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viajantes no brasil

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N I C O L A U S E V C E N K O

O FRONTBRASILEIRO NAGUERRA VERDE:VEGETAIS,COLONIALISMOE CULTURA

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Minha reflexão a respeito daquestão da visibilidade da paisagem sobre o contexto dacolonização do país é enten-

der esse jogo de olhares entre Europa e Bra-sil, de brasileiros sobre europeus, e de brasi-leiros sobre seu próprio território, em funçãodo contexto posto pelas condições da coloni-zação. Isso porque se observamos o processoda expansão européia sob essa condição deexpansão colonial podemos muito beminterpretá-lo como uma guerra declarada con-tra a natureza. A expansão européia se fez emfunção da exploração de recursos naturais –minérios, metais preciosos ou vegetais –, emespecial por conta dessa peculiaridade de ohemisfério sul, a zona tropical por excelên-cia, ter características de insolação que dãoaos seus vegetais em geral condição de de-senvolver substâncias estimulantes. A expan-são se fez em grande parte em função dessesvegetais – a pimenta, o chá, o açúcar, o cacau,por exemplo. Houve um aprendizado préviodessa exploração qualitativa da natureza, es-pecialmente em virtude da peculiaridade tro-pical da natureza nas ilhas do Mediterrâneo –em particular as ilhas do litoral espanhol, e quese estendeu depois de maneira mais sistemáti-ca para aquelas do litoral africano, principal-mente as Canárias, que tinham (como é típicode ilhas que ficam ao largo do continente) ve-getação absolutamente própria e uma popula-ção, os guanches ou canarinos, de caracterís-tica étnica que, pelo pouco que se sabe hoje,julga-se que era completamente diversa tantoda européia quanto da africana. No entanto, ofato é que não se sabe praticamente nada a esserespeito, porque com o impacto da conquistaeuropéia a vegetação das Canárias foi extintacompletamente e não sobrou um único habi-tante da população original. Eliminaram-se to-talmente a população e a vegetação, e a partirdaí, então, a ilha estava em condições de sercolonizada pelos europeus.

A população usada para trabalhar na agri-cultura colonial das Canárias foi importadada África e o colonizador era europeu. Por-tanto, quando ela deixou de ser o que semprefora, quando a natureza das Canárias foi subs-tancial e inevitavelmente alterada de modoirreversível, é que o processo da colono-

nização realmente se engendrou. Esse perío-do inicial de caráter probatório, de caráter deaprendizado, gerou os conhecimentos quepropiciaram depois uma conquista em maisampla escala em direção à América, em par-ticular à área do Caribe e da América do Sul,em função da exploração desses mesmos re-cursos e gêneros tropicais. Nesse sentido sepode, dentro do processo da colonização,avaliar duas formas de percepção mais oumenos peculiares dos europeus, que não sãoem princípio dissociadas entre si, mas queacabam se tornando atitudes especializadasno contexto da evolução do processo coloni-zador: a primeira é o impulso desejante (so-bre o qual o texto de Leyla Perrone-Moisés,Vinte Luas, nos diz bastante); essa espécie desentimento assinalado particularmente noexemplo do voyeurismo de Jean de Léry, eque é o desejo pelo desconhecido, a vontadede conquistar, de penetrar naquilo que é vir-gem e indevassável, intocado. E esse é um atobastante sensual, bastante sensorial, tanto queé produzido por pessoas que se entregam lar-gamente ao jogo dos olhos, ao jogo do senti-do, daqueles que gostam de ver longamente,que sentem os cheiros, que tocam a vegeta-ção, as areias finas, que sentem o calor ou ofrescor do ambiente. Gente, portanto, quepropriamente constrói algo que pode ser cha-mado de paisagem, e vê nessa paisagem afonte de um ato de adoração e a projeção deum ato de desejo. A paisagem é a coisa ama-da, e é por isso que pintam ou produzem ima-gens, ilustrações, ou então escrevem, fazempoesia a respeito da natureza assim transfigu-rada em objeto do desejo.

A outra forma de percepção européia é aprática propriamente agressiva do ato ou daintervenção colonizadora, e que implica nocontato direto, físico, com esse meio – emfunção da extração daquilo que se veio bus-car pelo ato da colonização: o vegetal tropicalou o minério. E, nesse sentido, o que o colo-nizador tem diante de si não é mais paisagem,o que ele tem diante de si é a mata ou o sertãobravio – e a ênfase aí vai na expressão bravio,porque o ato realmente dignificante desseindivíduo é o do desbravamento. Desbravar,romper aquela virgindade nativa, e agressi-vamente impor o seu controle e o seu domí-

M

NICOLAUSEVCENKO éprofessor de Históriada Cultura doDepartamento deHistória daFFLCH-USP e autorde Orfeus Extáticos naMetrópole, São PauloSociedade e Culturanos FrementesAnos 20 (Companhiadas Letras).

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nio sobre a natureza. Natureza que, por suavez, aparece aqui como o inimigo a ser ven-cido e a ser espoliado. Penso que quem pri-meiro elaborou uma percepção desse proces-so na senda das sensibilidades desses viajan-tes românticos de que trata Flora Süssekindfoi Euclides da Cunha num texto clássicointitulado “Fazedores de Deserto”, em que opróprio nome diz a que está fazendo alusão:a maneira como a prática da ocupação e colo-nização do solo brasileiro foi fundamental-mente predatória, destrutiva e que não sómodificou mas, no limite, extinguiu a nature-za original e a transformou em ruína, de acor-do com essa percepção aguçada da imagina-ção romântica pela ruína. Nesse sentido épossível ver o processo da colonização comosendo comandado por duas cores fundamen-tais: o vermelho e o verde. O vermelho do fogoe o verde da mata. Ao contrário da nossa inter-pretação atual dessa simbologia cromática, naverdade, o verde é a cor do perigo e se tentar-mos reproduzir a condição dos primeiros colo-nizadores postos no solo brasileiro, entende-

se qual a origem desse sentimento e as conse-qüências ulteriores de sua manifestação.

Quando são deixados aqui os primeiroshomens brancos europeus, na areia branca dapraia e as caravelas retornam, eles olham enão há mais nada que os ligue à Europa, e pelafrente o que vêem é só mata verde. Da mataverde surgem as feras, da mata verde surgemos insetos, da mata verde surgem os índios, etodo o perigo. E se eles estão ali para conquis-tar alguma coisa, só podem ver o que há paraconquistar se a mata sair da frente. Portantoa melhor paisagem do ponto de vista de quemestá na posição do colonizador – que já nãotem mais nenhum contato com a Europa e nãotem outra alternativa senão marchar para di-ante – é a paisagem ausente, é a eliminaçãocompleta daquele verde. Porque o verde é operigo, a possibilidade iminente de suaextinção física. Nessa direção é que se cons-trói a lógica da ocupação predatória da terrae é assim que se desenvolve a sensibilidadenativa com relação à natureza. Não mais comopaisagem, mas nesse aspecto bastante peculi-

Albert Eckhout,

“Inflorescência de

Palmeira e Cesta de

Especiarias”, óleo

sobre tela, Museu

Nacional da

Dinamarca

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cinco anos (1607-11). Ele era um europeu,um espanhol, estava aqui por um períodocurtíssimo de tempo e se atreveu a esse gestobastante original de construir uma imensa áreaajardinada que proporcionasse a sua corte“espanholada”, europeizada, a sombra, a de-licadeza das trepadeiras, dos vegetais, dasfontes, e o frescor a que eles estavam acostu-mados e que aspiravam. Esse jardim se man-teve longamente com essa mesma caracterís-tica de servir a uma corte europeizada e a umapresença européia no meio de uma cidade decaracterística totalmente diversa. Algo seme-lhante aconteceu no Brasil pouco depois – aAlameda do México foi construída no iníciodo séc. XVII. No fim da primeira metade desseséculo, um outro príncipe europeu esteve noBrasil por circunstâncias muito peculiares, opríncipe Maurício de Nassau, que veio admi-nistrar os territórios conquistados pelo exér-cito holandês na luta contra o império luso-espanhol, no período da união das coroas ibé-ricas. Estando estabelecido no Recife, comose sabe, Maurício de Nassau engendrou umprocesso de construção de uma comunidadeutópica, segundo os princípios de concepçãode utopia da sensibilidade espiritual religiosado seu tempo. E a essa utopia ele deu o seupróprio nome, o que identifica o valor e aimportância que lhe atribuiu. Ele a chamoude cidade Maurícia, e foi construída na ilhade Antonio Vaz, próxima ao continente masdistante de quaisquer outras áreas de coloni-zação tradicional portuguesa. Naquele pon-to, construiu uma cidade bastante complexa,que era uma mistura de cidade, no sentidopropriamente da urbanização européia, mastambém de jardim botânico, porque reuniauma seleção de espécies de toda parte, emespecial de espécies trazidas do sertão brasi-leiro. Nassau premiava generosamente quemlhe trazia as espécies mais variadas, maisestranhas, mais exóticas, das regiões maisafastadas do sertão, do interior do país. Por-tanto ali ele construiu toda uma série de ala-medas, jardins cheios de amenidades, fontese inclusive monumentos e salas onde se pra-ticavam jogos. Assim, a ilha Maurícia foi umaverdadeira obra-prima da ocupação holande-sa do nordeste açucareiro, e era propriamentea menina dos olhos de Maurício de Nassau –

ar da mata brava – o de sertão bravio —, eassim se explicam os fazedores de deserto, tantona senda dos homens que abriram o espaçopara os grandes latifúndios monocultores donorte-nordeste, quanto os que se entregaram àprospecção mineral e também revolveram asterras no processo das catas, deixando aquelesolo aberto como uma boca de vulcão estéril epara sempre irrecuperável.

Esse é o mesmo tipo de sensibilidade quelevou Monteiro Lobato a descrever um pro-cesso ainda mais drástico e aceleradamentepredatório, que foi o da expansão da lavouracafeeira do Vale do Paraíba carioca em dire-ção ao estado de São Paulo. Um texto chama-do também caracteristicamente de As Cida-des Mortas. O fato é que essas duas atitudes,a da percepção sensual ou sensorial da paisa-gem com projeção desejante e essa práticaagressiva, essa ação interveniente predatóriado desbravador – juntamente com os conta-tos e as relações que se estabelecem entre si–, são muito interessantes. Em grande partenós somos os caudatários, os herdeiros desseimpasse e dessa hesitação entre dois modoseuropeus diferentes de perceber uma mesmasituação. Por exemplo, a primeira relaçãodelicada, sutil e estetizante com relação àpaisagem americana provavelmente foi aconstrução do grande jardim chamado Ala-meda do México pelo vice-rei da NovaEspanha D. Luiz Velasco, que governou por

“Modo de Minerar e

Retirar Diamantes”,

desenho aquarelado

que ilustra

o manuscrito

“Pequeno Mapa

de Demarcação

Diamantina”

(séc. XVIII),

Arquivo Histórico

Ultramarino,

Lisboa

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e o fato interessante para nós, em particular,a respeito da construção da cidade Maurícia,é o quão pouco se sabe dela, pois foi total-mente abandonada assim que a cidade foiretomada pelos portugueses. Mais interessanteaté que isso é o fato de Maurício de Nassau ter“feito” a cidade – uma cidade para ser habitada–, embora ninguém quisesse visitá-la ou muitomenos habitar um local feito pensando-se emplantas e não em gente. De tal forma que elecomeçou a usar de uma relativa violência, for-çando algumas pessoas a se transferirem paraa ilha Maurícia. Gente do Recife e de Olindaque relutava tanto que ele se viu obrigado, nolimite, a tratar militarmente o transplante des-sas pessoas do litoral em direção à ilhaMaurícia. E a reação foi tão grande, que muitagente transportada de dia fugia de noiteretornando ao continente, tamanho era o hor-ror de se ficar numa ilha de plantas – ondeprovavelmente imaginavam que também aca-bariam transformados em plantas.

De qualquer forma era uma lógica com-pletamente oposta àquela do predomínio dacupidez econômica, enfim, a da exploraçãopredatória, que caracterizava a colonização

como até ali fora conhecida. Algo mais oumenos semelhante ocorre na primeira tenta-tiva de construção também de uma área deamenidade vegetal no Rio de Janeiro, que foio Passeio Público.

A história da construção do Passeio Pú-blico é muito nebulosa e isso também éindicativo do quão complexa foi a sua origeme o quão fora do conjunto dos procedimentosclássicos da colonização encontrava-se esseprojeto. A sua origem mais remota obviamen-te está na crise do império português na se-gunda metade do século XVIII, quando asminas se esgotavam. As minas de ouro doBrasil estavam em declínio e Portugal ia so-frendo pressão, o que o levava a perder terri-tórios e mais territórios de suas possessõesasiáticas, de tal maneira que, com a crise doaçúcar, a dos minérios e a crise do Oriente, oBrasil virava o único grande repositório dariqueza do império português, e a alternativapor excelência que sobrava aos colonizado-res era o desenvolvimento de novas espéciesvegetais, em especial o transplante para aAmérica de espécies asiáticas e a criação aqui,então, de uma grande variedade de drogas

Franz Frühbeck,

“Passeio Público”,

guache sobre

papel(1817),

coleção particular,

São Paulo

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(cravo, canela, baunilha, pimentas, corantes,essências aromáticas, salsaparrilha, etc.). Es-tas, chamadas drogas do sertão, foram respon-sáveis justamente por grande parte da luta domarquês de Pombal contra os jesuítas, poisesses tinham o controle internacional das dro-gas do sertão tanto na América quanto na Ásia.

Portanto, essa guerra contra os jesuítasera uma guerra pelo controle das drogas, e aexpulsão deles visava sobretudo transferir omercado internacional das drogas para a co-roa portuguesa.

É nesse sentido que um italiano, Domin-gos Vandelli, que depois se tornaria o diretordo Jardim Botânico de Lisboa, escreve umdicionário de história natural no qual, entreoutras coisas, expõe princípios botânicos epropostas de construção de jardins botânicose de estações de aclimatação de vegetais emfunção da reconstrução de Lisboa, destruídapelo terremoto de 1755. O próprio Pombalpropõe a criação do Passeio Público de Lis-boa como um dos marcos da cidade e uma dasformas de propiciar uma profilaxia vegetalpara a cidade. Aí, então, o princípio dafisiocracia, nos quadros dos teóricos doIluminismo, para os quais era a agricultura afonte fundamental da riqueza dos povos, eque alimentava o projeto dos botânicos, so-mou-se à filosofia dos miasmas e dahigienização que recomendava áreas verdes,áreas abertas e alamedas para propiciar a hi-giene das cidades em crescimento.

É justamente na intersecção de todos es-ses elementos que surge o Passeio Público deLisboa, o qual inspirou D. Luiz de Vasconce-los na proposta de criação do Passeio Públicodo Rio de Janeiro, justamente numa das áreasmais insalubres da cidade, a lagoa doBoqueirão, que ficava próxima aos arcos. Oprocesso foi muito difícil porque a região erapantanosa e foi preciso drená-la, primeirosecando-a e depois trocando a terra local poroutra terra mais fértil para poder estabelecerum jardim. Como ele tinha também caracte-rísticas de um jardim experimental, de umjardim botânico, a maior parte das espéciesadaptadas ali foi primeiramente de origemportuguesa ou asiática, justamente numa ten-tativa de adaptação ao solo brasileiro. O re-sultado, no entanto, foi criar no Rio de Janei-

ro uma imagem absolutamente sui generis nocontato geral da colonização, no sentido doestabelecimento de um espaço destinado aotrato cuidadoso e reverente para com os vege-tais e onde eles, na sua disposição em dese-nho paisagístico e arranjos ajardinados, fica-vam identificados com o bom-gosto, o bem-estar e a comunhão humana.

Ele trouxe consigo, ademais, a revelaçãode que um determinado estatuto do Brasil, ode colônia específica de Portugal –, um efeitodo monopólio, o exclusivo metropolitano –,havia sido rompido na medida em que a eco-nomia do país se internalizava e havia umaexpectativa internacional de conhecimentotambém geral das suas paisagens, das suasriquezas, dos seus recursos interiores.

Em primeiro lugar é Portugal mesmo quevai iniciar uma tentativa de prospecção maiscompleta do território brasileiro e para isso vainomear um botânico formado na Universida-de de Coimbra, Alexandre Rodrigues Ferreira,mas que era brasileiro, para fazer uma grandeexpedição composta de inúmeros auxiliarescom os quais ele faria uma ampla exploraçãodos principais fluxos fluviais da Amazônia edo Pantanal. De 1783 a 1789, todo esse mate-rial foi sendo reunido, composto por espéciescoletadas, por manuscritos com descrições depaisagens da natureza e ilustrações. Esse ma-terial era todo encaixotado e remetido paraLisboa, ficando acumulado no Real Gabinetede História Natural de Lisboa e em 89 o pró-prio Alexandre Rodrigues partiu do Brasil paraLisboa, assumindo ele mesmo a organizaçãodesse imenso arquivo sobre os recursos davegetação e da natureza brasileira.

Esse acervo ganha uma reputação tão no-tável, na Europa, que quando Napoleão decideinvadir Portugal, junto com o general Junot,ele manda à frente do seu exército um botâni-co, o naturalista Geoffroy de Saint-Hilaire, cujafunção era exatamente de, no caso de Lisboaser invadida, não correr para o tesouro do pa-lácio, mas sim para o tesouro do Jardim Botâ-nico, e saquear todo o acervo de AlexandreRodrigues Ferreira, inclusive, e se possível,prendendo o próprio. Essa foi a primeira me-dida que os franceses tomaram assim que con-quistaram a capital do império português, oque levou D. João VI a assumir uma medida de

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Por outro lado, os austríacos também per-cebiam que era agora ou nunca que se conse-guiria penetrar nas riquezas recônditas dasdimensões ultramarinas do império portugu-ês, em particular do Brasil. Assim, através docasamento de D. Pedro e de D. MariaLeopoldina, eles conseguiram a permissãopara mandar uma expedição de artistas e pes-quisadores europeus para virem ao Brasil efazerem um amplo levantamento em diferen-tes direções e diferentes dimensões e em re-lação a diferentes regiões do país. O coman-do dessa expedição científica e artística foidado ao príncipe Maxmilian von Wied-Neuwid e dela resultou também um grandeacervo todo ele exportado para a Europa. Omovimento mais ambicioso, porém, nessecontexto todo, veio, sem dúvida, do czar Ale-xandre I da Rússia. É preciso lembrar que, nessemomento, o czar Alexandre é o homem maisimportante da Europa, o que pode parecer es-tranho já que, em geral, há uma tendência de seminimizar a atuação histórica dos russos. Porexemplo, comumente entende-se que foramos ingleses que venceram Napoleão e não osrussos, como de fato foram; entende-se queforam os americanos que venceram a SegundaGuerra Mundial e não os russos, como tam-

retaliação. Assim que ele chega no Rio de Ja-neiro, a primeira coisa que faz é decretar ainvasão militar da Guiana Francesa, com or-dens expressas para que as tropas corressempara o Jardim Botânico de Caiena e lá prendes-sem o botânico chefe, o célebre mestre Martin,forçando a transferência de todas as espéciesdo jardim botânico de lá para os jardins botâ-nicos de Belém, Pernambuco e Salvador. Eraa guerra dos vegetais, em que a ação militardireta passou para o campo da espionagem,mais clandestinamente.

É nesse contexto que o botânico alemão, oconde Hoffmannsegg, que participou e cola-borou na organização do Real Gabinete deHistória Natural de Lisboa, ao se retirar nofinal do século XIX, solicitou permissão à corteportuguesa para enviar um auxiliar para reco-lher algumas espécies no Brasil. A permissãofoi dada no sentido de que fosse enviada umaúnica pessoa para recolher algumas poucasespécies, que seriam trazidas de volta com ele.O fato é que ele mandou o botânico FredericSieber para o Pará, onde, durante doze anos,fez uma prospecção com muitos auxiliares emtodo o alto e médio Amazonas e remeteu todoesse material, que foi a base da criação doMuseu de História Natural de Berlim.

Gravura do livro de

Domenico Vandelli

Diccionario dos

Termos Téchnicos

de Historia

Natural... (Coimbra,

1788), Biblioteca

do IEB-USP

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bém de fato foram. Mas, tentando resgatar esseporão da história, que são os russos, eles ti-nham olhos largos para cima da natureza bra-sileira e nomearam também um botânico paraser o primeiro cônsul-geral do Império russona corte brasileira, o barão Langsdorff.

Para entender a nomeação de Langsdorffé preciso entender um pouco o contexto euro-peu da época. Alexandre I, desde que derro-tou Napoleão e conquistou Paris – onde fun-dou a Santa Aliança, através da qual os prín-cipes da Áustria e da Prússia se tornaram seusvassalos, na construção de uma aliança mili-tar destinada ao controle ideológico e políti-co do continente e, a rigor, de todo o mundoe em particular no confronto entre as potên-cias continentais contra a marinha inglesa –,em função disso o czar Alexandre se torna ohomem mais poderoso do continente euro-peu, estabelecendo um plano de expansãotanto por terra quanto por mar. Por terra aRússia se expande em todo o infinito das es-tepes asiáticas em direção a Quirguísia, aMongólia, a Sibéria, ao mar de Bhering e aomar do Japão. A partir dali estabelecem umprojeto de dominação oceânica que seria umaextensão lógica de seu domínio continental.Para isso, é criada uma marinha de guerra sobo comando do almirante Krusenstern, quehavia sido treinado justamente na AcademiaNaval da Inglaterra. Sob o comando dessealmirante funda-se uma companhia chamadaCompanhia Russo-americana de Comércio,mas que na verdade era uma companhia quetinha como fundamento a criação das bases deinstalação de um futuro império ultramarinorusso, e é em função dele que se estabelece aprimeira viagem russa de circunavegação domundo em 1803, comandada pelo almiranteKrusenstern e que tem como seu cientista che-fe exatamente o barão de Langsdorff.

O projeto russo era controlar o AtlânticoNorte a partir do Alaska, do estreito deBhering, cujo nome lhe foi atribuído por umoutro almirante a serviço do Império russo,exatamente o almirante Bhering. A partir dali,a idéia era de obter o controle do Pacífico Sule do Atlântico Sul descendo do Alaska emdireção a toda a costa americana do Pacífico.Como se sabe, havia colônias russas que che-gavam até o que hoje é a cidade de São Fran-

cisco, na Califórnia. Os russos queriam es-tender também o domínio para as ilhas doPacífico Sul e a partir dali ter um controle daregião do Prata, adquirindo a ilha de SantaCatarina fosse por conquista militar, fosse pornegociação com o governo brasileiro. Esseera o projeto da expansão russa, de unir oimpério aos dois oceanos, e quem foi postocomo observador decisivo na parte atlânticado projeto foi exatamente o barão deLangsdorff, sendo que com esse gabarito ecom esse projeto por trás ele vem a se tornaro cônsul-geral do Império russo no Brasil.

O caso de Langsdorff é extraordinárioporque ao chegar ao Brasil – ele que era umhomem que conhecia toda a Europa e toda aÁsia, por conta de servir primeiro ao exércitoaustríaco depois ao Império russo, além de todoo litoral da América do Norte, na primeira vi-agem de circunavegação –, no Brasil ele temuma espécie de revelação e manifesta sentirpelo país e pelo contato com a sua naturezaalgo que nunca sentira em qualquer parte domundo. Por exemplo, na primeira viagem, em1804, quando chega exatamente em SantaCatarina, ele diz: “A lembrança de minha es-tada no Brasil permanecerá na minha mentepor toda a vida”. Mais tarde, quando já é côn-sul do Brasil, ele escreve em correspondência:“O Brasil tem o aspecto de um paraíso, o solo éfértil, rico, e aqui se vive bem. Eu sou um admi-rador desse país e as vantagens que o distin-guem de todos os outros são mais do que evi-dentes”. Numa outra carta: “A imaginação maisrica e mais feliz e a mais perfeita das línguascriadas pelo homem sequer de longe podem daridéia da extensão dos tesouros e magnificênciadessa natureza”. Mais outra: “Quem quiser queseja que anseie por motivos poéticos que vá aoBrasil, pois ali a natureza poética responde aosseus pendores. Qualquer pessoa, inclusive amenos sentimental, se deseja descrever as coisascomo elas são, ali se transforma num poeta”.

Essa visão de Langsdorff lembra a visãodos outros estrangeiros que comentávamoscomo aquela percepção sensual, sensorial, dapaisagem brasileira, mas o motivo pelo qualele estava aqui era de outra natureza, por es-pionagem científica, espionagem econômicae espionagem política. Em função disso, eleadquire uma propriedade na periferia do Rio

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de Janeiro, uma fazenda que ele vai transfor-mar numa fazenda modelo de exploração ci-entífica, chamada fazenda da Mandioca.Nesse local ele introduz uma série de espéci-es européias, de espécies asiáticas e começaa fazer experiências de adaptações verifican-do, para o seu maravilhamento, que a nature-za brasileira era extremamente receptível aespécies de toda parte do mundo. Diz ele: “Alocalização dessa província é tão ideal quetodos os frutos, cereais e legumes, tanto daEuropa temperada quanto das partes quentesda Índia, crescem aqui com grande perfei-ção”. O resultado de suas experiências é omelhor possível, em função do que ele esta-belece uma empresa de colonização, com aintenção de ele próprio se tornar um capitãode empresa colonizadora, um conquistadordaquele mesmo solo que tanto admirava. Paraisso, contrata um grande grupo de imigrantesalemães para iniciar uma agricultura de largaescala, em grande extensão e, em paralelo,tenta conseguir junto à corte do Rio de Janei-ro o direito para fazer uma ampla viagem ci-entífica pelo interior do Brasil, justamentefazendo o percurso das Bandeiras, partindoda bacia do rio Paraná em direção às baciasdo interior, pelo Pantanal até chegar ao Ama-zonas. O projeto era fazer o mais amplo, com-pleto e documentado levantamento da natu-reza brasileira jamais feito então por qual-quer cientista ou explorador.

A razão para isso é que, além dos seusmotivos econômicos, políticos e estéticos,Langsdorff era movido também pela vontadede criar uma nova teoria científica, pois nessemomento havia um debate científico bastantecomplexo, que envolvia gente como Alexandervon Humboldt, Alfred Russel Wallace eCharles Darwin, bem como cientistas que es-tavam tentando elaborar uma teoria unificadasobre a origem da vida. Todos eles trabalha-vam no mesmo sentido de partir de uma atitu-de mental que pensava a biologia de um pontode vista classificatório, como no século XVIII,para uma outra atitude organizada de acordocom o espírito de sistema (esprit de système),propondo essa teoria unificada. O fato é queseus concorrentes, Humboldt, Wallace eDarwin, puderam dispor, como recurso deci-sivo para suas investigações científicas, de

viagens por todo o mundo e, em particular,viagens que se demoravam longamente nasáreas tropicais, onde se encontravam espaçosde concentração saturada de espécimes. Oquanto esses deslocamentos eram cruciais setornava muito mais visível no caso do profes-sor de Langsdorff, o antropólogo e naturalistaJohann Friedrick Blumenbach, que seguia namesma senda, mas que nunca tivera, no entan-to, oportunidade de fazer essas viagens, essasexpedições. E é exatamente essa a parte queLangsdorff quer complementar na teoria deseu professor, desenvolvendo-a com o tipo deprospecção do espaço brasileiro que essa via-gem científica poderia lhe proporcionar e con-seguindo a construção dessa teoria unificadaatravés dos conceitos-chave que se tornavamjá a principal fonte conceitual da biologiamoderna, como, por exemplo, os conceitosde função, conflito, adaptação e evolução. Énesse sentido que ele se lança na mais ousa-da, na mais ampla e arriscada expedição ci-entífica feita no século XIX no Brasil e que,como todo mundo sabe, redundou no maisfabuloso desastre.

Langsdorff é uma espécie de criaturaemblemática, porque pôde ter com relação ànatureza quase que todas essas atitudes que eutenho tentado referir aqui: ele tinha a seduçãosensual da paisagem, tinha a curiosidade cien-tífica, ele pretendia o domínio da natureza eatuar como agente colonizador; ele era, por-tanto, um homem que conseguiu sintetizar essasatitudes díspares todas, e não deixa de ser pro-fundamente irônico que, como resultado des-sa sua expedição pelo país, ele tenha sido aco-metido de malária, como grande parte dosmembros da sua expedição, que acabou com-pletamente destroçada. Ele não morreu, o quelhe aconteceu porém talvez tenha sido pior:perdeu completamente a memória e voltou paraa Europa como se nunca tivesse visto qualqueroutra paisagem que não o jardim de sua pró-pria casa. Tudo o que acumulou, tudo o queconheceu, tudo o que registrou foi perdido,exceto pelo que foi remetido e se encontra hojeestocado em São Petersburgo, e a memóriadele se foi como um pavio de vela.

Esse caso de Langsdorff eu acho que éúnico no sentido de poder ser sintético e po-der também dar uma dessas raras oportunida-

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des de vermos um golpe, um contragolpe danatureza contra essa atitude interveniente dohomem – e a natureza se preservando na suacondição de enigma, de enigma virgem. Ofato é que, pouco tempo após a morte deLangsdorff, se dá o início da expansão dacafeicultura no sul do Brasil e o que as outrasformas de cultivo levaram séculos para pro-duzir em termos de destruição e de erosão dosolo brasileiro, a cafeicultura vai realizar empouquíssimos anos. Do começo do século a1920, praticamente todo o solo de São Pauloestá revolvido pela expansão da monoculturacafeeira e um dos homens mais importantesdesse processo, Paulo Prado – filho do conse-lheiro Antonio Prado, dono de uma das mai-ores fazendas de café e pioneiro na importa-ção dos colonos europeus para trabalharemcomo mão-de-obra na exploração da lavouracafeicultora –, escreveu um livro, Retrato doBrasil, no qual todo um capítulo é dedicadoà paisagem, onde identifica que não há outrodestino para a paisagem no Brasil que nãoseja o de desaparecer, e que essa é a condiçãoda construção da modernidade no país e nãooutra. Diz ele na conclusão de seu livro:

“A esplêndida frutificação da sementebandeirante vai criando uma nova terrapara seus filhos, dentro de dezenas de anosdesaparecerá o último vestígio do SãoPaulo quinhentista e seiscentista, como jádesapareceu o paulista antigo desses tem-pos heróicos. Felizes os que ainda pude-rem apanhar nos fugidios delineamentosos derradeiros traços dessa paisagem his-tórica já ameaçada pelo tempo igualitá-rio, que só lhe conservará a carcaçaindestrutível do céu e da terra, e que seráa última testemunha presente das lutas,ambições e glórias do passado”.

Acho que nessa breve consideração po-demos ver a transição da natureza brasileirado paraíso para a carcaça, e considerar que oque ficou da paisagem talvez seja o que estejaconcentrado nessa exposição: essa vontadede gozar e tocar o que já sabemos de antemãoque está irremediavelmente e para sempreperdido, e que só podemos hoje evocar comouma forma vaga e melancólica de nostalgia.

Litografia da Flora

Brasiliensis, de

Martius (Munique,

1840-1906),

Fundação

Biblioteca

Nacional,

Rio de Janeiro