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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO
GILBERTO SANTINHO FELTRIM
A essência do ato da empatia na Fenomenologia de Edith
Stein
São Paulo
2010
GILBERTO SANTINHO FELTRIM
A essência do ato da empatia na Fenomenologia de Edith
Stein
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Curso de Filosofia, para obtenção do grau
de Licenciatura Plena em Filosofia.
ORIENTADOR: Profª Dr. Newton Gomes Pereira
São Paulo
2010
GILBERTO SANTINHO FELTRIM
A essência do ato da empatia na Fenomenologia de Edith
Stein
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Curso de Filosofia, para obtenção do grau
de Licenciatura Plena em Filosofia.
Aprovado em Maio de 2010
____________________________________________________
ORIENTADOR: Profª Dr. NEWTON GOMES PEREIRA
Ao Prof. Dr. Newton Gomes Pereira, pela
paciência, atenção e dedicação;
Ao Vento (Modificado em 2012);
Meu sincero testemunho de fidelidade científica e
intelectual.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo descrever a essência do ato da “consciência
pura” denominado empatia. Nesse percurso, somos guiados pelo olhar fenomenológico de
Edith Stein, objetivado em sua tese de doutorado, Zum Problem der Einfühlung (O problema
da empatia), defendida em 1916. E. Stein inicia o processo pela redução fenomenológica, na
qual a posição de existência do objeto presente de consideração e (as possíveis posições de
existência) de todos os objetos é suspensa. Depois disso, o que fica é o eu com sua identidade.
O próximo passo é suspender também a identidade ou posição de existência do eu. Então,
suspendidas as posições de existência do fenômeno mundo e da identidade do sujeito,
permanece o eu puro e ante a ele se constitui a esfera da consideração fenomenológica, na
qual se manifestam as essencialidades indicadas imperfeitamente por meio de nomes, ou seja,
os objetos em suas qualidades essenciais. Uma das essencialidades localizadas no interior
desse mundo da percepção reflexiva é o eu alheio com o seu vivenciar (empatia). Para E.
Stein, a empatia é a percepção da consciência alheia em sua vitalidade por meio da
presentificação (tornar presente) do objeto do vivenciar alheio. Essa consideração da essência
da empatia, possibilitada pela comparação com outros atos da “consciência pura”
semelhantes”, se expande posteriormente para uma crítica das teorias historicistas e
psicologistas da empatia.
Palavras – chave: Empatia; Edith Stein; Fenomenologia; Psicologia; „Eu puro‟; „Eu próprio‟;
„Eu alheio‟.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................07
§1. A empatia em linhas gerais e na singularidade do ato........................................................09
§2. Continuação da descrição a partir do confronto com as teorias históricas da percepção da
consciência alheia.....................................................................................................................17
2.1. A empatia em si mesma contra a “empatia completa” de Lipps (Ou o Grande
Porém)...........................................................................................................................18
2.2. A empatia análoga..................................................................................................19
2.3. A vivência do consentimento.................................................................................20
2.4. A vivência da discrepância.....................................................................................21
2.5. A possibilidade do esquecimento de si..................................................................22
2.6. O Senti-Los (einsfühlung) Ou Sentir Outro Em Geral ..........................................23
2.7. A reiterabilidade da empatia (empatia da empatia)................................................24
2.8. Conclusão...............................................................................................................25
§3. A Fenomenologia e a Psicologia: um estudo por meio do confronto com as teorias
genéticas ou psicologistas da percepção da consciência
alheia........................................................................................................................,................26
3.1. Sobre a relação entre Psicologia e Fenomenologia...............................,................28
3.2. Consideração da teoria genética da imitação.........................................................28
3.3. Consideração da teoria genética da associação......................................................29
3.4. Consideração da teoria genética da inferência por analogia..................................31
§ 4. Confronto com as teorias de Max Scheler e Hugo Münsterberg e finalização do
processo.....................................................................................................................................33
CONCLUSÃO..........................................................................................................................38
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................40
INTRODUÇÃO
A presente monografia percorrerá o caminho trilhado por Edith Stein na primeira
parte do estudo que lhe concedeu o título de Doutora em Filosofia, Zum Problem der
Einfühlung, para desnudar junto a ela a essência do ato da empatia.
Nosso método investigativo poderá ser denominado hermenêutica filosófica pois esse
método, efetuada a redução fenomenológica na qual abstraímo-nos de todas as impurezas
anexadas ao eu, pode nos fazer visualizar intuitivamente outros eus com suas vivências e,
diretamente, outro eu centro constituinte (Edith Stein), compartilhando assim a mesma
vivência que intentamos ressaltar atualmente: a vivência da percepção da consciência alheia.
Direcionados junto a tal essencialidade ou núcleo de criação, e contemplando-a na
pureza originária do princípio de todas as realidades – o Eu -, compararemos primeiramente a
empatia com os outros atos da consciência pura – a imaginação, a recordação, a expectativa e
a fantasia, na originariedade ou não originariedade do ato -, para extrair os traços essenciais
desse “ato” em sua singularidade. Em seguida, já com o resultado do primeiro passo em mãos,
confrontaremos as conclusões obtidas com as teorias existentes1 acerca da percepção da
consciência alheia. Então, e na medida em que examinarmos as teorias historicistas e
1 Até a redação da tese de Edith Stein, defendida em 1916.
8
psicologistas acerca da empatia, algumas questões, como aquela sobre a relação entre a
Psicologia e a Fenomenologia, serão levantadas.
Nosso objetivo aqui é discorrer junto a Edith Stein sobre a essência do ato da empatia,
abrindo caminho para, em um possível posterior estudo, aprofundar algumas questões,
ainda latentes, que só poderão ser verdadeiramente consideradas a partir de uma
análise detalhada do ato da empatia dando-se na totalidade do sujeito dotado de corpo
físico – o indivíduo psicofísico2. Refiro-me fundamentalmente ao problema da empatia da
sensação, condição de possibilidade, a meu ver, de uma Teoria do conhecimento inspirada na
Filosofia Steiniana.
2 O destaque é meu (Nota de 2012).
9
§ 1. A empatia em linhas gerais e na singularidade do ato
Insinuando-se nos atos em que eu compreendo a tristeza ou a alegria de um amigo, a
fúria ou o temor de um sujeito em relação a algo ou a alguém – estado de fúria devido a uma
posição de rechaço, temor devido ao desacato a algum princípio universal -, a angústia de
Críton ao encontrar Sócrates após sua condenação3 – o „se‟ tal percepção da vivência da
angústia foi verdadeira é um problema que não será tratado aqui –, o assentimento
comunitário de determinado povo a uma série encadeada de leis, como as encontradas no
Decálogo, ou a estabilidade suave vivenciada na paisagem da montanha de Sainte-Victorie
por Paul Cézanne, ou mesmo o Deus trino descrito por Santo Agostinho4, ou ainda a Treva
Divina não descrita pelo misterioso Dionísio o Areopagita5, em todas essas manifestações,
está a percepção de um eu alheio consciente de seu vivenciar.
A percepção do eu alheio com a vivência dele, fundamento dos atos nos quais o outro
eu se manifesta para o eu próprio, constitui o objeto de estudo considerado em sua essência na
presente investigação. Para tanto recorreremos à obra de Edith Stein, O problema da
3 Ao ler o diálogo Críton, de Platão.
4 Cf. AGOSTINHO, Santo. A trindade.
5 Cf. AREOPAGITA, Dionísio. A teologia mística.
10
empatia6. Nossa pesquisa seguirá o percurso trilhado pela autora ao escrever sua tese de
doutorado. Nesse trilhar, seremos guiados pelas três perguntas que delineiam toda atividade
verdadeiramente científica desde Aristóteles: O que é - a empatia? Como é - a empatia? Qual
é a finalidade - da empatia?
Contudo, com anterioridade radical às três perguntas clássicas da filosofia primeira,
iniciamos nosso estudo suspendendo a posição de existência do fenômeno mundo7. O que fica
depois de tal suspensão é o Eu, Gilberto Santinho Feltrim, 23 anos; Eu mesmo, com todas as
minhas vivências, as já vivenciadas e aquelas que eu ainda espero vivenciar (expectativa).
Mas também a identidade do meu Eu, delineada no desenrolar temporal da minha existência,
é anulada, de maneira que permanece, somente e absolutamente, o eu que me move em toda
sua pureza: o eu puro. Diante dele constitui-se uma esfera de objetividades puras - de objetos
determinados por suas qualidades essenciais -, esfera que demarca a fronteira a partir da
qual o trabalho científico pode ser desenvolvido. Imediatamente, sei da minha inserção nesse
universo. Visualizo-o pasmo e vejo, além das objetividades físicas e abstratas dessa teia,
outros eus (vários “pontos” indicando reciprocamente entre si o infinito) com suas vivências.
Um desses eus, porém, se me apresenta com proximidade direta porque compartilhamos um
mesmo conteúdo de vivência: contemplamos juntos a objetividade inerente à percepção da
consciência alheia, ou o eu alheio, eu que, assim como o meu eu, não pode ser objeto de
dúvida já que, depois da exclusão de tudo aquilo de que eu poderia duvidar, permanece
absolutamente e é indubitável8.
Conforme Edith Stein, com quem compartilhamos a contemplação essencial
elucidativa da consciência alheia, três são as possibilidades de consideração desse outro eu9.
Podemos sentir o eu alheio em sua totalidade, enquanto dotado de vivências e de um corpo
físico que centraliza sua orientação no mundo – nesse caso, retornaríamos à posição de
existência já abandonada no início da investigação e abdicaríamos do ponto de partida
absoluto alcançado -, ou faticamente, a partir das expressões por meio das quais esse outro se
6 Zum Problem der Einfühlung. Halle, 1917. Nos baseamos na edição espanhola, sob responsabilidade de Julen
Urkiza e Francisco Javier Sancho, e traduzida a partir do alemão por Constantino Ruiz Garrido e José Luiz
Caballero Bono, incluída em: STEIN, Edith. Obras completas. Volume II. Burgos: Monte Carmelo; Madrid:
Espiritualidad; El Carmen; 2004. 7 Iniciamos aqui o processo da redução fenomenológica.
8 Como o eu próprio, após efetuada a redução, o eu alheio também é indubitável, e essa indubitabilidade está
assentada na relação intuitiva estabelecida entre os eus ou mônadas. 9 Iniciamos aqui o processo da redução eidética da essencialidade empatia (einfühlung).
11
nos dá: no semblante manifestando-se no dar-se simbólico10
da interpretação do meu eu -
consideração que inevitavelmente se converteria em essencial, pois a expressão é
necessariamente expressão de um eu -, ou essencialmente, seguindo o fluxo estabelecido pelo
nosso ponto de partida, considerando primordialmente que “Todos esses dados do vivenciar
alheio remetem a um tipo fundamental de atos nos quais esse vivenciar é percebido e que
agora, prescindindo de todas as tradições que têm apego à palavra, designaremos empatia
(einfühlung)” (STEIN, 2005, p. 82).
Ressaltamos a empatia em seus traços essenciais, portanto, em sua generalidade
“pura”. Doravante, devemos contemplá-la na singularidade do ato. Para efetuar essa
descrição, partimos com E. Stein de um exemplo da vivência da empatia:
Um amigo vem até mim dizendo que perdeu seu irmão e eu noto sua dor. O
que é esse notar? Não se trata de entender no que se baseia ou de onde concluo a
dor – talvez da expressão – mas de compreender o que é esse notar. Talvez emane de
sua expressão fantasmagórica, de sua voz sussurrante e comprimida...
Evidentemente, posso estudá-la por meio desses fatos, entretanto queremos aqui
tentar compreendê-lo em si mesmo (STEIN, 2005, pp. 81-82).
Nossa primeira empreitada será tentar compreender a percepção da consciência alheia,
manifesta no ato exemplificado acima, por meio da comparação com outros atos da
consciência pura11
, à qual nos conectamos ao suspender a posição de existência do fenômeno
mundo. Comparando a empatia com a percepção externa, a recordação, a expectativa e a
fantasia, na originariedade12
ou não originariedade do ato, talvez desvelaremos aqui a
singularidade do ato.
Primeiramente, comparemos a empatia com a percepção externa. O que é percepção
empírica exterior? Segundo E. Stein, percepção externa é a percepção de objetos temporais e
espaciais ou, utilizando um termo simples, das coisas, mostrando-se em seus diversos lados
de fora para dentro de um signo expressivo (primeiro modo de individuação sem tocar em
10
Essa é a tese de Theodor Lipps. Cf. STEIN, 2005, p. 81. 11
Ou consciência fenomenologicamente reduzida. 12
A palavra originariedade (de originário) é empregada aqui em sentido fenomenológico. Originários são todos
os objetos vivenciados na percepção espaço-temporal, transcendentes – portanto físicos – à consciência pura,
mas dando-se imanentemente na consciência própria (fenômeno). Não originários são todos os objetos formados
no interior da consciência pura, mas direcionando-se para a transcendência, como em uma vivência imaginada.
Explicaremos isto mais detidamente adiante.
12
mistérios13
). No nosso exemplo, pretendemos ler um objeto, a dor, o que evidentemente não é
um isto localizado no espaço e seguindo determinado fluxo temporal, mas, contudo, mostra-se
como coisa no semblante do eu que a sente, como objeto originário insinuando-se em seus
diversos lados. Por isso, concluímos que a empatia não é meramente um ato de percepção
externa – pois há algo além da expressão -, o que não quer dizer que ela possa ser vivenciada
diretamente como objeto não-originário, já que sua dação pode estar indicada fisicamente no
semblante de um sujeito empatizado, como no exemplo considerado acima - e quem constitui
a referência da expressão é, sem dúvida, o outro - entretanto nos limites da minha percepção.
Eis a origem de uma problemática filosófica.
Tratemos a questão da originariedade do objeto mais de perto, ou melhor, de dentro da
própria coisa, para tentar compreender isso. Todavia, antes de comparar a empatia com os
atos nos quais o objeto se dá originariamente ao sujeito da percepção, devemos compreender o
que é a originariedade. Um objeto está dado originariamente para um sujeito ao manifestar-se
em momento presente para sua consideração. Essa manifestação pode ser percebida de duas
maneiras: no tempo e espaço (primeiro modo de individuação14
) ou no processo de ideação
por meio do qual o eu apreende intuitivamente relações essenciais (segundo modo de
individuação ou modo essencial da individuação – sem tocar em mystérios - nos limites
da convexão15
), seja na intelecção de axiomas, na vivência de um valor ou na reflexão, todas
essas vivências presentes como tais, por isso originárias. Mas a empatia não é apenas ideação:
o objeto dela é apreendido “aqui e agora”.16
E, como vimos, também não é apenas percepção
externa, pois o objeto da vivência da empatia não é indicado em seu fundo somente como
coisa.
Avancemos mais no interior dessa problemática passando para a consideração dos
próximos atos – afinal, antes de tudo vem a empatia - da consciência pura. Originárias são
todas as vivências nas quais o objeto está dado no presente. As vivências são próprias quando
o eu próprio as vivencia. No entanto, os conteúdos das vivências desse eu nem sempre estão
dando-se no presente. Quando imaginamos um fato que não está dado na realidade, o
tornamos presente a partir da elaboração de dados distintos. O conteúdo desse tipo de
vivência, assim, é presentificação. Segundo E. Stein, precisamente, essas vivências próprias
13
Observação de 2012 (Nota de 2012). 14
Observação de 2012 (Nota de 2012). 15
Observação de 2012 (Nota de 2012). 16
“Hic et nunc” é a expressão (do vocabulário de Husserl) utilizada por E. Stein.
13
não são originárias porque presentificam17
seu objeto: assim como a vivência da imaginação,
também as vivências da recordação, da expectativa e da fantasia são vivências não
originárias. Se a empatia é um tipo de vivência desse conjunto, consideremos mais de perto no
próximo parágrafo a partir da descrição do ato da vivência própria não originária.
Os atos nos quais os objetos não estão dados presentemente, como dissemos antes, são
a recordação, a expectativa e a fantasia. Segundo E. Stein, há “uma ampla analogia entre os
atos de empatia e aqueles em que o conteúdo da vivência não está dado originariamente”
(STEIN, 2005, p. 84). Joguemos luz, um a um, nesses atos próprios não originários da
consciência pura. O que é a recordação? A recordação é o ato de resgatar no presente uma
vivência decorrida no passado. O ato recordado é presentificado porque o conteúdo passado
dessa vivência é vivenciado no presente; portanto, trata-se de uma vivência própria ou
originária segundo o ato, mas com conteúdo não originário, porque o ato próprio presente
remete pelo conteúdo a originariedade de então (antigo agora) com “a recordação mostrando
caráter de posição e o recordado caráter de existência” (STEIN, Idem.). O eu que recorda,
além disso, pode visualizar a vivência reconhecida de modo retrospectivo ao presentificá-la:
nesse caso o objeto será o eu de então com o conteúdo da vivência própria; ambos, o eu de
agora e o eu de então, estão frente a frente, mas não coincidem normalmente (princípio de
realidade), ainda que exista a consciência da mesmidade. E o eu de agora tem uma série de
tendências implicadas no ato que podem ser desdobradas ou não, passiva ou ativamente, por
exemplo, quando a vivência recordada é revivida ao deixar-se despertar a corrente de
vivências de então: ainda assim, a vivência tem um objeto, que é o eu de então presentificado
e que, justamente por isso, não coincide com o eu de agora, caracterizando a atual vivência
como não originária. Ao fim do processo de decomposição do todo resgatado no objeto da
vivência - o eu de então -, processo no qual o eu de agora se transfere para a vivência de
então, é elaborada uma nova objetivação pela qual há consciência da mesmidade entre os eus:
a apreensão aperceptiva. Por fim, a vivência recordada pode ser vivenciada com lacunas, se a
posição tomada anteriormente não for recordada e o eu permanecer na vivência, completando-
a porém, de acordo com a exigência da totalidade do ato de recordação, com uma nova
escolha: nesse caso, a vivência não tem caráter de exatidão, mas de dúvida, de suspeita
(conjectura) ou de probabilidade, pois o reconhecimento é invalidado. No caso da
expectativa, temos um ato tão próximo ao da recordação, ainda que em sentido temporal
17
O dado imanentemente.
14
inverso, que não há o que acrescentar à descrição do ato de reconhecimento para captá-lo. E a
fantasia, o que é? A fantasia é um ato do eu puro que, de modo semelhante à recordação e à
expectativa, tem diversas possibilidades de atuação: como totalidade ou por meio de
localizações a partir de tendências implícitas. Mas, diferentemente da recordação e da
expectativa, atos nos quais há distância temporal entre o eu próprio presente, sujeito da
vivência, e o eu não-originário objeto do ato, na fantasia não há lacuna de tempo entre os
dois eus (inconsciente). Ambos estão na mesma vivência, vivência na qual um eu originário
ou presente cria um eu não originário que vivencia um conteúdo não real. O presente da
vivência desse eu, no entanto, não é referido ao tempo objetivo, mas a um agora neutralizado
ou não posicional18
no qual o tempo da vivência da fantasia é objetivado, sendo esse agora
neutralizado da vivência da fantasia oposto a uma “retrorrecordação” e uma
“prorrecordação”, as quais magnetizam a fantasia do passado e a do futuro19
.
Descritos os atos da consciência pura nos quais o conteúdo é presentificado
(reconhecimento, projeção e imaginação, todos passíveis de lapso), nosso próximo passo pode
ser compará-los com o ato da empatia para tentar desvelar esse ato da consciência pura em
sua singularidade, ou seja, em sua diferenciação diante de outros atos da consciência
imanente.
Como os atos da recordação, da expectativa e da fantasia, a empatia também é um ato
originário enquanto vivência presente, porém esse ato não é originário de acordo com o
conteúdo imanente ou presentificado, abstrato. E, também como os atos nomeados acima, a
empatia pode se apresentar de diversos modos, inclusive como reconhecimento, projeção e
fantasia. O conteúdo da vivência da empatia pode aparecer como objeto presente, quando
interpretamos a alegria no semblante de alguém ou quando buscamos as tendências implícitas
no semblante desse outro. Nessa segunda possibilidade, a empatia já não pode se nos dar
como objetivação, mas esse pólo de tensão atrai a vivencia para o seu interior, de modo que o
18
Sobre o conceito de agora neutralizado, cf. HUSSERL, Edmund. Ideen I. § 112; GADAMER, em sua
grandiosa obra Wahrheit und Methode (Verdade e Método), posiciona a arte “acima” do eu individual e, como
proprietária de cada fragmento possível de dado imanente neutralizado em sua unicidade (solipsismo
transcendental), indica a processão do evento ou acontecimento (Ereignis), o qual institui o espetáculo do drama
– de toda esta época atual, se considerarmos o sentido dramático de viver no interior do sistema capitalista. Cf.
GADAMER, Verdade e método, “Crítica da abstração da consciência alheia estética”. 19
E. Stein finaliza a descrição da vivência da fantasia citando o relato de Goethe em Dichtung und Wahrheit
(Poesia e verdade), no qual o poeta alemão encontra a si mesmo, para dizer que é possível o sujeito da vivência
da fantasia encontrar a si mesmo no interior de uma vivência, caso o que, segundo ela, pode ser compreendido
apenas a partir de uma descrição da vivência da empatia. Cf. STEIN, 2005, pp. 86-87.
15
eu passa, então, a direcionar-se ao objeto da empatia vivenciada pelo outro eu. Essa vivência
alheia apenas se posicionará como objeto diante do sujeito novamente quando o ato for
executado pelo outro para ser compreendido, afinal não há dação de coisas sem a finalidade
de compreensão intersubjetiva. A compreensão empática, como nos atos anteriores, pode
gerar três graus de atuação20
, entretanto, diferentemente dos atos descritos antes por nós, no
ato da empatia o sujeito da vivência empatizada não é o mesmo que realiza a empatia, é um
outro eu – terceiro ou médium – que fica entre o sujeito ativo e o passivo do ato21
. Por esse
motivo, não há nesse ato da consciência - como nos atos anteriores - unidade dos sujeitos
porque os dois eus, o eu sujeito da pessoa que empatiza (noético) e o eu força, elo por meio do
qual quem empatiza entra em contato com a vivência alheia (hilético), estão separados: eles
não estão unidos pela consciência de mesmidade e pela continuidade da vivência, como
acontece com os eus da vivência de recordação, expectativa e fantasia, nos quais existe
integração entre as faces intelectiva e empírica da vivência. Assim,
(...) ainda que eu vivencie a alegria do outro, não a sinto como alegria originária,
ela não brota do meu eu, tampouco tem o caráter de haver estado viva antes como a
alegria recordada. E, menos ainda é mera fantasia sem vida real, pois no outro
sujeito tem originariedade, ainda que eu não vivencie essa originariedade: a alegria
que brota dele é uma alegria originária, ainda que eu não a vivencie como
originária. (STEIN, 2005, p. 87.)
Nos atos da consciência pura nos quais a consciência alheia é percebida, o eu sujeito
da vivência tem defronte um conteúdo originário que não é vivenciado originariamente por
ele e que, por isso, misteriosamente, não é originário. Desse modo, alcançamos uma
descrição essencial da vivência da empatia, de acordo com a qual o eu sujeito “coinstitui”
um eu outro no qual o conteúdo de alteridade da vivência, absoluto, é filtrado para as
minhas próprias conclusões e pode tornar-se, assim, outro absoluto, separado:
No meu vivenciar não originário me sinto, de certo modo, conduzido por um
(vivenciar) originário que não é vivenciado por mim e que, contudo, está aí, se
20
Sobre os três graus de atuação, cf. STEIN, 2005, p. 87. 21
O que não significa dizer que há unidade nesse médium intersubjetivo, pois a unidade de consciência envolve
o todo do ato de fora para dentro – de dentro para fora prevalece a subjetividade individual ou visão de mundo e,
por isso, a vivência de conteúdos misteriosos. Entre o ativo e o passivo da intersubjetividade existe apenas
encontro, e não um outro eu próprio, um outro eu falso criado por uma pessoa falsa, em razão de poder haver
integração de outro eu apenas na autenticidade da criação poética.
16
manifesta no meu vivenciar não originário. Assim temos na empatia um tipo sui
generis de atos vivenciais. (STEIN, 2005, p. 88)
Concluindo, sintetizemos, nós e tu, o resultado22
obtido nesse primeiro grau de
consideração do fenômeno da empatia. Em um primeiro momento, vimos que a empatia é a
percepção da consciência alheia inerente a todo ato da consciência pura no qual um eu alheio
se manifesta para um eu próprio. Penetramos, assim, na essência do ato. Vimos também, ao
desnudar a singularidade desse ato, que a empatia não é percepção externa, ainda que se
mostre no semblante de outro eu como uma coisa se manifestando para a percepção externa
da consciência – a manifestação não é o ato, mas algo que brota dele -, que a empatia não é
vivência originária, pois ainda que seja vivenciada no presente não constitui objetos presentes,
e que, como a recordação, a expectativa e a fantasia, igualmente atos da consciência pura, a
empatia é uma vivência originária enquanto própria ou “minha”, mas não originária segundo
o conteúdo, já que o conteúdo ou objeto é também um eu remetido a uma vivência própria. E,
contudo, superando os outros atos da consciência pura, a empatia é um estar junto a outro eu
contemplando a vivência desse outro, vivência a qual, por ser de outro, não pode ser própria.
22
Ratificando a historicidade ou valor objetivo desta própria pesquisa. Utilizaremos a palavra resultado de
acordo com esse sentido.
17
§ 2. Continuação da descrição a partir de um confronto com as teorias
históricas da percepção da consciência alheia
Fazendo luzir a empatia em sua essência, contemplamos o desabrochar do ato desde o
interior do objeto. Em seguida analisamos esse ato em comparação com outros atos
semelhantes da “consciência pura” (imaginação, recordação, expectativa e fantasia, na
originariedade ou não originariedade do ato). Continuemos na marcha analítica trilhada por
Edith Stein ao redigir sua tese de doutorado. A partir deste ponto criticaremos junto a essa
filósofa as teorias históricas e psicológicas da percepção da consciência alheia surgidas até a
redação da tese - com destaque especial para as teses de Theodor Lipps e Max Scheler - a
partir dos resultados obtidos no parágrafo anterior tentando abstrair características gerais do
ato para completar “em várias direções a análise realizada” (STEIN, 2005, p. 89).
A primeira teoria confrontada por E. Stein é a de Th. Lipps23
. Segundo ela, alguns
pontos são evidentemente concordantes entre as duas considerações do fenômeno da empatia.
Pois Th. Lipps diz que no ato da empatia há participação interior na vivência do eu alheio, o
23
Theodor Lipps (1851 – 1914) conhecido filósofo alemão. Teria sido, segundo a crítica husserliana, um
psicologista, pois segundo sua teoria a Psicologia é a ciência base das ciências do espírito, sendo as demais
ciências do espírito - e também as ciências da natureza - fundamentadas nessa ciência. Sua teoria filosófica inclui
a ideia de que o eu localiza sua natureza posicionada em todas as vivências, formadas estas últimas pela vivência
em si ou ato e pelo vivenciado ou conteúdo.
18
que equivaleria ao grau superior da empatia, no qual o eu sujeito do ato está, junto ao eu
empatizado, dirigindo-se ao objeto da vivência dele. Também diz que a empatia tem caráter
de objetividade, sendo assim ato pautado por um conteúdo24
- afirmação que coincide com a
caracterização da empatia como tipo de vivência. Essa coincidência de pontos de vista, por
meio da qual a condensação desses horizontes é vista como real, apareceria ainda porque
ambos relacionam a empatia aos atos da recordação e expectativa, nos quais o duplo acontece
como mesmo.
2.1. A empatia em si mesma contra a empatia completa de Theodor Lipps (ou O Grande
Porém)
No entanto, as coincidências acabam ali. Porque Theodor Lipps chega à conclusão,
não visualizada por nós, de que as vivências da consciência enquanto tais, isto é, os atos nos
quais o eu conhece seu vivenciar, tendem a ser vivenciadas completamente. O conteúdo
completamente vivenciado de um desses atos da consciência é, justamente, o outro eu e, a
esse eu alheio completamente vivenciado, Th. Lipps não só denomina empatia como diz que
só há verdadeira empatia se cumprida essa condição de origem. A participação interior, por
sua vez, mostra apenas um grau inferior do vivenciar completo. Diante disso, ainda que
também Th. Lipps considere o objeto da vivência da empatia como não originário - já que,
segundo sua teoria, chega a ser completamente vivenciado25
- discordamos frontalmente da
afirmação segundo a qual haja coincidência completa no fim do ato entre o eu da vivência
passada – empatizada, reconhecida ou proposta (projetada) - e o eu próprio que a vivencia, de
modo a que ambos cheguem a ser um (cf. STEIN, 2002, p. 89). Pois os eus do ato, o eu que
empatiza, o eu que cria ou objetiva (filtro médio ou encontro do ato) e o eu que vivencia
permanecem separados na criação da imagem.
E. Stein afirma que Th. Lipps, sob esse aspecto de seu pensamento, confunde as
características próprias do ato (transferência para a vivência dada objetivamente - da
24
Lipps denomina isso de “caráter reivindicativo da empatia”. STEIN, 2005, p. 89. 25
Segundo E. Stein, “coincide com aquela segunda forma da recordação, da expectativa e da fantasia”, de
acordo com a qual essas vivências fazem referências a atos. STEIN, 2005, p. 89.
19
recordação, da expectativa e da empatia - e cumprimento das tendências implícitas ao ato)
com uma suposta “passagem do vivenciar não originário ao originário” (STEIN, 2005, p.
90). Segundo ela, porém, a vivência reconhecida, quando seguidas todas as tendências
implícitas ao vivenciá-la agora, pode ser continuada (“concriação”), mas isto não quer dizer
que ela possa se converter em originária. Basta considerarmos o exemplo da recordação para
elucidar essa negação: não é necessário que a tomada de posição da vivência de então seja a
mesma agora, inclusive é possível que o eu da vivência presente não se recorde daquela
escolha anterior que, de fato, existiu. Portanto, se o conteúdo não é o mesmo da totalidade de
vivência, a vivência atual não é, enquanto recordada, esperada ou empatizada, originária ou
própria segundo o conteúdo – e isto não é novidade para nós, de acordo com o que lemos
acima. Pois se a vivência neutralizada for convertida em originária, não será mais recordação,
expectativa ou empatia, mas outra vivência originária com conteúdo próprio.
2.2. A empatia análoga
Há, contudo, outro caso que poderia ser confundido com o vivenciar completo, o qual,
segundo Edith Stein, pode ser denominado empatia análoga. Por exemplo: um amigo vem a
mim e comunica que foi aprovado em um exame. Ao transferir-me para dentro da vivência
desse amigo por meio da presentificação, compreendo empaticamente sua alegria. Mas
também o círculo familiar dele o aguarda e basta “meu amigo” adentrar no ambiente em que
seus familiares estão, comunicando sem mais a aprovação, para todos se alegrarem pelo
conteúdo da vivência de alegria dele. De acordo com a citação de E. Stein, Bernhard
Groethuysen26
caracteriza casos como esse de vivência da compaixão, ou de um alegrar-se
pela alegria do outro. Conforme o pensamento de E. Stein, porém, essa descrição é
evidentemente divergente da vivência da empatia tal como nós a vivenciamos, pois como
vimos no exemplo acima, não nos alegramos pela alegria do outro, mas pelo conteúdo
presentificado - no eu próprio e portanto, diferente do originário - daquela alegria. Essa
alegria não é, portanto, compaixão de alegria, mas alegria consentida (tipo de vivência que
será considerado a seguir). E aquilo pelo que a alegria do meu amigo está dada é, justamente,
26
Bernhard Groethuysen (1880 – 1946), filósofo alemão discípulo de Dilthey. Desenvolveu teoria interpretativa
segundo a qual os tipos sociais tomam consciência de si nas objetivações sócio-culturais: arte, economia, etc.,
nas quais, segundo Groethuysen, forma-se a unidade do tecido histórico.
20
o fenômeno da empatia: o notar sua alegria e senti-la diferentemente. Poderíamos ainda, além
de nos colocar no lugar do outro eu e vivenciar a vivência dele, chegando assim a uma
vivência correspondente à sua, recolocar o eu alheio em seu lugar depois disso para
“compreender aquela vivência” (STEIN, 2005, p.91). Segundo Adam Smith27
, cita E. Stein, é
assim que o vivenciar alheio é apreendido em um procedimento que, segundo a filósofa, é
apenas complementar e pode ser adotado quando a empatia falhar. Não é, portanto,
propriamente empatia essa busca de garantia de que o vivenciar é alheio, como precisamente
o quer Alexius Meinong28
, pois “se a empatia deve ter o sentido definido rigorosamente por
nós, segundo o qual é vivência da consciência alheia, então só é empatia a vivência não
originária que manifesta uma originária, nunca uma originária ou suposta” (STEIN, 2002, p.
91) na medida em que a empatia justifica-se por si só e não pode vir a ser uma vivência
exatamente originária, não pode ser a vivência alheia.
Ainda no interior da consideração da empatia analogamente vivenciada, aprofundemos
o exemplo considerado acima. A vivência da alegria analogamente empatizada pelos
membros da família do meu amigo permanece e eles estão conscientes de que se trata de uma
vivência empatizada - ou do outro eu - enquanto tal. Esse permanecer na vivência do outro
constitui o fenômeno da congratulação ou do consentimento29
.
2.3. A vivência do consentimento (mitfühlung)
Para E. Stein, a vivência do consentimento não é, necessariamente, a mesma que a da
empatia conforme o conteúdo. Segundo as qualidades as duas vivências não coincidem, já que
o consentir é vivência originária (o conteúdo da alegria consentida pelos membros da família
é o mesmo da sentida pelo sujeito aprovado) e o empatizar é vivência não-originária (o
27
Adam Smith (1723 – 1790), filósofo inglês, conhecido por sua fundamentação à teoria do liberalismo
econômico. Além disso, ele escreveu sobre a moral, visando sempre a conciliar doutrina e prática, tema no
interior do qual foi elaborada a teoria da simpatia comunitária - na qual se forma o sentimento de comunidade. 28
Alexius Meinong (1853 – 1921), filósofo austríaco, conhecido por desenvolver a teoria dos objetos – pela qual
E. Stein pôde ter sido influenciada -, segundo a qual toda a realidade é formada por objetos (fenômenos) – ideiais
e reais - que podem ser considerados pelo sujeito que a conhece, sendo estes de dois tipos: objeto em sentido
forte, ou representação (essência); e objetivo, ou objeto do juízo (existente). 29
Segundo E. Stein, a concepção dela do fenômeno da congratulação coincide com a de Max Scheler. Cf.
STEIN, 2005, p. 92.
21
conteúdo da vivência do outro no ato da empatia nunca será o mesmo para o eu próprio, que
tem nesse caso por conteúdo de vivência uma interpretação elaborada30
a partir do outro eu
com seu vivenciar). A vivência consentida pode variar gradualmente de acordo com o sujeito,
de modo que para uns o consentimento pode ser mais forte se houver maior ligação com o
sujeito outro da vivência consentida, ou ainda porque o sujeito que consente é altruísta31
. Já a
vivência empatizada é sempre a mesma segundo o conteúdo essencial32
: independentemente
do ato da alegria empatizada, a alegria vivenciada pelo outro não muda, tendo apenas
possíveis modos diferentes de dação, ou seja, infinitas interpretações possíveis33
.
Voltando a Theodor Lipps, como vimos para ele a vivência da empatia se dá em dois
graus (participação no vivenciar alheio e tendência ao vivenciar completo). Ao fim do
processo chega-se a um completo vivenciar a consciência alheia no qual a vivência
empatizada se converte em originária na certeza de que a compreensão foi exata. Nisso
consistiria a empatia positiva ou completa, à qual se contraporia uma empatia negativa na
qual a vivência não se completaria porque algo34
no sujeito se contrapõe à plena realização
dela.
2.4. A vivência da discrepância
Segundo E. Stein, o objeto dessa descrição de empatia incompleta de Th. Lipps não é
uma empatia negativa, mas a vivência da discrepância, a que consiste na disputa entre duas
vivências, uma originária atual e outra não-originária (empatizada), para tornar-se objeto
intencionado ou cogito no interior do vivenciar. Continuemos no exemplo considerado acima.
“Meu” amigo veio até mim e informou-me sobre sua aprovação em um exame. Entretanto, eu
havia acabado de receber a informação da morte de alguém querido, de modo a não poder
consentir com a alegria empatizada porque a minha vivência atual da tristeza permaneceu
30
Portanto, plenamente consciente da parte de quem cria a partir do vivenciar alheio. 31
Termo positivista, o qual significa sujeito que atribui mais valor à vivência alheia. 32
Conteúdo ideal, o qual acontece quando o empatizado é uma ideia compartilhada por diversos sujeitos que
podem vivenciá-la de acordo com o direcionar-se diferente da intenção, ou conteúdo individual, o qual acontece
quando um objeto – talvez sentimental – da vivência do sujeito é captado com suas modificações. 33
Vemos aqui a unidade das possibilidades do conteúdo vivenciado na empatia. 34
Esse algo pode ser ou uma vivência momentânea ou a própria constituição da personalidade da pessoa.
22
protagonizando o ato e a alegria empatizada aparecia ao fundo, como a iluminação do sol
escondida nas nuvens carregadas e cinzentas de um dia chuvoso. Precisamente nisto consiste
o fenômeno da discrepância: uma barreira que impede a visão do outro de conectar-se com a
minha, a qual pode permanecer, ou abrir passagem, no exemplo citado, para o triunfo da
alegria (ou para a imposição soberana do sol com a passagem das nuvens que o cobriam), ou
ser obscurecida pela imposição absoluta da tristeza (como ao surgir mais nuvens, e mais
escuras). E, entretanto, motiva nada além da passagem de um cogito - vivência intencionada -
a outro, inerente a toda vivência fluindo no decorrer temporal ou real (duração) da
constituição de um eu, a qual não se dá exclusivamente no fenômeno da empatia, de modo a,
quase que definitivamente, não se nos dar como empatia negativa35
.
2.5. A possibilidade do esquecimento de si
Todavia, também como já visto, Theodor Lipps diz que quando não há nenhum
obstáculo a impedir a vivência da empatia, essa vivência pode ser completamente vivenciada
e só o será quando o eu próprio e o eu alheio coincidirem, de modo a ambos tornarem-se um.
Nesse instante, haveria um ato do eu próprio de senti-lo outro eu. Visualizemos com E. Stein
tal descrição de Th. Lipps, já refutada, mais de perto para considerar a possibilidade desse
senti-lo. Partamos do exemplo trabalhado pelo próprio filósofo alemão: quando sou público
da exibição de um acrobata, me torno um com ele vivenciando seus movimentos como se
fossem os meus (STEIN, 2005, pp. 93-94). Perdido em seus movimentos, o eu próprio apenas
poderia perceber que aqueles movimentos não são seus ao sair da esfera de empatia e refletir
sobre o eu próprio dissolvido naquele ato, evidenciando dessa forma a distinção entre o meu
eu e o do acrobata.
A descrição de Th. Lipps é refutada por E. Stein primeiramente por meio das
conseqüências possíveis dessa conclusão. Porque segundo a descrição de Th. Lipps, não há
distância entre o eu próprio e o eu alheio que se movimenta e essa distinção só poderia surgir
na reflexão. Por isso não é possível, conforme a teoria de Th. Lipps, compreender o corpo
35
Sobre as possibilidades das passagens de um cogito a outro, cf. STEIN, 2005, pp. 92-93.
23
físico próprio enquanto meu e o alheio enquanto do outro, pois seria possível viver
naturalmente em ambos. Mas, ainda antes, continua E. Stein, o argumento de Th. Lipps é -
evidentemente - falso em si mesmo, porque o eu próprio da vivência não chega a ser um com
o eu do acrobata e sim junto a ele36
. Seus movimentos não são vivenciados originariamente
pelo sujeito e isto não só externamente como também internamente, pois são movimentos não
originários para mim e originários para ele, movimentos que, portanto, conduzem o eu próprio
do acrobata por determinado momento e que, para mim, existem apenas na não originariedade
da vivência empatizada. E pode ocorrer que o eu que acompanha os movimentos do acrobata
– o meu - esqueça de si por alguns momentos, o que não significa dizer que o eu próprio se
dissolve no de outro37
: se o acrobata cai e há um esquecimento de si devido aos movimentos
do outro, imediatamente não haverá intuição da queda do outro – que pode aparecer como a
minha queda - mas tão logo o sujeito da vivência presente passa a refletir sobre o ato, percebe
que a sua “vivência” da queda foi não originária, pois manifestou a originariedade da queda
de outro. Para E. Stein, Th. Lipps confunde esquecimento com dissolvição quando afirma que
a queda de outro pode ser queda própria.
2.6. O Senti-Los (einsfühlung) Ou Sentir Outro Em Geral
Sendo assim, não podemos falar de um senti-lo no sentido do sentir um sujeito
particular, mas apenas de um Senti-Los em geral. Como? Para explicar tal tese, E. Stein
retorna à descrição do ato de consentir. O eu próprio vivencia junto ao eu da vivência alheia o
objeto da vivência do outro eu ao presentificá-lo. Se o eu próprio permanecer na vivência
alheia por si mesmo (consciente), e não por motivação alheia, passará a consentir com aquela
vivência. Contudo, segundo E. Stein, mesmo assim, ambos os atos (empatia e consentimento)
não precisam coincidir segundo o conteúdo38
e isso de acordo com a essência de cada um. Por
esse motivo, a empatia brilha como diferente do consentimento. Vejamos o seguinte exemplo:
36
Essa diferença entre “ser com” e “ser junto a”, me parece, é um aspecto ambíguo do pensamento de E. Stein.
Apenas um estudo de confronto do pensamento dessa filósofa com os de Scheler e Heidegger poderia talvez
desobnubilar esse problema. 37
Diante da entrega a Theus/ Dioniso (on sempre ereto na imensidade de Ouranous, o que não cai e exala infinita
segurança na força da gravidade e, acima dela, do ether) vivenciada por E. Stein no Carmelo – e pelos místicos
invariavelmente – questionamos: por que não? (nota de 2012). 38
O meu permanecer no objeto da vivência alheia - portanto não originário - não significa necessariamente um
estar guiado pelo filtro do outro eu, como na vivência empatia em si mesma.
24
se ao invés de aguardar a notícia da aprovação do meu amigo, todos os presentes no recinto
(inclusive “meu” amigo), em meio a uma guerra que estivesse afetando todos os países,
recebessem por algum meio de comunicação a notícia de que o conflito acabou. Todos
passam a ser envolvidos por uma alegria. Nesse caso, os presentes no espaço têm o mesmo
sentimento, de modo que a não originariedade do objeto da alegria dos eus alheios presentes,
gradualmente, torna-se originariedade. Diante disso, diz o amigo: “O que eles sentem o tenho
agora evidente diante de mim, ganha corpo e vida no meu sentir, e desde o eu e o tu dos
outros levanta-se um nós como um sujeito de grau superior”.39
Essa é a forma do sujeito do
senti-los: não se trata de um eu, de um tu, ou de um ele, mas de um nós unido pelo mesmo
conteúdo originário da vivência que indica a origem da vivência em outro em geral.
Evidentemente que, aqui, a vivência da consciência alheia não sobrevém da vivência do nós,
mas mediante o empatizar surgem os possíveis senti-lo (senti-Los) no nós.40
2.7. A reiterabilidade da empatia (empatia da empatia)
Edith Stein finaliza esse primeiro confronto com Theodor Lipps apropriando-se de
uma característica do ato apontada por ele. Th. Lipps afirma, ainda, que é possível uma
reflexão do ato empatizado como empatia da empatia (simpatia reflexiva). Esse retorno ou
migração da vivência empatizada, na qual podemos empatizar uma empatia com conteúdo,
não é negado por E. Stein. A filósofa, contudo, denomina esse ato de reiterabilidade da
empatia, acentuando que tal possibilidade não é exclusiva dos atos de empatia, pois, segundo
ela, são também reiteráveis todas as presentificações da consciência pura: recordar a
recordação, esperar a espera, fantasiar a fantasia, e também, como dito,
(...) empatizar empatias, isto é, entre os atos de outro que apreendo empaticamente
pode haver também atos de empatia nos quais o outro apreende atos de outro. Esse
outro abstraído pode ser um terceiro eu ou eu mesmo. No segundo caso temos uma
39
Neste ponto, E. Stein insere mais uma crítica a Scheler: “(Scheler) realça agudamente o fenômeno de que
pessoas distintas podem ter estritamente o mesmo sentimento (Sympathiegefühle) e acentua que os distintos
sujeitos permanecem, contudo, diferentes. Mas não considera que o ato unitário não tem como sujeito a
pluralidade dos indivíduos, mas a unidade mais elevada que se constitui a partir deles.” STEIN, 2005, p. 95. 40
Isto é, o nós não se forma antes da constituição dos eus.
25
simpatia reflexiva, na qual a minha vivência originária retorna para mim como
empatizada. (STEIN, 2005, p. 96)
Esse retorno convexo, possibilitando o encontro de dois pontos distintos, move a
interpretação e cria as possíveis indicações de imagens início de posição do outro como outro,
portanto nos limites da consciência própria. As possibilidades de interpretação de cada algo,
por sua vez, criam a espera e a imaginação como outros possíveis dos atos concretos que virão
e, numa possibilidade limite, um outro infinito do fantasiar, (ainda) não realizado em suas
possibilidades puras.
2.8. Conclusão
Com o resultado do processo de comparação da empatia com a descrição dos outros
atos da consciência obtidos, acompanhamos o embate fenomenológico da consideração
essencial com as teorias historicistas da percepção da consciência alheia. O principal alvo foi
Theodor Lipps, quem desenvolveu a teoria da empatia completa. Ressaltando o ato em si ao
posicioná-lo diante da empatia completa de Lipps, concluímos que não há completo vivenciar
em nenhum dos atos da consciência pura analisados, pois a presentificação desenrola-se na
continuação vivenciada no presente de outra vivência, ausente (recordada, projetada,
imaginada, fantasiada ou empatizada). Analisamos também os casos em que a vivência da
empatia é analogicamente vivenciada por meio do conteúdo de vivência do outro eu; o tipo de
vivência em que o eu próprio consente com a vivência do outro eu; a discrepância que
acompanha a passagem de um objeto intencionado da consciência para outro em todos os atos
da consciência pura; a possibilidade do eu sujeito da vivência da empatia esquecer de si de
acordo com a intensidade do ato empatizado; o sentir outro em geral na formação do nós; e,
finalmente, a possibilidade de empatizar empatias como condição de possibilidade das
interpretações terciárias. Segundo E. Stein, em todas essas análises surge com “claridade
meridiana” a compreensão do ato em si mesmo, isto é, da vivência própria de um conteúdo
não originário presentificado.
26
§3. A Fenomenologia e a Psicologia: continuação do estudo por meio do
confronto com as teorias genéticas ou psicologistas da percepção da
consciência alheia
A explicitação do confronto, segundo E. Stein, fez transparecer uma questão de
importância fundamental: à empatia convém o caráter de representação ou de atualidade?41
Junto a essa questão, ainda outra pode luzir com força: o tempo é subjetivo ou feito fora da
esfera empírica, que o recebe? De acordo com a filósofa, Moritz Geiger42
, conhecido
fenomenólogo da vivência estética, foi o primeiro a colocar essa questão ao levantar o
problema da percepção da consciência alheia43
. Para tal questão, segundo a autora, não é
possível encontrar alguma resposta satisfatória porque ela está mal colocada e não contempla
as diferenças que foram acentuadas ao desnudar o ato em sua singularidade, isto é, a
necessidade da vivência da empatia ser configurada como percepção da consciência alheia
41
Tal questão mostrou-se, primordialmente, quando, ao desnudar a essência do ato, encontramos a empatia
presentificando o conteúdo da vivência de outro, ou seja, como não originária. 42
Moritz Geiger (1880 – 1937), filósofo alemão, fez parte do grupo dos fenomenólogos de Munique, escreveu
estudos fenomenológicos acerca da vivência estética. Segundo tais estudos, o gozo da fruição estética está
localizado no objeto transcendente intencionado pela consciência. 43
Cf. as três questões suscitadas por Geiger ao levantar tal questão e as respectivas respostas de E. Stein em
STEIN, 2005, pp. 96-99.
27
enquanto tal, e não mero ato psíquico. Acerca dessa temática, Stephan Witasek44
, defendeu a
tese de que a empatia é uma vivência representada (ou, para ele, vivência intelectual) porque
se essa vivência fosse emocional ou empírica exigiria o conteúdo do sentimento localizado no
outro eu, o que, por sua vez, demandaria um transferir-se para dentro do outro eu, algo
impossível e coisa que não se pode constatar, segundo Witasek, por exemplo, na vivência da
empatia estética – e, para E. Stein, na vivência da empatia em geral. Contudo, afirma a
pensadora, o que Witasek não pôde fazer foi ressaltar a empatia enquanto ato da consciência
em si mesma, pois isto apontaria para ele, como aponta para nós, essa transferência
intencionada como interpretação da vivência do outro.
Segundo E. Stein, Witasek visualizou o ato apenas parcialmente, já que o dito por ele
corresponde apenas às vivências objetivadas e não àquelas nas quais há explicitação plena,
como quando o conteúdo da vivência do outro eu manifesta sua expressão, exemplo que,
como vimos no § 1 (p. 10), não pode ser simplificado na pergunta: “é originário ou não
originário?”, pois a empatia “(...) recusa deixar-se classificar em uma das categorias criadas
pela Psicologia e requer ser estudada em sua essência própria. (STEIN, 2005, p. 99).
Eis que começa – e seguiremos o mesmo percurso de E., Stein -, a partir da questão do
caráter da empatia (de representação ou atualidade?) a se mostrar o problema da explicação
psicologicamente fundada45
dos atos da consciência. Para E. Stein, nos limites do
psicologismo a questão sobre a percepção da consciência alheia, antes de ser contemplada em
sua essência, se orienta sempre pela pergunta sobre “como um indivíduo psicofísico realiza a
experiência de indivíduos semelhantes?”. Foi dessa questão que emanaram as teorias
genéticas46
- da imitação, da inferência por analogia e da empatia associativa - sobre a
percepção da consciência alheia.
44
Stephan Witasek (1870 – 1915), filósofo austríaco, conhecido por desenvolver a teoria das percepções
intuitiva e não intuitiva do objeto, visando a partir disso fundamentar a percepção do objeto da fruição estética.
Formou parte do grupo de estudiosos nucleados no pensamento de Theodor Lipps, defensores da teoria da
empatia. 45
= Psicologismo. 46
As quais buscam explicar o fundamento do ato por meio de uma suposta relação causal.
28
3.1. Sobre a relação entre Psicologia e Fenomenologia
Antes de discorrer sobre as teorias genéticas, E. Stein tece algumas considerações
sobre a relação entre a Fenomenologia e a Psicologia47
e, assim, afirma que a Fenomenologia
eidética desenrola-se na esfera da consciência em si mesma, na qual há certeza absoluta, uma
esfera “propriamente filosófica”. Essa posição de visão possibilita, depois da contemplação da
essência do fenômeno, perguntar (em nosso destaque presente): o que é a experiência da
consciência alheia? Como se realiza a experiência da consciência alheia? Já essa primeira
pergunta a Psicologia não pode responder, pois pressupõe a conclusão - que apenas um estudo
fenomenológico pode fundamentar - acerca da essência (quê) e da existência do fenômeno
(como). E. Stein não questiona o trabalho da Psicologia. O que essa filósofa questiona, nesse
texto, são as pretensões que essa ciência tem sem, contudo, compreender o objeto de estudo
intencionado. E completa dizendo que a Psicologia deve ser precedida pela filosofia
fenomenológica, pois é a fenomenologia que evidencia a essência do fenômeno - ou do objeto
de estudo da Psicologia48
- ao qual a investigação genética deve retornar necessariamente na
conclusão para marcar um novo princípio, afinal todos os dados fatuais do objeto remetem ao
núcleo essencial que fundamenta a duração de existência.
3.2. Consideração acerca da teoria genética da imitação
A primeira teoria genética da percepção da consciência alheia encarada por E. Stein é
a teoria da imitação, de Theodor Lipps49
. Segundo Th. Lipps, o gesto visto no rosto de outro
eu desperta no eu próprio um impulso da imitação. O eu próprio faz isso internamente e até
mesmo chega a fazê-lo externamente para que o fluxo das vivências que se manifestam a
partir de tal impulso possa continuar. Para Th. Lipps, é dessa maneira que o eu próprio
participa da vivência do eu alheio, a qual, enquanto vivência vivenciada no gesto alheio, não
aparece para o eu próprio como própria.
47
Cf. STEIN, 2005, pp. 99 – 100. 48
Cf. STEIN, 2005, pp. 100 - 102. 49
Cf. STEIN, Idem.
29
Essa explicação, segundo E. Stein, porém, é falsa porque compreende a relação entre o
eu próprio e o eu alheio apenas mediante suas ligações com corpos físicos diferentes, ainda
que na realidade os dois corpos – o próprio e o alheio - sejam diferentes em si. Por isso, a
descrição de Lipps não se refere à vivência da consciência alheia com seu conteúdo, mas à
vivência própria que o gesto do eu alheio desperta em outro eu. A existência do contágio de
sentimento, por sua vez, fica evidente apenas quando a vivência do outro, mostrada no gesto
próprio, desperta a vivência de um sentimento no eu próprio. Esses sentimentos atuais
despertados, porém, não têm função cognoscitiva e neles não se manifesta um vivenciar
alheio como no ato da consciência em si da empatia, pois o contágio de sentimento se
distingue também do consentir e do senti-los por ser apreensão cega, na qual a consciência
pura está coberta e não pode se manifestar plenamente.
3.3. Consideração acerca da teoria genética da associação
A segunda teoria genética acerca da percepção da consciência alheia, a qual está
relacionada com a da imitação, é a teoria da associação50
. Segundo essa teoria, a imagem
óptica do gesto alheio reproduz o gesto próprio (enquanto a imagem do gesto próprio está nos
limites do campo cinestésico) vivenciado, no qual um sentimento foi sentido e permaneceu
retido51
na consciência própria. Esse sentimento que ficou travado retorna para ser
reconhecido no gesto alheio e sentido como de outro. O eu próprio teria consciência disto (do
fato de o sentimento ser do outro) porque o sentimento está dado como objeto e motivado
pelas vivências próprias que precedem o gesto expresso no outro eu. Segundo E. Stein, o
problema dessa descrição é que, assim como na anterior, o que encontramos no final do
percurso investigativo não é a percepção do eu alheio com sua vivência, tal qual evidenciada
no fenômeno da empatia, mas a percepção de um conteúdo próprio, ainda que, devido aos
traços implícitos ao ato, contemplado (enganosamente) como sentimento alheio.
Portanto, a descrição de Th. Lipps é, para E. Stein, falsa. Mas não é a única
possibilidade, segundo a filósofa, de descrição da teoria da associação. A tese de Karl
50
Cf. STEIN, 2002, pp. 102 – 105. 51
Como vivência não presente.
30
Prandtl52
, por outro lado, diverge frontalmente dessa segundo a qual a associação se
manifesta em uma representação singular que remete a uma vivência passada própria.
Segundo ambos, porém, a associação é a unidade do tecido de vivências que se manifesta
sempre como totalidade no ato presente. Esse tecido de vivências pode ser o interior e o
exterior do sujeito que vivencia. O problema dessa outra descrição psicologista do fenômeno,
segundo E. Stein, é o fato de ela não explicar como se chega a essa unidade do nexo de
vivências, já que a associação enquanto todo é apreendida na associação presente e pela
associação presente, a qual, justamente por ser presente, não pode explicar o todo (possível).
Mas, principalmente, a tese de Prandtl não explica a distinção entre a unidade de objetos do
campo visual do eu próprio (campo cinestético) e a unidade do objeto em si mesmo, porque,
de acordo com E. Stein, “Não poderíamos resolver todas essas questões somente com a
palavra associação. E ainda mais, para que semelhante tecido de vivências possa originar-se,
suas partes devem estar dadas juntas alguma vez.” (STEIN, 2005, pp. 104)
Entretanto, por outro lado, segundo E. Stein, ocorrem de fato casos em que se dão o
interior e o exterior do ser humano como unidade de fusão. Eis a exemplificação da filósofa:
Vejo em um homem uma expressão inicialmente incompreensível para mim, por
exemplo, quando ele coloca a mão na frente dos olhos. Ao perguntar-lhe sobre o
que acontece, me informo de que ele está refletindo intensamente sobre algo. A essa
reflexão que empatizando presentifico em mim advém agora uma conexão
associativa com a postura percebida, e quando noto outra vez aquela postura, a vejo
então como postura reflexiva. Nessa repetição a empatia se funda de fato na
associação. Mas essa associação pôde se realizar apenas com a ajuda de um ato de
empatia, não bastando portanto como princípio de explicação da própria empatia.
(STEIN, 2002, p. 104)
Assim, essa associação dada no fenômeno da repetição tem por fundamento o ato da
consciência em si tal qual o percebemos e o denominamos empatia (einfühlung*) e transmite
um saber que apenas pode ser apreendido em um ato de reflexão, pois na repetição associativa
52
Karl Prandl (1820 – 1888), filósofo alemão participante do movimento histórico filosófico impulsionado pela
filosofia de Hegel, desenvolveu grandiosos estudos de História da Lógica – muitos deles refutados na
atualidade..
31
não há compreensão da postura como expressão de um estado de ânimo interno, tal qual
sucede na empatia53
.
3.4. Consideração da teoria genética da inferência por analogia
A última teoria genética da percepção da consciência alheia confrontada por E. Stein é
a teoria da inferência por analogia, cujo maior representante foi John Stuart Mill54
e cujo
prestígio permaneceu até essa teoria ser refutada por Theodor Lipps. Essa teoria foi encarada
desde o princípio como explicação genética, ainda que tenha surgido da tentativa de mostrar o
conhecimento da consciência alheia pela consciência própria como válido55
. Segundo essa
tese, a percepção interna e a percepção externa são evidentes, e só podemos avançar do
domínio das duas percepções por meio de inferências. É por meio dessas inferências, dadas na
percepção do outro eu a partir do conhecimento das experiências do eu próprio, as quais
seriam semelhantes àquelas, que chegamos ao conhecimento da consciência alheia. E isto se
deve ao fato de as manifestações do outro eu, assim como as do meu eu, serem processos
mecânicos do corpo físico. O ser humano, por sua vez, seria constituído apenas por um corpo
físico sem alma e sem vida espiritual o que, de acordo com E. Stein, impossibilita empregar a
pergunta sobre se: “ao fim do processo, chega-se novamente ao fenômeno da empatia?”, pois
aqui nem sequer há percepção da consciência alheia, na medida em que, para esse ponto de
53
E. Stein demonstra isto, continuando o exemplo tratado acima, por meio de uma descrição acerca da reflexão
sobre a expressão do eu alheio: “ele (aquele sujeito que está com a mão obstaculizando os olhos, adendo meu)
está entregue a um problema e quer proteger o curso de seu pensamento de distrações molestas e por isso
cobre os olhos, se isola do mundo exterior”. Cf. STEIN, 2005, p.104. E, ainda sobre a associação, ela afirma que
essa teoria genética é diferente daquela de Johannes Volkelt (filósofo austríaco, 1848-1930, de orientação
kantiana, que elaborou filosofia segundo a qual o conhecimento é formado pelas certezas subjetivas imediatas e
pela certeza da verdade transsubjetiva constituída pelos eus e o mundo) segundo a qual o conteúdo da percepção
não está preso, mas fundido à visão (Teoria da fusão). Segundo E. Stein, a partir dessa descrição é possível
esclarecer a gênese de certas vivências da empatia. 54
John Stuart Mill (1806 – 1873), filósofo inglês, conhecido por desenvolver a teoria da indução, segundo a qual
todo conhecimento científico – tanto empírico como representado - é resultado de generalizações indutivas. É
dessa maneira que Mill encara, como ficará claro no desenrolar do presente ponto, o problema da percepção da
consciência alheia. 55
Trata-se de uma demonstração lógica.
32
vista, o corpo subsiste por si só. Assim, como não há percepção da consciência alheia, não
podemos dizer que se trata de uma teoria genética56
.
A conclusão do confronto com as teorias genéticas acerca (dizemos meramente acerca
porque elas não penetram verdadeiramente no ato) da percepção da consciência alheia é a de
que “(...) definitivamente nenhuma das teorias genéticas existentes é capaz de explicar a
empatia. E sabemos bem porque: antes de querermos descrever algo segundo a origem
devemos saber o que é esse algo” (STEIN, 2005, p. 107), tarefa árdua e fundamentalmente
fenomenológica.
56
E. Stein não nega que possa haver inferência por analogia no processo de conhecimento do eu alheio, mas
ressalta que isto só é possível porque a expressão é de um outro eu, semelhante ao próprio, e “a inferência por
analogia estabelece-se, talvez, no lugar da empatia falida e não produz vivência, mas conhecimento mais ou
menos verossímil da vivência alheia”. STEIN, 2005, p. 103.
33
§ 4. Confronto com as teorias de Max Scheler e Hugo Münsterberg e
finalização do processo
Refutadas as teorias genéticas acerca da percepção da consciência alheia, a autora
parte então para a análise da importante elaboração de Max Scheler57
. Segundo Scheler, o eu
alheio com seu vivenciar é percebido de maneira igual à autopercepção (apercepção) do eu
próprio no ato da percepção interna, na qual o eu próprio intui essências, relações e o sentido
do mundo, pois o eu próprio e o eu alheio estão localizados em seu interior. Segundo a teoria
de Scheler, na origem do processo há uma corrente indiferenciada do vivenciar a partir da
qual vão sendo individualizadas as vivências próprias e as alheias. Para Scheler, essa corrente
se mostra no fato de podermos vivenciar tanto um pensamento próprio como um alheio, assim
como nenhum dos dois, e pelo fato de não nos encontrarmos isolados, mas no interior de um
mundo constituído por vivências, no qual estão dadas predominantemente as vivências do
nosso redor e no qual o sentido das coisas está estabelecido com antecedentes, havendo uma
pré dação das expressões correntes utilizadas para designar as coisas.
57
Max Scheler (1874 – 1928), filósofo alemão, conhecido por sua teoria fenomenológica dos valores. Segundo
tal teoria, a realidade é constituída por ume esfera psíquica na qual os valores se manifestam. Essa esfera
psíquica fundamenta a materialidade dos objetos e possibilita a percepção sensível desses objetos. Segundo Edith
Stein, Scheler teria refutado a teoria da empatia tal qual encontrada em Lipps, entretanto ela desconsidera tal
refutação pois, para ela, o objeto de referência de Scheler não é a empatia (ato da consciência em si), na medida
em que prescinde da constituição do eu e abdica da redução.
34
Assim, E. Stein empreende uma análise da teoria de Scheler primeiramente por meio
da crítica dos conceitos empregados por esse filósofo. Por isso ela pergunta: o que é, para
Scheler, percepção interna? E constata que, na verdade, a percepção interna no pensamento
desse filósofo não pode ser vista erroneamente como autopercepção - já que é possível
perceber a si mesmo tanto interna como externamente –, mas pode indicar o modo pelo qual
se dá, na direção do ato, o psíquico ou anímico. Sendo assim, a percepção interna em Scheler
pode ser definida como a denominação dada para os atos intuitivos classificados de
determinada maneira - como atos psíquicos - nos quais podemos incluir tanto o vivenciar
próprio como o alheio. Até aqui, segundo E. Stein, a teoria da percepção da consciência alheia
de Scheler não diverge da sua. Contudo, segue a autora, não há ainda suficiente claridade
apenas distinguindo o sentido da percepção interna na teoria de Scheler. Ainda é necessário
saber: mas o que são no contexto da teoria de Scheler o vivenciar próprio e o alheio? E eis que
as críticas surgem: a partir do fundamento da teoria de Scheler, segundo a qual haveria uma
corrente indiferenciada do vivenciar (impessoalidade caótica), não é possível distinguir o
vivenciar alheio do próprio. Mas, ainda antes, para Ishtein, a
(...) corrente de vivências é uma ideia (absolutamente) irrealizável pois cada
vivência é essencialmente vivência de um eu, e fenomenicamente tampouco é
inseparável dele. É devido ao fato de Scheler não conhecer algum eu puro, e
entender por eu sempre o indivíduo anímico, que ele pode falar de um vivenciar
localizado antes da constituição do eu. (STEIN, 2005, p. 109)
Segundo a filósofa, Scheler não consegue demonstrar esse vivenciar que prescinde de
um eu, pois todos os casos que ele utiliza pressupõem tanto um eu próprio como um alheio.
Próprio e alheio, de acordo com a acepção de Scheler, ganhariam sentido apenas se
abandonada a esfera fenomênica de consideração, passando a significar dois pólos
pertencentes a indivíduos anímicos distintos no interior de um mundo psíquico no qual é
possível sentir os sentimentos alheios - porque esses se infundem ao próprio no ato - que
vivem no interior de uma esfera infinita de vida anímica na qual o Eu está preso à estrutura
(prazerosa) da percepção interna. O que, segundo a autora, é indiscutível, mas não se refere
aos domínios da consideração fenomenológica em toda a “pureza” da consciência, a qual só
35
pôde ser alcançada ao excluir também o mundo da percepção interna58
(lembremos que a
minha identidade também foi neutralizada, pois ela é a posição de existência do meu eu, é a
posição da minha existência - Cf. § 1 do presente estudo).
Para Scheler, portanto, o conhecimento é dado no interior da esfera anímica que
constitui a realidade. Consequentemente, o eu é visto por esse filósofo como sujeito da
vivência psíquica da realidade, dada na percepção interna que antecede a redução. Para
alcançar essa esfera, entretanto, ele não efetua a redução fenomenológica, e aqui, conforme
Eishter, reside o erro de sua teoria. Por isso E. Stein afirma que Scheler não conhece algum eu
puro, pois o eu puro não move-se nessa esfera psíquica da realidade, mas é guia de reflexão
fenomenologicamente reduzida, na qual o objeto de estudo dá-se absolutamente em caráter de
atualidade pura. Ali também estaria localizada a fonte dos enganos ou ídolos do conhecimento
descritos por Scheler, os quais existem de fato, diz Stein. Todavia, continua a filósofa, não há
possibilidade de engano na esfera da reflexão, na qual se move o eu puro, porque todo objeto
considerado na atualidade pura (ou em sua essência) é indubitável. Na esfera anímica da
realidade, ou psíquica, porém, estão dados os conteúdos das vivências, e é neles que pode
residir o engano. Por exemplo: A percepção reflexiva do amor dando-se em determinada
vivência nunca será enganosa, contudo a direção desse sentimento (aquele em quem a
essência amor se manifestou), ou o conteúdo propriamente dito dele, pode ser falso, fruto do
engano, da paixão. E isso, de acordo com Stein, devido ao fato desse conteúdo estar dado não
na esfera absoluta na qual apreendemos essências, mas na esfera psíquica na qual
encontramos o intencionado das vivências.
Segundo E. Stein, todos os enganos da percepção de Scheler, considerados na obra
Ídole der Selbsterkenntnis59
, estão baseados em um desconhecimento da reflexão em sentido
fenomenológico, como dissemos acima. Scheler fala em vivências de fundo percebidas em
graus de exatidão, e também em vivências centrais e periféricas, dadas as segundas
sucessivamente e as primeiras de modo unitário no interior do vivenciar. E tudo isto, diz
58
“Excluímos do campo das nossas investigações todo o mundo da percepção interna, nosso indivíduo e todos
os demais, assim como o mundo externo: eles não pertencem à esfera do dado absoluto, da consciência pura,
são transcendentes a ela.” STEIN, 2005, p. 109. 59
Ídolos do conhecimento próprio.
36
Stein, devido ao fato de Scheler não estar conectado a uma esfera pura atual, de consideração
fenomenológica, na qual o objeto está dado absolutamente em caráter de atualidade. O
movimento sucessivo no qual o objeto permanece existindo, o qual constitui a unidade da
percepção daquele objeto, está dado na esfera da percepção interna, esfera em que Scheler se
move e que, segundo a autora, precisa de uma fundação absoluta da esfera primordial
reflexiva na qual acontece a redução fenomenológica. Tal esfera da percepção interna, na qual
apreendemos tanto as vivências próprias como as alheias, contudo, é denominada com mais
vigor, de acordo com o gosto da autora, intuição interna, pois para E. Stein expressa melhor
do que a o termo composto percepção interna o sentido daquilo que está sendo referido – a
percepção de um conteúdo não originário. Todavia, diz Stein,
(...) tenho (ainda) outra razão para protestar contra a inclusão da empatia no ato
da percepção interna: o analogon de ambos subsiste propriamente apenas no grau
da empatia em que tenho diante de mim o vivenciar alheio; para o grau em que
estou junto ao eu alheio e faço explícito o vivenciar dele revivendo-o, esse aparece
melhor como semelhante ou diferente do vivenciar originário, mesmo que esteja
dado na percepção interna. (STEIN, 2005, p. 115)
Por fim, E. Stein encontra a teoria da percepção da consciência alheia de Hugo
Münsterberg60
. Segundo Münsterberg, a percepção da consciência alheia aparece em atos nos
quais a vontade alheia penetra na própria, tornando o eu próprio o sujeito daquela vivência –
sujeito que, assim, pode entender o querer do outro sem, contudo, esse querer deixar de ser
impulso da vontade alheia. Evidentemente, não há divergência entre essas duas teorias da
empatia, pois Münsterberg afirma, como Stein, que na percepção da consciência alheia o eu
próprio está dirigido ao conteúdo da vivência do eu alheio sem deixar de ser próprio. O
conteúdo da vivência do outro permanece enquanto tal, e a partir dele constitui-se o conteúdo
da vivência própria, a qual tem a mesma direção daquele.
60
Hugo Münsterberg (1863 – 1916), filósofo alemão, direcionou suas pesquisas fundamentalmente para a
Psicologia, na qual estabeleceu uma teoria metafísica dos valores de inspiração fichteana, segundo a qual os
valores remetem a um princípio absoluto.
37
O problema da teoria de Münsterberg, diz Stein, é o fato de ele limitar a empatia à
vivência da vontade, pois a empatia acompanha todas as possíveis percepções da consciência
alheia. Ainda que Münsterberg amplie o sentido da vivência da vontade, dizendo que tal é a
vivência de todas as tomadas de posição do sujeito a partir de um requerimento qualquer,
segundo E. Stein, ainda assim tal teoria não pode ser completamente aceita, pois há distinção
necessária nos requerimentos de sujeitos distintos.
38
CONCLUSÃO
O que é – a empatia? Como é – a empatia? Qual a finalidade – da empatia? As três
perguntas que delineiam nosso estudo agora podem ser respondidas com certa claridade,
afinal, por meio da essência da empatia, conseguimos identificar os limites da compreensão
dessa segunda constância da vida do eu – a primeira é a própria autoapresentação (ou o
fundamento da própria presença em si) intuitiva do eu puro. Empatia é a percepção intuitiva
da consciência alheia que direciona-se ao objeto da vivência do outro eu por meio da
presentificação daquele conteúdo de vivência para estabelecer a compreensão mútua do objeto
e unificar dois (dois sujeitos, por meio da periferia de sua essência, por meio do corpo) em
um, sem abdicar da substância completa ou em si.
A essência do ato da empatia foi gradualmente desnudando-se no percurso caminhado
por nós. Primeiro, percebemos que, assim como a percepção dos objetos em geral por meio de
suas subjetivações, a percepção da consciência alheia está aí, na atividade vivencial do eu
próprio, e requer ser estudada de perto a partir de sua expressão lingüística ou inteligível.
Nossa proposta, seguindo a direção apontada pela consciência outra (de) Edith Stein, foi
compreender esse fenômeno em sua essência, rompendo o filtro das expressões possíveis de
sua face, das manifestações possíveis de seu corpo e da constituição de sua temporalidade
(existência). Para tocá-lo diretamente ou em seu interior, fizemos a redução fenomenológica,
quebrando a ponte que nos separa da percepção verdadeira do fenômeno mundo – nosso
corpo vivo faticamente posicionado – para, já com olhos totalmente abertos, posicionar o eu
39
em abertura filosófica ou total para o mundo – agora absolutamente percebido. Se nos
mostrou a essencialidade manifesta intuitivamente no ato da percepção do eu alheio em linhas
gerais – a consciência desse perceber o outro como outro, como mistério. Depois, o
descrevemos abstraindo (abstração ideante) as características essenciais do ato, primeiro o
comparando com outros atos da consciência pura, depois comparando a essência contemplada
por nós com as teorias recorrentes da percepção da consciência alheia.
Concluímos afirmando que nos atos em que o eu próprio percebe um outro eu, alheio,
ele presentifica o conteúdo da vivência do outro para compreendê-la enquanto tal,
direcionando-se junto ao eu alheio ao objeto da sua vivência. Resta, agora, visualizar tal
processo dando-se na totalidade da vida do outro eu – dotado de um corpo vivo em que ele
manifesta seus sentimentos e implementa a legislação da sua vontade. Necessitaríamos, para
isto, direcionar esta consideração para a constituição física, tanto do eu próprio como do
alheio, contemplando-as essencialmente nos corpos. Percurso em que pretendemos caminhar
no próximo trabalho.
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BIBLIOGRAFIA
STEIN, Edith. Zum Problem der Einfühlung. Halle, 1917.
_____. Obras Completas. Vols. I, II e IV. Burgos, Monte Carmelo, 2002, 2004,
2007.
FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofia. Buenos Aires:
Sudamericana, 1966. Livro utilizado para as notas de rodapé biográficas.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes,
1999.
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