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 Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v . 18, n. 2, p. 65-77, ma io/ago. 2013  65 Rosa de Lourdes Heraldo Aparecido Silva Fernanda Antônia Barbosa da Mota *  Doutor em Filosofia pela U niversidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Professor de Filosofia da Educação na  Universidad e Federal do Pi auí (UFPI) , T eresina – PI – Brasil. E-mail : [email protected] **  Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora de Filosofia da Educação na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina – PI – Brasil. E-mail  : [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar diferentes concepções sobre a educação das crianças na perspectiva de filósofos e educadores, considerados como algun s dos autores mais representativos no estudo do tema. T rata-se de uma pesquisa de caráter bibliográ fico, fundamentada na constr ução de conhecimentos oriundos das contribuições de autores clássicos e contemporâneos, além de estudos posteriores feitos por estudiosos e pesquisadores sobre as ideias de tais autores. Esse procedimento é necessário porque nem todos os autores trataram sistematicamente do tema em questão, mas apenas abordaram-no esporadicamente em aforismos, ensaios e proposições. Assim, teremos sequencialmente o estudo e a interpretação de algumas ideias encontradas nas obras de Platão, Montaigne, Descartes, Locke, Rousseau, Kant, Vygotsky, Dewey, Piaget e Lipman. A partir da compreensão dos avanços e retrocessos no estudo da educação da criança, defendemos a necessidade e a relevância do estudo dessa temática no âmbito acadêmico, particularmente, na disciplina Filosofia da Educação, pois, conforme acreditamos, a mesma constitui um dos principais campos teóricos na  contribuição para a formação de futuros educadores. Palavras-chave:  Filosofia da Educação. Infância. Filosofia. Educação.  Abstract: This paper aims to present different views about the education of children in the view of philosophers and educators reputed as some of the most representative authors in the study of the theme. This is a bibliographic Heraldo Aparecido Silva * Fernanda Antôni a Barbosa da Mota **  5 Aspectos da educação da criança na história da filosofia da educação: a perspectiva de filósofos e educadores  Aspects of c hildren ’s education in the history of philosophy of education: the perspective of philosophers and educators 

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  • Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 65-77, maio/ago. 2013 65

    Rosa de Lourdes Heraldo Aparecido Silva Fernanda Antnia Barbosa da Mota

    * Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de So Carlos (UFSCAR). Mestre em Educaopela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Professor de Filosofia da Educao naUniversidade Federal do Piau (UFPI), Teresina PI Brasil. E-mail: [email protected]

    ** Mestre em Educao pela Universidade Federal do Piau (UFPI). Professora de Filosofia daEducao na Universidade Federal do Piau (UFPI), Teresina PI Brasil. E-mail:[email protected]

    Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar diferentes concepessobre a educao das crianas na perspectiva de filsofos e educadores,considerados como alguns dos autores mais representativos no estudo do tema.Trata-se de uma pesquisa de carter bibliogrfico, fundamentada na construode conhecimentos oriundos das contribuies de autores clssicos econtemporneos, alm de estudos posteriores feitos por estudiosos epesquisadores sobre as ideias de tais autores. Esse procedimento necessrioporque nem todos os autores trataram sistematicamente do tema em questo,mas apenas abordaram-no esporadicamente em aforismos, ensaios eproposies. Assim, teremos sequencialmente o estudo e a interpretao dealgumas ideias encontradas nas obras de Plato, Montaigne, Descartes, Locke,Rousseau, Kant, Vygotsky, Dewey, Piaget e Lipman. A partir da compreensodos avanos e retrocessos no estudo da educao da criana, defendemos anecessidade e a relevncia do estudo dessa temtica no mbito acadmico,particularmente, na disciplina Filosofia da Educao, pois, conformeacreditamos, a mesma constitui um dos principais campos tericos nacontribuio para a formao de futuros educadores.

    Palavras-chave: Filosofia da Educao. Infncia. Filosofia. Educao.

    Abstract: This paper aims to present different views about the education ofchildren in the view of philosophers and educators reputed as some of themost representative authors in the study of the theme. This is a bibliographic

    Heraldo Aparecido Silva*

    Fernanda Antnia Barbosa da Mota**

    5Aspectos da educao da criana na histria

    da filosofia da educao: a perspectiva

    de filsofos e educadores

    Aspects of childrens education in the history of philosophyof education: the perspective of philosophers and educators

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    Aspectos da educao da criana na histria da filosofia da educao

    research, based on the construction of knowledge drawn from the contributionsof classical and contemporary authors, and later studies made by scholarsand researchers on the ideas of such authors. This approach is necessary becausenot all authors treated the theme being studied systematically, but addressedit only sporadically in aphorisms, essays and propositions. Hence, wesequentially have the study and interpretation of certain ideas found in worksof Plato, Montaigne, Descartes, Locke, Rousseau, Kant, Vygotsky, Dewey,Piaget and Lipman. From the understanding of advances and setbacks in thestudy of education of children, we support the need and relevance of thestudy of this theme in the academic sphere, particularly in the philosophy ofeducation class, because as we believe, it constitutes one of a major theoreticalfields contributing to the formation of future educators.

    Keywords: Philosophy of Education. Childhood. Philosophy. Education.

    Introduo

    O objetivo deste estudo apresentar uma viso panormica sobre ascontribuies de importantes filsofos e educadores para a educao dascrianas. Assim, selecionamos alguns autores da histria da filosofia e daeducao, enfatizando os aspectos que mais evidenciam sua influncia erelevncia relativas educao da criana.

    Assim, nosso breve estudo comparativo, sobre a educao da criana,a partir da viso de tericos de diferentes pocas, ser antecedido peloexame isolado das ideias de cada autor proposto. Esse procedimento necessrio porque nem todos os autores trataram sistematicamente do temaem questo, mas apenas abordaram-no esporadicamente em aforismos,ensaios e proposies. Nessa perspectiva, vale ressaltar que, historicamente,embora o conceito de infncia s aparea na modernidade, constatamos emnossa pesquisa que os relatos e as concepes sobre a educao das crianasj esto presentes desde o perodo clssico.

    A partir da compreenso dos avanos e retrocessos no estudo daeducao da criana, defendemos a necessidade e a relevncia do estudodessa temtica no mbito acadmico, particularmente no contexto dadisciplina Filosofia da Educao, pois, como assevera Severino, o campoinvestigativo filosfico-educacional deveria ser visto como modalidadefilosfica do conhecimento destinada a intencionalizar a prtica educativa.(2010, p. 82). Conforme acreditamos, a educao da criana deveria serinvestigada com mais interesse e rigor na rea da Filosofia da Educao,porque a mesma constitui um dos principais campos tericos na contribuiopara a formao de futuros educadores.

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    A filosofia, a educao e a criana

    Para Kennedy, Plato (427-347 a.C.) considera que a nica virtudedas crianas parece ser o fato de serem facilmente moldadas, isto , elaspodem ser convertidas em adultos e, tambm, que o livro a Repblica oprimeiro sistema educacional do Ocidente. (KOHAN; KENNEDY, 1999, p.79).No Livro VII dessa obra, depois de relatar o famoso mito da caverna, ofilsofo grego, Plato, escreve a seguinte passagem:

    A educao , pois, a arte que se prope este objetivo, a conversoda alma, e que procura os meios mais fceis e eficazes de o conseguir.No consiste em dar viso ao rgo da alma, visto que j a tem;mas, como ele est mal orientado e no olha para onde deveria,ela esfora-se por encaminh-lo na boa direo. (PLATO, 2000,p. 229).

    Nesse sentido, a educao no vai imprimir algo de fora para dentrona criana, mas vai despertar algo que j existe latente dentro dela e queprecisa de algum para ajud-la a direcionar-se para o caminho correto.Como explica Plato atravs da teoria da reminiscncia, a educao fazerlembrar algo que j se encontra dentro de ns. Entretanto, as crianaspodem ter influncias negativas que as faam desenvolver comportamentosinadequados para a vida em sociedade, por isso que o papel da educao fundamental no processo de direcionamento do comportamento da criana.A esse respeito, Kohan (2005, p. 56) comenta que tantos cuidados nacriao e educao dessas pequenas criaturas se justificam porque eles seroos futuros guardies da polis, seus governantes.

    Tamanha cautela com a educao das crianas justificada por Plato,nos seguintes termos:

    E, contudo, se tais temperamentos fossem disciplinados logo nainfncia e se cortassem as ms influncias dos maus pendores, queso como pesos de chumbo, que a se desenvolvem por efeito daavidez, dos prazeres e dos apetites da mesma espcie, e que fazema vista da alma se voltar para baixo; se, libertos desse peso, fossemorientados para a verdade, esses mesmos temperamentos v-la-iamcom a mxima nitidez, como vem os objetos para os quais seorientam agora. (PLATO, 2000, p. 230).

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    Aspectos da educao da criana na histria da filosofia da educao

    Desse modo, Plato considera que a criana um indivduo que precisade um adulto para dar um direcionamento correto aos seus temperamentosruins. Ou seja, se a criana for educada por um adulto dotado de virtudesmorais, senso de justia etc., poderemos supor que essa criana se tornarum adulto com o mesmo comportamento, mas, se ao contrrio, for educadapor um adulto desprovido de tais virtudes, ela se tornar um adulto incapazde realizar comportamentos virtuosos. Kohan (2003, p. 35) sustenta quena obra platnica As Leis, citado um ditado popular grego, segundo oqual o comeo a metade de toda obra e que um primeiro crescimentobom o mais importante para uma boa natureza. Ou seja, a criana bem-orientada e com uma boa educao j meio caminho andado para setornar um adulto virtuoso. Assim, Plato enfatiza o papel da corretaorientao na educao da criana.

    De maneira geral, tanto as sociedades antigas quanto as medievais sepreocupavam com a educao das crianas, mas preciso lembrar que osentimento infncia no existia, como afirma Arris (1981, p.156). Issosignifica que, embora os autores antigos e medievais falem da criana, suaviso ainda no contempla o conceito de infncia e, portanto, de educaoinfantil que s surgir aps importantes contribuies dadas por autoresdo Renascimento e da Idade Moderna.

    O filsofo francs renascentista Montaigne (1533-1592) fala sobreeducao, principalmente, em trs ensaios: no primeiro, Da afeio dos paispelos filhos a paparicao combatida por se tratar de mera diverso para osadultos em detrimento da formao da criana; no segundo, Do pedantismo,o saber meramente livresco criticado por ser considerado intil para avida prtica. No terceiro, Da educao das crianas, Montaigne defende:

    Tudo se submeter ao exame da criana e nada se lhe enfiar nacabea por simples autoridade e crdito. Que nenhum princpio,de Aristteles, dos esticos ou dos epicuristas, seja seu princpio.Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha sepuder. E se no o puder fique na dvida, pois s os loucos tmcerteza absoluta de sua opinio. (MONTAIGNE, 1980, p. 77-78).

    Como possvel notar, o tipo de preocupao pedaggica manifestadopor Montaigne diz respeito formao integral da criana, visando a suaautonomia. Para ele, em tal educao deve proceder-se com firmeza ebrandura, excluindo-se a violncia e a fora que, na sua opinio, s

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    abastarda e embrutece uma natureza generosa. (MONTAIGNE, 1980, p.88). Em resumo, Montaigne acredita que no devemos expor as crianas asituaes de vergonha ou castigos, porque tais prticas s tm efeito punitivo,mas no efeitos pedaggicos.

    Na Idade Moderna, o filsofo francs Descartes (1596-1650) noescreveu especificamente sobre educao, mas apresenta ideias que setornaram muito influentes e, consequentemente, tiveram reflexos no campoda educao, como sua nfase na razo. Nessa perspectiva, Corazza comenta:

    No sculo XVII, Descartes lamenta que tivssemos sido todoscrianas, antes de sermos homens. Lamenta nossa necessidadede, por muito tempo, nos deixarmos governar por nossos apetitese preceptores. Preceptores que eram, amide, contrrios uns aosoutros, e que, nem sempre, nos aconselhavam bem. Apetites quenos causam tanto dano que quase impossvel que nossos juzossejam to puros ou to slidos como seriam, se tivssemos o usointeiro da razo desde o nascimento se no tivssemos sido guiadosseno por ela. (CORAZZA, 2002, p. 178).

    A concepo filosfica de Descartes sobre a razo influenciou tambma educao. Segundo Ghiraldelli Jnior, Descartes considerava que aprincipal causa de nossos erros so os preconceitos da infncia (1996, p.24). Nessa perspectiva, podemos entender que as crianas deveriam aprenderdesde cedo a usar corretamente sua razo ou bom senso que, na concepocartesiana, uma capacidade inata em todos os seres humanos. (DESCARTES,1973, p. 37). Posteriormente, nos dias atuais, as posturas pedaggicasintelectualistas, inspiradas pela filosofia de Descartes, foram consideradaspertencentes ao lado tradicionalista do mbito educacional.

    Outra contribuio oriunda da modernidade vem a partir do filsofoingls Locke (1632-1704), que defende uma concepo empirista deconhecimento. Ele recusa as ideias inatas e defende que o conhecimento sed a partir da experincia sensvel. Na obra Some thougts conerning education[Alguns pensamentos sobre a educao], ele escreve:

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    Aspectos da educao da criana na histria da filosofia da educao

    As pequenas e quase insensveis impresses sobre a nossa mais tenrainfncia tm conseqncias muito importantes e duradouras: eso elas, como acontece nas fontes de alguns rios, em que umasuave aplicao da mo transforma as guas flexveis em canais,que as fazem seguir cursos totalmente contrrios e, por esta pequenadireo a elas dada de incio na fonte, elas recebem diferentestendncias, e chegam finalmente a locais remotos muito remotos edistantes. (LOCKE, 1938, p. 1-2).

    Nessa perspectiva, o autor enfatiza que as pequenas experincias que acriana vivencia deixam marcas a ponto de direcionar seu comportamentofuturo. Assim, podemos interpretar que essas experincias recebidas aindana infncia que so mais relevantes e duradouras. Para Locke, a crianatem a capacidade de raciocnio logo no incio da linguagem, pois para ele amente no passiva e grande parte do nosso conhecimento produzidopela mente, quando esta opera sobre dados fornecidos pelos sentidos. (LOCKE,1999, p. 41-42).

    Um dos autores que mais influenciou o campo da educao foi ofilsofo suo Rousseau (1772-1778). Na sua clssica obra Emlio, ou DaEducao, um romance ao mesmo tempo filosfico e pedaggico, defendeuma concepo de educao que, principalmente em relao ao conceito deinfncia, contrria ao racionalismo defendido por Descartes. Rousseauescreve:

    Trazendo pois em mim o amor verdade como filosofia, e comomtodo nico uma regra fcil e simples que me dispensa da vsutileza dos argumentos, retorno com essa regra o exame dosconhecimentos que me interessam, decidido a admitir comoevidentes todos aqueles a que, na sinceridade de meu corao, nopossa recusar meu assentimento, como verdadeiros todos os queme paream ter uma ligao necessria com os primeiros e a deixartodos os outros conhecimentos na incerteza, sem rejeit-los nemadmiti-los, e sem me atormentar para esclarec-los quando nome levem a nada de til para a prtica. (ROUSSEAU, 2004, p. 378).

    Na citao acima fica evidente que, ao contrrio de Descartes quedefendia a necessidade de um aprendizado intelectualista voltado para obom uso da razo, Rousseau argumentava que o aprendizado deveria priorizara sensibilidade moral, isto , a sinceridade do corao. Como observa

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    Ghiraldelli Jnior (1996, p. 26), a educao defendida por Rousseau concebea infncia como o santurio da verdade e um perodo a ser preservado.Essa perspectiva de Rousseau, assim como a de Montaigne, mais favorvela um tipo de educao liberal que privilegia a preparao do indivduo parauma vida autntica numa sociedade de homens livres.

    Na abertura do livro Sobre a pedagogia, Kant (1724-1804) escreve queo ser humano a nica criatura que precisa ser educada e que a educaodeve ser entendida como o cuidado de sua infncia (a conservao, otrato), a disciplina e a instruo com a formao; dessa forma, o homem infante, educando e discpulo. (KANT, 1996, p.11).

    Kant tambm defende que no se devem educar as crianas segundo opresente estado da espcie humana, mas segundo um estado melhor, possvelno futuro, isto , segundo a idia de humanidade e da sua inteira destinao.(KANT, 1996, p. 22-23). Nessa perspectiva, Kant tece uma crtica em relaoaos pais quando comenta que os mesmos s se preocupam com o fato deque seus filhos faam uma boa figura no mundo. Podemos pressupor quepara Kant a educao das crianas deve priorizar no apenas o tempopresente, a sociedade atual, mas priorizar os aspectos presentes de nossahistria, sem esquecer de refletir sobre os obstculos para uma melhorresoluo de problemas futuros.

    Kant tambm alerta que no suficiente treinar as crianas; urge queaprendam a pensar, pois elas precisam observar os princpios dos quaistodas as aes derivam. (1996, p. 28). A educao kantiana no pretendereduzir a criana passividade da obedincia, mas que ela aprenda a agircom planos. O aluno deve aprender a pensar por si mesmo, nenhuma verdade transmitida nem deve ser imposta, mas construda pelo sujeito.

    Segundo Vygotsky (1896-1934), nos tornamos humanos na socializaoe na interao com o outro. tambm nesse processo que o homem seindividualiza em um processo interativo com sua realidade social, histricae cultural. Podemos entender que o homem nasce com uma predisposiobiolgica para aprender, mas isso s acontecer se ele for colocado eminterao com um meio social e cultural. Ou seja, nesse processo, o indivduotransforma as funes interpsicolgicas em funes intrapsicolgicas.

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    No momento em que as crianas desenvolvem um mtodo decomportamento para guiarem a si mesmas, o qual tinha sido usadopreviamente em relao a outra pessoa, e quando elas organizamsua prpria atividade de acordo com uma forma social decomportamento, conseguem, com sucesso, impor a si mesmas umaatitude social. A histria do processo de internalizao da fala social tambm a histria da socializao do intelecto prtico da criana.(VYGOTSKY, 1996, p. 37).

    Dessa forma, o processo de internalizao do conhecimento se d nummovimento que vai do social para o individual. Para Vygotsky,desenvolvimento e na aprendizagem so inseparveis desde o nascimento eseria impossvel pensar no desenvolvimento e aprendizagem da criana semlevar em considerao o ambiente sociocultural que a envolve, pois nainterao dialtica entre o biolgico e o sociocultural, que se influenciammutuamente, que constitui sua singularidade, ou seja, nessa relaodialtica com o mundo que a criana constri o seu mundo externo etambm seu mundo interno.

    Um dos autores que mais se dedicaram reflexo de temas educacionaisfoi o filsofo e educador pragmatista norte-americano Dewey (1859-1952).Dentre as vrias contribuies de Dewey para a educao, destacamos suaviso a respeito da relao entre as crianas e o currculo escolar. No livroVida e educao, ele critica a rigidez disciplinar por seu escasso papel defomento ampliao de experincias, visto que tal tradicionalismo demandaum aluno que se limite apenas a receber e aceitar instrues, de forma dcile submissa. Inversamente, em conformidade com seu iderio democrtico,Dewey vislumbra papis distintos para a escola e para os alunos. Ele escreve:

    O contrrio que a verdade, diz a escola oposta. A criana oponto de partida, o centro e o fim. Seu desenvolvimento e seucrescimento, o ideal. S ele fornece a medida e o julgamento emeducao. Todos os estudos se subordinam ao crescimento dacriana: s tem valor quando sirvam s necessidades dessecrescimento. Personalidade e carter so muito mais que matriasde estudo. O ideal no a acumulao de conhecimentos, mas odesenvolvimento de capacidades. Possuir todo o conhecimento domundo e perder a sua prpria individualidade destino to horrvelem educao, como em religio. Alm disso, no se ensinaimpondo criana externamente um assunto. Aprender envolve

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    um processo ativo de assimilao orgnica, iniciado internamente.De sorte que, literalmente, devemos partir da criana e nosdirigirmos por ela. A quantidade e a qualidade do ensino, a criana que as determina e no a disciplina a estudar. Nenhum mtodotem valor a no ser o mtodo que dirige o esprito para sua crescenteevoluo e progressivo enriquecimento. A matria em estudo nadamais do que alimento espiritual. E, como alimento, no se digerea si mesmo, nem por si mesmo se transforma em ossos, msculos esangue. A origem de tudo que morto, mecnico e formal emnossas escolas, est precisamente a: na subordinao da vida e daexperincia da criana ao programa. por isso que estudotornou-se sinnimo de fadiga, e lio, sinnimo de tarefa.(DEWEY, 1980, p. 140).

    Primeiramente, Dewey crtica o modo como os defensores da escolatradicional priorizam as matrias escolares em detrimento do aprendizadoativo das crianas. Nesse sistema escolar tradicional, a criana no opersonagem principal, e seu amadurecimento como indivduo serreconhecido medida que apresentar um comportamento dcil e aceitarpassivamente o contedo da disciplina. Depois, coerente com os ideais deuma nova escola, Dewey apresenta uma concepo que coloca a criana noponto mais elevado do processo de ensino-aprendizagem, ao defender quetodos os estudos devem ter como meta principal o desenvolvimento dascapacidades da criana.

    Dessa maneira, Dewey sugere que a escola no seja um local isolado davida, mas complementar a ela: prope que a escola seja um espaodemocrtico de participao e crescimento moral e no um local onde avida e as experincias infantis sejam subordinadas a um esttico currculo.Tais convices, conforme assevera Cunha, estavam em conformidade como iderio deweyano de que todo o processo educativo deveria ser dirigidopara a consecuo de fins sociais amplos e bem definidos. (2008, p. 23).Assim, vale lembrar ainda que Dewey pensava a educao como um processoativo de significao e ressignificao da experincia. Nessa perspectiva,Franco (2008, p. 44) afirma que o pragmatismo de Dewey comporta umprograma flexvel de estudos e pressupe o planejamento de formacooperativa, e um respeito s possibilidades da infncia.

    Ainda no sculo XX, outro autor cujas ideias ajudaram a modificar aviso a respeito da educao das crianas foi o bilogo e epistemlogosuo Jean Piaget (1896-1980). Piaget se dedicou ao estudo do processo de

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    Aspectos da educao da criana na histria da filosofia da educao

    aquisio de conhecimento pela criana. Para ele, o pensamento infantilpode ser descrito a partir dos seguintes perodos de desenvolvimento mental:

    Para entender o mecanismo desse desenvolvimento, [...], distinguiremosquatro perodos principais em seqncia quele que caracterizado pelaconstituio da inteligncia sensrio-motora. A partir do aparecimentoda linguagem, ou, mais precisamente, da funo simblica que torna pos-svel sua aquisio (l a 2 anos), comea um perodo que se estende atperto de quatro anos e v desenvolver-se um pensamento simblico e pr-conceptual.De 4 a 7 ou 8 anos, aproximadamente, constitui-se, em continuidade n-tima com a precedente, um pensamento intuitivo cujas articulaesprogressivas conduzem ao limiar da operao.De 7 ou 8 at 11 ou 12 anos de idade, organizam-se as operaes con-cretas, isto , os agrupamentos operatrios do pensamento recaindo so-bre objetos manipulveis ou suscetveis de serem intudos.A partir dos 11 a 12 anos e durante a adolescncia, elabora-se por fim opensamento formal, cujos grupamentos caracterizam a inteligncia reflexi-va acabada. (PIAGET, 1977, p. 127).

    Em seus estudos, Piaget chama de epistemologia gentica sua teoriado conhecimento que prioriza a investigao sobre a natureza doconhecimento a partir do desenvolvimento natural da criana. De maneirageral, as ideias de Piaget contriburam para modificar a percepo dos adultossobre a capacidade de conhecer das crianas. A partir dos quatro perodos,Piaget procura demonstrar cientificamente que preciso respeitar o estgiode desenvolvimento e a maturao da criana, isto , devemos considerarque o conhecimento de certas coisas s ser possvel conforme seupensamento for avanando progressivamente at chegar fase em que seuraciocnio estiver suficientemente desenvolvido.

    O filsofo e educador Lipman nasceu em 1923 nos Estados Unidos, esuas ideias sobre a criana foram bastante influenciadas por autores comoDewey e Vygotsky. Conforme acreditamos, sua principal contribuio temtica aqui estudada reside na defesa irrestrita da filosofia comolocus privilegiado para o estudo com crianas. Tal perspectiva elucidadapela citao abaixo, extrada do texto A filosofia da infncia. (LIPMAN,1990, p. 215-223):

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    Rosa de Lourdes Heraldo Aparecido Silva Fernanda Antnia Barbosa da Mota

    Pois se recusarmos reconhecer a racionalidade da criana, nopodemos nos engajar satisfatoriamente no dilogo filosfico comelas, porque no podemos aceitar suas expresses como razes. Seno podemos fazer filosofia com as crianas, privamos sua educaodo verdadeiro componente que pode fazer tal educao maissignificativa. E se negamos s crianas uma educao significativa,asseguramos que a ignorncia, irresponsabilidade e mediocridadeque prevalecem atualmente entre os adultos continuaro aacontecer. Tratar as crianas como pessoas pode ser um preo baixopara se pagar, a longo prazo, alguns benefcios sociais substanciais.(LIPMAN, 1990, p. 223).

    Evidencia-se que Lipman acredita tanto na possibilidade de as crianasfilosofarem, que elaborou um programa especfico para incentiv-las a pensarfilosoficamente na sala de aula. Seu programa de filosofia para crianas,apresentado sob a forma de novelas filosficas, foi elaborado para contemplartemas filosficos como comunidade, conhecimento, linguagem e tica epara ser trabalhado de acordo com a faixa etria das crianas. Para Daniel(2000, p. 123), tal posicionamento pode ser explicado pela sua compreensopragmatista de que a filosofia reveste-se de um carter de participaoativa. Assim, ao invs de colocar adultos fictcios, Lipman preferiu colocarcrianas fictcias como protagonistas de suas novelas filosficas. Essa opo,conforme ele acreditava, ajudaria as crianas reais a se identificarem com aspersonagens que investigavam filosoficamente os temas propostos nanarrativa das novelas de Lipman.

    Concluso

    A partir da breve exposio de diferentes concepes filosfico-educacionais acerca da educao da criana, no contexto das ideias de grandesfilsofos e educadores, podemos enfatizar que embora a compreenso e oacompanhamento do processo educacional das crianas no seja tarefa fcil,tais tpicos so demasiadamente relevantes para ocupar somente as margensda literatura acadmica especializada.

    Dessa forma, conclumos que, apesar dos diferentes olhares filosficose educacionais, podemos observar significativos avanos tanto na perspectivasobre a criana quanto na forma como ela deve ser educada: como umindivduo dotado de reflexo, criticidade, imaginao, sensibilidade e bomsenso, ou seja, uma educao na qual a criana vista como um ser integral.

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    Aspectos da educao da criana na histria da filosofia da educao

    Diante do exposto, acreditamos que nosso estudo possa modestamenteampliar os debates no campo filosfico-educacional, para a construo deuma base de conhecimentos que contribua significativamente para expandiro dilogo no campo acadmico para futuras pesquisas sobre a educao dacriana, na perspectiva da filosofia da educao.

    Referncias

    ARIS, P. Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: Guanabara,1981.

    CORAZZA, S. M. Infncia e educao. Petrpolis: Vozes, 2002.

    CUNHA, M. V. C. John Dewey: uma filosofia para educadores em sala deaula. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 2008.

    DANIEL, M-F. A filosofia e as crianas. So Paulo: Nova Alexandria, 2000.

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    Artigo recebido em 14 de abril de 2012 e aprovado em 4 de maio de 2013.