metodologias para o seu cálculo. Estas, experi-mentadas em alguns países, revelaram-se, no entanto, pouco operacionais e caras.7. Para uma pormenorização do modelo ver, por exemplo Afonso e gonçalves (2009), gonçalves (2010)8. A lista de trabalhos deste autor, frequentemente em co-autoria, é grande. Caso queira analisar um pouco a sua metodologias sugerimos Ernste e Schneider (1998), Schneider e Klinglmair (2004), Buehn e Schneider (2008, 2012)9. Esperando que o leitor não fique terminologicamente confundido, sugerimos também a intervenção deste mesmo autor em Pimenta (org.) et al. (2014, 31-49)

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• Também parecem ser confirmados por cálculos a partir do gap fiscal, como referimos na nota 12

Simultaneamente os cálculos feitos com outros modelos susceptíveis de captar mais a economia ilegal, como o modelo monetário, chegam a resultados semelhantes aos encontra-dos pelo MIMIC com as variáveis utilizadas10, o que faz prudentemente desconfiar da validade da nossa constatação anterior.

Uma coisa é certa: a fuga ao fisco como intenção primeira da sonegação de informações, espelhada na economia não registada é bastante elevada, e bastante significativa no produto interno oficial.

4. Contudo, seria de uma ingenuidade atroz identificar a fuga ao fisco com a economia subterrânea, não reflectida na contabilidade nacional. Muitas das operações que afectam as receitas fiscais do Estado resultam de operações registadas na contabilidade nacional11. Tal é a variedade desates procedimentos que somos tentados a admitir que sejam maiores que os valores anteriormente estimados.

Em síntese a fuga ao fisco será igual à economia subterrânea, mais as operações regista-das na contabilidade nacional que servem de suporte a operações não éticas de redução do pagamento de impostos, muitas de natureza fraudulenta.

5. Não podemos, nem devemos, esperar por qualquer quantificação mais aproximada para agirmos. O anteriormente referido mostra inequivocamente a imperiosidade de uma actuação imediata, mas poderíamos ser muito mais eficazes se os valores da fuga aos impostos, quiçá decompostos segundo uma ou várias grelhas de critérios, fossem mais rigorosos e detalhados.

Para tal é necessário uma conjugação de esforços de todos que se têm dedicado a este tipo de análises: INE, que é responsável pela Contabilidade Nacional, Autoridade Tributária, que faz cálculos sobre o gap fiscal12, OBEGEF, que tem o índice de economia não registada, e certamente outros especialistas. A conjugação de esforços é socialmente mais proveitosa que o isolacionismo e a tendência de cada um para considerar que os seus dados estão certos e os restantes errados.

Esta é a nossa primeira proposta de conhecer mais para agir melhor.

10. Ver Soares e Afonso (2016).11. Esta constatação tem sido muito difícil de ser transmitida junto dos órgãos de informação e da opinião pública, como o demonstram al-guns anos de divulgação destas temáticas. Por isso deixemos alguns escassos exemplos. Quando há operações registadas com facturas falsas que visam reduzir os impostos a pagar, essas operações estão registadas na contabilidade das empresas e fazem parte da conta-bilidade nacional. Quando as operações comerciais entre países da uE permitem a fraude carrossel, isto é, diversas empresas receberem iVA quando deviam pagar, isso está registado na contabilidade. Quando à manipulação de preços de transferência, seja entre empresas reconhecidamente do mesmo grupo económico, ou envolvendo empresas sediadas em paraísos fiscais que são do mesmo grupo empre-sarial sem o parecer, tais operações ficam registadas na empresa e na contabilidade nacional oficial.12. grosso modo, o gap fiscal mede a diferença entre o que o Estado estima receber se todos cumprissem as suas obrigações fiscais e o que efectivamente recebe. Esta diferença tanto pode resultar de fuga ao fisco, no sentido que lhe temos vindo a atribuir, como de outros aspectos como falências e insolvências financeiras resultantes tão somente das contingências do negócio. Utilizemos um estudo recente (Poniatowski, Bonch-osmolovskiy, e Belkindas 2016) para ilustrar as possibilidades de cálculo abertas por esta via. Cálculos apressados: (a) trata do gap no iVA; (b) segundo o Quadro 2.1 a taxa média esperada do iVA seria em 2014 de 11,4 (resultado da aplicação das taxas em vigor para diferentes bens: 6%, 13% e 23%); (c) o gap no iVA estimado para 2014 foi de 2.093 milhões de euros; (d) considerando a taxa média tal significou o não recebimento de IVA em operações num montante de 18.359 milhões de euros.

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moRAl fiscAl, lAtus sensus

6. “As pessoas associam à fraude fiscal uma conotação muito negativa, ou seja, conside-ram que é um comportamento repreensível” e “impostos, político e roubo pertencem a este conjunto de elementos estáveis e não negociáveis das representações da fraude fiscal” (Pereira 2015, 21). Contudo

a “utilização indevida de recursos da empresa” (…); os “serviços não declarados aos im-postos” (…); a “não entrega de declarações de impostos” (…) são os comportamentos de frau-de menos graves (…). Por outro lado, a “criação de empresas fictícias para faturação falsa” (…), a “falsificação de recibos” (…); as “falsas prescrições de receitas médicas” (…) foram conside-rados os comportamentos mais graves. (…) os participantes mencionaram que o “download de músicas na internet” (…); o “roubo de produtos num supermercado” (…) e o “jogo de apostas ilegais” (…) são comportamentos menos graves comparando com a fraude fiscal. Por outro lado, a “falsificação de dinheiro” (…); a “venda de drogas ilegais” (…) e “a aceitação de subor-no no exercício das suas funções” (…) são considerados comportamentos mais graves que a fraude fiscal. (idem, 22/3)

Estas breves e incompletas referências às representações sociais da fraude fiscal em Por-tugal demonstra inequivocamente que elas têm muitos cambiantes, moldando de forma di-versificada os comportamentos quanto à prática e à reprovação da fuga fiscal, o mesmo se podendo dizer em relação à panóplia de constatações que agravam ou atenuam a gravidade de fraude fiscal e à forma diferenciada da sua manifestação nos múltiplos segmentos da nossa sociedade13.

Mas estes parcos dados também demonstram que pode ser manifestamente nefasto pro-mover-se o combate à fuga fiscal com estereótipos frequentemente admitidos — ex. fugir aos impostos é uma demonstração de esperteza perante os outros — ou com medidas há muito reconhecidas como insuficientes ou ineficazes — ex. intensificar a repressão.

Por isso defendemos que é extremamente importante conhecer detalhadamente quais são as motivações intrínsecas das pessoas e das instituições para pagar, ou não, impostos, como se repartem pelos diversos segmentos da sociedade portuguesa14. É imperioso e urgente estudar profundamente o que é habitual designar, na literatura científica, por moral fiscal, ou moral tributária (tax morale na terminologia anglo-saxónica).

13. Os estudos sobre a realidade portuguesa são escassos, incompletos e frequentemente carentes de representatividade estatística ‒ veja-se, para além do citado, Moreira (2014) ‒ mas não deixam de revelar questões interessantes e preocupantes. Por exemplo no estudo que citamos conclui-se fundamentadamente que “as pessoas com rendimentos elevados (…) e as pessoas com habilitações elevadas (…) são consideradas como grupos de maior propensão para a fraude fiscal” (23) ‒ embora em Sá (2013), o estudo mais detalhado que conhecemos sobre Portugal, se reconheça que as pessoas com “maior nível de formação académica (…) declaram maior predisposição para o pagamento de impostos” (10). Perante estes dados é legítimo perguntar se o trabalho para obtermos um país mais desenvolvido e com uma população com maiores habilitações não será, simultaneamente, criar um país com mais fraude fiscal.14 Quanto mais se souber sobre as representações sociais e os comportamentos relacionados com a fuga à fiscalidade melhor. É sempre possível analisar novos aspectos, proceder a diferentes segmentações, acompanhar as mudanças sociais no que se refere a estes aspec-tos, medir a eficácia das políticas adoptadas. Contudo em Portugal a preocupação é criar um primeiro conhecimento consolidado sobre a problemática, preferencialmente interdisciplinar e interparadigmático.

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7. Está fora dos propósitos destes apontamentos, e para tal não possuímos conhecimen-tos suficientes, elaborar uma teoria sobre a moral fiscal15, limitando-nos a chamara a atenção que para tal não basta ter em conta os cidadãos individualmente considerados. Devemos ter em conta as empresas e outras realidades que estão encobertas na sociedade em que vivemos mas que são crescentemente dominantes: a criminalidade organizada e a criminalidade de colarinho branco.

que agora mencionámos, sejam interdisciplinares15 e interparadigmáticos16. Se tal consta-tação — simples de obter e difícil de realizar — é o reconhecimento de que os comportamen-tos resultam da acção indissoluvelmente interligada das idiossincrasias individuais e vontade própria com os contextos sociais em que se inserem, tal imperiosidade está também associada a interligação entre esta nossa segunda proposta (conhecer profundamente a moral fiscal em Portugal) com a que apresentamos no ponto seguinte.

O que é fundamental aqui reter é que é inviável uma política de detecção e combate da fuga à fiscalidade sem um bom conhecimento da realidade portuguesa e sem a capacidade dos políticos entenderem que as ideias estereotipadas da realidade que desconhecem, mui-tas vezes sem disso terem consciência, podem funcionar como um logro para o trabalho que eticamente desejam realizar “ao serviço do país”. Necessitam de uma bússola cientificamente válida para as medidas a tomar.

Além disso sendo os recursos de detecção e prevenção da fraude fiscal bastante escassos, mesmo que bem geridos e aplicados, é de todo conveniente que haja um conhecimento prévio dos espaços sociais de maior probabilidade de fuga aos impostos.

Aqui fica, pois, a nossa segunda proposta de conhecer para agir, com a explicitação que o próprio estudo tem de ter a capacidade, como a sociedade em que vivemos, de ser democrá-tico, reflectindo de forma articulada, coerente e coesa, vários saberes disciplinares, também eles exprimindo a diversidade de referências filosóficas, epistemológicas, políticas e culturais sobre a realidade em análise.

15. Apesar da grande quantidade de artigos, livros e teses sobre a moral fiscal não é fácil aconselhar leituras porque a grande maioria visam a constatação empírica da influência, ou não, de determinado aspecto social numa determinada região. Deixamos, no entanto, al-gumas sugestões. Sugerimos que, numa primeira fase, tomem como referência os dois trabalhos a que já fizemos alusão sobre Portugal. Para além da leitura desses trabalhos, será interessante reter, de um (Sá 2013), a bibliografia sobre a história do conceito e os autores de Economia mais relevantes e, de outro (Pereira 2015), a bibliografia sobre as representações sociais. Da literatura recente sugerimos, eventualmente a seguinte: torgler e Schneider (2007), Luttmer e Singhal (2014), Lisi (2015), Saeed e Shah (2011), daude, gutiérrez, e Melguizo (2012). indicamos ainda dois trabalhos sobre a uE: Lago-Peñas e Lago-Peñas (2010), Williams e horodnic (2016).16. A política fiscal tem sido campo privilegiado dos juristas e dos economistas, mas a concepção desta, a detecção e a prevenção da fuga fiscal, assim como o conhecimento da moral fiscal exige, imperiosamente outro tipo de especialistas, Respeitando a importância que tem sido assumida pelo Direito e a Economia podemos admitir, à partida, que a Psicologia Social tem uma função relevante ‒ ou não fossem as representações sociais um conceito indispensável ao estudo do problema ‒, assim como a Sociologia ‒ ou não fosse o conceito de capital social importante para compreender as relações sociais. Além disso há comportamentos ilícitos, fraudes económico-financeiras, remeten-do para a constatação de que a Criminologia tem algo a dizer. outras ciências sociais podem ser chamadas a dar os seus contributos em função dos resultados: por exemplo, se certas regiões forem mais defraudadoras e queremos aí intervir não basta essa constatação, há que encontrar explicações nas dinâmicas locais; se a religião ou a cultura influenciar de uma certa forma também há que perceber porquê e como isso acontece.17. As ciências sociais são atravessadas por diversos paradigmas, entendendo estes como “conjunto de princípios gerais de interpretação dos problemas a serem analisados e dos métodos adoptados que se manifestam como alternativa a outros, com os quais coexistem num mesmo período histórico” (Pimenta 2013, 138). os paradigmas têm determinantes sociais e epistemológicas, surgindo as primeiras como condicionantes objectivas. Nunca há soluções sociais únicas embora no discurso partidário haja tendência para o monismo conceptual e operativo. Se queremos ser cientificamente correctos temos de se ter em conta a existência dessa diversidade.

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PlAno integRAdo de comBAte à fRAude fiscAl

8. Ao tratarmos da fraude económico-financeira, em que a fraude fiscal se integra, sa-bemos antecipadamente que estamos mais perante um processo do que face a uma fraude isolada e que cada uma destas é o resultado de multíplices factores pertencentes a múlti-plas camadas sociais, desde o comportamento individual à organização da sociedade plane-tária. Enquanto processo há forte probabilidade que uma fraude seja consequente de umas e antecedente de outras. Enquanto resultado da interacção das múltiplas camadas, e também influenciando-as, temos de considerar uma infinidade de factores permissivos e impositivos antecedentes da fraude, assim como efeitos recíprocos e de interacção18.

Porque o objectivo é detectar as fraudes e impedi-las e, numa lógica de mais longo prazo e eficácia, prevenir a sua redução e superação, seria conveniente qualquer entidade ter em conta a globalidade das situações e sobre elas exercer uma influência, mas tal nem sempre é pos-sível. A acção possível de cada interveniente na detecção e prevenção da fraude está condi-cionada pelas suas funções sociais e capacidade jurídica de intervenção. Uma empresa estará essencialmente condicionada ao seu próprio espaço e, indirectamente, das instituições a que pertença, assim como um cidadão estará fortemente condicionado ao seu campo de influência social e quadro legal. Contudo, quando estamos a falar da acção do Estado no combate à frau-de é imperioso e urgente que se considerem as diversas camadas intervenientes no processo.

Por outras palavras, o combate duradoiro e eficaz do Estado à fraude, ou a um seu tipo específico, exige a consideração de múltiplos planos de interacção, articulados nos tempos de realização e impacto específicos de cada intervenção. É a este plano global, articulado e coe-rente que nós designamos por plano integrado de combate à fraude.

PoRmenoRizemos no que se RefeRe à fRAude fiscAl.

9. Exemplifiquemos para ilustrar situações, mas com a clara consciência que não estamos a invocar todos os aspectos possíveis.

A fraude fiscal é eventualmente influenciada por uma série de factores que estão direc-tamente relacionados com a fiscalidade. Todos os conhecemos: a carga fiscal, repartição da carga fiscal por impostos e níveis de rendimento, a organização e funcionamento da autori-dade tributária, o número de inspectores e sua preparação académica bem como a confiança dos cidadãos no Estado e no Ministério das Finanças. Contudo ficarmos exclusivamente por essa constatação seria de uma miopia e atavismo sociais confrangedores. Todos sabemos que a educação cívica e a ética da população, a estrutura de análise do risco de fraude praticada pelas instituições privadas e públicas, o ambiente geral de funcionamento da economia não re-

18. Apesar de nos parecer que a sequencialidade e a diversidade de camadas influenciadoras da fraude serem de fácil constatação, a tendência na literatura é para estas vertentes serem subestimadas e na acção ser substituída por acções isoladas e pontuais, quiçá apli-cando a metodologia cartesiana, quiçá estando cada agente limitado no seu espaço de intervenção. Por isso abordámos o assunto em Pimenta e Afonso (2014).

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gistada e as diversas fraudes económico-financeiras existentes, até a preparação dos gestores das empresas para praticar ou combater a fraude fiscal19 são alguns dos muitos factores con-dicionantes da existência e reprodução das fraudes que estamos a considerar. Destes singelos exemplos podemos facilmente concluir que a eficácia das medidas exclusivamente fiscais para combater a fraude pode ser muito limitada. Se não tivermos em atenção a multiplicidades de aspectos corremos o risco de, ao mesmo tempo que estamos a tomar algumas medidas de combate à fraude fiscal, também estamos a criar condições para o seu aumento, por efeitos perversos daquelas ou por proveniência autónoma.

Na melhor das hipóteses a capacidade de intervenção do Estado resume-se ao espaço de soberania autónoma ou partilhada e aí compete tomar decisões de combate à fraude. Assim sendo, no quadro da importância relativa das políticas orçamental e estrutural de desenvolvi-mento pode tomar medidas fiscais em sentido estrito, criar um ambiente empresarial favorável à análise de risco de fraude, reforçar a confiança dos cidadãos e das instituições no Estado e na aplicação das receitas fiscais, reforçar a regulação, fiscalização e criminalização nos aspectos considerados oportunos, favorecer um ensino eticamente exemplar ou qualquer outro aspecto. Eis alguns exemplos de uma política interna que pode ser conduzida. Contudo se a coerência é um valor da política de um Estado, estes aspectos não podem nunca ser dissociados das posições internacionais assumidas. Até porque, muito provavelmente, é no plano internacional que se situam alguns dos factores mais permissivos, mesmo impulsionadores, da fraude fiscal interna a cada um dos países. É o caso do eufemisticamente designado consenso de Washing-ton, do poder das organizações criminosos transnacionais (muitas vezes associadas às elites económicas e políticas legalmente instituídas e disseminando-se no tecido empresarial) ou tão somente da existência de paraísos fiscais ou do sistemático adiamento da aplicação de uma taxa Tobin20 aos movimentos de capitais. Por outras palavras um plano integrado de combate à fuga fiscal exige uma posição harmónica das políticas interna e externa de cada Estado.

Qualquer um de nós perceberá que o tempo que medeia entre o momento de uma inter-venção e a produção dos seus impactos sociais é diferente conforme o conteúdo da política adoptada.

Se altero a taxa fiscal aplicada a alguns rendimentos posso alterar quase de imediato, positiva ou negativamente, a fuga ao fisco. Se alterar outros aspectos da lei tributária, ou, por exemplo, o funcionamento da regulação do sistema financeiro, posso ter impactos de curto prazo, mas não imediatos. Se criar condições para uma educação mais ética, um capital social mais positivo nas relações entre os cidadãos ou as instituições, maior literacia financeira ou

19.tenho assistido ao crescente monolitismo do paradigma da escolha racional e ao impacto negativo que tal pode ter sobre o comporta-mento ético dos futuros cidadãos, como reflecti em Pimenta (2015) e em dois outros escritos ainda no prelo.20. tobin, Prémio Nobel da Economia, propôs em 1970 aplicar um imposto diminuto (de 0,1% a 0,25%) sobre as operações cambiais vi-sando atenuar os movimentos especulativos e proteger as economias face aos mercados financeiros. Em homenagem a este economista hoje designa-se por taxa tobin a proposta de aplicação de um reduzido imposto sobre os movimentos de capitais, o que ganhou novo folgo depois da crise de 2008. Para além da receita que traria (defendendo-se frequentemente a sua utilização para fins “bondosos”), permitiria quebrar ligeiramente a livre circulação dos capitais financeiros. Se uns lutam por tal outros hipocritamente parecem aceitar, mas actuam de forma diferente. É o caso da união Europeia que aprovaram a sua aplicação e as suas pequenas taxas (menor para as opera-ções mais especulativas) mas sucessivamente protelam a sua aplicação. Estima-se que representariam 35.000 milhões de euros por ano.

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ainda, como exemplo, a análise de risco de fraude nas empresas, os efeitos destas medidas são de longo prazo, diferente de caso para caso. Entretanto a maior confiança dos cidadãos e das instituições no governo ou na autoridade tributária pode demorar muitos anos a construir e poucas semanas a destruir.

Enfim, é necessário combinar todos estes aspectos numa estratégia e táctica de actuação única que conheça bem a realidade (para o que pode contribuir o conhecimento detalhado da moral fiscal, apesar de esta ter influências para além do que aqui referimos), que seja ar-ticulada e coerente, que seja continuada no longo prazo, que seja de combinação adequada dos diversos tempos de obtenção de resultados das medidas, que seja harmónica entre as actuações nacionais e as posturas internacionais (embora sobre estas não haja capacidade de decisão imediata).

Esta é a nossa terceira proposta, associada parcelarmente com a nossa proposta anterior: se elabore cientifica e colectivamente — este aspecto é decisivo se queremos um resultado focando diferentes posturas, saberes e sensibilidades — um plano integrado de combate (es-sencialmente prevenção) à evasão e fraude fiscal. Tenhamos igualmente consciência que o imobilismo ou as medidas avulsas podem ser insuficientes para estancar e inverter a referida fuga aos impostos, pois o não cumprimento das regras fiscais aumenta (no caso da fraude organizacional) a competitividade em relação às empresas cumpridoras.

10. Sabemos que existem muitas resistências à adopção de um tal plano: os horizontes de curto prazo dos ciclos políticos; a tendência à auto-suficiência dos políticos; a incomodidade para os decisores da pluralidade de vozes disciplinares e paradigmáticas; o reduzido conheci-mento sobre a fraude económico-financeira; a escassez de planos de prevenção do risco de fraude e de políticas antifraude; os conflitos de interesse e os grupos de pressão, formalizados ou não. Nos tempos actuais também contribuem as rupturas entre o «interesse nacional» e o «interesse europeu»; os discursos ideológicos de negação do Estado ou da subordinação des-tes aos «mercados»; enfim, a própria globalização na forma que tem assumido.

Mas não são essas dificuldades que nos poderão impedir de propor e lutar pela sua con-cretização.

os PARAÍsos fiscAis

11. É impossível falar em fuga ao fisco num qualquer país sem entrar em consideração com os paraísos fiscais.

Os seus nomes oficiais são diversos: “centro de negócios internacional”, “entreposto” ou nenhum em especial. Cada situação é específica e diferente das outras pelas condições que são oferecidas, pelos impostos que são seleccionados nas bonificações, pela legislação existente, etc., mas todos eles apresentam um conjunto de características comuns: “fiscalidade fraca ou nula para os não residentes; forte segredo bancário: forte segredo profissional; extrema facili-

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dade de constituição de sociedades; liberdade de movimento de capitais e rapidez da sua exe-cução; suporte de um grande centro financeiro e acordos bilaterais; estabilidade política e boa imagem de marca.” (Ducouloux-Favard 2010, 25). Uns designá-los-ão como paraísos fiscais, outros como paraísos fiscais e judiciários, outros ainda como jurisdições de sigilos conforme o aspecto que consideram mais relevante na sua caracterização. Vulgarmente são designados como offshores por serem para estrangeiros, estando as suas características vedadas para os nacionais21.

12. Ninguém duvidará da importância social mundial dos paraísos fiscais. Apesar da difi-culdade das estimativas da riqueza acumulada neles, cálculos referentes a 2010 estimam que nos paraísos fiscais estivessem, naquele ano, entre 21 biliões e 32 biliões22 de dólares. Mais que de 50% das transacções das multinacionais passam — contabilisticamente, entenda-se — pelos offshores. Os montantes provenientes dos países subdesenvolvidos (em vias de desen-volvimento na terminologia oficial da «cooperação internacional») para os paraísos fiscais (lo-calizados nos países desenvolvidos ou suas áreas de influência, em países internacionalmente reconhecidos como bem comportados, referências do mundo contemporâneo) é superior, ao que eles receberam como «ajuda ao desenvolvimento».

Mas a sua importância social e criminológica está para além dos valores envolvidos. São a principal via de branqueamento de capitais, são o local de salvaguarda das receitas prove-nientes de tráficos criminosos, aumentam a opacidade dos mercados, promovem uma con-corrência fiscal e reforçam a tendência dos mais ricos terem menor carga fiscal, mesmo pelos quadros legais de muitos países, permitem muitos milhões de fraudes à escala mundial, são agentes activos da empresarização dos Estados. São pilares centrais da «ditadura do merca-do» contra a «democracia dos povos», um ponto de encontro das organizações criminosas transnacionais de colarinho branco23.

Os paraísos fiscais são a expressão do cinismo do sistema, como o demonstra a profunda divergência entre as declarações e a realidade ou o facto da «regulação» dos paraísos fiscais estar entregue à OCDE, apesar do enorme conflito de interesses que revela (a OCDE é consti-tuída, e liderada, pelos próprios países que possuem os paraísos fiscais).

13. Sabemos que é uma luta difícil acabar com os paraísos fiscais. Sabemos que tudo o que

21. É difícil inventariar todos os paraísos fiscais embora muitos sejam reconhecidos por todos. GAFI (Grupo de Acção Financeira Interna-cional), FMi (Fundo Monetário internacional) e oCdE (organização para a Cooperação e desenvolvimento Económico) são algumas das instituições internacionais que estão incumbidos dessa tarefa. Muitos países também têm a sua listagem. Frequentemente os paraísos fiscais são classificados em «mal comportados» (lista negra), «insuficientemente cooperantes» (lista cinzenta) e «cooperantes» (lista branca). A passagem da primeira lista para este quadro de honra depende dos compromissos formais comprometendo-se a cooperar no futuro, o que quase sempre não passa de uma boa intenção para aparecer com estatuto mais atraente para os capitais. Quase sempre estes acordos ou não produzem a troca de informação que se poderia supor, porque a própria organização interna do paraíso fiscal permite superar essa situação (por exemplo, o proprietário da riqueza aí depositada não aparece como tal, qualquer desconfiança sobre uma conta desencadeia a imediata passagem para outro paraíso fiscal). Sugerimos, em alternativa àquelas listagens a consulta da lista fornecida pela Tax Justice Network, designada por Financial Secrecy Index (http://www.financialsecrecyindex.com/).22. A designação dos números superiores ao milhão não é internacionalmente uniforme. os biliões na terminologia portuguesa europeia seria triliões noutras línguas. Por isso não há como a representação matemática: entre 21x1012 e 32x1012 de dólares.23. hoje as organizações criminosas estão estreitamente associadas às elites económicas e políticas. Sobre este assunto sugere-se o autor fundador desta problemática, Sutherland (1983 [1949]), e para uma análise mais recente gayraud (2011, 2012).

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reduza o seu sigilo, permita o combate ao branqueamento de capitais e viabilize um esclareci-mento dos cidadãos de todo o mundo sobre a sua natureza benéfico é bem vindo. Contudo é insuficiente. Devemos lutar pelo seu fim.

Por isso, apesar de pouco termos dito sobre os paraísos fiscais24, consideramos vital aqui colocar uma última proposta:

Que o Estado Português defenda no plano internacional o fim dos paraísos fiscais.

Que a lista oficial portuguesa de paraísos fiscais seja ampliada de acordos com o que é reconhecido internacionalmente25.

Se acabe com o branqueamento da «Zona Franca da Madeira», com os seus benefícios fiscais e empresas fantasma, apenas existentes para operações contabilísticas26.

o muito que ficou PoR dizeR

14. Muito mais haveria a dizer. Não faltam sugestões que todos nós podemos apresentar.

É importante que as apresentemos e que lutemos por elas. Contudo o nosso objectivo principal foi lançar, e somente isso, grandes pistas para uma metodologia de combate à fuga fiscal de longo prazo que possa produzir resultados já hoje.

24. Algumas sugestões de leitura genérica, de entre a imensidade de literatura existente: ducouloux-Favard (2010), Christensen (2012a, b), Shaxson (2012), Perrot (2016) 25. Se compararmos os primeiros lugares dos países, ou regiões, da lista da TJN (Financial Secrecy Index) com a lista oficial portuguesa constatamos de imediato a ausência da Suíça, dos EuA (ou dos estados que o são) do Luxemburgo e da Alemanha. Recorde-se Lux-Leaks, o papel central do Luxemburgo nas transferências internacionais, os acordos secretos então identificados e as revelações feitas pelo international Consortium of investigative Journalists, para mais estranharmos a lista portuguesa!26. Este assunto exigiria bastante mais detalhe, mas deixamos aqui três apontamentos: (1) o entreposto da Madeira é um paraíso fiscal, como o demonstra inequivocamente Martins (2011); (2) Não é possível defender internacionalmente uma posição ética e esquecê-la em casa; (3) Como reafirma Louçã no Prefácio do livro acima referido “o offshore é prejudicial à economia (…) O orçamento português perde centenas de milhões de euros por causa de uma mentira”.Sobre este último aspecto diversos estudos mostram que a região e o país não tem beneficiado com a «Zona Franca», confirmando uma tendência recente para comparar os impactos dos paraísos fiscais com a «maldição dos recursos naturais». Ver, por exemplo, Christen-sen, Shaxson, e Wigan (2016).

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VARiÁVEiS MACRo ECoNÓMiCAS E PAÍSESeuropa ou união europeia: baluartes de

coesão ou espaços de clivagem?dados da Comissão Europeia sobre 2011 | Statistical Annex of European Economy

eRnesto v.s. figueiRedo

i. intRodução

Procuraremos no seguimento dar conta de alguns resultados encontrados sobre 39 ins-tituições (países europeus, associações de países europeias e dois outros países), observados que foram todos em 54 indicadores macro económicos, editados pela Comissão Europeia, publicados no Statistical Annex of European Economy e relativos ao ano de 2011. São estatísti-cas secundárias oficiais que, acometidas de algumas deficiências (p. ex., presença de valores faltosos e diversidade de escalas de aferição), não impedem as variáveis de análise (países ou associações) de se tornarem extremamente comparáveis.

Constitui objetivo da investigação relatada responder a algumas dúvidas, hipóteses e sus-peitas que pairam no ar e estão latentes nas mentes de muitos cidadãos. Para tal, baseamo-nos no estudo das instituições, primeiro, globalmente, depois, desagregadas pelas seguintes en-tidades de importância reconhecida: 1º) Países da União Europeia (UE) a 28 membros (UE28); 2º) Países da UE28 e da UE a 15 membros (UE15); 3º)Países da UE28 e da UE a 13 membros (“UE13”, ditos de Leste); 3º) 4 associações de países europeias (a saber, UE28, UE15, Euro Área a 19 membros (EA19) e EA12), primeiro, sozinhas, depois, em simultâneo com os Estados Unidos da América (EUA ou USA) e Japão e, por último, 4º) cinco países balcânicos exteriores ao ter-ritório da UE28, oficialmente comprometidos com programas de reformas estatais impostas nos procedimentos de candidatura à adesão à UE, como membros de pleno direito, a saber, a Macedónia, Turquia, Montenegro, Sérvia e Albânia.

Apesar de não se tratar de um estudo de causalidade, o que nos move em primeira mão é analisar as relações de associação entre os objetos de estudo aos diferentes níveis enunciados e avaliar da coesão (ou homogeneidade) das mesmas. Dito de outra forma, será que a Europa, globalmente, e as diversas uniões europeias enunciadas (em consequência de uma conce-ção hierárquica) se pautam por relações de estabilidade (duradouras) ou, ao invés, podem ser encontradas clivagens ou fraturas entre parcelas de território europeu e, em tal caso, onde e quais os seus recortes de delimitação?

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01. estudos

Tivemos o cuidado de, em complementaridade do objetivo referido (de indagar a estrutu-ração regional supra nacional da Europa), avaliar os membros de cada subconjunto de países acima enunciados, com dois critérios independentes, mas complementares: a estabilidade re-lativa das entidades em escrutínio através do coeficiente de variação e o desempenho (produ-to) das mesmas entidades através da média aritmética de cada uma. Constituem estatísticas descritivas (de acumulação e de dispersão) que vale a pena manter sob controlo.

Como modelo de análise multivariada, utilizada para aferir a estrutura relacional, foi utili-zado o modelo de extração de Componentes Principais (CPs) da bem conhecida Análise Fato-rial (AF). Procedemos à usual gestão estratégica (de retenção e interpretação) das componen-tes que se mostraram dotadas de maior capacidade explicativa, de significado empírico sim-ples e extraídas em número mínimo de apenas quatro (quando extraídas nas 39 instituições) ou apenas uma (nas restantes situações). Aproveitámos sempre as duas primeiras CPs para produzir gráficos em espaço bidimensional.

Todo este trabalho dirigido para o estudo das instituições (países e associações) só foi possível tendo em consideração a observação (aferição ou registo) dos 54 indicadores eco-nómicos (aludidos acima), constituindo a segunda vertente, dita de recolha das variáveis con-dicionantes ou independentes. A matriz original dos dados define-se pelas (consta das) 39 instituições (variáveis dependentes objeto de estudo), por um lado, e pelos 54 indicadores (variáveis independentes ou elementos de observação), por outro. Revertendo ou invertendo o sentido do desenho experimental, teríamos outra temática a estudar que não se compadece com aquilo que nos ocupa nesta exposição.

Antes de passar à secção seguinte, vale a pena referir que, de estudos precedentes, é co-nhecido o facto de todas as instituições em foco serem correlacionadas mutuamente (entre si), de formas extremamente significativa e positiva (direta ou cooperante). Este facto é muito importante ser conhecido, já que, para além da alteração da forma usual que permite interpre-tar a estrutura correlacional entre todos os países e associações, apresenta efeitos diretos que se fazem sentir nos resultados que encontraremos no seguimento.

ii. PAÍses e AssociAçÕes dA (ue) e outRos PAÍses de foRA dA ue

Começamos a análise propriamente dita com o foco colocado nas 39 instituições, simul-taneamente. É de salientar, desde já, uma situação criada característica deste estudo, (repetida nos próximos ensaios), derivada do facto já mencionado de estarmos em presença de países e associações de países altamente correlacionados, de forma positiva. Esta circunstância (de informação redundante) tem por consequência direta que o número de componentes princi-pais extraídas, a fim de equivaler em informação ao elevado número das variáveis (instituições) existentes na matriz dos dados originais, se torna reduzido de forma abissal. Em semelhantes situações, lida-se com valores escassos da ordem da unidade ou pouco mais. Ocorre que op-támos por resolver o problema dos casos omissos (missing values) através da sua substituição

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pela média dos valores presentes em cada variável (instituição). Esta facto faz aumentar o nú-mero de CPs com valores próprios acima da unidade, de 2 para 4.

Por inspeção da Figura 1 abaixo, com uma tabela da Total Variance Explained e uma ima-gem do Scree Plot, colhe-se a informação de que as quatro 1ªs componentes, após rotação Varimax para melhor aderência aos dados, (1ª CP com valor próprio ou Eigenvalue 15.11, 2ª CP com valor próprio ou variância 15.10, 3ª CP com valor próprio 4.95 e 4ª CP com valor próprio 1.8), acumuladamente, respondem por 94.75% da variância total explicada, deixando 5.25% de variância residual não explicada (quase insignificante). Este resultado, ou outros semelhan-tes que iremos encontrar, atesta o sucesso experimental obtido. O diagrama em crivo, forne-cendo orientação para retenção do número de CPs mais adequado (de Eigenvalue acima da unidade), é explícito.

fig. 1: tabelada variância total explicada e diagrama em crivo

A Figura 2, abaixo, exibindo os valores das cargas ou correlações entre as quatro (1ª, 2ª,3ª e 4ª) componentes, por um lado, e as instituições que mais contribuíram para as respetivas esti-mativas, por outro, se bem interpretadas, afirmam que a 1ª CP se deve fundamentalmente aos contributos da Bélgica, Alemanha, Irlanda, Grécia, Espanha, França, Itália, Luxemburgo, Holan-da, Áustria, Portugal, Finlândia, EA12, Dinamarca, Suécia, Reino Unido, UE15, USA e Japão. Ou seja, claramente, aos países ditos do ocidente (UE15), acompanhados das duas associações de países (EA12 e UE15) explicando, após rotação varimax, 38.73% (no total de 94.75%) da variân-cia total explicada. A 2ª CP é sobretudo construída com auxílio da Bélgica, Estónia, Espanha, França, Chipre, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Áustria, Eslovénia, Eslováquia, Finlândia, EA19, Bulgária, República Checa, Croácia, Hungria, Polónia, Roménia, Suécia, UE28 e Turquia. Ou seja, claramente, deve-se aos países ditos de leste (“UE13”), acompanhados das duas associações de países (EA19 e UE28), explicando, após rotação varimax, 38.71% (no total de 94.75%) da variância total explicada. Observe-se que esta 2ª CP recebe fortes contributos de 7 países da UE15, a saber, a Bélgica, Espanha, França, Luxemburgo, Holanda, Áustria, Fin-lândia e Suécia. A 3ªCP revela-se sobretudo construída à custa da Macedónia, Montenegro, Sérvia, Albânia e Japão, ou seja, claramente, deve-se aos 4 países balcânicos de fora da UE28 (Macedónia, Montenegro, Sérvia e Albânia) acompanhados do Japão, explicando, após rota-

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ção varimax, 12.69% (no total de 94.75%) da variância total explicada. Observe-se a ausência da Turquia e a presença do Japão na prestação de forte contributo à génese da 3ª CP. A 4ªCP revela-se sobretudo construída à custa da Grécia e Japão, ou seja, claramente, deve-se aos 2 países tidos como desviantes da centralidade, explicando, após rotação varimax, 4,62% (no total de 94.75%) da variância total explicada.

fig. 2: 1ª,2ª,3ªe 4ª cPs e RepresentaçãoBidimensional das 39 instituições consideradas

A representação gráfica exposta na Figura 2 acima é também muito elucidativa. Mos-tra dois estratos (aglomerações de instituições), diríamos, em seguimento arqueado, com instituições nos dois extremos: do lado direito e mais próximos da 1ª CP, a Grécia e o Japão; do lado esquerdo e mais próximos da 2ª CP, a Estónia, Luxemburgo e Bulgária. Observem-se as grandes distâncias que afetam todas as instituições em relação à origem do sistema das coordenadas cartesianas. Tal significa que se trata de valores elevados das relações entre as instituições; ademais, como as marcações se situam todas no1º quadrante, comprova o facto, já assinalado, de serem todas positivas. A clivagem entre UE15 e UE13 torna-se por demais evidente.

iii. os PAÍses euRoPeus dA união euRoPeiA A 15 mem-BRos (ue15)

Sobre os países constituintes da UE15, teceremos os comentários seguintes. Apenas a 1ª CP extraída (com valor próprio de 14.13) explica 94.22% da variância total explicada, deixan-do 5.78% de variância sem explicação, o que é quase insignificante. Esta 1ª e única CP a ser considerada como estratégica, assenta nas contribuições mais elevadas dos seguintes países: Alemanha, Espanha, França, Luxemburgo, Holanda, Áustria, Portugal, Finlândia, Dinamarca, Suécia e Reino Unido, ou seja, a 1ª CP assenta em 11 de 15 (73%) dos países em escrutínio. Os quatro países da Bélgica, Irlanda, Grécia e Itália, a par da Espanha, França e Portugal dão su-porte à construção da 2ª CP, necessária exclusivamente para proceder à representação gráfica em espaço bidimensional.

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Fig. 3: Primeira CP Extraída e Representação Gráfica em Espaço Bidimensional

Por conseguinte, tendo em atenção os comportamentos (valores mais elevados) das duas 1ªs componentes e tendo como mapa orientador o gráfico dos países da UE15 em espaço bidi-mensional da Figura 3 acima, é fácil concluir-se que uma separação (delimitação) clara de duas europas ocidentais é impedida pela Espanha, França e Portugal que tanto servem os países mais centrais (fortes) como os mais desviantes (periféricos) da UE15. Na figura visada, a Grécia distancia-se da Itália (que lhe fica mais próxima) e dos restantes países; o Luxemburgo acusa um desvio, mas de sentido oposto.

iv. PAÍses euRoPeus dA união euRoPeiA (de leste ou ue13)

Relativamente aos países membros de leste, chegados a partir de 2004 à EU, a maioria vindos da antiga URSS, uma vez submetidos à extração de componentes principais, conforme tabela exibida na Figura 4 abaixo testemunha, apenas uma CP, a 1ª, com um valor próprio de 12.46, responde por 95.87% da variância total explicada e deixa apenas 4.13% de variância residual por explicar. Esta 1ª CP apoia-se fortemente nos contributos maiores do Chipre, Malta, Eslovénia, República Checa, Croácia, Hungria e Polónia, deixando para trás os contributos da Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Bulgária e Roménia que apostam na formação da 2ª CP, apesar de estrategicamente descartável.

fig. 4: variânca totalexplicada e Representaçãoem espaçoBidimensional

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Por inspeção relanceada à representação em espaço bidimensional mostrado na Figura 4, pelo sistema de coordenadas cartesianas construído com as próprias, 1ª e 2ª CPs, observam--se efetivamente os dois agrupamentos acima definidos, claramente demarcados. A Estónia aparece em posição desviante, mesmo no seio do respetivo grupo de referência. Aqui sim, em contraste com o que sucede na UE15, a UE13 admite e revela uma partição interna muito clara com sete países num grupo e os restantes 6 países noutro grupo.

v. AssociAçÔes dA união euRoPeiA, usA e JAPão

Uma avaliação prévia feita às quatro associações europeias, antes de as comparar com os dois países de referência adotados para objeto de estudo, a saber, os EUA e o Japão, de acordo com resultados expostos na Figura 5 abaixo, das exibições da tabela e do gráfico, anote-se que a única 1ª CP extraída, sozinha, com um valor próprio de 4.0, explicando 99.98% da variância total explicada e deixando a irrisória parcela de 0.02% por explicar, diz quase tudo oque há para dizer-se.

As quatro associações, poderiam (em teoria) ser apenas uma ou duas, por constituírem ré-plicas quase exatas umas das outras: maior homogeneidade ou coesão entre elas não é possí-vel. Observe-se a quase sobreposição das quatro associações de países. Na verdade, o assunto (a variável económica e financeira) que as distingue, pelo menos à UE15 e à UE28 das EA12 e EA19, é a adoção do euro como moeda única dos países envolvidos. E esta variável, sozinha, parece estar hoje a pretender colocar em risco de existência, toda a União Europeia. O Brexit já ocorreu, sob a forma de enorme turbilhão político, de consequências nocivas imprevisíveis, muito aquém de estarem controladas ou suplantadas.

fig. 5: variância total explicada e espaço de representação Bidimensional

Relanceando agora a Figura 5 acima, como resultado da extração da 1ªCP no conjunto das associações de países europeias acompanhadas dos EUA e Japão como entidades paradigmá-ticas, não de imitação ou plágio, antes para eventual estabelecimento de relações (de coope-ração ou competição) que ajudem ao progresso e não permitam o retrocesso, relanceando a tabela da variância total explicada, dizíamos, comprova-se que a única 1ª CP extraída, agora, com um valor próprio de 5.81 e uma capacidade explicativa de 96.76%, deixando agora 3.25% por explicar, ilustra bem oque sucedeu. Os dois países incorporados criaram maior turbulência no sistema e, a única 1ª CP extraída já não consegue explicar a variância total aumentada, da

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mesma forma que o fazia dantes. Observe-se, no gráfico exposto, que o Japão se apresenta em posição desviante relativamente às associações europeias, coisa que os EUA não fazem. Ou seja, torna-se também clara a ilação de que a Europa (qualquer delas em foco) está mais próxima dos EUA do que do Japão, ou, o que é o mesmo, que as relações entre a Europa e os EUA são mais consensuais do que as relações entre a Europa e o Japão.

vi. PAÍses euRoPeus de foRA dA união euRoPeiA

Temos agora um grupo de países balcânicos de fora da UE28, comprometidos com as suas candidaturas a uma adesão de pleno direito, por isso pró europeus como os demais que tam-bém o são. Trata-se de países em vias de desenvolvimento, o que se repercute nas estatísticas descritivas de valores inferiores, como se comprovará adiante. Aqui, como nas situações ante-riores (ver Figura 6 abaixo), uma 1ª CP extraída basta para, com o valor próprio de 4.80, explicar 95.94% da variância total, deixando 4.1% de variância residual por explicar. Observando-se o gráfico bidimensional (construído com as duas 1ªs CPs) logo se infere que se trata de um grupo de países relativamente homogéneo, com a Macedónia assumindo uma posição de desvio relativo em relação aos restantes países. Anote-se que a Turquia se correlaciona muito bem com outros grupos de países da UE, como se pode observar pela Figura 2 acima. Tal facto faz com que a Turquia contribua mais intensivamente para a construção de uma 2ª CP do que os restantes países.

fig. 6: variância total explicada e espaço de Representação Bidimensional

Por último, no ordenamento do percurso percorrido, não em importância e significado, di-gamos que no grupo dos cinco países balcânicos (a Turquia é-o parcialmente), todos apresen-tam a particularidade de partilharem a pretensão de virem a submeter e a verem aprovadas as respetivas candidaturas de adesão à UE28. Outros cinco países balcânicos já fazem parte, como membros de pleno direito da UE28. E os restantes três (Bósnia e Herzegovina, Kosovo e Ucrânia) já declararam oficialmente que pretendem vir a angariar o estatuto de potenciais candidatos. Acrescente-se que a Ucrânia se vê presentemente a braços com uma guerra civil que lhe é imposta, a qual permanece em impasse e condiciona enormemente o normal de-senvolvimento do país. É possível admitir a ideia de uma balcanização da UE28, dado que os países na calha para solicitar admissão à UE28 se mostram todos (total ou parcialmente) bal-cânicos. No entanto, no seio da Europa, da grande Europa, 14 países adicionais existem, que se mantêm fora da UE28, a saber, Andorra, Azerbaijão, Arménia, Bielorrússia, Geórgia, Islândia,

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Liechtenstein, Moldávia, Mónaco, Noruega, Rússia, São Marino, Suíça e Vaticano. E, acrescente--se, sobre todos estes países, ou seja, sobre seis pequenos países da Europa ocidental, sobre dois (de dimensões média e grande em área) do norte da Europa e sobre seis médios e gran-des países a leste, deixando adivinhar uma expansão da UE28 dirigida através dos Balcãs para leste, em primeira mão, nada se conhece. Que um país todo-poderoso como é a Rússia, que já foi cabeça de império, nomeadamente, no pós-2ª GG, quando encabeçava e fazia parte da URSS, queira vir solicitar admissão e preparar-se segundo programas de reformas impostos, é difícil de antever. A adesão à UE é um processo complexo e demorado no qual, além de ter de cumprir as condições de adesão, o país candidato tem de aplicar a legislação e a regulamenta-ção da UE em todas as áreas.

vii. AlgumAs conclusÕes

Sobre as conclusões a extrair, não vamos repetir os resultados parcelares dos grupos de países e associações indagados por interesse definido como objetivos da pesquisa. Em vez disso, daremos conta dos resultados apurados nas médias das instituições objeto de estudo e dos coeficientes de variação das mesmas. As médias traduzem o desempenho (produto alcan-çado) das instituições; os coeficientes de variação aferem o grau de estabilidade (variabilidade ou turbulência) institucionais. Tentaremos algumas comparações inter institucionais. No final, procederemos a uma análise classificatória confirmatória, inspetiva da estrutura já encontra-da, utilizando o gráfico de dispersão dos modelos de regressão.

Fig.7: Médias e Coeficientes de Variação%: a) b) e c)

A Figura 7 acima mostra, à esquerda, as médias, ao centro, os coeficientes de variação e, à direita, a relação entre estas duas estatísticas. O ordenamento (por ordem crescente) das médias calculadas em cada instituição (dos 35 países e 4 associações) traduz uma espécie de desempenho institucional (ou produto alcançado). Observe a quase linearidade assumi-da com declive positivo moderado que poderia ser estimado, na sequência apresentada dos mais baixos (mais “pobres”) aos mais elevados (mais ricos): Sérvia, Chipre, Albânia, Malta, Gré-cia, Turquia, Montenegro, Roménia, Macedónia, Bulgária, Eslovénia, Croácia República Checa, Hungria, Polónia, Eslováquia, EA19, Espanha, Lituânia, EA12, UE28, Irlanda, USA, UE15, Letónia, Reino Unido, Portugal, Bélgica, Itália, Finlândia, Dinamarca, Suécia, França, Áustria, Holanda, Estónia, Luxemburgo, Japão e Alemanha.

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O ordenamento (por ordem crescente) dos coeficientes de variação calculados em cada instituição (dos 35 países e 4 associações) traduz uma espécie de estabilidade institucional (variabilidade ou turbulência). A sequência ordenada feita das instituições mais estáveis para as menos estáveis (mais instáveis) é a seguinte: Estónia, Macedónia, Letónia, Lituânia, Sérvia, Alemanha, Suécia, Polónia, Eslováquia, Holanda, Turquia, Montenegro, França, Bélgica, Áustria, Chipre, Luxemburgo, Finlândia, UE28, EA19, República Checa, Hungria, Itália, Bulgária, Croá-cia, Albânia, EA12, Espanha, UE15, Dinamarca, Eslovénia, Roménia, Reino Unido, USA, Irlanda, Malta, Japão, Portugal e Grécia. Aqui, diferentemente de acima, as instituições situadas nos dois extremos (superior e inferior) desviam-se realmente da tendência estabelecida pelos de-mais, de valores intermédios. A Estónia, Macedónia e Letónia revelam-se as instituições mais estáveis (menos turbulentas); o Chipre, Malta, Japão, Portugal e Grécia revelam-se os países menos estáveis (de maior variabilidade).Observe-se que a relação existente entre as médias e as variações se apresenta (ver gráfico da direita na Figura 7) de independência linear (ou de correlação não significante). É que realmente as duas estatísticas aferem coisas diferentes não relacionadas.

Poderíamos submeter os dados do produto (desempenho) e da estabilidade (variância) a adicional esforço de procura de detalhes e deduzir resultados através de comparações cru-zadas entre as categorias ou subconjuntos de instituições adotados, ou seja, proceder à com-paração dos desempenhos (médias) pelos grupos de países e associações, conforme gráfico à esquerda da Figura 8 abaixo e proceder à comparação das estabilidades (variações) pelos mesmos grupos de países e associações, conforme gráfico à direita da Figura 8 abaixo.

Figura 8: Médias e Coeficientes de Variação por Categorias de Países

Da Figura 8, sobre as médias dos países, alguns factos são evidentes: os países da UE15 mostram-se de valores consideravelmente superiores seja, aos homólogos da UE13, seja aos homólogos do grupo dos 5 (“UE5”). Os membros das 4 associações mais os EUA e Japão or-denados mostram-se superiores em três casos (EA19, EA12, Japão) aos homólogos da UE15, ficando abaixo deles em dois casos (USA e UE15). Da Figura 8, sobre as estabilidades, podem ainda ser resumidas algumas ilações mais imediatas: 1º) as estabilidades dos países da UE15, com 15 lugares de ordem, aproximam-se das estabilidades da UE13, com 13 lugares de ordem; 2º) o subgrupo de Países de leste formado pela Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia e Eslováquia mostram-se mais estáveis do que os seus 5 homólogos membros da UE15, a saber, Alemanha, Suécia, Holanda, França e Bélgica; 3º) os restantes 8 países de leste (Hungria, República Checa,

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Croácia, Bulgária, Eslovénia, Roménia, Chipre e Malta) mostram-se menos estáveis (com maior variação) do que os seus correspondentes membros ordenados da UE15, a saber, Áustria, Lu-xemburgo, Finlândia, Itália, Dinamarca, Espanha, Reino Unido e Irlanda; 4º) Portugal e Grécia, ocupando os lugares extremos superiores, em matéria de estabilidade mostram-se, de longe, os mais instáveis (maior variação) de todos os países ou associações com que sejam compara-dos; 5º) as 4 associações europeias, os EUA e Japão depois de ordenados mostram-se menos estáveis do que os homólogos da UE15 (Alemanha, Suécia, Holanda, França, Bélgica e Áustria) e mostram-se ainda menos estáveis do que do que o Luxemburgo e a Finlândia; 6º) os 5 países da fora da UE28 mas europeus encontram-se, nos três primeiros lugares de ordem, entre os homólogos da UE15 e UE13, depois, no último lugar de ordem, a Albânia aparece muito mais instável do que os países homólogos Bélgica e Eslováquia, só se deixando ultrapassar pela Dinamarca, Espanha, Reino Unido, Irlanda, Portugal e Grécia e pela Eslovénia, Roménia, Chipre e Malta. Podemos, em síntese, afirmar que, em matéria de desempenho ou produto, a UE15 e as associações mais EUA e Japão são mais avantajadas do que a UE13 e a UE5. Em matéria de estabilidade (variação) as diferenças esbatem-se relativamente, com as 4 associações, USA e Japão ganhando lugar de primazia.

Para terminar, mas antes de o fazer, observemos as imagens obtidas nas duas Figuras abai-xo, a primeira, situada à esquerda resultante da marcação das médias em ordenadas (como variável dependente) e do CP1 como variável independente (regressora ou explicadora); a se-gunda, situada à direita e resultante da utilização das variações (estabilidades) como variável a ser explicada pelo CP1 como regressor. Serão efetivamente estas representações gráficas, ou outras que se encontrem próximas destas, e há muitas que se podem construir, que melhor informação transmitirão sobre a realidade do mapeamento captado sobre os estados-nação e associações objeto de estudo.

figura 9: diagramas de dispersão das instituições

Por conseguinte, para concluir com a ideia mestra (que logramos ter confirmado) sobre clivagens (delimitações ou recortes) regionais supranacionais, que não é a mesma coisa que fraturas regionais, de que a Europa e de forma mais estudada a União Europeia ainda em ex-

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pansão (observe-se que o Brexit por nós simulado em ensaios efetuados não teve ainda im-pacto digno de nota) estão providenciadas, é um facto incontornável. Oque se torna mais curioso está na confirmação das duas europas, grosso modo, do tempo da cortina de ferro, materializada pela UE15 e UE13 dos países de leste mais recentes, digamos assim. A confir-mação de uma Europa a duas velocidades parece a conclusão mais evidente. Uma clivagem dos países da UE13 em plena expansão (talvez potenciada pelas idiossincrasias dos povos germânicos e eslovacos), ressalta mais evidente do que uma delimitação homóloga a oeste de uma região meridional em contraste com outra setentrional. Portugal, Espanha e França, (foi argumentado acima), põem-se de permeio nessa clarificação, talvez fruto da integração maior no seio dos membros da UE15 do que da UE13. Os regionalismos supranacionais, (aqui é disso que se trata), em princípio, não possuem nada de mau (são produtos históricos e civili-zacionais). O mesmo se passa com os regionalismos sub-nacionais que também há que serem promovidos, entre outros objetivos, para efeitos de identificação patriótica e de cidadania. Uns e outros conseguem refrear os nacionalismos de má memória, e tal não pode ser esquecido. As comunidades dos povos (das nações decentralizadas em regimes de democracias partici-pativas), devem substituir os velhos estados nação com as suas sociedades civis centralizadas e burguesas.

viii. RefeRÊnciAs BiBliogRÁficAs

Comissão Europeia, (2016), Statistical Annex of European Economy, dados de 2011.

gunnip, J.(2006), Analysing Aggregated AR(1) Processes. university of utah.

harris, R. and Sollis, R.(2003), Applied Time Series Modelling and Forecasting, hoboken, N J: John Wiley & Sons inc.

horvard, L., and Leipus, R.(2005), Effect of Aggregation on Estimators in AR(1) Sequence, Prepint.

Luque, t. (2000), Técnicas de Analisis de Datos en Investigación de Mercados, Pirámide, Madrid.

Real, J.E. (2001), Escalamiento Multidimensional, La Muralla, Madrid.

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Os desafios que se colocam à nova administração do “bloco central” da cgd

e ao próprio governo eugénio RosA

Neste estudo vamos analisar, com base no estudo dos relatórios e contas da CGD até ao 3º Trim.2016, que é o ultimo publicado, e nas reuniões que se tiveram com as anteriores administrações CGD, não só os principais riscos que a CGD enfrenta mas também os desafios que se colocam à instituição, aos seus trabalhadores e à nova administração. E isto para que se possa acompanhar e, eventualmente, avaliar a ação da futura administração em relação a áreas que se consideram críticas na situação atual da CGD. É evidente que esta informação não esgota todas essas situações, apenas identifica e analisa algumas que consideramos importantes até porque a informação disponível não é suficiente para uma análise mais profunda.

1- A cARteiRA de tÍtulos dA cgd RePResentA ceRcA de 20% DO SEU ATIVO, SENDO A MAIS ELEVADA EM TODA A BAN-cA em PoRtugAl: vantagens e riscos desta elevada exposição

Em Set.2016, a carteira de títulos da CGD somava 20.377 milhões €, o que correspondia a 20,7% do Ativo liquido nessa data (98.234M€). De acordo com o Relatório e Contas de 2015, no fim deste ano 7.493 milhões € eram títulos de divida publica portuguesa.

A aplicação em divida publica tem vantagens e inconvenientes. As vantagens são, por um lado, poder ser utilizado como colateral junto do BCE para a obtenção de crédito e, por outro lado, o ponderador da divida pública para cálculo do ativo ponderado pelo risco (RWA) ser zero, portanto não “come” capital. Para além disso, vence juros logo gera rendimento. As desvantagens é de qualquer subida nas taxas de juro da divida pública provoca prejuízos ou menos-valias com reflexo imediato negativo ou na conta de resultados ou na conta de capital.

Confrontado com o risco que resulta da CGD ter uma carteira de títulos tão elevada (20,7% do ativo liquido), a anterior administração reconheceu o risco, referiu as vantagens, tendo informado que era seu objetivo, se a continuasse na CGD, baixar a exposição para metade.

Para além de tudo isto, segundo as contas de 2015, no fim deste ano a carteira de títulos da CGD totalizava 21.541,2 milhões €, sendo 17.662,23 milhões € (82%) “ativos disponíveis para venda”, ou seja, para especular. A questão que se coloca para reflexão é a seguinte: Será que

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um banco publico deverá fazer um investimento com esta dimensão com fins especulativos? Nas declarações que António Domingues fez em 4.1.2017 na Assembleia da República, na COF, um questão que levantou foi se seria missão de um banco publico procurar o equilíbrio especulando com dinheiro dos contribuintes e depositantes. Um investimento tão elevado em ativos desta natureza envolve, pelas razões referidas, elevados riscos que, a nosso ver, um banco publico não deve fazer correr o dinheiro dos contribuintes e dos depositantes.

Concluindo, a carteira de títulos da CGD, devido ao seu elevadíssimo montante e aos riscos que encerra, é uma ÁREA CRITICA DA CGD que, pelo impacto que pode ter nos resultados e nos Capitais Próprios e, consequentemente, nos rácios de capital da CGD e também para os trabalhadores (pois se correr mal mais sacrifícios poderão ser exigidos) deverá merecer uma vigilância permanente para se saber como a nova administração tratará esta questão. Tenha-se presente que nos primeiros 9 meses de 2015 a CGD teve um lucro de 329 milhões € com as operações financeiras sobre títulos e que, em 2016, em idêntico período, já acumulou 47,4 milhões € de resultados negativos, portanto é uma rúbrica com resultados muito aleatórios, e num período em que os juros da divida publica podem aumentar o risco é elevado.

2- o elevAdo volume de cRedito em Risco e em incum-PRimento: a inexistência de uma cultura de avaliação rigorosa de risco e a ausência de orientações claras para a politica de crédito da cgd por parte do governo

A CGD apresenta um dos mais elevados rácios de crédito em risco e de crédito em incumprimento. No fim do 1º sem.2016, depois do Novo Banco (23,9%) e do Montepio 2

(15,4%) era a CGD (12,2%) que apresentava maior rácio de credito em risco, embora apresentasse um dos custos de risco (imparidades/carteira de credito) mais baixos (0,9%), o que parece não ser real pelas elevadas imparidades anunciadas. De acordo com os indicadores constantes das contas referentes ao 3º Trim. 2016, no fim de Setembro de 2016 o rácio de credito bruto em risco na CGD era de 12,2%, e do credito bruto em incumprimento atingia 10,3% (entre o 3º trim.2015 e o 3.º trim.2016, este último rácio aumentou de 9,5% para 10,3%). Em milhões de euros apresentam os seguintes valores:

• Credito em risco ………………………. 8.622,22 milhões €

• Crédito em incumprimento …………… 7.279,42 milhões €

Portanto, são valores muito elevados de credito em risco e de credito em incumprimento. E o aumento que se tem verificado nomeadamente no credito em incumprimento (entre o 3ºTrim.2015 e o 3º Trim. 2016, passou de 6.783,76 milhões € para 7.279,42 milhões €) revela, a nosso ver, duas situações preocupantes . Em primeiro lugar, uma deficiente avaliação de risco

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aquando da concessão de credito já que, segundo a própria administração anterior, não existe na CGD uma cultura de avaliação de risco. Em segundo lugar, a falta de eficácia da recuperação de crédito em incumprimento por parte da CGD.

Em relação a este último ponto, na pág. 131 e seguintes das contas de 2015, encontra-se uma extensa exposição da DAP e da DAE, que são as direções de recuperação de credito, respetivamente, de particulares e de empresas, cujos resultados obtidos são muto reduzidos A DAP tem uma carteira negocial de 1.800 milhões € e no contencioso 2.000 milhões €, e a DAE tinha uma carteira de 6.000 milhões € com imparidades já no montante de 2.300 milhões €. No entanto no quadro da pág. 254 refere-se que, em 2015, foram recuperados apenas 13,7 milhões de euros de credito em incumprimento, o que é ridículo.

Segundo a administração anterior da CGD, a área de recuperação de credito estava desorganizada, sendo de reduzida eficácia, havendo muitos créditos em relação aos quais não tinha havido qualquer iniciativa ou ação para o recuperar nos 3 últimos anos. Cerca de 70% do credito concedido pela CGD está concentrado em apenas 20% dos clientes (risco de concentração elevado), sendo os setores mais beneficiados com o credito, a nível de empresas, a construção, o imobiliário e o credito para compra de ações, portanto a “ CGD não atuava como o banco público”. É de prever que os interesses instalados nas áreas preferenciais de concessão de crédito por parte da CGD beneficiadas no passado sejam poderosos e, eventualmente, possam a estar a paralisar a CGD na recuperação de crédito.

Gráfico 1 – A politica de credito da CGD promoveu a especulação

No final de 2015, 50,1% do credito concedido pela CGD tinha sido para habitação; 17,3% para o setor da Construção e imobiliário (entre 2014 e 2015, aumenta de 16,8% para 17,3%, como revela o gráfico); 7,1% para as atividades financeiras e apenas 5,8% para industria e 0,8% para agricultura e pescas; ou seja, apenas 6,6% do credito concedido pela CGD tinha sido para a industria, agricultura e pescas, isto é, para a atividades essencialmente produtivas. E a CGD é um banco publico que devia ter como principal missão apoiar o crescimento económico e o desenvolvimento do país. Isto prova a ausência total de orientações claras do governo em

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relação à politica de credito da CGD, o que determinou que ela estivesse em total autogestão, embora os seus custos fossem pagos pelos contribuintes e pelo país.

Portanto, a POLITICA DE CRÉDITO E A ÁREA DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITO são áreas criticas e fundamentais para a recuperação económica do país e da CGD e, por isso, devem merecer uma atenção especial de acompanhamento, e na nova administração deve ser avaliada pelos resultados obtidos nelas. É necessário que o governo, como representante do acionista Estado, defina com clareza qual é missão da CGD neste campo, e que não permita que a administração da CGD funcione, como aconteceu no passado, em autogestão, concedendo credito que nada tinha a ver com os objetivos que devem ser o de um banco público, sem qualquer análise rigorosa de risco, e muitas vezes orientada por critérios partidários ou de amiguismo.

3. A queBRA continuAdA veRificAdA no negÓcio BAn-CÁRIO: uma consequência do contexto económico, da falta de ob-jetivos claros definidos pelo governo, e de uma gestão deficiente e inadequada da CGD

A CGD não disponibiliza de uma forma sistemática nos seus relatórios o volume de novo crédito concedido (produção nova), o que é um indicador da falta de transparência que existe, no entanto os dados da evolução do crédito tanto bruto como liquido revelam que o novo credito (produção nova) não tem sido suficiente para compensar o credito amortizado mais o credito liquidado, mais o crédito abatido ao ativo mais o credito vendido, cujos dados não são públicos (mais um indicador da falta de transparência existente nas contas) já que o saldo tanto bruto como liquido da carteira de crédito tem diminuído de uma forma continuada nos últimos anos, como também tem acontecido em outros bancos.

O gráfico 2, com dados das contas da CGD do período 2008-2016, mostra a variação do crédito bruto, do credito liquido e das imparidades acumuladas no período referido.

Gráfico 2

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Portanto, até 2010 verificou-se um aumento do credito concedido pela CGD já que o credito bruto aumentou 7.085 milhões € (+9,1%), o credito liquido cresceu 6.596 milhões € (+8,8%) e as imparidades acumuladas subiram 489 milhões € (+23,1%). No entanto, a partir de 2010 verificou-se uma descida continuada do crédito já que, entre 2010 e Set.2016, a carteira de credito bruto diminuiu em 14.579 milhões € (-17,2%), e a de credito liquido reduziu-se em 17.352 milhões €, mas imparidades acumuladas aumentaram em 2.773 milhões € (106,3%).

O gráfico 3, construído com dados do Relatório e Contas da CGD de 2015 (pág. 83) mostra de uma forma clara que o credito novo (produção nova) concedido a empresas não tem sido suficiente nem para compensar o credito amortizado.

Gráfico 3 – Credito novo (produção nova) e credito amortizado por segmentos-2015

Em 2015, o novo credito concedido a empresas (produção nova) totalizou 5.550 milhões €, mas o credito amortizado pelas empresas somou 5.894 milhões €, o que determinou que a carteira de credito a empresas tenha diminuído em 344 milhões € Isto revela que a produção nova não foi suficiente para compensar o credito amortizado pelas empresas.

O gráfico 3 mostra também o crédito novo e o credito amortizado por segmentos, e a conclusão que se tira é que, pelo menos em 2015, o credito novo concedido a micro e PME´s (3216 milhões €) foi superior ao credito amortizado (2970 milhões €) verificando-se um saldo positivo de 246 milhões € que não foi suficiente para compensar os saldos negativos registados nos restantes segmentos de empresas. No entanto, estes dados mostram as potencialidades do credito tão necessário em relação a micro e PME´s.

Em 2015, o saldo do crédito à habitação diminuiu em 912 milhões €. Apenas o credito a particulares para “outros fins”, nomeadamente o crédito ao consumo é que o saldo foi positivo pois aumentou em 333 milhões €.

Face a esta continuada redução da carteira de credito da CGD, o desafio que se coloca à CGD, e à nova administração, que não deixa de ser uma missão difícil atendendo ao contexto existente (crise económica prolongada/crescimento económico anémico) é

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inverter esta queda continuada do credito, que resulta do novo credito concedido não ser suficiente para compensar o credito amortizado, o credito liquidado, o que é abatido ao ativo e também aquele que é vendido (NPL). E isto se se quiser apoiar a economia e o desenvolvimento do país. E neste campo cabe ao governo, como acionista único da CGD, definir com clareza que setores da economia e que tipos de empresas devem ser preferencialmente apoiados a fim de impedir que a CGD seja utilizada, como aconteceu no passado, para promover a especulação imobiliária e financeira causando elevadas distorções no credito concedido e na economia, com pesados encargos para o país e para os contribuintes.

Mas isso terá de ser feito, como não aconteceu no passado, em que foram privilegiados setores que não contribuem para o crescimento sustentado da economia e do desenvolvimento, mas fundamentalmente a atividade produtiva, e também acautelando os interesses dos detentores das poupanças entregues à gestão da CGD, que são os depositantes e os contribuintes, o que exige o desenvolvimento na CGD de uma cultura de análise rigorosa de risco que, segundo a anterior administração, não existe na CGD.

De acordo com as declarações feitas na COF da Assembleia República, em 4.1.2017, António Domingues não acreditava no aumento do negócio bancário enquanto não se registar um crescimento económico significativo e, por essa razão, a CGD, segundo ele, só poderá alcançar lucros (200M€ em 2017 e 700M€ em 2019) pela via da redução dos custos operacionais (fechando balcões e reduzindo os trabalhadores), através da redução das imparidades e por meio da venda de ativos não estratégicos.

4. As elevAdAs imPARidAdes constituÍdAs e A consti-TUIR: a confirmação de uma política de credito que lesou o país e os contribuintes e que não se baseou numa avaliação rigorosa do risco cujas responsabilidade urge apurar

As imparidades correspondem a credito concedido que, com fundamento, se prevê que não será recebido, o que significa uma perda (prejuízo). No período 2010 a Set.2016, a CGD teve de constituir os seguintes montantes de imparidades.

Quadro 1 – Imparidades constituídas pela CGD no período 2008-Set. 2016

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A CGD registou, no período 2008-Set.2016, 8.872 milhões € de imparidades , sendo 5.706 milhões € em mau credito concedido, e 3.167 milhões € em maus investimentos financeiros realizados. Para além disto, o relatório e contas do 3º Trim.2016 da CGD refere-se que “durante os meses de julho a setembro de 2016, os valores registados em imparidades resultam exclusivamente da periocidade dos valores previstos no orçamento de 2016” e que “o plano de recapitalização prevê um aumento de capital de até 2.700 milhões para cobrir as necessidades de imparidades referidas”. Se este aumento de capital for utilizado na sua totalidade para cobrir imparidades por crédito concedido, as imparidades constituídas para cobrir mau credito maus investimentos no passado atingirá, no período 2010-2016, o impressionante montante de 8.872 milhões €, o que corresponde a 11,2% da carteira de credito bruta existente em 2015, o que já dá uma ideia do custo da má gestão na CGD.

O ex-presidente da CGD, António Domingues, nas declarações que fez, em 4.1.2017, na COF da Assembleia da República referiu que tinha feito uma nova avaliação (um a um) dos créditos individualmente significativos (créditos superiores a 3 milhões €) e que, com base numa avaliação conservadora feita a esses créditos, tinha concluído que era necessária reforçar as imparidades constituídas em mais 2.700 milhões €. De acordo com as declarações publicas feitas na COF pelo ex-presidente da CGD, este enorme aumento de imparidades tem como causa créditos significativos concedidos a grandes empresas e a grupos económicos que se preveem que não serão recebidos. Mais uma consequência de uma politica de credito que não se adequava a um banco e às necessidades de crescimento económico sustentado e de desenvolvimento do país.

O desafio que se coloca à nova administração da CGD é, perante estas enormes perdas de crédito previstas, analisar como e porquê, e quem foi fundamentalmente beneficiado com elas, e tomar medidas adequadas para inverter as situações em que isso é ainda possível, através da recuperação de uma parte significativa desse crédito. E isto porque embora se tenham constituído imparidades isso não significa obrigatoriamente que a totalidade desse credito, mesmo a parcela coberta com imparidades, esteja totalmente perdido. E para o futuro, introduzir procedimentos para reduzir a necessidade de constituir novamente elevadas imparidades, pois isso contribuiria para apresentar rapidamente resultados positivos. A auditoria anunciada pelo governo e já comunicada à CGD pode dar uma ajuda importante quer no apuramento de responsabilidades quer na introdução de procedimentos que evitem, no futuro, prejuízos de igual dimensão. Esta é uma área critica monitorizar pelo acionista Estado, nomeadamente a capacidade da nova administração para não se submeter a interesses poderosos que naturalmente se movimentarão para impedir as ações para recuperar, no todo ou em parte, esses créditos significativos, e com é base nos resultados obtidos que devia ser avaliada a nova administração da CGD.

Finalmente, interessa lembrar que os 2.700 milhões € de imparidades que o ex-presidente ainda considerava ser necessária constituir, se forem constituídas pela nova administração, e se depois uma parte delas forem consideradas excessivas, até porque o seu cálculo foi muito conservador, como Antonio Domingues reconheceu na Assembleia da República, elas deverão

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ser revertidas, constituindo lucros da CGD financiados pela própria capitalização, o que é importante não esquecer. Este é um procedimento que poderá ser utilizado para aumentar os prejuízos atuais, e alcançar rapidamente lucros no futuro, que interessa estar atento até para não atribuir injustificadamente como um resultado da nova administração.

5. os RecuRsos de clientes: a dimensão do Ativo da cgd financiado com recursos de clientes e sua elevada importância no “funding” da CGD

A CGD é um dos bancos onde os recursos de clientes representam uma parcela significativa do seu “funding”. Nas declarações que António Domingues fez na COF da Assembleia da República em 4.1.2017, afirmou que os recursos dos clientes representavam mais de 90% dos recursos da CGD. Segundo o relatório e contas do 3º Trimestre de 2016, o rácio de transformação (credito liquido/depósitos) era apenas de 90%, portanto por cada 100€ de depósitos obtidos a CGD emprestava apenas 90€.

O quadro 2 mostra com maior clareza e com maior rigor, para o período 2008- 2015, a percentagem do Ativo da CGD que foi financiado com recursos de clientes.

Quadro 2 – Percentagem do Ativo Bruto financiados com recursos de clientes

No fim de 2015, 73,6% do financiamento do Ativo Bruto da CGD (do seu “funding”) tinha como fonte os recursos de clientes em depósitos ou representados por títulos. Portanto, a manutenção destes elevados recursos na CGD é uma questão vital para o equilíbrio financeiro da CGD e para a sua capacidade de conceder credito à economia e às famílias. Aa nível de depósitos tem-se verificado volatilidade com revela o gráfico 4.

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Gráfico 4 – Volatilidade dos recursos de clientes

A linha do gráfico revela, por um lado, uma tendência de crescimento continuado dos recursos de clientes que tem como base a confiança que os portugueses têm na CGD e, por outro lado, a existência de uma volatilidade causada por qualquer acontecimento externo que possa afetar essa confiança (risco reputacional). Por ex., a instabilidade que se verificou ao longo do último ano relativamente à administração da CGD teve como consequência imediata a perda de 1.778 milhões € de recursos de clientes, nos primeiros 9 meses de 2016..

Portanto, o desafio futuro que se coloca à nova administração da CGD é recuperar o nível de confiança dos portugueses que existia no passado, para assim recuperar a tendência de crescimento continuado de recursos, o que pressupõe, por um lado, estabilidade e uma gestão que inspire confiança e, por outro lado, capacidade para responder adequadamente à concorrência num contexto muito difícil de baixas taxas de juro pagas pelos depósitos, que exercem reduzida atração sobre os clientes, e a necessidade de as reduzir para aumentar a margem financeira num contexto de queda do negócio bancário e de estagnação ou mesmo redução da taxa de poupança.

7. os indicAdoRes de eficiÊnciA e A necessidAde de não continuAR A sAcRificAR os tRABAlHAdoRes dA cgd

Um dos indicadores mais utilizados no setor bancário para medir a eficiência de um banco é o chamado “cost-to-income”, ou seja, o rácio que se obtém dividindo os custos operacionais (despesas com pessoal, gastos gerais administrativos e amortizações) pelo Produto bancário. O gráfico 5, mostra a evolução a registado neste indicador na CGD no período 2007-2016

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Gráfico 5 – Variação do “cost-to-income” da CGD no período 2007-2016

O gráfico 5, mostra que os valores do “cost-to-income” da CGD em 2016 continuam a ser superiores aos registados no inicio da crise (2007).

No entanto, se no lugar de utilizarmos o Produto Bancário, que é influenciado pelos resultados de operações financeiras que são altamente voláteis e não fazem parte do “core business” de um banco comercial, e ainda mais de um banco público, e se utilizarmos o “Produto Bancário core”, que se obtém somando a Margem Financeira às Comissões liquidas, portanto o que resulta da atividade “core” e não especulativa do banco (excluiram-se os resultados da atividade especulativa), e se com base no valor assim obtido calcularmos dois indicadores importantes de eficiência – Rácio Custos Operacionais/Produto bancário “core” e “Rácio Despesas com Pessoal/Produto bancário core” – obtemos para estes rácios de eficiência os resultados que se encontram expressos no gráfico 6.

Gráfico 6 – Rácios dos Custos Operacionais e com Pessoal em % do Produto Bancário “core”

Embora tanto o “Rácio Custos Operacionais / Produto bancário core” como o “Rácio Custos de Pessoal/Produto bancário core” apresentem em Set.2016 (últimos dados disponíveis) valores superiores aos do inicio da crise (2007), no entanto estes indicadores registaram a partir de 2013 uma importante redução. E isto apesar de se ter verificado uma quebra para menos de metade do “Produto bancário corre” causada pela redução para menos de metade da Margem Financeira como mostram os dados do quadro 3, consequência da quebra verificada no negócio bancário determinado pela crise e pela incapacidade da banca responder às necessidades das empresas neste contexto, porque pedidos de credito não faltaram, o que faltou foi empresas

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que dessem um mínimo de garantias do reembolso dos créditos concedidos à banca. E neste contexto difícil não foram criados os instrumentos adequados às micro e PME´s (ex.: Fundos garantia de operações de credito que garantem um determinada percentagem do empréstimo e, como contrapartida, todas as empresas que a ele recorrem pagam uma taxa, podendo ser tais garantias também financiados por fundos comunitários) para que as empresas pudessem dar as garantias mínimas exigidas pelos bancos.

Quadro 3 – Evolução da Margem Financeira e das Comissões liquidas CGD – 2007/2005

Entre 2007 e 2015, o “Produto bancário core” reduziu-se em 30% (- 727,4 milhões €), pois passou de 2.426,8 milhões € para 1.699,4 milhões €. Esta redução tão elevada no “Produto bancário core” foi causada pela quebra na Margem Financeira que diminuiu em 41,5% (- 844 milhões €), pois as Comissões Liquidas até aumentaram neste período em 29,5%.

A queda abrupta na Margem Financeira teve como causa principal a redução muito grande no rendimentos dos juros do credito concedido, determinada pela quebra do negócio bancário e pelo disparar do incumprimento que obrigou os bancos a abater muito credito ao ativo ou a vendê-lo muitas vezes a preço de saldo.

Interessa observar que a redução da Margem Financeira teria sido maior, se os encargos com os juros de depósitos não tivessem sofrido uma redução muito mais elevada. Como mostram os dados do quadro 3, os juros de operações ativas, que são fundamentalmente os créditos concedidos, diminuíram em 49,5%, mas os juros pagos aos depositantes reduziram-se em 53,6%. As taxas de juros de depósitos atingiram já um nível tão baixo que é impossível atrair poupanças com juros tão baixos, ou então conter, e muito menos aumentar, a Margem Financeira com mais redução das taxas de juro pagas pelos depósitos bancários.

Portanto o aumento do negócio bancário é, como referimos já anteriormente, certamente o desafio mais importante que terá de enfrentar a nova administração, e pelo qual terá também de ser avaliada, até porque a redução dos Custos operacionais e, dentro

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destes dos custos do Pessoal de Pessoal tem limites que não podem ser ultrapassados pois, caso contrario, põe-se em causa a eficácia e a viabilidade da própria CGD, como a entidade bancária mais importante do sistema bancário a operar em Portugal.

O quadro 4, completa a análise anterior pois permite, utilizando uma bateria de indicadores, uma análise comparativa da CGD com outros bancos.

Quadro 4 – Analise comparativa da CGD com outros bancos – Indicadores referentes ao 1º semestre/2016

Como rapidamente se conclui a situação da CGD não é diferente da dos outros bancos, e nos indicadores “recursos de clientes por balcão e por trabalhador”, “custos operacionais por volume de negócios” e “volume de negócios por colaborador” até está em melhor posição.

6. o negÓcio Ruinoso PARA A cgd feito PelA ministRA mARiA luÍs AlBuqueRque com A fosun AquAndo dA PRi-vAtizAção dA fidelidAde

O governo do PSD/CDS, aquando da privatização da companhia de seguros FIDELIDADE fez um acordo com o grupo chinês FOSUN com a duração de 20 anos que é ruinoso para a CGD e que é, por isso, necessário renegociar. Segundo esse acordo imposto pelo Ministério das Finanças, a CGD recebe pelos seguros que vende da FIDELIDADE em exclusivo nos seus balcões, apenas metade da comissão que é praticada no mercado. Segundo o relatório e contas de 2015, a CGD recebeu 43,4 milhões € de comissões, quando devia ter recebido 87 milhões €. Para o período de 20 anos tal acordo aprovado por Maria Luís Albuquerque representa um prejuízo para CGD de, pelo menos, 880 milhões €. É de prever que o prejuízo efetivo até seja superior a 1.000 milhões €, já que a nossa estimativa foi feita com base na receita de 2015, e é de prever que ela cresça todos os anos até pelo efeito do aumento dos prémios de seguros.

Portanto, renegociar este acordo leonino em que os interesses da CGD não foram tidos em conta, e eliminar este prejuízo anual para a CGD é também um desafio que se coloca à nova administração, e pelo qual terá também de ser avaliada.

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7.cAPitAl, situAção liquidA, sucessivAs RecAPitAlizAçÕes e RÁcios de cAPitAl

O quadro 5, mostra a evolução dos capitais da CGD no período 2000- Set.2016.

Quadro 5 – Capitais Próprios, Capitais Sociais e aumentos de Capital na CGD – 2000/2016

No período 2000-2016, a CGD foi recapitalizada com 3.650 milhões €, mas foi fundamentalmente após o inicio da crise em 2007 que, com o acumular de prejuízos, causados pela má gestão (analisada anteriormente) e pela crise, que teve e tem efeitos significativos nas instituições financeiras ( não permitiu também absorver as consequências da má gestão anterior, tornando-a até mais visível)

Entre 31.12.2007 e Set.2016, a CGD foi recapitalizada com 2.800 milhões € em “cash” e, no entanto, os seus Capitais Próprios só aumentaram em 171 milhões €, o que significou que a diferença (2.629 milhões €) foi totalmente “comida” pelos elevados prejuízos acumulados neste período. Como consequência, os rácios de capital tiveram a seguinte evolução.

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Quadro 6 – Os valores dos rácios de Capital da CGD – 2007/2016

Portanto, a delapidação dos Capitais próprios determinou que os rácios de capital se reduzissem para valores que não são aceitáveis pelo supervisor, por um lado, e, por outro lado, limitava a CGD na concessão de crédito pois a concessão de credito “come” capital, ou seja, exige Capital pois está ligada por rácios impostos pelo supervisor (para dar mais crédito é preciso mais capital)..

Entre Dez.2015 e Set. 2016, o CET 1 diminuiu de 10,9% para apenas 10,2%, e o rácio total reduziu-se, no mesmo período, 12,3% para 11,3%.

Portanto, a recapitalização da CGD visa, por um lado, eliminar os 2.662,6 milhões de prejuízos acumulados na CGD através de uma operação de harmónio (os prejuízos desaparecem, e reduz o capital social aumentado em igual montante); reforçar as imparidades por credito que se prevê também não receber, o que vai determinar mais prejuízos (tornam-se visíveis), e aumentar o CET1 para 12,5%, como afirmou António Domingues na COF da Assembleia da República em 4.1.2017, pois, segundo ele, é o valor o mínimo que ele considerava necessário para a CGD manter a sua posição de leader no mercado bancário e para poder conceder crédito.

Como os Ativos ativos ponderados pelo risco (RWA totais) da CGD, em 31.12.2015, somavam 60.300 milhões € (contas consolidadas), e como o CET 1 no 3º Trimestre tinha o valor de 10,2% (atualmente deverá rondar os 10%), para aumentar este rácio de capital para os 12,5% que referiu Antonio Domingues, seria necessário a recapitalizar a CGD, aumentando o seu capital após o reforço das imparidades e da operação de harmónio, em mais 1.500 milhões € (cash).

O desafio que se coloca naturalmente à nova administração da CGD neste campo, é obter resultados positivos que permitam, por um lado, remunerar o acionista, que é o Estado e, por outro lado, continuar a recapitalização da CGD, sem necessidade de mais fundos públicos, e assim satisfazer as exigências de mais capital do supervisor e, simultaneamente, fortalecer a CGD como a maior e mais importante instituição financeira do país, e promover, de uma forma sustentada, o crescimento económico e o desenvolvimento do país. E é também pelos resultados obtidos neste campo, que a nova administração terá de ser avaliada.

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8. desAfios que se colocAm Ao AtuAl goveRno

A experiencia tem mostrado, e análise feita comprova isso, que deixar a administração da CGD em autogestão, orientando-se apenas pelos critérios do mercado como alguns defendem, sem quaisquer orientações claras do único acionista, que é o Estado representado pelo governo, como tem acontecido no passado, é altamente lesivo para o país e para os contribuintes, já que são fundamente estes que têm de suportar as consequências não só do mau credito concedido, sem atender às necessidades do país e sem uma rigorosa análise de risco, mas também de aplicações financeiras de elevado risco com consequências desastrosas, bem como de outros atos de gestão que não tem em conta nem os interesses do acionista, nem do país, nem das populações nem dos trabalhadores da CGD. Isto não significa a intervenção na gestão concreta, mas sim a criação de um quadro de exigência e de responsabilização dos gestores por má gestão que não existe como a experiência mostra.

E aqui colocam-se várias questões que, a nosso ver, merecem uma atenção especial. A primeira, é em relação à politica de credito da CGD como banco público que tem obrigações especiais. A segunda, em relação às obrigações sociais da CGD quer em relação aos seus trabalhadores quer em relação às populações. E a terceira, refere-se à necessidade das contas da CGD, como banco publico, serem mais transparentes e permitirem o escrutínio não só dos depositantes mas também dos contribuintes que são aqueles que, em ultima instância, têm de suportar as consequências da má gestão.

A CGD, COMO BANCO PÚBLICO, DEVE PROMOVER O CRESCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO E NÃO A ESPECULAÇÃO COMO SUCEDEU NO PASSADO - Em relação à politica de credito da CGD é fundamental que na carta de missão a aprovar pelo governo fique claro que setores e tipos de empresas devem ser preferencialmente apoiados ( é inaceitável que a CGD apoie mais setores especulativos de que setores produtivos como aconteceu no passado, é inaceitável que a CGD apoie a compra de ativos financeiros como sucedeu também no passado perante a passividade quando não mesmo o apoio do próprio governo); é igualmente inaceitável que tenha concentrado mais de 70% do credito concedido num numero reduzido de grandes empresas (elevado risco de concentração), desprezando o apoio às micro e PME´s.

É necessário na carta de missão para a CGD que o governo venha a aprovar que também estabeleça que os créditos de montante elevado são da responsabilidade de todo conselho de administração, não podendo ser delegada tal competência, obrigando o conselho de administração a aprovar e sempre com base nos relatórios dos serviços de análise de crédito e de análise risco que devem obrigatoriamente os acompanhar, com o objetivo de responsabilizar individualmente todos os membros do concelho de administração pela sua concessão (para não poder haver depois fugas à responsabilidade). É necessário, até para dar confiança aos portugueses, que na CGD a culpa não morra solteira.

A CGD, COMO BANCO PÚBLICO, TEM OBRIGAÇÕES SOCIAIS - Em relação às obrigações

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sociais da CGD como banco público deve constar na carta de missão aprovada pelo governo, nomeadamente a obrigação de estar presente em todos os concelhos (ter um balcão em todos concelhos) e, de em relação nomeadamente população idosa e de baixos recursos, que dificilmente utilizará os serviços digitais da CGD, esta tem de disponibilizar serviços de proximidade com comissões reduzidas ou mesmo nulas.

AS CONTAS DA CGD, COMO BANCO PÚBLICO, DEVEM SER MAIS TRANSPARENTES- Apesar dos supervisores – BCE e Banco de Portugal – serem os mesmos para todos os bancos a operar em Portugal, a informação disponibilizada por cada banco no seu relatório e contas varia muito de banco para banco e, em vários casos, informação disponibilizada em relatórios e contas de bancos privados é omitida no relatório e contas do banco público que é a CGD. Por isso, era importante que a CGD, por uma questão de transparência, passasse a disponibilizar também no seu relatório e contas, de uma forma sistemática e não casualmente, nomeadamente a seguinte informação: (1) O valor total do novo credito concedido durante o ano, do credito amortizado, do credito liquidado por setores de atividade; (2) O valor total dos créditos individualmente significativos por setores de atividade; (3) O valor total do credito com garantias reais, do credito garantido por ativos financeiros, do credito com outras garantias e credito sem garantias também por setores de atividade; (3) Total do crédito abatido ao ativo em cada ano por setores de atividade e da carteira vendida com a indicação do comprador e dos resultados imputados a nível de contas individuais e consolidadas, (4) As remunerações dos trabalhadores e administradores desagregadas em fixas e variáveis.

Era importante tornar a gestão da CGD mais transparente porque só assim é que a administração se sentiria mais responsabilizada. E os supervisores (BCE e Banco de Portugal) tem uma responsabilidade muito grande na normalização da informação que deverá obrigatoriamente ser divulgada em todos os relatórios dos bancos pois é fundamental para tornar a atividade bancária mais transparente, mais responsável e que dê mais confiança aos portugueses. Esperamos também que a nova ISA 701 que obriga os auditores a comunicar as matérias relevantes no relatório de auditoria possa contribuir também para isso. E isto porque quem se dê ao trabalhar de comparar a informação divulgada nos relatórios dos vários bancos rapidamente conclui que a informação essencial varia muito de banco para banco e muitas vezes de ano para ano, o que gera confusão e insegurança.

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02. atualidade

o gado devia ter sido melhor negociado

João RAmos de AlmeidA

quAdRos de PessoAl 2012

Faz-me confusão que o Estado pague a todas as empresas para que paguem o salário mínimo.

Primeiro, porque não se trata de uma regalia: trata-se de dignificar o Trabalho, impedindo que haja pessoas que, apesar de trabalhar, sejam pobres.

Segundo, nunca se deveria dar a ideia - às empresas - de que é possível usar a TSU para negociar medidas avulsas e sem que haja alguma prova consistente de que descontos na TSU favoreçam o emprego. As contribuições para a Segurança Social deveriam ser sagradas. Ainda para mais aumentando o apoio dado em 2016, de 0,75 para 1,25 pontos percentuais na TSU patronal de 23,75%, e de forma generalizada, incluindo grandes grupos económicos.

Se em 2016, por cada 25 euros de aumento do salário mínimo (de 505 para 530 euros), o desconto feito foi de 3,9 euros (15,6% do aumento ou 12,8% da massa salarial correspondente), para o aumento que vem para o ano de 27 euros (de 530 para 557 euros), o Estado vai pagar 6,96 euros (ou seja, 24,7% dele ou 20,8% da massa salarial correspondente).

AtuALidAdE

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É como se, por um lado, fosse normal criar uma “condição de recursos” para beneficiários sociais, dada a escassez de recursos financeiros da Segurança Social, obrigando-os a provar que não têm dinheito nas contas bancárias nem património; e, por outro, se isente dessa “burocracia” as empresas. Deve ter algo a ver com aquilo que o Presidente da República disse em relação ao acordo: “Quem é que faz o investimento? Os empresários. Portanto tem de haver uma compensação, uma contrapartida, a pensar nos empresários”. Ora, que coisa! E os trabalhadores são os beneficiários das empresas?!

Deu para perceber que o ministro do Trabalho José António Vieira da Silva gostaria de não ter de apoiar quem não precisa. Mas o intuito de fechar antes do final do ano um acordo sobre o salário mínimo – consonante com o acordo político – deve tê-lo colocado em estado de necessidade. A ponto do ministro dos Negócios Estrangeiros o ter felicitado naquela forma desabrida. Disse Vieira da Silva, na entrevista que deu ao jornal online Eco: (15:18): “Há sectores da economia que terão mais dificuldades que outros em encaixar este acréscimo de responsabilidades salariais. E nesse sentido tem alguma racionalidade que haja um esforço colectivo que auxilie essas empresas a melhor encaixarem esse acréscimo. Poder-me-á dizer: ‘Não são todas as empresas’. É verdade que não são. Mas estas medidas têm sempre esta natureza. Se pudéssemos isolar de forma matemática, científica, esta e aquela empresa que têm mais dificuldade e apoiá-las, a outras que têm menos... Poderá no futuro haver um modelo que se aproxime dessa...” A ideia é os apoios públicos estarem ligados às habilitações literárias do trabalhador. A medida agora aprovada era uma forma de “integrar sectores com dificuldades em integração no mercado de trabalho”.

Ora, a redução da TSU patronal para todas os trabalhadores a receber salário mínimo e mesmo aqueles que recebam outras remunerações até 700 euros, está longe desse universo de “empresas em dificuldade”.

Não há dados oficiais públicos divulgados que permitam fazer contas. Mas em 2012, os Quadros de Pessoal das empresas – usados pelo Observatório sobre Crises e Alternativas para a elaboração de um estudo sobre o SMN – mostravam que não eram apenas as micro empresas as que usavam pessoal com salário mínimo. É de admitir que, com o aumento para 557 euros, a Segurança Social receberá mais do que perde (e não perde nada porque o Estado vai pagar o desconto). Mas percebe-se que muitas médias e grandes empresas beneficiarão do apoio do Estado. Possivelmente, serão poucas dezenas de milhões de euros, mas são milhões de euros!

Se o Governo não quer criar uma “condição de recursos” para as empresas, talvez possa afunilar este apoio apenas às empresas até certa dimensão. Era o mínimo.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/12/o-gado-devia-ter-sido-melhor-negociado.html

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02. atualidade

desigualdades e globalizaçãomAnuel cARvAlHo dA silvA

O aumento das desigualdades é, sem dúvida, um dos grandes temas de debate atual. A

sua dimensão chocante é de uma violência irracional face aos avanços civilizacionais a que as

sociedades se alcandoraram, aos meios materiais, técnicos, científicos e comunicacionais hoje

disponíveis. Nas últimas décadas, a “desigualdade”, sobretudo nos países mais desenvolvidos,

atinge níveis idênticos aos verificados antes da Grande Depressão de 1929. Os seus efeitos

negativos são profundos e vão desde a amputação do crescimento económico potencial, aos

impactos negativos na saúde e no bem-estar. Em Portugal, há excessiva condescendência e

permissividade perante a pobreza e as desigualdades. Isso é um entrave ao nosso desenvol-

vimento.

A nível internacional, argumenta-se que o aumento das desigualdades nos países mais

desenvolvidos, onde o rendimento das classes trabalhadoras estagnou ou caiu durante os úl-

timos 20 anos, se deve ao inexorável processo de globalização da economia. Dizem-nos que as

perdas salariais dos trabalhadores dos países ricos são o contraponto do crescimento salarial

dos trabalhadores dos países pobres. Esta seria a nova divisão internacional do trabalho resul-

tante da liberalização comercial. Ao aumento da desigualdade dentro de cada país, correspon-

deria assim uma diminuição da “desigualdade” entre países.

Esta linha argumentativa é promotora da inação política, e esquece três dados essenciais.

Primeiro, tem havido aumentos salariais nos países mais pobres, mas muito concentrado em

países como a China, onde a luta laboral por melhores condições se tem revelado intensa e

com bons resultados para os trabalhadores, embora silenciada no espaço público, por interes-

se do poder político chinês e porque, no Ocidente, dá jeito esconder a expressão e os impactos

dessas lutas.

Também no contexto chinês encontramos o segundo dado propositadamente esquecido

nos debates sobre globalização. A China não é uma economia liberalizada e aberta aos fluxos

financeiros e comerciais como muitas vezes se argumenta, mas sim uma economia em que o

Estado, através do controlo de importantes partes da economia, nomeadamente do sistema

financeiro, tem a capacidade de dirigir a economia como um todo.

Terceiro, a suposta convergência de rendimentos verificada à escala internacional esque-

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ce sempre a formidável concentração de rendimentos que se observa no topo da escala. Entre

1988 e 2008, por cada dólar acrescido ao rendimento mundial, 44 cêntimos foram apropriados

pelos 5% mais ricos. Se alargarmos a observação até aos 10% da população do topo da escala,

vemos que eles ficam com 60% de cada dólar. O aumento das desigualdades não é, no fun-

damental, o resultado da competição entre trabalhadores de diferentes nacionalidades, mas

sim uma disputa entre o comum dos trabalhadores e uma elite com expressões específicas em

cada país e com dimensão absolutamente internacionalizada.

Em Portugal, as desigualdades não são uma inevitabilidade, ou mera decorrência da inte-

gração na economia europeia e global e das mudanças tecnológicas. A alteração da estrutura

e do domínio da nossa economia, a ausência de uma estratégia de desenvolvimento que apro-

veite capacidades e formações, as fraturas geracionais no trabalho, a persistência em políticas

de baixos salários são causas concretas da alteração da estrutura e condições do emprego e

podem agravar ainda mais as desigualdades.

É preciso colocar o trabalho, a sua organização e remuneração, no centro das preocupa-

ções e do debate político. Temos um elevado nível de pobreza nas crianças e nos adolescentes,

em primeiro lugar, porque os seus pais (adultos ainda jovens) são pobres. A sua pobreza re-

sulta de auferirem baixos salários, serem trabalhadores precários ou estarem no desemprego.

No imediato, a luta pelo salário mínimo articulada com a redinamização da contratação

coletiva - não chega aumentar o SMN, pois se não houver contratação coletiva o SMN torna-

-se salário nacional - constituem-se como os dois instrumentos mais eficazes de combate às

desigualdades e à pobreza. A distribuição primária do rendimento deve estar no centro da luta

social e política.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM

http://www.jn.pt/opiniao/carvalho-da-silva/interior/2-5592606.html

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02. atualidade

Amar como o partido de cristas amoununo seRRA

É difícil não concordar com Assunção Cristas quanto à necessidade de responder com o

«radicalismo do amor» ao «radicalismo dos populismos». Na melhor tradição da própria demo-

cracia cristã, esta sua recente formulação seria um bom enunciado para devolver credibilidade

e esperança a «muita gente que se foi sentindo abandonada, esquecida pela política, pela

economia, pela sociedade». No limite, poderíamos até admitir que esta noção inspirou Pedro

Mota Soares em 2011, quando defendeu a necessidade de uma «ética social na austeridade».

Isto é, uma ação política comprometida com o «tratamento excecional para aqueles que são

os mais excluídos e carenciados».

O problema é que existe uma diferença abissal entre a retórica do CDS/PP e as suas es-

colhas concretas na hora da governação, quando o partido tem a oportunidade de ser con-

sequente e de traduzir em medidas efetivas aquilo que proclama. De facto, ao aumento da

pobreza nos últimos anos, induzido pelas políticas de austeridade que diligentemente pros-

seguiu, o anterior governo - a que pertenciam Cristas e Mota Soares - respondeu com uma

redução da cobertura de crianças e jovens em risco de pobreza abrangidos pelo RSI (de 37

para 22%, entre 2011 e 2015) e dos idosos em risco de pobreza abrangidos pelo RSI e CSI (de

74 para 46%, no mesmo período).

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Esta estranha forma de concretizar o tal «radicalismo do amor» é particularmente acen-

tuada entre 2011 e 2013 no caso das crianças e jovens: perante o aumento da pobreza nestas

faixas etárias, em cerca de 60 mil, o governo opta por cortar o RSI a quase 38 mil menores. E o

mesmo se passa com os idosos: perante um aumento contínuo do risco de pobreza (mais 95

mil entre 2012 e 2015), o anterior governo escolhe cortar o RSI e o CSI a quase 77 mil benefi-

ciários com mais de 64 anos. Tudo isto num período em que se aprofundou a já de si desigual

distribuição de rendimentos no nosso país.

Não sabemos se os dirigentes do CDS/PP têm noção de que os tais «populismos radicais»

florescem com o aumento da pobreza e das desigualdades, indissociáveis de cortes no Esta-

do Social, nos salários e nas pensões, em nome de uma «economia do pingo» que acaba por

nunca pingar. O que sabemos é que o partido de Assunção Cristas e Mota Soares é pródigo em

alinhavar o discurso conforme a maré, num jogo de insanáveis contradições e de oportunas

intermitências entre o «amor» e uns certos «populismos».

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2017/01/amar-como-o-partido-de-cristas-amou.html

o voo dos abutresAmARÍlis felizes

Muita tinta tem corrido sobre a necessidade imperiosa da reestruturação da dívida pública, uns argumentando que esse processo é inconcebível, outros defendendo que essa é a única forma de libertar recursos para relançar a economia e criar emprego. Mas apesar de muitos se debruçarem sobre a questão da dívida pública, ensaiando inclusive propostas de concretização de um processo deste tipo, tem-se refletido com pouco detalhe sobre o problema da dívida privada, apesar de a sua gravidade requerer não só essa reflexão profunda como uma alteração significativa das atuais regras do jogo. A recente a alteração da lei que agora impede que as pessoas fiquem sem casa por causa de dívidas fiscais foi um ponto de partida importante que nos impele a fazer mais.

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02. atualidade

Segundo dados do Banco de Portugal, foi desde a crise de 2008 que se deu o grande crescimento do sobre-endividamento. Em média, 15% da população tem pelo menos um crédito malparado no banco valor que atinge os 30% para as empresas. Nestes anos, o número de empresas e pessoas falidas quadruplicou. Segundo a Deco, 60% dos casos de sobre-endividamento de particulares é causado por situações de desemprego ou de deterioração das condições de trabalho. Os números são muito claros e eles hoje ajudam a que percam espaço falsos discursos da explicação da crise. Antes da crise a expansão do crédito levou a um aumento das taxas de endividamento que estiveram sempre associadas a níveis bastante baixos de incumprimento, foi quando se optou por uma via austeritária que o incumprimento e as falências dispararam, resultado do desemprego, dos cortes dos salários e do aumento de impostos e não de uma suposta irresponsabilidade de toda a sociedade.

O desespero é a tradução destes números: o desespero de quem não tem como pagar a casa ou a comida, de quem é perseguido por cobradores cujo instrumento de trabalho é o terror e dos ficam sem nada, muitas vezes sem um lugar onde morar.

A outra face deste desespero é um negócio titânico para os bancos, especuladores financeiros, gestoras de crédito mal parado, agentes de execução, administradores de insolvência, avaliadores, empresas de leilões, administradores judiciais e tantos outros que lucram com os juros usuários ou com o próprio incumprimento. Como diz o provérbio, ”enquanto uns choram, outros vendem lenços.”

Como aponta David Graeber, um antropólogo britânico que em Debt: the first 5,000 years (2011) desenvolve uma das mais interessantes reflexões sobre este tema, ao longo da história a dívida tornou-se uma justificação moral de relações de poder desiguais. O que as sustenta é também um sistema mascarado de racionalidade que dita que os juros são a contrapartida pelo risco de incumprimento, enquanto a lei serve de blindagem contra esse mesmo risco, permitindo a extorsão aos devedores.

Outra das formas de funcionamento do sistema é através da transmissibilidade da dívida, assim esfumaram-se as relações de compromisso e surgiram instrumentos e ativos financeiros que não só possibilitaram todo o tipo de apostas que viciaram o jogo como estabeleceram uma fixação por ganhos de curto prazo. Foi neste contexto que se fomentou a concessão de empréstimos sem olhar a garantias, o impingir de cartões de crédito, “sem custos, só usa se quiser”, e a venda de tudo e mais um par de botas em suaves prestações.

A constatação deste absurdo diz-nos que é tempo de restituir alguns princípios de dignidade nesta história. É preciso que as condições básicas - acesso à habitação, dinheiro para comer e capacidade de reconstruir uma vida - tenham prioridade sobre o reembolso de dívidas, até porque sem as primeiras não é possível cumprir a seguinte. As pessoas estão constantemente a renegociar promessas porque as situações mudam, é preciso garantir que se pode lidar com o problema do sobre-endividamento com princípios de sensatez e justiça e para tal é preciso mudar os atuais regimes de concessão de crédito e de execução e regular de o sistema financeiro.

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O combate é contra a extorsão de juros usuários legitimada pelo paternalismo de quem diz que quem tem dívidas não é capaz de cuidar de si. Ser livre também significa ser capaz de se comprometer com o outro. O problema não é tanto o endividamento mas a exploração que dele resulta num sistema em que os causadores dos problemas conseguem responsabilizar as suas vítimas. Para o combater é necessário estabelecer a igualdade entre as duas partes e de uma vez por todas começar a mudar as regras de um jogo viciado em que são sempre os mesmos a perder. Assim nos diz um interessante proverbio chinês: É difícil impedir que os abutres sobrevoem a tua cabeça, mas podes impedir que eles façam um ninho nela.

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03. sistema bancário

Resolução para o Ano novo: mais nenhuma “Resolução” de improviso!

RicARdo cABRAl

Nicolau Santos apresenta num excelente artigo a resenha dos principais factos que atingi-ram o BES e o Novo Banco nos últimos dois anos e meio, e que culminam num novo processo de venda desse banco, no mínimo, prejudicial para a imagem do próprio banco e do País.

O que transpira do processo de resolução do BES é que foi arbitrário e improvisado. Expli-co-me. Após meses em que o Governador do Banco de Portugal assegurou ao País que o BES estava suficientemente capitalizado, dois meses após uma injecção de capital de mil milhões de euros por privados, o BES sofria uma crise de confiança e uma corrida ao banco. O Governa-dor do Banco de Portugal terá proposto uma recapitalização pública do BES. A antiga Ministra das Finanças, com o apoio do antigo Primeiro-Ministro – talvez influenciada pelos problemas derivados da nacionalização do BPN, que teve de resolver, ou porque uma recapitalização pú-blica do BES iria comprometer o défice público em 2014, ou ainda porque a recapitalização pública poria um governo liberal a nacionalizar um dos maiores grupos privados portugueses, parece ter estado contra a recapitalização pública do BES – optou, implicitamente, pela figura de uma resolução bancária.

Foi criada a ficção de que o Novo Banco não seria nacionalizado (porque o accionista úni-co era nessa altura um instituto público – o Fundo de Resolução) e que a resolução do BES não teria custos para o erário público porque seria suportada pela banca nacional. O Estado con-cedeu um empréstimo ao Fundo de Resolução mas a responsabilidade pelo seu pagamento seria alegadamente da banca nacional. No entanto, porque as regras do Eurostat obrigavam à contabilização no défice de injecções de capital que não fossem devolvidas no prazo de um ano, o Governo deverá ter solicitado ao Governador do Banco de Portugal, e este terá aceite, que o Novo Banco fosse vendido em menos de um ano (6 meses, divulgava então a impren-sa) para evitar que a injecção de capital contasse para o défice público. A instabilidade que tal decisão provoca no Novo Banco, leva a alterações sucessivas na sua administração…e ao adiamento do processo de venda do banco, agora já prevista para o início de 2017. Parece-me, aliás, preferível que o Novo Banco não seja vendido, devendo o Governo seguir o exemplo do Reino Unido.

SiStEMA BANCÁRio

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Flibusteiros à abordagem do Novo Banco

fRAncisco louçã

Parece que o Banco de Portugal, ou Sérgio Monteiro, ou comentadores que transportam o recado, estariam decididos a tentar forçar a mão do governo para a impor a venda imediata do Novo Banco. Os felizes contemplados poderiam ser a Lone Star ou, se um golpe de teatro ainda o permitisse, o consórcio Apollo-Centerbridge, agora reforçado pelo carinho da família Violas, que anda de candeias às avessas com o BPI. Já hoje, não pode passar de 4ªfeira, escreve-se também em jornais económicos, sob a ameaça tremenda de os fundos norte-americanos se zangarem.

Se bem conheço o governo e outros decisores nesta matéria, esta chantagem não tem condições para triunfar e impor a entrega do Novo Banco como se não houvesse alternativas consistentes. De facto, até hoje as propostas de Monteiro para o banco têm sido todas perigo-sas e estas não o são menos.

Quando não existem processos bem definidos e quando não são estudadas todas as al-ternativas, o que sobrevive é o improviso. E os políticos arriscam-se, nessas circunstâncias, a tomar decisões com enormes custos para o País.

Talvez devêssemos olhar para o que ocorre presentemente em França com Christine La-garde (antiga Ministra das Finanças de França e actual presidente do FMI), a propósito de uma decisão de “meros” 403 milhões de euros, em que Lagarde é acusada de conduta negligente porque não leu os numerosos pareceres dos serviços contra a sua decisão, baseando-se exclu-sivamente num parecer do seu chefe de gabinete.

Ou o caso, sob análise do National Audit Office do Reino Unido, de alegadas perdas de £1,1 mil milhões para o erário público britânico na reprivatização parcial do Royal Bank of Scotland, somente porque acções representando apenas 5,4% do capital foram reprivatizadas num momento desfavorável, mas em que o Ministro das Finanças George Osborne agiu com base num parecer de uma empresa pública designada UK Financial Investments.

Ou seja, países mais ricos que Portugal parecem prestar muito mais atenção a montantes muito mais pequenos do que a atenção que, no nosso País, merecem os avultados montantes aplicados no BES, no Banif, na CGD…

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/12/18/resolucao-para-o-ano-novo-mais-nenhuma-resolucao-de-improviso/

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03. sistema bancário

A solução Monteiro só tem uma virtude clarificadora, a anuência do PSD e CDS. Monteiro, despachado por Passos Coelho para esta função e sempre próximo de Maria Luís Albuquer-que, tem cumprido o que dele se esperava, generosamente pago para tanto. Embrulhou as contas do banco, prospectou compradores, ofereceu condições e agora proclama a solução que lhe sobrou.

Mas a solução é má, por três razões. A primeira é que os potenciais compradores são fli-busteiros, ou aventureiros provados no mar alto da finança mundial. O fundo texano Lone Star nasceu na crise dos anos 1990 e lançou-se com o crash dos tigres asiáticos, comprando propriedade imobiliária e empresas em dificuldades. O seu negócio é a dívida e a destruição de empresas ou a sua venda a curto prazo. O fundo Apollo, como o Centerbridge, gerem em conjunto o triplo dos valores mas seguem o mesmo caminho: juntar fundos de pensões ou outros investidores para comprar dívida e conseguirem rentabilidades de curto prazo. Esta Apollo foi fundada por Leon Black, o braço direito de Michael Milken, o rei dos junk bonds, que veio a ser condenado à prisão em 1989 por crimes vários. Se um governo entregasse o terceiro banco do país em termos de activos líquidos a uma operação financeira desta natureza, só se poderia queixar de si próprio.

A segunda razão que assinala o perigo destes fundos é a sua forma de actuação, que decor-re da sua natureza, ou do investimento de curto prazo que deve ser imediatamente ressarcido. Ao comprarem o Novo Banco, visto que lhes pode ser difícil distribuir desde logo dividendos para recuperarem o capital, estes fundos procurarão utilizar as garantias do Estado e os cré-ditos fiscais (e já lá estarão cinco mil milhões), pedir novos empréstimos e retirar capitais do banco, espremendo também os créditos em curso na economia nacional para aumentarem as taxas de retorno. Em resumo, ameaçarão o banco, atacarão os clientes, arriscarão os deposi-tantes.

A terceira razão é que este procedimento tem ainda um outro custo, o défice: o imediato, a contabilidade das contra-garantias, e o mediato, a perda fiscal ao longo dos anos. Se lhe dissessem que o Novo Banco foi vendido nestas condições, poderia ter a certeza que a sua carteira foi arrombada, mas não vejo o governo a alinhar nesta aventura.

A solução Monteiro tem que ser evitada, tanto mais que há alternativas a este caríssimo ultimato quarta-feirista. Primeiro, é melhor fazer as contas do Novo Banco com rigor. Segundo, o banco não pode continuar a viver arrastado para o fundo pelas operações não-bancárias do tempo passado e deve livrar-se delas. Terceiro, deve ser mantido como entidade separada e não incluída na CGD, mas deve integrar a banca pública para uma recapitalização ponderada ao longo do tempo e para uma gestão virada para o crédito que estimule a economia. Sobre os detalhes desse plano voltarei a escrever em breve.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/01/03/flibusteiros-a-abordagem-do-novo-banco/

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nacionalizar o novo Banco é preciso!

RicARdo cABRAl

O processo de “reprivatização” do Novo Banco (NB) – inicialmente anunciado para um prazo de 6 meses, mas que se arrasta já há dois anos e meio – tem resultado numa polémica crescente.

O Público informa que o comprador que oferece mais – o fundo de “private equity” Lone Star, que tipicamente realiza “investimentos” em imobiliário – exige contra-garantias de 2,5 mil milhões de euros, oferecendo-se para pagar 700 milhões de euros pelo NB. Tal, na prática, significaria que, uma vez concedidas essas contra-garantias, o Fundo Lone Star teria um incen-tivo a tudo fazer, no enquadramento legal e contratual vigente, para exercer plenamente essas garantias. Por conseguinte, a confirmarem-se tais valores, perspectiva-se um valor de venda líquido próximo de menos 2 mil milhões de euros para um banco com um valor patrimonial declarado de quase mais 6 mil milhões de euros.

Em parte, em consequência destes factos, vários comentadores têm-se manifestado a fa-vor da nacionalização do NB. Parece-me também que será esta a melhor opção.

Em termos de activos líquidos, o NB é o terceiro maior banco do país. De acordo com apresentação do próprio NB, o banco apresenta uma quota de mercado de 20,2% no crédito a empresas, tendo como clientes 83% das grandes empresas e 79% das PME’s. É, por isso, um banco com importância sistémica para o País: se o banco fosse liquidado, essas empresas te-riam grande dificuldade em encontrar financiamento alternativo junto da restante banca, po-dendo ficar em causa a viabilidade económica e financeira de muitas dessas empresas, além das consequências para famílias e para a actividade económica. Por conseguinte a “liquidação ordeira” do NB – referida numa comunicação do Governo à Comissão Europeia –, cujo enqua-dramento legal nem sequer existe, teria consequências desastrosas para o tecido empresarial e para a economia portuguesa. Seria, afigura-se, dizer adeus ao crescimento económico a que Presidente, Governo e Povo aspiram…

A directiva europeia 2014/59/EU sobre resolução e recuperação bancária (BRRD) prevê a possibilidade de nacionalização completa (artigo 58), a recapitalização pública (artigo 57), ou ainda de outras ferramentas de estabilização financeira pelo Estado (artigo 56) como, por exemplo, a concessão de garantias públicas, de um banco com importância sistémica, ao qual seja aplicada a medida de resolução.

A condição fundamental para que tais medidas possam ser implementadas é que tenham previamente sido impostas perdas a accionistas, credores subordinados e credores seniores

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03. sistema bancário

equivalentes a pelo menos 8% dos passivos totais (Artigo 37). Ora, tal ocorreu durante a aplica-ção da medida de resolução ao BES/Novo Banco entre 3 de Agosto de 2014 e 29 de Dezembro de 2015, com a imposição de perdas a accionistas, credores subordinados e credores seniores. Essa intervenção pública estaria sujeita às regras de ajuda de Estado da União Europeia, reque-rendo aprovação prévia e final pela Comissão Europeia.

A nacionalização seria temporária, mas o artigo 57º da directiva não impõe quaisquer pra-zos para venda do banco nacionalizado, ocorrendo a venda logo que as “condições comerciais e financeiras o permitam”. Melhor do que nada. E como vemos do exemplo da Inglaterra e da Holanda, onde os bancos nacionalizados durante a crise financeira internacional da década passada continuam a ser públicos, o conceito de temporário, para Estados, é muito relativo.

Acresce que face às fragilidades dessa directiva europeia, vigora, na prática, uma leitura fluída e criativa da mesma: atente-se, por exemplo, à recapitalização “precaucionária” recente do banco Monte dei Paschi di Siena pelo Governo italiano, um banco que, em termos relativos é de menor dimensão que o Novo Banco. Nessa recapitalização pública não parecem ter sido observados os requisitos que obrigam à imposição de perdas de 8% dos passivos a accionistas e credores.

O fundamental na presente situação para a economia portuguesa é, em meu entender, estabilizar o sistema bancário nacional e o Novo Banco, em particular, assegurando que o cré-dito concedido ao sector privado comece a crescer, terminando a longa contracção que se regista desde 2008 e que parece ter acelerado no último ano.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/01/04/nacionalizar-o-novo-banco-e-preciso/

Quanto custa o elefante que mora na sala?

fRAncisco louçã

A questão do Novo Banco é esta: é preciso pressa porque é preciso tempo. O jogo de Sérgio Monteiro e do Banco de Portugal é por isso perigoso. Arrastar a decisão beneficia dois, pois a um paga o salário generoso e a outro adia a conta final, mas prejudica todos, pois cria incerteza e a incerteza é a lepra da banca. É preciso acabar com isto. Nem mais um comuni-cado à meia noite, nem mais um adiamento, decidam por favor. Cada dia que se passa nesta jigajoga semeia a dúvida nos depositantes, assusta os contratos de crédito e ameaça o banco que representa quase um quinto do sistema bancário nacional.

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Vejamos então as três alternativas e os custos do elefante que mora na sala.

Primeira alternativa, deixar arrastar e liquidar o banco. Noticiava a Lusa no passado 18 de julho que “o Governo informou a Comissão Europeia que ‘não considera a possibilidade’ de realizar uma nova ajuda estatal ao Novo Banco, acrescentando que, se o banco não for vendi-do até Agosto de 2017, entra num processo ordeiro de liquidação.” A simples admissão desta possibilidade é um erro gigante. O banco não pode ser liquidado (provocaria um terramoto para os clientes, para o restante sistema bancário e para a economia nacional) e o Estado só pode apresentar uma atitude firmíssima contra essa alternativa: nunca e em caso algum. Os custos directos seriam da ordem das dezenas de milhares de milhões de euros, certamente próximos de 20% do PIB, se assumisse, de forma generosa e conservadora, que a liquidação e venda acelerada de activos resultaria num “haircut” de cerca de 33% do valor contabilístico do Novo Banco, sendo que cerca de metade do montante acima estimado corresponde a tudo que já se perdeu e se gastou com o BES/Novo Banco desde Dezembro de 2013. Uma boa razão para decidir depressa é que ninguém sequer considere que a liquidação pode ocorrer.

Segunda alternativa, vender o banco a um fundo-abutre. Mas calculemos o prejuízo. Até agora, como foi revelado aqui por Ricardo Cabral, as perdas dos privados e as perdas e dinhei-ro investido pelo Estado já andam pelos 19 mil milhões de euros com a resolução do BES, a única num grande banco europeu. O banco tinha 7 mil milhões (mM) de capital próprio em 2013, em junho do ano seguinte aumentou o capital em mil milhões e depois veio a resolução: depois da perda total dos accionistas e de parte da dívida subordinada, com a reestruturação do passivo, os créditos fiscais e a injecção de capital, chegou-se aos 17mM. Veio em dezem-bro de 2015 uma segunda resolução, com cerca de 2mM de dívida sénior que passam para o banco “mau” e, entretanto, um espectacular perdão ao BES Angola, cerca de 3mM. Ou seja, se o banco for vendido à Lone Star por 750M (admite ainda injectar outros 750M de capital no banco, em larga parte através de venda dos seus activos), as perdas contabilísticas totais ultra-passam os 18mM, ou 10% do PIB.

O prejuízo, no entanto, ainda vai crescer. O fundo reclama 2,5mM (ou mais) de garantias do Estado e quer usá-las. Ou seja, o Estado paga para que o fundo fique com o banco e o valor do défice sobe imediatamente, mais 1,5% do PIB.

Já basta? Desengane-se, a conta é maior ainda. O fundo vai despedir trabalhadores, vai espremer as empresas e os créditos, vai vender partes do banco e vai liquidá-lo, o que até assusta o Financial Times. Se alguém pensa que se pode conversar razoavelmente com John Grayken tire o cavalinho da chuva. E chegamos à conta calada do fim do antigo BES, ultrapas-sará os 20mM, a que se devem acrescentar todos os efeitos incalculáveis sobre o conjunto da economia quando o banco encerrar. Seria o diabo.

Terceira alternativa, a nacionalização. Consegue o valor superior, a confiança. Passa-se a saber o que quer o banco e para onde vai. Acaba o medo. Alguém quer calcular quanto vale a confiança? Vale tudo.

Depois, o custo orçamental é elevado mas é controlável. Quando se fizerem contas rigoro-

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03. sistema bancário

sas, saberemos quanto será necessário para o aumento de capital. Por prudência, imaginemos que são usados 2,5mM , o valor das garantias pedidas pela Lone Star, em recapitalização ao longo de três anos, afectando o défice em 0,5% do PIB em cada ano. Se as imparidades não declaradas exigirem mais, o valor das novas injecções de capital deve ser sempre negociado com as autoridades europeias. Em particular, temos o “side bank” com activos da ordem dos 10,5mM e não afectos à vida bancária, cujo valor real não se pode calcular sem outros dados. Mais uma vez, isso tem que ser vendido, mas com cuidado para evitar perdas exageradas. Ou seja, é preciso tempo.

Só o Estado tem os recursos para dar estas garantias à economia, para criar confiança. Para tirarmos o elefante da sala, é precisa uma decisão urgente que ganhe o tempo necessário.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/01/06/quanto-custa-o-elefante-que-mora-na-sala/

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utopias há mesmo muitasJoão RodRigues

A filosofia pessimista da história de Benjamim manifesta-se de maneira particularmente aguda na sua visão do futuro europeu: «Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Lutfwaffe».

Essa visão crítica permite a Benjamim perceber – intuitivamente, mas com uma estranha acuidade – as catástrofes que esperavam a Europa, perfeitamente resumidas na frase irónica sobre a «confiança ilimitada». Evidentemente, mesmo ele, o mais pessimista de todos, não podia prever as destruições que a Lutfwaffe iria infligir às cidades e populações civis europeias; e ainda menos imaginar que a I. G. Farben, passados apenas doze anos, se destacaria pelo fabrico do gás

LiVRoS E FiLMES

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04. livros e filmes

Ziklon B utilizado para «racionalizar» o genocídio, e que as suas fábricas empregariam, na casa das centenas de milhares, a mão de obra de prisioneiros de campos de concentração. Entretanto, único entre os pensadores e dirigentes marxistas daqueles anos, Benjamim teve a premonição dos monstruosos desastres que podia engendrar a civilização industrial/burguesa em crise.

Excerto do ensaio de Michael Löwy sobre “a filosofia da história de Walter Benjamim”, um dos oito magníficos “ensaios sobre política, história e religião” deste investigador marxista franco-brasileiro, agora reunidos em livro Utopias. Parte importante do que houve, do que há, de mais interessante no marxismo passa pelos autores expostos nestas páginas: a valorização das suas correntes ditas quentes, o romantismo revolucionário, sem esquecer as articulações com as suas correntes ditas frias, mais cientistas, por assim dizer; as relações complexas com a “abundância utópica” das religiões, que não se resumem à frase descontextualizada sobre o “ópio do povo”; o resgate da memória dos perdedores, o respeito por todos os que lutaram, como base para uma história dos de baixo com futuro; a hipótese da emancipação de que não se desiste e que não está garantida por nada, até porque se tem consciência do espectro da regressão e da perda; a permanente imaginação de uma comunidade com escala humana, olhando para o passado em busca de pistas: não há assim nenhum paradoxo quando fala a certa altura numa “sociedade pós-capitalista enraizada em valores pré-capitalistas”.

Entretanto, o que é eu mais aprecio no trabalho de Löwy, o que faz dele um modelo para quem se interessa por história das ideias em movimento, é o seguinte: para lá da erudição e do radicalismo, para lá da escolha de temas difíceis, da religião à questão nacional, é a forma simples, tão acessível quanto pode ser possível, como expõe a complexidade das relações, tantas vezes inesperadas, entre várias tradições intelectuais, como nos ajuda a ter consciência, em textos enxutos e depurados, da riqueza e da diversidade da tradição marxista, sem ao mesmo tempo a diluir numa sopa onde cabe tudo. E não a dilui porque não perde o norte: a verdade há-de estar na totalidade sistémica, do capitalismo às suas alternativas no passado, no presente e no futuro.

Muito bem editado, com organização e enquadramento gerador de debate da autoria de José Neves, beneficiando da colaboração do próprio Löwy, que no próximo ano estará entre nós para assinalar os cem anos dos dias que mudaram o mundo, este é definitivamente um pequeno grande livro.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/12/utopias-ha-mesmo-muitas.html

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A condição PrivadaRenAto do cARmo

Como tem sido referido por várias pessoas da direita à esquerda, o último filme de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake”, é sublime. De facto estamos perante uma obra extraordinária que nos projeta para uma realidade crua e ao mesmo tempo tão próxima. O filme confronta-nos com os últimos meses infernais da vida de um carpinteiro britânico de 59 anos que se vê enre-dado nas teias da burocracia e dos serviços da segurança social, que deixaram de ser públicos e se transformaram em espaços de despossessão de relações sociais e de direitos de cidadania. Espaços privatizados por lógicas de outsourcing em que tudo é mercantilizado.

Daniel não pode continuar a exercer a sua profissão por razões de saúde, mas segundo os critérios de elegibilidade resultantes da avaliação de uma junta técnica e de um supervi-sor anónimos não tem o direito garantido a uma pensão e, por este motivo, é aconselhado a candidatar-se ao subsídio de desemprego. Apesar de ter descontado a vida inteira, terá de de-monstrar através de intermináveis formulários online, feitos de perguntas inúteis, que merece uma prestação social. O ónus permanece assim do lado do cliente que já não é um cidadão pleno. Por sua vez, este tem de provar ao funcionário (que já não é público) que se encontra a cumprir devidamente o contrato com o Estado. O tal Estado que há muito perdeu a sua função básica de proteção social universal.

À medida que o filme vai revelando a miséria da vida de um ex-operário que entretanto se familiariza com uma mãe solteira sem condições económicas para alimentar os seus dois filhos, uma pergunta nos assola crescentemente até se tornar quase insuportável: como foi possível chegarmos a isto? O filme interpela-nos inevitavelmente a tirar consequências polí-ticas do que aconteceu desde pelo menos o início dos anos 80 do século passado. Assim que

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as cenas mais revoltantes se sucedem vêm-nos à memória frases e imagens batidas sobre a ascensão de Thatcher ao poder e da sua agenda neoliberal que delapidou o Estado social e abriu a porta a uma privatização sem limites dos serviços públicos. Mas surgem outras inter-pelações, designadamente sobre a coresponsabilidade acrescida tanto da social-democracia, como da democracia-cristã que foram transigindo neste modelo liberal, contribuindo decisi-vamente para aprisionar o Estado às lógicas empresariais.

Este filme é sublime porque inquieta profundamente. Deixa-nos desarmados perante o infortúnio de um homem que não resiste à máquina devoradora que foi sendo construída po-liticamente ao longo de décadas e por consecutivos governos de diferentes cores políticas. Na verdade, trata-se de um filme sobre a sublimação do serviço público que chegou a ser sólido e se foi dissipando, em Inglaterra mas também em muitos países europeus, para um estado gasoso onde a função primordial de proteção social se esvaziou quase por completo.

Neste processo de sublimação, o uso e abuso da condição de recursos, para averiguar da elegibilidade do eventual beneficiário, efetivou-se no seu operador elementar, sendo o ins-trumento de eleição pelo qual o cidadão se transmuta para a condição de cliente que tem de fazer prova dos seus supostos direitos. A demonstração dessa prova representa um desa-fio (um jogo, como referia Daniel) adverso, mediado por uma burocracia cada vez mais fria e distante em plataformas digitais e comunicacionais descentradas da relação face-a-face. Mas neste jogo desumano são os mais vulneráveis que perdem sistematicamente e ficam irreme-diavelmente arredados dos seus direitos.

É por isso que no atual momento histórico não chega apenas pôr um travão político às investidas liberalizantes. É preciso ir mais além e considerar que em muitas políticas sociais a condição de recursos não representa a via mais recomendável. Torna-se assim imprescindível reabilitar o serviço público como um direito fundamental para todos e desincrustá-lo da sua condição privada.

ARtigo PuBLiCAdo oRigiNAMENtE EM http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/a-condicao-privada-99297

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estado de criseAntÓnio cARlos dos sAntos

Estado de Crise Carlo Bordoni & Zygmunt Bauman Relógio de Água, 2016

Em boa hora a Relógio d’Água publicou na sua excelente coleção Antropos o livro Estado de Crise, uma espécie de monólogo dialógico (“um ensaio a quatro mãos”), induzido por um entrevistador imaginário ou oculto e subscrito por dois eminentes sociólogos, um italiano, ou-tro polaco, respetivamente, Carlo Bordoni e Zygmunt Bauman (infelizmente falecido no pas-sado dia 9), que já haviam encetado uma experiência similar em 2012 com a obra La società insicura. Conversazione con Zygmunt Bauman, editada pela Aliberti. O primeiro autor, menos conhecido entre nós, para além de jornalista e escritor tem-se ocupado sobretudo da sociolo-gia da literatura e da arte; o segundo, depois de ter publicado um dos mais interessantes livros sobre a sociologia marxista (Fundamentos de Sociologia Marxista, Alberto Editor, 1975), tornou--se mundialmente famoso com o tema pós-moderno da liquidez (modernidade líquida, amor líquido, vida líquida, medo líquido, etc.).

O livro Estado de Crise está estruturado em torno de três tópicos (Crise do Estado, Mo-dernidade em crise, Democracia em crise) cada um subdividido em vários subtópicos. Quan-to ao primeiro tópico, são sucessivamente discutidos os temas da definição de crise, de um estatismo sem Estado, da relação entre Estado e nação e do contributo de Hobbes e da sua obra Leviatã para a composição do Estado moderno. Quanto ao segundo tópico, a atenção dos autores incide sobre as promessas (da modernidade) retiradas, a saída traumática da mo-

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dernidade, o percurso da pós-modernidade, a desconstrução, a negação e o fim da história e das grandes narrativas. Quanto ao terceiro, analisam os dois sociólogos o tema da relação entre ética de progresso e democracia, para, em seguida explorarem as questões do excesso de democracia, da pós-democracia da “desdemocratização” e, finalmente se aventurarem na luta por uma nova ordem global. Os dois autores dissertam, sem rede (de forma livre, aberta e problematizante), sobre cada subtópico, quase sempre pela mesma ordem: primeiro Carlo Bordoni (CB), depois Zygmunt Bauman (ZB).

Dada a estrutura do livro e a abundância de temas questionados e analisados de modo fragmentário, que evoca o método de exposição gramsciano, não é fácil retirar conclusões desta leitura fascinante e em permanente ebulição.

Mesmo sabendo que qualquer (pretensa) síntese é um projeto votado ao fracasso dado estarmos perante um pensamento construído (aparentemente) sem sistema, vou aventurar--me nessa direção pois é talvez o que se esperará da recensão desta obra. Proponho-me assim eleger alguns fios condutores que procuram captar, no essencial, o fluído pensamento dos autores. Fios provisórios, sujeitos a contraditório, aprofundamentos e correções, próprios de um “texto aberto” e “líquido”.

1. O conceito de crise tem várias fontes e comporta vários sentidos, que ultrapassam largamente a perspetiva económica. O seu sentido originário mais comum é o médico, ao traduzir a ideia de diagnóstico sobre a doença do paciente (estado crítico) e um apelo à ação (o tratamento), um e outro, de incerto destino (ZB). Este facto fora, aliás, já sublinhado, nos anos 70, por James O’Connor. Hoje, o recurso à noção de crise tende a substituir o conceito de conjuntura e mesmo o de depressão (CB), de forma a exprimir também algo de “positivo, criativo e otimista”, uma abertura para um “renascimento após uma rutura”. A crise, em princí-pio, supera-se, pois seria temporária. Na realidade, porém, o atual tratamento (por exemplo, as políticas deflacionárias) tem-se revelado pior do que a doença, pois a (pseudo)-cura é mais “vi-sível na pele das pessoas”. Além disso, hoje a crise, com raízes nos anos 2000, surge potenciada largamente pela eclosão do terrorismo e parece que não vai acabar nunca. Vive-se em estado permanente de crise, o que nos obriga a aprender a viver em crise (CB). A crise, na linguagem de El-Arian, seria o “novo normal”. Ou numa visão mais pessimista, diria eu, uma doença cróni-ca degenerativa.

2. Se nos cingirmos agora à dimensão económica (em sentido lato) da crise, importa, mais do que atender às semelhanças entre a crise atual e a crise de 1929, como o desemprego maciço e as desigualdades galopantes, sublinhar as diferenças: “a crise em curso é financeira, ao passo que a crise de 1929 foi industrial” (CB); na crise do final dos anos 20 havia uma per-ceção de que a cura deveria ser entregue a um Estado forte, pois neste coincidiam o poder (a capacidade de levar as coisas a cabo) e a política (a habilidade de decidir como as coisas devem ser feitas). Hoje esta esperança já não existe. O modelo do Estado pós-westfaliano esboroou-se com a construção da “aldeia global” (McLuhan). De facto, com a crise do Estado social (forma política que, desde o fim da 2ª guerra, tinha possibilitado a emergência dos chamados “trinta anos gloriosos”), visível desde a década de 1970, o Estado passou, na perceção popular, a ser re-

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baixado à condição do “obstáculo mais odioso, pérfido e prejudicial ao progresso económico” e a confiança do público (muito induzida pelos formadores de opinião) foi investida na “mão invisível” dos mercados, apresentados ou reconhecidos como espaços sem política, como não--lugares (Augé). Com a filosofia neoliberal, mais pragmática do que ideológica, a economia é erigida em forma de dominação. Os anos seguintes são também conhecidos como os “trinta anos opulentos”, mas basearam-se num crescimento e numa “orgia consumista”, alimentada pela descoberta do cartão de crédito (vidas vividas a crédito). A soberania dos mercados (o soft power dos mercados) sobrepôs-se à soberania dos Estados. Só que a crise atual veio pôr fim à crença na mão invisível dos mercados. Como afirma ZB, “estamos dolorosamente conscientes de que, se deixados aos seus próprios mecanismos, os mercados voltados para o lucro levam a catástrofes económicas e sociais”. O problema, porém, é que hoje o Estado já não consegue ser o curador da doença. Sofre de um défice de recursos e de coerção e já não tem poder para agir. Deste modo, as políticas estatais de resposta à crise arriscam-se a permanecer num impasse. Há um divórcio (uma fissura) entre o poder, apropriado por forças globais, grupos financeiros, elites poderosas, holdings, multinacionais, lobbies, poderes supranacionais, politicamente in-controláveis e irresponsáveis, que agem, fora da democracia, no “espaço de fluxos” (Castells) - e que, de algum modo, se exprime na chamada governança neoliberal - e a política, deixada para os agentes locais (governos de Estados e cidades), sob a forma de gestão administrativa de rotina e de resolução dos problemas criados e não solucionados pelos poderes globais, como, por exemplo, as migrações. Cresce assim um “estatismo sem Estado” (Balibar), sem dire-ção nem controlo políticos (uma política “antipolítica”), rumo ao qual nos “encaminhamos com ingénua indiferença”.

3. O Estado moderno, uma criação artificial (Leviatã), antidemocrática na sua origem, an-corada em conceitos teológicos secularizados (Schmitt), visa impor a lei e a ordem em per-manente luta contra as forças da anarquia e da rebelião (Beemot), mas viu encolhida, mesmo na forma de Estado republicano e de democracia representativa, a prerrogativa de escolha, ao contrário do que ocorre com as corporações de negócios que se movem num espaço sem fronteiras e que tendem a ancorar o seu poder na sedução e na estimulação do desejo (Bour-dieu) e na substituição da vigilância incessante (o panótico de Bentham e Foucault) e da hierar-quia burocrática weberiana (uniformidade, conformidade, estabilidade, rotinas) pelo apogeu da individualidade, da “iniciativa, imaginação, novidade e ousadia”, fórmulas quiçá capturadas (reaproveitadas) do já longínquo Maio de 68. Mesmo a grande mestra dos segredos e subter-fúgios da política, Merkiavel (designação cunhada por Beck), cujo poder assenta na “hesitação como meio de coerção” (nomeadamente na ameaça de retirar, atrasar ou negar crédito) não consegue (diferentemente dos movimentos de capital) quebrar unilateralmente a relação de dependência recíproca entre dominante (a grande Alemanha) e dominados (com gradações várias, os restantes países europeus). Ou, para usar outra linguagem: não consegue superar a dialética hegeliana do senhor e do escravo, tão bem captada no excelente filme de Joseph Losey, “O criado”. A política de procrastinação não pode ser estendida ad infinitum, sob pena da incapacitação total dos intervenientes (estatais) e da colocação em risco dos interesses em-presariais que estes protegem e promovem.

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4. A modernidade tinha uma ambição bem expressa na premonitória “Oração” de Pico della Mirandolla (1486), sintetizada na ideia de que “ao homem é permitido ser tudo o que ele próprio escolha”, ou seja, na “liberdade humana de se criar e afirmar” (ZB). Os modernistas (na época de Hobbes, Locke e Espinoza) escolheram reivindicar “estabilidade, reconhecimento da propriedade privada e fronteiras nacionais seguras” de forma a garantirem a prosperidade da indústria (objetivo fundamental) e o comércio necessário à distribuição e implantação da produção (CB). Neste sentido, a promessa moderna passou a centrar-se, “em primeiro lugar, numa segurança coletivamente proporcionada e guardada, e depois na liberdade, com la-mentável frequência num distante segundo lugar”, ou seja, na pretensão de “substituir o caos pela ordem, a incerteza pela autoconfiança, a complexidade pela simplicidade, a opacidade pela transparência” (ZB). Erradicado o risco e a incerteza pelas grandes certezas da tecnologia, estava aberto o caminho para a “marcha incessante do progresso”, medido quantitativamente “pela acumulação de produção, riqueza, consumo e conhecimento”. A reforma protestante consolidou a fortuna e a capacidade de produzir rendimento como os valores fundamentais, pois a “graça de Deus é reconhecida em negócios bem-sucedidos” (CB). Mais tarde, este pro-jeto abandona a âncora religiosa, que prometia a felicidade para a vida após a morte para abraçar a busca da felicidade na terra ao alcance de todos os que tivessem uma “conduta ho-nesta, trabalhadora, humilde e parcimoniosa” (CB). No plano cultural, a essência do moderno é sustentada pela ideologia, essa filha do Iluminismo, em nome da qual foram cometidos os piores crimes da modernidade. Com efeito, a ideologia, ao fornecer estabilidade, “facilita a interpretação da realidade de maneira acrítica” (CB). A transição para a modernidade foi tudo menos fácil. Os que a viveram sentiram-na como tempos terríveis (basta pensarmos nas con-sequências sociais da revolução industrial), não percebiam o porquê das suas vidas terem sido tão profundamente alteradas.

5. Aqui chegados, há que sublinhar que os caminhos de CB e de ZB se separam quanto ao tema da crise da modernidade. CB fala, a propósito, das promessas não cumpridas, falha-das ou retiradas, da modernidade. Primeira, a ideia iluminista de segurança, propiciada pela perspetiva de dominar a Natureza e submeter o acaso e os desastres naturais ao controlo e previsibilidade humanos. Esta ideia foi abalada pelo terramoto de Lisboa. Segunda, a promes-sa suprema (mas por certo, bem mais tardia) de existência de “um fiador social”, o Estado como rede de proteção dos cidadãos, com capacidade para “salvaguardar a sua saúde, o seu direito ao trabalho, serviços essenciais, segurança social, reforma e velhice”.

CB fala então de fim da modernidade, ocorrida nos anos 1970 e revelada pela obra de Lyotard, e de fim da própria pós-modernidade, que teve o seu apogeu entre 1979 e o 11 de setembro de 2001. A pós-modernidade é vista como um período necessariamente transitório (um “rito de passagem”) que, com origens na arquitetura, se estendeu pela cultura e filosofia e por outros domínios da vida social. Vivemos hoje num presente até agora não nomeado. Ao contrário da modernidade que assumiu uma forte componente racional, a pós-modernidade assenta num subjetivismo (de origem kantiana) - no sujeito como centro da existência hu-mana, independente das suas qualidades, que se exibe ou vende no mercado da aceitação pública (“ser visível significa existir”), transformando tudo em espetáculo mediático - e nas

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correntes irracionalistas que desaguam em Nietzsche, Husserl e Heidegger. A sua preocupa-ção é com o “desmantelamento”, a “desconstrução” (Derrida), a “destruição”, a “desmassificação”. A pós-modernidade mostra a face de uma sociedade ancorada na lei de sobrevivência do mais apto, do mais esperto, do mais ávido, no consumismo cego, perdendo-se nela a certeza dos direitos. O que fica deste “interregno” pós-moderno, mais ou menos longo, acrescenta ZB, é a desconfiança de toda e qualquer ordem, o culto da flexibilidade e da inovação acima da “estabilidade” e da “continuidade” na hierarquia de valores”. CB vê, porém, um ponto positivo decorrente da pós-modernidade no regresso, sob várias formas, das multidões, por definição, difíceis de controlar, que estão na base da sociedade oculta, feita de pessoas sem pontos de re-ferência fixos, obrigadas a resistir e a desenvolver uma capacidade de adaptação a condições adversas (um quotidiano feito de aumentos de preços, de impostos, de falta de empregos, etc.). Sintonia com Negri e Hardt para quem “a ação política voltada para a transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”?

6. Já ZB defende que as reais promessas da modernidade continuam de pé. Aquilo que CB designa de promessas são antes estratégias encetadas para o cumprimento das promessas. Enquanto a promessa original da modernidade (a da liberdade humana de se criar e afirmar, a liberdade de escolher o seu destino) se mantem viva (“ressuscitada, reinventada, reencar-nada, espanada e vestida com um traje reciclado e atualizado, ou novinho em folha”), aquelas estratégias alteraram-se profundamente. Abandonou-se, por estar fora de moda, a busca do modelo de “boa sociedade” (Paz Ferreira diria da “sociedade decente”) e superaram-se as ilu-sões juvenis da modernidade (o que era percecionado como verdadeiro revelou-se afinal ilu-sório, no sentido freudiano do termo, isto é, algo que não é necessariamente um erro, mas que é indemonstrável e irrefutável). Surgiram, porém, novas estratégias, já não tão abrangentes (dado o descrédito das grandes narrativas) mas concentradas no indivíduo (a nova utopia), em que o progresso é representado já não como algo linear, “unidirecional”, mas como algo “frag-mentado” e pendular, extraindo a sua energia de uma dialética entre liberdade e segurança. O atual impasse, se bem interpreto ZB, advém do facto da liberdade ser vista como uma fonte de injustiças e horrores, de inadequação, impotência e humilhação (nela se baseia a ostentação pública da desigualdade exorbitante do 1% mais ricos) e do facto da segurança já não ser bus-cada nas elites políticas do Estado, vistas como “indiferentes, descomprometidas e omissas”. Abre-se então um espaço para a intervenção de demagogos “que sejam suficientemente ocos, iludidos e arrogantes para prometerem um atalho para a felicidade”, para a segurança perdida, em nome da renúncia às liberdades odiadas e mal recebidas pelos seus possuidores (ZB escre-ve premonitoriamente estas palavras antes de Trump ganhar as recentes eleições americanas). Por outro lado, ZB defende igualmente que a modernidade não terminou (a notícia da sua morte seria manifestamente prematura), mas mudou de configuração, transformando-se no que designa de “modernidade líquida”, uma forma degradada de modernidade, na qual tudo se tornou “instável, precário, temporário e incerto”. A flexibilidade, “marca registada da moder-nidade líquida (...) é a nova estratégia de dominação” e a mobilidade é “o principal elemento de estratificação na sociedade líquido-moderna”. A chamada “pós-modernidade” seria assim um “evento interno dentro da história da era moderna”. Hoje, “sabemos de onde estamos a fugir, mas não temos a menor ideia de para onde vamos”. Entretanto esperamos colher os frutos das

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promessas da modernidade (“conforto, conveniência, segurança, alívio da dor e do sofrimen-to”). A nova ideologia da “felicidade pelo consumo” tende a prevalecer sobre todas as outras. O “sacrossanto crescimento económico” é difundido pela “Igreja do Crescimento Económico”, a única que pode realmente aspirar a um estatuto ecuménico. A nova narrativa da modernidade - “a do progresso do controlo humano sobre a Terra, guiado pela santíssima Trindade da Eco-nomia, Ciência e Tecnologia - parece “mais saudável que nunca”. Em contrapartida, vivem-se tempos de impotência e inaptidão da “maquinaria política”, de fragilidade dos executivos, de falta de “qualidade dos líderes políticos e da liderança política em si”, líderes desprovidos das armas da liderança (esperança, coragem e obstinação). ZB é mais cético em relação ao papel político das multidões. Estas (por exemplo, o movimento dos indignados, o “povo nas ruas”, as chamadas redes sociais) podem limpar o terreno (mormente em contextos não-democráticos, como ocorreu com as primaveras árabes), mas não conseguiram até hoje mostrar a sua uti-lidade nas tarefas de construção, isto é, “não sabem o que precisa de ser feito em vez de...” Mesmo que fosse possível definir os contornos de “uma boa sociedade”, a grande questão que parece não ter resposta é a de saber quem iria construí-la. Há uma clara crise de agência: não são, por certo, os mercados, mas também não o será o Estado, “privatizado” e “ausente”. Serão as “pessoas mobilizadas”? Muitas dúvidas. “A recusa de ter esperança nas instituições políticas sobreviventes talvez seja o seu único fator invariável e integrante”.

7. O fim das grandes narrativas (deplorado por Habermas), em especial as que buscam um sentido para a história, está ligado ao “fim da história” (Fukuyama), uma narrativa apoca-líptica de substituição. O pensamento pós-moderno desconfia da história, pois esta é sempre escrita pelos vencedores (Vattimo, apoiando-se em Benjamim) e, como tal, manipulável. Seria uma “impostura” que serve de “legitimação documental” do poder vitorioso e não “uma me-mória de verdade”. O pós-modernismo substituiu-a pelo evento, “mas o conjunto dos eventos não faz história, porque estão desligados uns dos outros”(CB). Os eventos são efémeros, ime-diatos, únicos e impossíveis de se repetir. Não têm memória e são desprovidos de qualquer vi-são estruturada (tranquilizadora) e, como tal, não faz qualquer sentido evocar o passado para evitar a repetição de erros. O registo dos eventos é hoje, com as novas tecnologias, infinito. A “memória coletiva” foi substituída por “uma pista digital que percorre todo o planeta e grava todas as expressões humanas, indiferente à importância social do seu emissor”, que regista “”o rasto da nossa passagem pelo mundo” (CB). Talvez hoje haja condições para se escrever a história dos vencidos. Mas à custa do nascimento do “Panótico universal” que escrutina não só o nosso presente mas também o nosso passado.

A pós-modernidade solapou as bases da modernidade, a ideologia, a história e a ética de trabalho, sem nada oferecer em troca. “ A sociedade de amanhã emerge como uma sociedade sem memória”. “Somos habitantes de um mundo que está a mudar, e chamamos a essa mu-dança crise” (CB).

Por sua vez, Bauman critica acidamente a ideia de “fim eminente” da história, múltiplas vezes proclamado. Como critica a outra asserção de Fukuyama, segundo a qual nada há de er-

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rado na intenção de se criar um “homem novo”, ou seja, uma raça humana “nova e melhorada”. Para este último autor, o erro estava na inadequação dos instrumentos usados anteriormente para o efeito (“educação, propaganda e lavagem cerebral”). Mas com a engenharia genética, hoje a chegada do “homem novo” estaria perfeitamente ao nosso alcance. Bauman avisa que essa afirmação (correndo o risco de se transformar numa espécie de profecia autoexecutável) dividiria os seres humanos em espécies da exposição de flores de Chelsea (“o homem purifica-do das deficiências que tanto tempo infestaram homens e mulheres”) e as ervas daninhas (a outra humanidade). Se bem interpreto, isto significa nada aprender com “o horrível passado” que a história nos recorda. Mesmo que esta seja um produto do “braço de ferro conhecido sob o nome de luta pelo poder”.

8. O que foi dito até agora serve, pretensão minha, para despertar o interesse e a curio-sidade do leitor pelo livro e, em especial, pela última (e imperdível) terceira parte, dedicada ao tema da democracia em crise. Sobre ela não me vou alongar, até porque penso mais tarde regressar ao tema. Ficam contudo algumas interrogações à espera de resposta. Será a crise da democracia a sua condição normal (Josef Fischer)? Pode existir democracia sem burguesia (Barrington Moore Jr)? Poderá ser a democracia a concretização da fórmula de Lincoln “o go-verno do povo” (pelo povo e para o povo)? Pode haver democracia num Estado em crise, num Estado em que o poder está dissociado da política? Há um processo em curso de “desdemo-cratização” (Charles Tilly)? Ou vivemos já em “pós-democracia” (Colin Crouch)? E as interroga-ções poderiam continuar...

Ficam, por fim, dois alertas. Um de Bauman: de todas as crises, “aquela que afeta as insti-tuições herdadas da democracia é a mais séria, na medida em que atinge os únicos instrumen-tos de ação coletiva agora ao nosso dispor”. Outro de Bordoni: “Toda e qualquer renúncia à democracia representativa seria na verdade o fim do mundo tal como nós o conhecemos: mais que um retorno aos princípios básicos, seria um salto no escuro cujas consequências somos incapazes de prever”.