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10 mitos sobre a ditadura no Brasil (ou Por que você não deve querer que ela volte) Rôney Rodrigues 2 de abril de 2014 Em 1964, um golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura no Brasil. O regime autoritário militar durou até 1985. Censura, exílio, repressão policial, tortura, mortes e “desaparecimentos” eram expedientes comuns nesses “anos de chumbo”. Porém, apesar de toda documentação e testemunhos que provam os crimes cometidos durante o Estado de exceção, tem gente que acha que naquela época “o Brasil era melhor”. Mas pesquisas da época – algumas divulgados só agora, graças à Comissão Nacional da Verdade – revelam que o período não trouxe tantas vantagens para o país. Nas últimas semanas, recebemos muitos comentários saudosistas em relação à ditadura na página da SUPER no Facebook. Em uma época em que não é incomum ver gente clamando pela volta do regime e a por uma nova intervenção militar no país, decidimos falar dos mitos sobre a ditadura em que muita gente acredita. 1. “A ditadura no Brasil foi branda”

10 Mitos Sobre a Ditadura No Brasil

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10 mitos sobre a ditadura no Brasil

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10 mitos sobre a ditadura no Brasil (ou Por que voc no deve querer que ela volte)Rney Rodrigues 2 de abril de 2014

Em 1964, um golpe de estado que derrubou o presidente Joo Goulart e instaurou uma ditadura no Brasil. O regime autoritrio militar durou at 1985. Censura, exlio, represso policial, tortura, mortes e desaparecimentos eram expedientes comuns nesses anos de chumbo. Porm, apesar de toda documentao e testemunhos que provam os crimes cometidos durante o Estado de exceo, tem gente que acha que naquela poca o Brasil era melhor. Mas pesquisas da poca algumas divulgados s agora, graas Comisso Nacional da Verdade revelam que o perodo no trouxe tantas vantagens para o pas.

Nas ltimas semanas, recebemos muitos comentrios saudosistas em relao ditadura na pgina da SUPER no Facebook. Em uma poca em que no incomum ver gente clamando pela volta do regime e a por uma nova interveno militar no pas, decidimos falar dos mitos sobre a ditadura em que muita gente acredita.

1. A ditadura no Brasil foi branda

Foto: Auremar de Castro/DEDOC AbrilPois bem, vamos l. H quem diga que a ditadura brasileira teria sido mais branda e menos violenta que outros regimes latino-americanos. Pases como Argentina e Chile, por exemplo, teriam sofrido muito mais em mos militares. De fato, a ditadura nesses pases tambm foi sanguinria. Mas repare bem: tambm foi. Afinal, direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados por aqui: torturas e assassinatos de presos polticos e at mesmo de crianas eram comuns nos pores do regime. Esses crimes contra a humanidade, hoje, j so admitidos at mesmo pelos militares (veja aqui e aqui). Para quem, mesmo assim, acha que foi suave a represso, um estudo do governo federal analisou relatrios e prope triplicar a lista oficial de mortos e desaparecidos polticos vtimas da ditadura militar. Ou seja: de 357 mortos e desaparecidos com relao direta ou indireta com a represso da ditadura (segundo a lista da Secretaria de Direitos Humanos), o nmero pode saltar para 957 mortos.

2. Tnhamos educao de qualidade Naquele poca, o livre-pensar no era, digamos, uma prioridade para o regime. Havia um intenso controle sobre informaes e ideologia o que engessava o currculo e as disciplinas de filosofia e sociologia foram substitudas por Educao, Moral e Cvica e por OSPB (Organizao Social e Poltica Brasileira, uma matria obrigatria em todas as escolas do pas, destinada transmisso da ideologia do regime autoritrio). Segundo o estudo Mapa do Analfabetismo no Brasil, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministrio da Educao, o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetizao) fracassou. O Mobral era uma resposta do regime militar ao mtodo do educador Paulo Freire considerado subversivo -, empregado, j naquela poca, com sucesso no mundo todo. Mas os problemas no paravam por a: com o baixo ndice de investimento na escola pblica, as unidades privadas prosperaram. E faturaram tambm. Esse sucateamento tambm chegou s universidades: foram afastadas dos centros urbanos para evitar baderna e sofreram a imposio do criticado sistema de crdito.

3. A sade no era o caos de hojeSe hoje todo mundo reclama da qualidade do atendimento e das filas interminveis nos hospitais e postos de sade, imagina naquela poca. Para comear, o acesso sade era restrito: o Inamps (Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social) era responsvel pelo atendimento pblico, mas era exclusivo aos trabalhadores formais. Ou seja, s era atendido quem tinha carteira de trabalho assinada. O resultado era esperado: cresceu a prestao de servio pago, com hospitais e clnicas privadas. Essas instituies abrangeram, em 1976, a quase 98% das internaes. Planos de sade ainda no existiam e o saneamento bsico chegava a poucas localidades, o que aumentava o nmero de doenas. Alm disso, o modelo hospitalar adotado relegava a assistncia primria a segundo plano, ou seja, para os militares era melhor remediar que prevenir. O to criticado SUS (Sistema nico de Sade) que hoje atende cerca de 80% da populao s foi criado em 1988, trs anos aps o fim da ditadura.

4. No havia corrupo no Brasil

Arquivo Editora Bloch/Veja Rio/DEDOC AbrilUma caractersticas bsica da democracia a participao da sociedade civil organizada no controle dos gastos, denunciando a corrupo. E em um regime de exceo, bem, as coisas no funcionavam exatamente assim. No havia conselhos fiscalizatrios e, depois da dissoluo do Congresso Nacional, as contas pblicas no eram sequer analisadas, quanto mais discutidas. Alm disso, os militares investiam bilhes e bilhes em obras faranicas como Itaipu, Transamaznica e Ferrovia do Ao -, sem nenhum controle de gastos. Esse clima tenso de gastos estratosfricos at levou o ministro Armando Falco, pilar da ditadura, a declarar que o problema mais grave no Brasil no a subverso. a corrupo, muito mais difcil de caracterizar, punir e erradicar. Muito pouco se falava em corrupo. Mas no significa que ela no estava l. Experimente jogar no Google termos como Caso Halles, Caso BUC e Caso UEB/Rio-Sul e voc nunca mais vai usar esse argumento.

5. Os militares evitaram a ditadura comunista fato: o governo do presidente Joo Goulart era constitucional. Seguia todo risca o protocolo. Ele chegou ao poder depois da renncia de Jnio Quadros, de quem era vice. Em 1955, foi eleito vice-presidente com 500 mil votos a mais que Juscelino Kubitschek. Porm, quando Jango assumiu a Presidncia, a imprensa bateu na tecla de que em seu governo havia um caos administrativo e que havia a necessidade de reestabelecer a ordem e o progresso atravs de uma interveno militar. Foi criada, ento, a ideia da iminncia de um golpe comunista e de um alinhamento URSS, o que virou motivo para a interveno. Goulart no era o que se poderia chamar de marxista. Antes de ser presidente, ele fora ministro de Getlio Vargas e Juscelino Kubitschek e estava mais prximo do populismo. Em entrevista indita recentemente divulgada, o presidente deposto afirmou que havia uma confuso entre justia social o que ele pretendia com as Reformas de Base e comunismo, ideia que ele no compartilhava: justia social no algo marxista ou comunista, disse. H tambm outro fator: pesquisas feitas pelo Ibope s vsperas do golpe, em 31 de maro, mostram que Jango tinha um amplo apoio popular, chegando a 70% de aprovao na cidade de So Paulo. Esta pesquisa, claro, no foi revelada poca, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

6. O Brasil cresceu economicamenteUm grande legado econmico do regime militar indiscutvel: o aumento da dvida externa, que permaneceu impagvel por toda a primeira dcada de redemocratizao. Em 1984, o Brasil devia a governos e bancos estrangeiros o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Sim, mais da metade do que arrecadava. Se transpusssemos essa dvida para os dias de hoje, seria como se o Brasil devesse US$ 1,2 trilho, ou seja, o qudruplo da atual dvida externa. Alm disso, o suposto milagre econmico brasileiro quando o Brasil cresceu acima de 10% ao ano mostrou que o bolo crescia sim, mas poucos podiam com-lo. A distribuio de renda se polarizou: os 10% dos mais ricos que tinham 38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. J os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaram para 12% duas dcadas depois. Quer dizer, quem era rico ficou ainda mais rico e o pobre, mais pobre que antes. Outra coisa que piorava ainda mais a situao do populao de baixa renda: em pleno milagre, o salrio mnimo representava a metade do poder de compra que tinha em 1960.

7. As igrejas apoiaramSim, as igrejas tiveram um papel destacado no apoio ao golpe. Porm, em todo o Brasil, houve religiosos que criaram grupos de resistncia, deixaram de aceitar imposies do governo, denunciaram torturas, foram torturados e mortos e at ajudaram a retirar pessoas perseguidas pela ditadura no pas. Inclusive, ainda durante o regime militar, uma das maiores aes em defesa dos direitos humanos o relatrio Brasil: Nunca Mais originou-se de uma ao ecumnica, desenvolvida por dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright. Realizado clandestinamente entre 1979 e 1985, gerou uma importante documentao sobre nossa histria, revelando a extenso da represso poltica no Brasil.

8. Durante a ditadura, s morreram vagabundos e terroristasEsse um argumento bem fcil de encontrar em caixas de comentrio da internet. Dizem que quem no pegou em armas nunca foi preso, torturado ou morto pelas mos de militares. Provavelmente, quem acredita nisso no coloca na conta o genocdio de povos indgenas na Amaznia durante a construo da Transamaznica. Segundo a estimativa apresentada na Comisso da Verdade, 8 mil ndios morreram entre 1971 e 1985. Isso sem contar as outras vtimas da ditadura que no faziam parte da guerrilha. o caso de Rubens Paiva. O ex-deputado, cassado depois do golpe, em 1964, foi torturado porque os militares suspeitavam que, atravs dele, conseguiriam chegar a Carlos Lamarca, um dos lderes da oposio armada. No deu certo: Rubens Paiva morreu durante a tortura. A verdade sobre a morte do poltico s veio tona em 2014. Antes disso, uma outra verso (bem mal contada) dizia que ele tinha desaparecido. Para entrar na mira dos militares durante a ditadura, lutar pela democracia mesmo sem armas na mo j era motivo o suficiente.

9. Todos os militares apoiaram o regimeSer militar na poca no era sinnimo de golpista, claro. Havia uma corrente de militares que apoiava Goulart e via nas reformas de base um importante caminho para o Brasil. Houve focos de resistncia em So Paulo, no Rio de Janeiro e tambm no Rio Grande do Sul, apesar do contragolpe nunca ter acontecido. Durante o regime, muitos militares sofreram e estima-se que cerca 7,5 mil membros das Foras Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporaes por se oporem ditadura. No auge do endurecimento do regime, os servios secretos buscavam informaes sobre focos da resistncia militar, assim como a influncia do comunismo nos sindicatos, no Exrcito, na Fora Pblica e na Guarda Civil.

10. Naquele tempo, havia civismo e no tinha tanta baderna como greves e passeatas

Estudantes que participavam de uma reunio da UNE so presos no interior de So Paulo. Foto: Cristiano Mascaro/DEDOC AbrilQuando os militares assumiram o poder, uma das primeiras medidas que tomaram foi assumir a possibilidade de suspenso dos diretos polticos de qualquer cidado. Com isso, as representaes sindicais foram duramente afetadas e passaram a ser controladas com pulso forte pelo Ministrio do Trabalho, o que gerou o enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na primeira metade do perodo de represso. Afinal, para que as leis trabalhistas vigorem, necessrio que se judicializem e que os patres as respeitem. Com essa supresso, os sindicatos passaram a ser compostos mais por agentes do governo que trabalhadores. E os direitos dos trabalhadores foram reduzidos vontade dos patres. Passeatas eram duramente repreendidas. Quando o estudante Edson Lusa de Lima Souto foi morto em uma ao policial no Rio de Janeiro, multides foram s ruas no que ficou conhecido com o a Passeata dos Cem Mil. Nos meses seguintes, a represso ao movimento estudantil s aumentou. As aes militares contra manifestaes do tipo culminaram no AI-5. O que aconteceu da para a frente voc j sabe.

Mas, se voc j esqueceu ou ainda no est convencido, confira uma linha do tempo da ditadura militar nesse especial que a SUPER preparou sobre o perodo. No deixe de jogar De volta a 1964, o jogo que mostra qual teria sido sua trajetria durante as duas dcadas do regime militar no Brasil.

Fontes: Folha, Estado, EBC, Brasil Post, Pragmatismo Poltico, O Globo, R7

http://super.abril.com.br/blogs/historia-sem-fim/10-mitos-sobre-a-ditadura-no-brasil/