141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

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    A teoria dos humores de Maquiavel: a relao

    entre o conflito e a liberdade

    Lairton Moacir Winter1

    Resumo: O objetivo deste trabalho consiste em analisar o lugar que o conito de grandese povo, circunscrito pela teoria dos humores, ocupa no pensamento poltico de Maquia-vel e investigar a sua relao com a liberdade poltica. A hiptese central a de que aliberdade somente pode ser alcanada mediante um ponto de equilbrio entre as forasem conito. Para isso, necessrio que o conito, no sendo anulado, seja racional -mente regulado e normalizado pelas instituies republicanas, convertendo-se de foranegativa em fora capaz de fazer convergir no Estado o bem comum, a ordem social e aliberdade de todo o corpo poltico. A lei republicana, nascida do permanente confrontodos desejos antagnicos, subverte o carter negativo dos humores de grandes e povo e

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.44 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    ito de desejos de grandes e povo pode resultar em liberdade e, ao mesmo tem-

    po, mostrar em que medida a concepo de liberdade proposta pelo orentino

    diverge da longa tradio do pensamento poltico que o antecede: enquanto esta

    v no conito uma ameaa, o secretrio orentino, paradoxalmente, o v como

    condio da liberdade. Longe de encerrar a discusso, o propsito aqui lanar

    um novo olhar sobre a questo do conito que ope grandes e povo a partir dateoria dos humores de Maquiavel.

    Analisando as caractersticas da natureza humana, Maquiavel percebe

    os homens marcados por um trao caracterstico: o desejo. A partir de uma

    descrio detalhada do comportamento dos homens em virtude de seus dese-

    jos, o escritor orentino estabelece as relaes dos dois grupos sociais movidos

    por desejos antagnicos com a teoria da liberdade. Neste conito, de um lado

    esto os grandes com o desejo de dominar e de outro o povo, com o desejo

    de no ser dominado. O desejo dos grandes o domnio e se confunde com

    o desejo do exerccio exclusivo do poder. Este desejo de exclusividade, para

    Maquiavel, representa uma grave ameaa liberdade do corpo poltico. Poroutro lado, o desejo do povo, sendo um desejo de no-dominao, se associa

    liberdade, na medida em que se ope tendncia ao exerccio da dominao

    absoluta dos grandes, manifestando-se como constante fora de oposio ao

    seu desejo de exclusividade do poder. Embora o orentino no faa nenhum

    julgamento moral acerca dos dois desejos, como se um fosse bom o povo - e

    outro fosse mau os grandes -, na perspectiva do pensamento maquiaveliano

    descortina-se o primado da liberdade, fruto do desejo popular, sobre o desejo

    de dominao, produto do desejo dos grandes.

    Diante desta constatao, o problema que Maquiavel suscita o de saber

    se possvel a existncia de um Estado capaz de se manter estvel e livre emfuno da inconstncia e da insaciabilidade dos desejos humanos que invariavel-

    mente desembocam no conito de grandes e povo. A hiptese central a de que

    a manuteno, a estabilidade e a liberdade do Estado so possveis e se funda-

    mentam numa compreenso de que o corpo humano uma metfora do corpo

    poltico: do mesmo modo que o corpo humano o corpo poltico marcado por

    humores que, em funo de suas pulses o desejo , desencadeiam um conito

    permanente entre dois opositores os grandes e o povo. Para o secretrio oren-

    tino, conhecer esta dinmica do corpo poltico vital para estabelecer a liberdade

    cvica no e do Estado.

    Em razo disso, algumas questes se impem: que caractersticas de-

    nem os humores de grandes e povo? O conito entre os dois humores real -mente capaz de promover a liberdade ou, paradoxalmente, seria a existncia do

    conito a sua prpria manifestao? Pode o conito ser regulado? Conito e

    concrdia so (in)conciliveis? As respostas parecem indicar que, em oposio

    ao pensamento tradicional clssico, medieval e humanista, o conito de grandes

    e povo no apenas salutar, mas tambm condio necessria para a liberdade.

    No entanto, no regul-lo suscita os dios e as inimizades, os partidos e as fac -

    es que dilaceram o corpo poltico. Deste modo, o conito desemboca no em

    liberdade, mas em anarquia ou em tirania. Para Maquiavel, a verdadeira poltica

    guiada pela liberdade e pela busca da igualdade, mas ela somente pode existir se

    conduzida no interior de instituies slidas, capazes de transformar o desejo deliberdade e de no-opresso em desejo de par ticipao na vida pblica e respeito

    por seus mecanismos legais de regulao dos conitos.

    A m de responder a estas questes e compreender o signicado da

    liberdade poltica a partir do conito, o secretrio orentino parte da anlise dos

    humores: as caractersticas do par antagnico de grandes e povo se denem pela

    oposio de desejos que mobilizam os homens na consecuo de seus objetivos.

    Os desejos so, portanto, o motor das aes humanas e esto diretamente rela -

    cionados emergncia da liberdade nas cidades maquiavelianas.

    Maquiavel parte da tese de que os homens so dotados de dese -

    jos e a todo custo procuram satisfaz-los. Esta constatao acerca danatureza humana permite a Maquiavel estabelecer uma nova compre -

    enso da poltica a partir de uma viso real e no ideal dos homens. A

    verdade efetiva das coi sas (verit effettuale delle cose) o fun dament o da

    poltica maquiaveliana. Compreender a teoria dos humores, circunscrita

    pela verdade efetiva, por isso, condio necessria para compreender,

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.46 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    na esfera do poltico, a relao entre o conflito civil de grandes e povo

    e a liberdade no pensamento do secretrio florentino.

    No captulo XV dO Prncipe, quando arma estar se afastando das li-

    nhas traadas pelos outros, Maquiavel revela a novidade de seu pensamento: (...)

    Porm, sendo meu intento escrever algo til para quem me ler, parece-me mais

    conveniente procurar a verdade efetiva das coisas do que o que se imaginousobre elas (...)2. Ao invs de seguir os caminhos j traados pelos outros, que de-

    senhavam um mundo ideal para a poltica, Maquiavel no se preocupa com o que

    as coisas deveriam ser, mas com o que as coisas realmente so. Assim, a verdade

    efetiva das coisas o pilar fundamental da teoria poltica maquiaveliana e, por

    isso mesmo, o ponto de partida de seu pensamento. A poltica no objeto que

    se compreende a partir de regras estabelecidas e que basta serem seguidas pelos

    homens para que a liberdade se descortine como um presente. Para compreender

    os meandros do mundo da poltica, adverte o orentino, necessrio saber que

    ele se efetiva no mundo dos homens. Estes so dotados de traos distintivos,

    como a ambio do ganho e o desejo de vingana.Circunscrito verdade efetiva, outro aspecto importante presente no

    pensamento de Maquiavel a reexo sobre a mutabilidade das coisas. A hist-

    ria, em funo do carter mutvel do mundo, o registro incontestvel de que a

    poltica no se sustenta sobre terreno slido e rme, pois no apresenta regras

    denidas nem caminhos inequvocos. No h porto seguro nem balizas que se-

    jam sucientemente conveis ou que possam servir de referncia no curso de

    uma histria que no para de mudar e de surpreender os homens. As variaes e

    a instabilidade dos desejos so exemplos disso. Como arma Bignotto3, na intro-

    duo aos Discursos,para Maquiavel, no mundo dos homens a constante mudana

    dos regimes, o fato de que tendem a se corromper com o passar do tempo, vai depar com a ao dafortuna,que impede os homens de chegar a um saber denitivo

    2 MAQUIAVEL, O Prncipe, XV.3 BIGNOTTO, Introduo aos Discursos. In:MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a

    primeira dcada de Tito Lvio,p.XXIX.

    sobre como agir no mundo. A anlise dafortunamostra que para pensar a poltica

    preciso levar em conta o fato de que alguns eventos no podem ser previstos.

    Embora alguns homens tenham a capacidade de agir de forma ecaz em vrias

    circunstncias o que Maquiavel denomina virt , a fortuna uma presena

    constante na vida pblica. Assim, o grande desao pensar a poltica levando em

    conta que no possvel prever todos os desdobramentos de uma determinadaconjuno de fatores.

    Esta posio de Maquiavel acerca do mundo da poltica indica uma que-

    bra de paradigmas que estavam presentes no pensamento medieval, na medida

    em que implica ser a poltica uma ao independente de pressupostos morais e

    teolgicos. Segundo Engelmann4, a poltica medieval estava baseada em teorias

    polticas utpicas, que descreviam sociedades ideais, sem atentar para a realidade

    que se apresentava muito distante da idealizao terica. A partir da obra maquia-

    veliana a poltica passa a ser compreendida levando-se em conta as observaes

    e as anlises de elementos histricos passados e presentes, relacionados s aes

    polticas do homem. Maquiavel abandona a viso idealista e irreal da poltica epassa a compreend-la atravs de lentes mais realistas, compreendendo a poltica

    a partir da denio de elementos caractersticos comuns a todos os homens,

    sendo o principal deles o desejo.

    Diante disso, possvel armar que a questo central denida pela

    compreenso das condies reais para a emergncia da liberdade poltica. No se

    trata, portanto, de idealizar a liberdade de um Estado imaginrio, mas da liberda-

    de de um Estado real, que consegue instituir e manter uma ordem capaz de efeti-

    var a vivncia dessa liberdade num mundo marcadamente conituoso em funo

    do carter desejoso da natureza humana. Para isso, o ponto de partida e de che-

    gada do secretrio orentino sempre a realidade corrente, a verdade efetiva dascoisas. Neste sentido, a questo de como manter um Estado estvel e livre numa

    realidade instvel, permanentemente marcada pelo conito de humores e relan-

    ada por ele, se torna crucial. A concluso a que chega o orentino que a ordem

    4 ENGELMANN,Maquiavel: secularizao, poltica e natureza humana, p.37.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.48 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    necessria liberdade poltica deve ser construda e reconstruda continuamente

    para evitar que o Estado desemboque na barbrie e na tirania. Paradoxalmente,

    esta ordem se constri a partir do conito e no da concrdia. No entanto, uma

    vez alcanada esta ordem, no signica que seja denitiva, alerta Maquiavel. O

    prprio conito, sempre presente, a prova cabal disso.

    Ao contrrio da longa tradio, que remonta losoa grega, segundo aqual o corpo poltico estaria naturalmente fundado na sociabilidade humana, no

    desejo do bem e do amor paz e concrdia, que imaginava uma realidade que

    nunca existiu, ou que jamais existir, para Maquiavel necessrio compreender

    as caractersticas da natureza humana para entender o comportamento real dos

    homens quando seus desejos so colocados em questo. Em virtude do desejo,

    sempre insacivel, desvela-se uma realidade conituosa e no harmnica. No lugar

    do ideal da paz e da concrdia, o orentino apresenta o mundo real do conito

    que ope dois humores distintos e antagnicos e cujos interesses so inconciliveis.

    Para escndalo desta tradio, paradoxalmente, o orentino arma que o conito

    condio e no causa de destruio da liberdade. No entanto, de acordo comAmes, (...) muito embora Maquiavel faa nascer dvidas sobre a concrdia como

    ligao necessria da poltica, nem por isso faz um elogio sem limites ao conito

    civil5. Com efeito, Maquiavel reconhece que a liberdade de qualquer cidade exige

    um mnimo de coeso interna, mas defende que essa coeso resulta do conito e

    no de sua neutralizao (como sustentava o humanismo cvico).

    Lanando um olhar positivo sobre os conitos, Maquiavel sinaliza para

    a possibilidade da liberdade do corpo poltico. Seu modelo paradigmtico, neste

    caso, a repblica romana, onde os conitos entre o senado e a plebe redunda-

    ram em leis favorveis liberdade. No entanto, negar a existncia do conito ou

    buscar extirp-lo do seio social e permitir a supremacia de um dos grupos sobreo outro, abre caminho para a corrupo. O exemplo de Florena o ilustra bem.

    Diferentemente de Roma, em Florena os tumultos entre grandes e povo no

    5 AMES, Liberdade e conito - o confronto dos desejos como fundamento da ideia de liberdade emMaquiavel, p.183.

    produziram bons efeitos. Ao contrrio, no mais das vezes resultavam em exlios e

    assassinatos dos seus concidados e no em leis favorveis ao bem comum. Este

    paradoxo ser o o condutor das anlises de Maquiavel. Os exemplos das duas

    cidades apontam para a raiz do problema da instituio da liberdade: preciso

    compreender que a dinmica dos desejos dos homens instvel, o que torna

    mais difcil, porm no impossvel, enfrentar os desgnios dafortuna, nem semprefavorveis manuteno da liberdade. Compreender o que desejam os homens

    , por isso, condio fundamental para se entender a relao de foras que deter-

    minam a poltica6.

    Se o mundo dos homens marcado pela instabilidade e mutabilidade

    das coisas (...), pois, como esto sempre em movimento, as coisas humanas

    ora sobem, ora descem (...)7, evidente pensar, para Maquiavel, que a poltica,

    sendo fruto da ao humana, tambm est sujeita mudana. Rompendo com a

    tradio do pensamento poltico em vrias de suas verses, como o pensamen -

    to greco-romano, o cristianismo e o humanismo cvico, Maquiavel prope uma

    nova compreenso da poltica. Neste sentido, a condio humana no deve seresquecida. Devemos nos lembrar, como ensina o orentino, que os homens (...)

    so ingratos, volveis, simulados e dissimulados, fogem dos perigos, so vidos

    de ganhar (...)8. sobre este terreno arenoso e movedio que Maquiavel assenta

    a sua teoria da liberdade.

    Embora Maquiavel reconhea a grandeza do desao diante do qual se

    encontra ao tentar estabelecer uma teoria da liberdade diante das mudanas s

    quais esto sujeitos a natureza humana marcada pelas pulses e pelo desejo e

    o mundo marcado pela instabilidade e pela mutabilidade , o autor aponta, no

    6 Roma e Florena so os modelos paradigmticos nas anlises de Maquiavel. Enquanto naprimeira cidade os conitos entre o povo e os grandes resultam em leis favorveis a ambosos grupos, na segunda redundam em violncia beligerante e na runa da liberdade.7 MAQUIAVEL, Discursos,II, Introduo. H outra passagem nos Discursos(I, 6) em queMaquiavel rearma esta tese: (...) como todas as coisas humanas esto em movimento eno podem car paradas, preciso que estejam subindo ou descendo (...).8 MAQUIAVEL, O Prncipe, XVII.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.50 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    entanto, para um caminho: na verdade, tais mudanas so apenas variaes das

    mesmas coisas. Variaes das quais fala o orentino ao escrever nos Discursos:

    (...) e, pensando no modo como tais coisas acontecem, concluo que o mundo

    sempre foi do mesmo modo, que nele sempre houve o bom e o mau, mas que h

    variaes entre este mau e este bom (...)9. O mundo , pois, sempre o mesmo. O

    que causa a impresso falsa para Maquiavel das mudanas so os desejos quese alteram com o passar do tempo, e que por isso interferem nos julgamentos dos

    homens sobre as coisas: (...) mesmo quando os tempos no variam, os homens

    no podem ter dos tempos as mesmas impresses, visto terem desejos, predile-

    es e consideraes diferentes (...)10. No entanto, se o desejo sofre variaes

    no tempo e ope diferentes desejos, algo, porm, no se modica: a prpria

    permanncia do desejo. A ambio (...) to poderosa no peito humano que

    nunca, seja qual for a posio atingida, o homem a abandona (...)11. A existncia

    do desejo, confundido com a ambio, permanece inclume passagem do tem-

    po. Se for mesmo assim, possvel ento pensar, apesar das variaes dos desejos

    dos homens e a partir deles, numa teoria da liberdade.Para isso, Maquiavel recorre teoria dos humores. O termo humor ado-

    tado pelo pensador orentino lhe permite pensar o corpo poltico numa rela-

    o com o corpo humano12. A partir da teoria dos humores Maquiavel enuncia

    9 MAQUIAVEL, Discursos, II, Introduo.10 MAQUIAVEL, Discursos, II, Introduo.11 MAQUIAVEL, Discursos,I, 37.12 Segundo a medicina e a teraputica antigas, gregas e greco-romanas, ainda vigentesno Renascimento, a sade do corpo corresponde ao equilbrio dos humores. O termo

    humor utilizado vrias vezes por Maquiavel, signicando os desejos e as disposiesdos homens, frequentemente num sentido negativo: os dios e as inclinaes partidrias(umori delle parti) que conduzem o corpo poltico ao conito civil. Entretanto, para Ma-quiavel, ao retomar o conceito de humor para associ-lo oposio poltica de grandes epovo, h, tambm, um sentido positivo: compreender a dinmica dos humores permitecompreender melhor a dinmica da poltica e, com menor diculdade, conduzir o Estado liberdade. (Conferir o vocabulrio de termos-chave em Maquiavel na obra Histria deFlorena. Traduo MF. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p.604).

    sua tese geral: os homens so dotados de desejos e buscam saci-los ao innito.

    Buscando na concepo mdico-galena as bases de seu pensamento poltico, os

    desejos dos homens, para o autor, so compreendidos na dinmica dos humores.

    Os humores, como lquidos, ou udos, no corpo, so as pulses viscerais que o

    mantm em movimento. Os desejos, para Maquiavel, so como os humores do

    corpo, uma espcie de energia que impulsiona o indivduo em busca de algo queo satisfaa. Estes desejos so innitos e insaciveis. Compreender a dinmica

    destes desejos e dar-lhes vazo adequada necessrio se se quiser manter uma

    determinada ordem e evitar a derrocada do Estado, ensina Maquiavel. Como,

    para o orentino, h dois distintos humores desejosos em todo corpo poltico

    os grandes e o povo -, o conito civil encontra a seu fundamento.

    De acordo com Sfez, (...) Maquiavel evita muitos equvocos apoiando-se

    na noo de humor. Esta noo estava muito em uso na Itlia de sua poca, mas com

    ela (...) pensa a questo mesma do poltico e a de sua atualidade (...).13O humor, na

    concepo afetiva do termo, no , por isso, mera oposio de classes ou de interes-

    ses. Mais do que isso, sendo afetivo, o humor jamais se esgota ou se completa, (...)no se deixa converter num outro que seria dele a verdade, enquanto o interesse, ele,

    mais abstrato, pressupe a apreciao do julgamento, se deixa pensar e, por conse-

    guinte, remover14. Precisamente por que so desejos e no interesses diferentes que

    o conito sempre permanente. Assim, enquanto o interesse estabelece uma homo-

    geneidade ou medida comum nas relaes dos homens entre si, o humor remete

    impossibilidade do acordo entre os diferentes grupos sociais e, portanto, impossibi-

    lidade de extino do conito, porque compreendido pelo vis da heterogeneidade:

    grandes e povo desejam coisas diferentes de maneiras diferentes.

    Para Sfez, a terminologia usada por Maquiavel tem uma lgica precisa.

    O humor no se confunde com o interesse15, por isso mesmo no pode con -

    13 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.188. As referncias a este autor so nor-As referncias a este autor so nor-teadas pela traduo feita pelo Professor Dr. Jos Luiz Ames para uso pessoal.14 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.188.15 Esta tese se ope argumentao de Christian Nadeau para quem o que motiva aao poltica justamente o interesse. O desejo fundamentalmente interesse por algo:

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.52 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    duzir o corpo poltico unidade. Se o humor e o interesse fossem as mesmas

    coisas, bastaria encontrar os interesses, a princpio opostos, e convert-los em

    interesses comuns para evitar o conito e estabelecer a ordem. Mas como so

    compreendidos por Maquiavel pelo signo da diferena, a normalizao do con-

    ito entre os humores de grandes e povo se torna tarefa mais aguda. Por isso,

    a (...) noo de diversidade de humores implica necessariamente que a cidadeno a soma ou a retomada num todo de seus humores. O fato mesmo do hu-

    mor est ali para marcar a xao da impossibilidade de encontrar uma medida

    comum pelo vis da completude16.

    Nesta perspectiva da diferena dos humores, Adverse17fornece-nos uma

    importante contribuio. Segundo ele, o desejo de no ser dominado est longe de

    poder ser reduzido ao negativo do desejo de dominar, como se se tratasse de A e

    no-A. Caso se tratasse de uma contrariedade absoluta, uma contradio, a dinmi -

    ca poltica se encerraria uma vez armado um dos desejos. Entretanto, Maquiavel

    indica algo diferente: as inimizades entre povo e grandes perduraram enquanto

    Roma alcanava sua grandeza. porque no h contrariedade absoluta que os doisdesejos podem ento se armar e os conitos manterem vigorosa a vida poltica.

    Mas isto no signica que um desejo possa se armar independentemente um do

    outro: eles remetem um ao outro indenidamente. A relao entre esses desejos

    esclarecida quando pensamos que a unidade a que eles remetem no anterior

    sua oposio: eles no fazem parte de um todo. Antes, constituem uma diferena.

    Nesta mesma perspectiva, Gaille-Nikodimov, apoiando-se em Pierre Ma-

    cherey, sustenta que

    a identidade dos contrrios tambm sua excluso mtua: ela

    no dada pela e na sua reunio, sua adio, ou sua fuso, mas

    aos grandes interessa o domnio; ao povo interessa no sofrer o domnio (Cf. NADEAU,Christian. Machiavel: domination et libert politique. Philosophiques, Quebec, v.30, n.2, p.321 351, Outono 2003. p.325).16 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.188.17 ADVERSE,Maquiavel, a repblica e o desejo de liberdade,p.41.

    atravs de sua diviso. Ela no , pois, a identidade originria de

    uma essncia que se armaria a priori na sua relao a si; mas

    ela esta singular unidade que faz com que um contrrio no

    exista jamais em si mesmo ou por si mesmo sem que a existncia

    de seu contrrio no esteja conjuntamente implicado nele, de

    maneira intrnseca e no extrnseca. Diramos, ento, que a iden-tidade no outra coisa alm da diferena18.

    Esta oposio entre os desejos do povo e dos grandes identicada por

    Maquiavel corresponde semelhante identidade dos contrrios. Com efeito, estes

    desejos so incompatveis inteiramente ao se denir um por relao ao outro.

    Eles no remetem, pois, a nada diferente do que a eles mesmos.

    Compreendendo as relaes polticas a partir da noo de humor, Ma-

    quiavel compara o corpo poltico a um organismo vivo. Gaille-Nikodimov19

    esclarece que o orentino, fundado nessa comparao, no concebe o cidado

    como um indivduo, mas apreendido nas associaes, nos g rupos. Estes, por suavez, so denidos por uma unidade de comportamentos e de interesses. A cida-

    de, por outro lado, longe de ser um todo composto de partes, apreendida como

    um conjunto de fronteiras instveis, mutveis e evolutivas. Maquiavel encontra

    as bases desse pensamento nas concepes mdicas antigas: a cidade para ele

    um corpo misto composto de elementos denidos pela relao dinmica que os

    humores mantm entre si. Atravs desta descrio, obtm os meios tericos para

    pensar a dinmica institucional das cidades, depois a reforma da distribuio das

    magistraturas at a mudana de regime. Desta maneira, na escrita maquiaveliana,

    as noes de povo e grandes remetem, essencialmente, ao par cuja relao de -

    sempenha o papel motor nesta dinmica. Por essa razo, o par oposto de grandes

    18 GAILLE-NIKODIMOV,GAILLE-NIKODIMOV,Conit civil et libert:La politique machiavlienne entre histoire etmdiecine, p.48-9. As referncias a esta autora so norteadas pela traduo feita pelo Prof.Dr. Jos Luiz Ames para uso pessoal.19 GAILLE-NIKODIMOV,GAILLE-NIKODIMOV,Conit civil et libert: La politique machiavlienne entre histoire etmdiecine, p.10.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.54 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    e povo no se dene por aspectos econmicos, mas por aquilo que caracteriza os

    dois humores na sua essncia: o desejo20.

    Em funo desta anlise do corpo poltico em comparao natureza

    humana, compreendida a partir do desejo, o secretrio orentino descobre uma

    sociedade poltica conituosa. Ao contrrio daqueles que entendiam que have-

    ria uma tica norteadora da ao poltica e que existiria um m ideal na polticafundado numa sociedade que tenderia naturalmente para a unidade21, nosso au-

    20 Aqui encontramos o argumento que afasta a anlise maquiaveliana do conito degrandes e povo da interpretao marxiana. Se os autores desta linha se fundamentam embases estritamente econmicas para compreender os conitos sociais entre burguesiae proletariado, a anlise de Maquiavel, no entanto, sem as negar, com base na tradiomdico-galena dos humores do corpo, procura faz-lo a partir daquilo mesmo que deneos homens: o desejo. Segundo Gaille-Nikodimov (2004, p.184-7) muitos autores busca-ram estudar o conito civil em Maquiavel, notadamente numa interpretao marxiana.O momento maquiaveliano de Marx defendido por M. Abensour, por exemplo, ilustrasemelhante perspectiva. Em sua obra La Dmocratie contre lEtat, Marx et l moment machia-vlien, Abensour sugere que Marx se inter roga sobre a essncia do poltico em que reduzo conito civil de Maquiavel a um conito binrio marxiano, segundo o qual a luta declasses entre o proletariado e a burguesia levaria, pela via revolucionria, extino doconito e a instaurao da liberdade. No o que ocorre com o conito maquiaveliano:este no pode se extinguir pelo fato mesmo de ser ele prprio o responsvel pela liber -dade; sua extino signicaria a implantao da tirania, pois representaria a anulao ou asobreposio de um desejo ao outro. A liberdade est, portanto, na permanente oposioe no na extino de um ou de outro humor. diferena de Marx, portanto, Maquiavelcompreendeu que o conito no supervel: foi o recurso principal do dinamismo da re-pblica romana; o conito a fonte mesma daquela que Lefort deniu como a invenodemocrtica: com efeito, a sociedade democrtica se instituiu, sobretudo, em virtude dasua diviso e no de sua unio.21 Aristteles na sua concepo de animal poltico armava que o homem tende-ria naturalmente para a vida em sociedade. O cristianismo, herdeiro desse pensamento,refora o princpio de que os homens atingiriam sua plenitude na unidade social. Nestesentido, como em Maquiavel no h uma concepo teleolgica nem do homem, nem daHistria, sua teoria poltica se estabelece como ruptura com o pensamento aristotlico-cristo. Para o orentino, a vida em sociedade se origina num ato de fora, de violncia.

    tor pondera que em toda sociedade existe uma oposio de desejos entre dois

    grupos sociais, os grandes e o povo,que jamais se resolve, (...) pois, em todas

    as cidades, existem esses dois humoresdiversos [...]: o povono quer ser comandado

    nem oprimido pelosgrandes, enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o

    povo (...)22(grifos nossos). Esses dois humores, variados em suas manifestaes,

    mantm uma caracterstica que, no entanto, permanente: (...) o que parece serinexorvel no so as formas polticas, mas sim os apetites e desejos humanos,

    quase sempre imutveis no decorrer do tempo23.

    Estamos, assim, diante de um conito que, porm, diverso e que tem

    como pano de fundo o desejo. Maquiavel apresenta, ento, a dinmica deste con-

    ito: num primeiro momento o conito, compreendido pelo vis da insaciabili-

    dade dos humores, humano, marcado pela homogeneidade e simetria dos dese-

    jos. Este conito, entendido pela dinmica da disputa no campo das ambies,

    universal e desemboca, num segundo momento, no conito poltico, determina-

    do pela heterogeneidade e dissimetria nas relaes de poder. Se na primeira ins-

    tncia o conito de grandes e povo se joga na concorrncia geral pelas honrariase pelas riquezas, portanto, na esfera privada, na segunda, a disputa se desenvolve

    no campo do poder, isto , no espao pblico: os grandes desejam dominar e

    oprimir o povo e este deseja no ser dominado nem oprimido pelos grandes.

    O secretrio orentino, ao descrever o desejo, descobre um conito hu-

    mano que universal e que reduz os desejos dos homens a um denominador

    comum: todos os homens desejam ao innito as mesmas coisas, isto , a glria, as

    honras e as riquezas (de acordo com o captulo XXV dO Prncipe). Este conito

    Portanto, sua viso no de base naturalista (Aristteles e Cristianismo), pela qual oshomens tendem naturalmente a viver em sociedade; nem de base contratualista (Hobbes,Locke e Rousseau), segundo a qual os homens decidem racionalmente se unir sob a tutelado Estado. Para Maquiavel, portanto, no existe uma nalidade pr-estabelecida na polti-ca, pois esta sempre relacional, construda e reconstruda no seio social.22 MAQUIAVEL, O Prncipe, IX.23 NETO, O tempo nos Discorsi de Maquiavel,p.149.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

    8/17

    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.56 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    ocorre porque, de acordo com Ames24, o homem determinado, fundamental-

    mente, pelo dinamismo da necessidade natural do desejo que o impulsiona em

    busca da satisfao de seus interesses e sem qualquer controle interno. A caracte-

    rstica do desejo humano a imoderao e a desmedida. O homem insacivel,

    seu desejo se dirige a tudo. O desejo potncia presente. sempre num aqui e

    agora que o homem deseja. H, no entanto, uma ambivalncia inerente prpriaestrutura do desejo: ele potncia, mas limitada; como o lemos em Maquiavel:

    (...) a natureza criou os homens de tal modo que eles podem desejar tudo, mas

    no podem obter tudo, e, assim, sendo o desejo sempre maior que o poder de ad-

    quirir, surgem o tdio e a pouca satisfao com o que se possui (...)25. Desejamos

    tudo porque no somos tudo. Sempre nos falta algo. Assim, o desejo, como fora

    nita, vivido como carncia innita. Com efeito, uma vez contentado renasce e

    se descobre insacivel. Ele nada mais do que a armao de uma fora em seu

    esforo sem m para durar e aumentar sem jamais alcan-lo.

    Ainda segundo Ames, todo desejo particular. sempre um sujeito in-

    dividual que deseja algo para si. , pois, singular e tem em vista o bem prprio. devido a esta caracterstica que o desejo ope os homens entre si. Quer dizer,

    pelo fato de o desejo ser singular, ao satisfaz-lo, se contrape ao desejo do outro.

    Assim, os homens se opem entre si no porque so malvados, mas porque so

    rivais na consumao de seus desejos.

    De acordo com Sfez26, os desejos dos homens se denem pela busca de

    um bem que no tem como ser dividido equitativamente. Esta impossibilidade

    d origem a uma disputa geral entre os homens e, por conseguinte, entre as

    foras polticas. Esta rivalidade se perpetua por si mesma, uma vez que a relao

    com os objetos do desejo necessariamente comparativa: desejar as riquezas, as

    honrarias e a glria bens que so o alvo a que todos visam o desejo de se

    24 AMES, Liberdade e conito - o confronto dos desejos como fundamento da ideia de liberdade emMaquiavel, p.181.25 MAQUIAVEL,MAQUIAVEL, Discursos,I, 37.26 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.173-4.

    apropriar delas. Ocorre que a lgica da apropriao sempre cumulativa e visa

    exclusividade. Esta lgica, arma Maquiavel, associa o desejo de ganhar mais

    ao medo de perder o que se conquistou: (...) porque, visto que os homens so

    desejosos, em parte porque querem ter mais, em parte porque temem perder o

    que conquistaram, chegam inimizade e guerra (...)27. O desejo de se apropriar

    de algum objeto tambm um desejo de que o outro no se aproprie dele, o queimplica em conseguir mais para si mesmo. A melhor defesa do que se possui o

    ataque: o desejo de conservar sempre um desejo de conquistar. Dessa maneira,

    o desejo de conservar em sua posse algo de forma durvel desejar possuir tudo,

    isto , realizar a faculdade natural de desejar ao innito da qual fala Maquiavel:

    (...) a natureza criou os homens de maneira que podem desejar tudo, mas no

    podem obter tudo (...)28.

    Ao lado deste conito humano simtrico e homogneo Maquiavel

    introduz a lgica do heterogneo, da dissimetria das relaes entre duas ordens

    de cidados, os grandes e o povo. O conito humano passa agora para outra di-

    menso, convertendo-se no conito poltico. Se o conito no campo da ambio, de fato, simtrico, j que todos os homens, indistintamente, desejam as mesmas

    coisas a glria, as honras e as riquezas na esfera poltica se torna assimtrico,

    na medida em que grandes e povo se opem exatamente por desejarem coisas

    distintas de maneira diferente: enquanto o ltimo deseja no ser dominado, os

    primeiros, ao contrrio, desejam dominar.

    Parece ser este o fundamento do conito civil que interessa a Maquiavel

    e que apresenta o n poltico que o autor orentino busca desatar. Quando os

    homens no se satisfazem no campo da ambio, seus desejos se organizam

    politicamente, desembocando nas discrdias, nos tumultos e nas disputas em

    torno do poder: enquanto os grandes desejam o poder integralmente para si am de comandar e oprimir o povo, este deseja participar das magistraturas, ou

    simplesmente se rebela, para evitar a imposio do desejo daqueles. Porque os

    27 MAQUIAVEL, Discursos,I, 37.28 MAQUIAVEL, Discursos,I, 37.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.58 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    desejos dos grandes se manifestam politicamente de maneira diferente dos do

    povo os grandes desejam comandar e oprimir o povo e este deseja no ser co-

    mandado nem oprimido pelos grandes , o conito entre ambos permanente.

    Dito de outro modo: como os homens so capazes de desejar tudo, mas tm uma

    capacidade limitada de satisfazer tudo que desejam, o conito se transfere do

    campo das ambies o desejo pelas honras, riquezas e glria , para o campoda poltica o desejo de comandar e oprimir e o desejo de no ser comandado

    nem oprimido. O conito poltico , pois, a disputa permanente entre os dois

    humores na tentativa dos grandes de impor seu desejo de domnio (entenda-se

    a posse exclusiva do poder) e a resposta, de mesma intensidade do povo, de no

    ser dominado (desejo entendido como fora de resistncia ao exerccio exclusivo

    do poder dos grandes via participao nas magistraturas ou a rebelio). desta

    dinmica dos desejos que se alimenta o conito civil que, em Maquiavel, se reduz

    ao par antagnico de grandes e povo.

    Ora, ocorre que o conito de grandes e povo descrito por Maquiavel

    remete sempre ao fato de os desejos no poderem ser saciados conjuntamente.Assim, o autor apresenta a tese de que ao desejo dos grandes pela apropriao e

    pela dominao absolutas ope-se um desejo no menos desmesurado e absolu-

    to do povo de no s-lo. Descortinam-se dois desejos de natureza diferente que

    no so nem o desejo das mesmas coisas nem o desejo de coisas diferentes, mas

    dois desejos cujo ato de desejar diferente: (...) o carter irredutvel do conito

    civil se manifesta (...) pela impossibilidade dos diferentes humores da cidade de

    compartilhar um mesmo ponto de vista29.

    Segundo o modelo do conito poltico, ao desejo desmesurado dos gran-

    des pela apropriao/dominao absoluta, ope-se um desejo no menos desme-

    surado e absoluto do povo de no s-lo, de no ser dominado nem oprimido. Aindeterminao presente no desejo generalizado de no ser dominado nem opri-

    29 GAILLE-NIKODIMOV,GAILLE-NIKODIMOV,Conit civil et libert: La politique machiavlienne entre histoire etmdiecine, p.18.

    mido no pode, porm, ser interpretado, alerta Adverse30, como esvaziamento de

    todo contedo poltico. O autor refere diversas passagens que desacreditam essa

    interpretao e que apontam para uma positivao do desejo popular. No se trata,

    lembra ele, unicamente da satisfao dos interesses privados (defesa da proprieda-

    de, segurana, etc.), mas tambm da defesa do interesse comum (que pode ser a

    ptria ou a liberdade no duplo sentido de independncia externa e de ordem ins -titucional interna). Enm, sob uma repblica, pode tornar-se desejo de exerccio

    das magistraturas, no de modo exclusivo, mas compartilhado com os grandes de

    forma a evitar que possam ser dominados. Foi o que ocorreu em Roma.

    Como, ento, compreender que a liberdade seja possvel se o conito est

    sempre presente? Maquiavel prope que a lei que nasce desse conito justamente

    ela a possibilidade de conteno dos desejos de dominao dos grandes, pois

    o resultado da constante oposio do desejo do povo que, na nsia de participar

    do espao pblico de deciso, permite a vivncia da liberdade. por esta razo

    que Maquiavel defende nos Discursosa tese do povo como guardio da liberdade,

    porque (...) se deve dar a guarda de uma coisa queles que tm menos desejo deusurp-la (...)31. E o povo, por desejar no ser dominado, tem maior vontade de

    viver livre (...) visto que pode ter menos esperana de usurpar a liberdade do que

    os grandes (...)32. E, em sendo responsvel pela defesa da liberdade, o povo no

    podendo apoderar-se dela, tambm no permitir que outros dela se apoderem.

    Assim, o conito entre povo e grandes resulta em boas leis porque, de

    acordo com Maquiavel (...) os bons exemplos nascem da boa educao; a boa

    educao, das boas leis; e as boas leis, dos tumultos (...)33. As boas leis, por sua

    vez, permitem estabelecer, embora precria e temporariamente, a ordem poltica

    favorvel liberdade, (...) porque quem examinar bem o resultado deles [dos

    tumultos] no descobrir que eles deram origem a exlios em desfavor do bem

    30 ADVERSE,Maquiavel, a repblica e o desejo de liberdade,p.37-42.31 MAQUIAVEL, Discursos, I, 5.32 MAQUIAVEL, Discursos, I, 5.33 MAQUIAVEL, Discursos, I, 4.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.60 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    comum, mas sim a leis e ordenaes bencas liberdade pblica34. Esta , por-

    tanto, resultado das boas leis que, por sua vez, nascem do conito dos humores

    que jamais cessa e que muitos condenam sem ponderar.

    As referncias ao conito dos humores de grandes e povo esto larga-

    mente disseminadas nas trs obras polticas35principais de Maquiavel e indicam

    o ponto de partida para seu entendimento a partir da enunciao da tese daoposio irredutvel dos dois humores. Nos Discursos Maquiavel nos apresenta

    ao par oposto: [...] em toda repblica h dois humores diferentes, o do povo,

    e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem

    da desunio deles [...]36. E, em funo dessa dicotomia, segundo o orentino,

    resulta a forma institucional do Estado: [...] desses dois apetites diferentes,

    nasce nas cidades um destes trs efeitos: principado, liberdadeou licena37(gri-

    fo nosso). A partir da constatao do enfrentamento permanente desses dois

    desejos (dominar/no ser dominado) que no podem ser saciados em conjun-

    to, Maquiavel extrai a concluso, escandalosa para seus contemporneos, de

    que a liberdade38

    nasce precisamente desta desunio.

    34 MAQUIAVEL, Discursos, I, 4.35 As outras referncias aparecem na Histria de Florena (II, 12), quando Maquiavel assi-nala que (...) caram acesos apenas os humores que naturalmente costumam existir emtodas as cidades entre os poderosos e o povo; porque, visto que o povo quer viver deacordo com as leis, e os poderosos querem comand-las, no possvel que se ajustem(...); ou as graves e naturais inimizades que h entre os homens do povo e os nobres,causadas pela vontade que estes tm de comandar e aqueles de no obedecer (...) (His-tria de Florena,III, 1); e no captulo IX de O Prncipe, quando Maquiavel, ao descrevercomo um cidado se torna prncipe com o apoio de seus concidados, sublinha que eleascende ao poder mediante o favor do povo ou pelo favor dos grandes. (...) Pois, emtodas as cidades, existem esses dois humores diversos que nascem da seguinte razo: opovo no quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto os grandes dese-jam comandar e oprimir o povo (...).36 MAQUIAVEL, Discursos, I, 4.37 MAQUIAVEL, O Prncipe, IX.38 O conceito de liberdade no aparece denido textualmente nos escritos maquiavelia-nos. A noo de liberdade deriva da descrio daquilo que se ope a ela. Em linhas gerais,

    Maquiavel prope, dessa forma, uma nova compreenso da origem da

    boa legislao. Antes dele, uma boa parte dos humanistas havia partilhado com

    os medievais a ideia de que a paz e a concrdia eram condies necessrias para

    a efetivao da liberdade poltica. Evitar os conitos, ou resolv-los satisfato -

    riamente, parecia ser o principal objetivo de todo bom governante. Maquiavel,

    logo nos primeiros captulos dos Discursos, pe abaixo a crena arraigada novalor da paz como o fundamento da liberdade. Longe de fazer par te daqueles

    que buscavam compreender a poltica a partir da unidade e do consenso, o

    orentino se dedica constantemente em armar a presena em toda cidade do

    refere-se sempre liberdade dos cidados, especialmente no regime republicano, aindaque no pr incipado ela tambm possa existir. Neste sentido, internamente, aparece comooposio tirania, e, externamente, ao domnio de outra cidade. Veja-se o captulo XIXdO Prncipe: [...] Um prncipe deve ter dois receios: um interno, por conta de seus sdi-tos, e outro externo, por conta das potncias estrangeiras. [...] As coisas internas semprecontinuaro rmes enquanto permanecerem rmes as coisas externas, salvo se estiverem

    perturbadas por alguma conspirao [...] (O Prncipe, XIX). bastante ilustrativa, tam-bm, a nota do captulo V dO Prncipe:Dos Captulos I a III, deduz-se que a expressoem liberdadesignica sob o regime republicano.Aqui [no captulo V], entretanto, esta inter-pretao no autorizada pelo ttulo, onde so claramente indicados tanto as repblicascomo os principados habituados a viver em liberdade. preciso, portanto, ter em mentetambm este caso, quando se pretende denir com preciso o que signica o termo li-berdadepara Maquiavel. Para esclarecer este ponto, convm recordar que, desde o sculoXIII, liberdadeindica, na linguagem dos polticos, a possibilidade de atuar na direo doEstado (O Prncipe, 2004, p.162). Gennaro Sasso insiste nesta ltima ideia, para quem, defato, o sujeito e protagonista da liberdade, para Maquiavel, sobretudo o Estado: Aquiloque enm conta, para Maquiavel, no que os cidados sejam livres, mas que o estadoseja efetivamente senhor de seu contedo, poltico e social, e, para isso, dure. Ou sepreferirem: para que o estado seja senhor de seu contedo, e para isso dure, - por isto, eneste sentido, os cidados devem ser livres [...]. A liberdade no , pois, seno o termoque compreende em si os atributos especcos do estado bem ordenado, na sua for margia, e sobretudo, na republicana (SASSO, 1980, p.470-471). Quentin Skinner (1998),por sua vez, props uma interpretao que coloca em primeiro plano a liberdade indivi-dual. Sustenta que a liberdade teorizada por Maquiavel pode ser considerada uma formade liberdade negativa unida rmemente liberdade individual e liberdade coletiva.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.62 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    fenmeno da dominao de um grupo sobre outro e em pensar as discrdias e

    os conitos que decorrem dele. Entretanto, Maquiavel no faz um elogio sem

    limites do conito civil. Na verdade, ele analisa o conito a m de poder avaliar

    dele os efeitos positivos e negativos.

    Essa caracterizao do povo, que deseja no ser dominado, e dos gran -

    des, que desejam dominar, antecipa uma relao de foras entre duas entidadesque se determinam uma em relao outra. Para Maquiavel, enquanto o desejo

    dos grandes um desejo de dominao, portanto, um desejo de poder, o desejo

    do povo o de no ser dominado pelos grandes, por isso, um desejo de liber-

    dade. Se todos quisessem o domnio, a oposio seria resolvida pelo governo

    dos vitoriosos. O problema poltico , ento, encontrar mecanismos que impo -

    nham a estabilidade das relaes que sustentem uma determinada correlao de

    foras e permitam a vivncia da liberdade. Dito de outro modo: o problema do

    conito se resolve quando o Estado consegue fazer concesses que atendam a

    ambos os grupos sociais. Assim, tanto o povo quanto os grandes sero livres

    quando toda a coletividade livre, submetida no ao poder de uma parte, masao poder do Estado.

    O que Maquiavel pretende mostrar ao caracterizar esses dois distintos

    humores que ambos no encaram o poder de um mesmo ponto de vista. Os

    grandes so aqueles que efetivamente disputam o poder e querem exerc-lo de

    toda maneira. , por isso, um desejo de dominao. O povo, de outro lado, no

    quer governar diretamente, mas no quer ser dominado por aqueles que gover-

    nam: (...) incapaz de visar ao poder como um puro objeto, o povo no pode

    deixar de desejar no ser oprimido (... )39. , por esta razo, um desejo de liber-

    dade. Segundo Bignotto40, esta assimetria dos desejos faz com que a descrio

    das lutas mude completamente. Se nem todos visam posse do mesmo objeto,o fato de algum chegar ao poder, mesmo de forma legtima, no suciente

    39 BIGNOTTO,Maquiavel republicano, p.109.40 BIGNOTTO, Introduo aos Discursos. In:MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a

    primeira dcada de Tito Lvio,p.XXXIV.

    para contentar os desejos da maior parte da populao. claro que o fato de o

    governante ser legtimo e no um tirano positivo, mas nada garante que ele no

    v usurpar uma fatia de poder maior do que a que lhe foi concedida e, por isso, o

    desejo de no ser oprimido no pode nunca ser satisfeito. O conito entre ambos

    os humores resulta exatamente do fato de que, desejando, grandes e povo esta-

    belecem uma relao de eterna discrdia. O corpo poltico est, assim, semprepartido, cindido, e esse um dado que no pode ser mudado pelo simples apelo

    paz. Trata-se, para Maquiavel, de uma ingenuidade daqueles que entendiam

    que o amor paz e concrdia fosse inerente natureza humana. Ao contrrio,

    os homens tendem desunio e diviso em funo de seu carter desejoso. A

    interrogao de Maquiavel est em saber se, neste contexto, possvel que a ao

    poltica possa conduzir o Estado liberdade41.

    A anlise de Maquiavel indica que no terreno da poltica o jogo do poder

    se congura na oposio de desejos diferentes que invariavelmente conduzem o

    corpo poltico ao conito. Este conito marcado por dois desejos inconciliveis

    e irredutveis um ao outro. O desacordo entre eles no tem como ser resolvidonem eliminado, porque cada um dos dois desejos persegue um objetivo diferente

    41 Gaille-Nikodimov (2004, p.11) dir que, na verdade, o que Maquiavel faz ao analisaro conito civil de grandes e povo uma interrogao sobre as condies da liberdade.Embora a cidadania seja vista por ele essencialmente como uma relao conitual, nosignica que esta relao envolva cada membro da cidade numa guerra civil perptua.Para o orentino, o conito dos humores no corresponde sistematicamente a umaforma generalizada de luta armada, mas se manifesta em geral simplesmente comouma disputa e, principalmente, porque nesta relao se joga aos seus olhos a sorte daliberdade poltica, ou seja, seu surgimento, manuteno, declnio e desaparecimento. neste sentido que Maquiavel retoma a terminologia dos humores herdada do pen -samento mdico antigo. Deste modo, o que Maquiavel pretende buscar na teoriamdico-galena elementos que possam denir os alicerces do conito civil. ela quefundamenta a teoria dos humores e autoriza o nosso autor a criar, a partir dela, umametfora original das instituies da repblica livre que lhe permite imaginar o quepoderiam ser as instituies de uma poltica da liberdade que no negue o conito civil,mas faz deste a prpria condio da existncia daquela.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

    12/17

    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.64 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    de maneira diferente. No h medida comum entre estes desejos porque no

    se trata da mesma ao de desejar42, sublinha Sfez. Ele se afasta da luta comum

    para se impor sobre o seu prximo, quando se estabelecem as regras denitivas

    do desacordo, num jogo reduzido ao binmio opressor/oprimido. (...) Ao de -

    sejo desmesurado dos grandes pela apropriao total, sempre maior, ope-se ao

    mesmo tempo oblqua e absolutamente um desejo no menos desmesurado dopovo a no s-lo, de no ser dominado/dominar (...)43. Dessa maneira, o conito

    no consiste na disputa em torno de um mesmo objetivo, e sim na tentativa de

    impor ao outro o seu, suprimindo a heterogeneidade. Considerando que cada de-

    sejo visa completude absoluta, cada um tenta impor-se universalmente tornan-

    do-se duplamente absoluto: por um lado tende dominao total dos grandes,

    ou liberdade plena do povo e, por outro, tenta se impor ao conjunto do corpo

    poltico. Neste embate poltico, o perigo est no fato de que o desejo, insacivel

    e innito, jogue o corpo poltico no ter reno da tirania.

    Posto deste modo podemos compreender a necessidade da manu-

    teno da heterogeneidade das relaes polticas. a partir da diferena doshumores que Maquiavel visualiza um ponto de equilbrio entre os desejos de

    grandes e povo e, portanto, a possibilidade da liberdade. Assim, o desejo de

    no ser dominado do povo, manifesto na exigncia de participao poltica,

    no exerccio das magistraturas, nas manifestaes sociais, na recusa ao alista -

    mento militar e participao nas guerras, entre outros, deve ser entendido

    como mecanismo contnuo e permanente de conteno e de oposio ao

    desejo de domnio dos grandes. O desejo do povo deve vigiar o desejo dos

    grandes. Entretanto, o desejo do povo de no ser dominado no pode ultra-

    passar os limites desse desejo sob pena de tornar-se semelhante ao desejo

    dos grandes, isto , um desejo de dominao. O conito, assim, redundariaem anarquia. O desejo de dominao dos grandes, por sua vez, deve ser

    compreendido como fora que impede o desejo do povo tornar-se absoluto,

    42 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.183.43 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.181.

    impondo-se como barreira para evitar o estabelecimento do desejo de liber -

    dade como valor exclusivo. Todavia, se o desejo de domnio dos grandes

    escapa aos seus limites de conteno do desejo popular, torna-se absoluto,

    resultando em tirania.

    Por isso, o conito engendra a liberdade somente enquanto houver um

    equilbrio das foras polticas paradoxalmente um equilbrio que se sustentana desigualdade. Para que haja liberdade o povo no pode querer o mesmo que

    os grandes, mas deve impedir que estes utilizem o poder para oprimir o povo. A

    liberdade, portanto, somente possvel se os dois humores mantiverem a dife-

    rena. Esta a razo pela qual o desejo do povo deve ser carregado de contedo

    poltico. (...) Quando estamos no domnio dos humores, s o positivo pode

    se contrapor ao positivo (...)44. Do contrrio, se o desejo do povo fosse mera

    negatividade em relao ao desejo positivo dos grandes, o conito se resolveria

    como mera sobreposio do desejo vitorioso ao desejo derrotado. O resultado

    desse processo, de acordo com Maquiavel, leva o corpo poltico inteiro runa. O

    provam os conitos ocorridos entre grandes e povo em Florena, descritos logono incio do terceiro livro da Histria de Florena.

    As g raves e naturais inimizades que h entre os homens do

    povo e dos nobres, causadas pela vontade que estes tm de

    comandar e aqueles de no obedecer, so razo de todos

    os males das cidades; porque dessa diversidade de humores

    alimentam-se todas as outras coisas que perturbam as rep-

    blicas. Foi o que manteve Roma desunida; tambm se

    for lcito comparar coisas pequenas a coisas grandes o que

    manteve Florena dividida; se bem que os efeitos gerados emcada uma das cidades foram diferentes: porque as inimizades

    havidas em Roma, no princpio, entre o povo e os nobres

    eram denidas por disputas, enquanto as de Florena o eram

    44 ADVERSE,Maquiavel, a repblica e o desejo de liberdade,p.41-42.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.66 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    por combates; as de Roma terminavam com leis, enquanto

    as de Florena terminavam com o exlio e a com a morte de

    muitos cidados (...)45.

    O carter irredutvel do conito entre grandes e povo, apresentado por

    Maquiavel, so os efeitos que ele produz: ou a liberdade ou a tirania. Mas isto

    depende fundamentalmente da maneira como ele regulado, defende o orenti-

    no. Neste trecho da Histria de Florenaos efeitos que aparecem nas duas cidades

    so distintos: em Roma os conitos se deniam por disputas, ao passo que em

    Florena o eram por combates. Nesta cidade os combates entre o povo e os

    grandes originavam leis que no visavam a utilidade comum, mas favoreciam os

    vencedores. Naquela, as disputas tambm resultavam em leis, porm, favorveis

    ao bem comum. Diante deste fato, como explicar que os mesmos conitos entre

    grandes e povo possam ter resultados to distintos?

    Maquiavel o responde um pouco mais adiante na sequncia do trecho

    acima: (...) Tal diversidade de efeitos s pode ser causada pelos diferentes ns

    que os dois povos tinham em mira: porque o povo de Roma desejava gozar as

    supremas honras ao lado dos nobres, enquanto o de Florena combatia para

    car sozinho no governo, sem a participao dos nobres (...)46. Assim, Ma-

    quiavel fornece a chave que nos permite explorar com maior clareza os efeitos

    do conito civil. Se em Roma ele levou a cidade liberdade, isto se deve ao

    fato de o povo, em disputando com os grandes, querer governar come no sobre

    eles. Pois, (...) com as vitrias do povo, a cidade de Roma se tornava mais vir -

    tuosa, porque o povo, podendo ocupar a administrao das magistraturas, dos

    exrcitos e dos imprios com os nobres, enchia-se da mesma virtque havia

    nesses, e a cidade, ganhandovirt

    , ganhava poder (...)

    47

    . Ora, o desejo do povoaqui descrito continua idntico a si mesmo. Embora querendo governar com

    45 MAQUIAVEL, Histria de Florena, III, 1.46 MAQUIAVEL, Histria de Florena, III, 1.47 MAQUIAVEL, Histria de Florena, III, 1.

    os grandes, o povo no deseja como os grandes, permanecendo a diferena

    originria dos seus desejos. De outro lado, se em Florena o conito redundou

    em violncia armada, mortes e exlios, a razo disto est no fato de em o povo,

    combatendo os grandes, querer ser como eles, e ao invs de se limitar ao seu

    desejo originrio no ser dominado querer governar sozinho para dominar,

    igualando seu desejo ao dos grandes. Assim,

    [...] em Florena, quando o povo vencia, os nobres cavam priva-

    dos das magistraturas e, para reconquist-las, precisavam no s

    ser mas tambm parecer semelhantes ao povo no comportamen-

    to, no modo de pensar e de viver [...] de tal modo que a virtdas ar-

    mas e a generosidade de nimo que havia na nobreza se extinguia,

    sem que pudesse reacender-se no povo, no qual no existia (...)48.

    A equiparao do desejo do povo ao desejo dos grandes , pois, a cau-

    sa da corrupo e da runa da liberdade em Florena. Neste caso, o desejodo povo no pode conduzir o corpo poltico liberdade porque ele deseja o

    mesmo que os grandes: tomar o poder para comandar e oprimir. Maquiavel

    deixa claro que a chave do problema est na transformao do desejo popular:

    ele vai alm do desejo de no ser dominado, pois desenvolveu um desejo de

    dominao que pode ser satisfeito apenas em detrimento dos grandes. A forma

    de proceder do povo orentino quebra, pois, o frgil equilbrio de poder que

    o conito de desejos saudavelmente enseja, na medida em que renuncia ao seu

    humor (no ser dominado/liberdade) para assumir o humor dos grandes (do -

    minao/apropriao) cuja consequncia a supresso da heterogeneidade no

    modo de alcanar a nalidade de cada parte. o m da diferena dos desejos.O povo, ao pretender car sozinho no poder, produz a identicao de seu

    humor ao dos grandes. Restando apenas um dos dois humores, ele se impe

    sobre todo o corpo poltico. o m da liberdade.

    48 MAQUIAVEL, Histria de Florena, III, 1.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.68 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    O perigo est, pois, na converso do desejo do povo em um desejo que

    no o seu. Devemos lembrar que o povo, para ser o guardio da liberdade,

    como o sublinha Maquiavel, deve querer alguma participao na vida pblica,

    como acontecera em Roma. Originariamente negativo este desejo do povo conti-

    nua sendo o de no ser dominado e fazendo resistncia ao desejo de dominao

    dos grandes. Esta determinao do desejo do povo, mesmo positivado quando

    expresso no desejo de participar politicamente, no deve ser alterada sob pena de

    levar o conito do campo das disputas para o campo dos combates. No querer

    ser dominado, portanto, sempre um m e no um meio e dele o povo jamais

    deve se afastar. Quando, porm, se afasta se iguala aos grandes, convertendo-se

    em meio, e o destino do corpo poltico ento est selado: no lugar da liberdade

    reinam a corrupo, a anarquia e/ou a tirania.

    Foi o que aconteceu em Roma aps os tumultos gerados pela lei agr-

    ria, quando o desejo do povo se converteu em desejo de dominao. Maquia-

    vel assim o descreve:

    (...) a plebe romana no se contentou em obter garantias contra

    os nobres com a instituio dos tribunos, desejo ao qual foi

    forada por necessidade; pois ela, to logo obteve isso, come-

    ou a lutar por ambio e a querer dividir cargos e patrimnio

    com a nobreza, como coisa mais valiosa para os homens. Da

    surgiu a doena que gerou o conito da lei agrria, que acabou

    por ser a causa da destruio da repblica (...)49.

    Assim, vemos o conito poltico, saudvel como o arma Maquiavel,

    dando lugar ao conito humano, nefasto, porque se resolve na sobreposio deum ao outro. Os nobres semelhantes ao povo: dois se fez um. Fez-se um na m

    positivao do desejo do povo, identicado com o dos nobres. (...) quando a ci-

    49 MAQUIAVEL, Discursos, I, 37.

    dade chega a esse ponto no h mais vida poltica (...)50. Nesta perspectiva, Sfez

    alerta sobre a importncia de compreender a diferena entre o desejo de grandes

    e povo porque, quando ambos renunciam ao seu humor prprio para assumir o

    do outro, os efeitos para o corpo poltico so negativos: (...) os g randes somente

    podem perder seu humor ganhando o do povo, eles podem apenas imitar o de-

    sejo do povo, eles ignoram dele radicalmente a forma de desmedida, o desejo de

    liberdade (...)51. Enquanto no caso contrrio, (...) o povo pode tomar o outro

    humor, se fazer grandes, por assim dizer, e para isso lhe basta dar o primado ao

    desejo humano sobre o humor poltico52. Por esta razo, mais fcil ao povo

    ser comoos grandes do que o contrrio: basta-lhe obedecer ao desejo universal da

    condio humana: buscar honrarias, riquezas, glria e poder. O exemplo da lei

    agrria o ilustra bem. O povo deixou de desejar seu prprio desejo para desejar o

    desejo dos grandes. Os humores se identicam, se igualam, e o resultado a runa

    da liberdade e a instaurao da tirania.

    A tirania surge, pois, como efeito do desejo desmesurado tanto de grandes

    quanto do povo quando seus desejos se equiparam. O desejo dos grandes de domi-

    nar/oprimir, sendo um desejo de poder, corre o risco de tornar-se absoluto na me -

    dida em que, alm de tomar o poder integralmente para si, se converte no exerccio

    absoluto da dominao sobre o povo quando o exclui ou o impede de participar do

    governo. Realizar plenamente o desejo de poder , em ltima instncia, um desejo

    de realizar a absoluta dominao e opresso sobre o povo. o controle absoluto do

    poder em benefcio prprio: o exerccio do poder sem a oposio, sadia, do povo.

    E, isto, anal, que pe m liberdade do Estado e o leva tirania.

    De outro lado, se o desejo do povo de no ser oprimido e comandado pe-

    los grandes se confunde com um desejo de liberdade, quando levado ao extremo,

    e o extremo signica eliminar completamente todo risco de opresso e comandodos grandes, pode tornar-se, tambm, um desejo tirnico. Realizar plenamente o

    50 ADVERSE,Maquiavel, a repblica e o desejo de liberdade,p.45.51 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.180.52 SFE,SFE,Machiavel, La politique du moindre mal,p.195.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.70 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    desejo de liberdade do povo signica eliminar a causa da sua dominao, isto , a

    eliminao dos grandes, o que signica suprimir o confronto, o conito, que faz

    s vezes de contrapeso no jogo do poder. Sem oposio, o desejo do povo como

    desejo de liberdade, se transforma em licenciosidade, impedindo a existncia de

    qualquer ordem. um desejo desmedido que, comparado ao poder, parece me-

    nor, mas medido em vista da liberdade revela que o povo exige bem mais do que

    os grandes: exigindo a liberdade, ele exige bem mais do que o poder. Assim, se o

    povo completasse seu desejo de no ser dominado suprimiria a prpria razo de

    existir dos grandes. A liberdade absoluta coincide, pois, com a eliminao de toda

    diferena: restaria unicamente o povo. O desejo que deveria tornar o Estado livre

    lana-o na completa desordem, o que representa, enm, a prpria tirania.

    Por esta razo, a ameaa liberdade interna brota da desmesura dos de-

    sejos de grandes e povo. De acordo com Maquiavel, as tiranias nascem (...) pelo

    demasiado desejo do povo de ser livre e pelo demasiado desejo dos nobres de co-

    mandar. E, quando no se acordam na criao de uma lei em favor da liberdade,

    mas alguma das partes se pe a favorecer algum, logo surge a tirania (...) 53.

    por esse motivo que a ao de resistncia do povo contra o desejo de dominao

    dos grandes, quando no contida, resulta na licenciosidade. Por outro lado, o

    desejo de dominao dos grandes, quando no limitado pela resistncia ativa

    e permanente do povo, conduz servido. Ambas, no entanto, so formas de

    tirania: a servido a prpria dominao sob o poder de um tirano, enquanto a

    licenciosidade conduz a cidade tirania na medida em que implica na ausncia de

    toda ordem. por isso que a liberdade da cidade exige a conteno dos desejos

    prprios de grandes e povo impedindo-os de se realizar na plenitude.

    Por causa do perigo da tirania a que permanentemente est exposto o

    corpo poltico quando uma das partes consegue impor seu desejo sobre a ou -tra, Maquiavel atesta o carter salutar dos conitos entre os dois humores. No

    entanto, a liberdade do Estado somente possvel se eles forem regulados pelas

    53 MAQUIAVEL,MAQUIAVEL, Discursos, I, 40.

    leis. Segundo Nadeau54, se Maquiavel apresenta as vantagens do poder popular

    e do poder dos grandes, ele no se decide em favor de um nem de outro. Com

    efeito, nos dois casos, o que motiva a ao poltica o desejo e preciso pen -

    sar, portanto, as instituies polticas em funo da oposio entre o povo e os

    grandes. E esta oposio no deve jamais se concluir pela vitria de uma ou de

    outra parte. Pelo contrrio, o papel das boas instituies ser justamente o de

    impedir que tal coisa acontea.

    Considerando que Maquiavel se situa na direo da verdade efetiva das

    coisas quando pensa a diviso social e a liberdade poltica, podemos armar

    que o secretrio orentino no concebe a liberdade independentemente do

    conito civil. O que importa a confrontao permanente entre o desejo de

    dominao e o desejo de liberdade, sendo vo esperar por uma sociedade re -

    conciliada no universo maquiaveliano. No se pode e nem se deve desejar co -

    locar m oposio entre estes dois desejos porque, para Maquiavel, dessa

    oposio que (...) nascem as boas leis que muitos condenam sem ponderar

    (...)55. A lei que resulta do conito, portanto, embora precria e provisria,

    o denominador comum entre os desejos de grandes e povo. A consequncia

    desta concepo do conito civil dupla: de um lado, o modelo clssico 56dos

    governos no tem mais valor, pois ela impede pensar a tomada do poder e

    seus modos de conservao; de outro, a ideia de lei adquire um novo sentido:

    no nem o efeito de uma regulao natural nem o produto de uma instncia

    racional, mas concebida como fruto da confrontao entre os dois desejos

    e, mais especialmente, como a culminncia do desejo de liberdade do povo, de

    sua recusa da opresso pelos grandes57.

    54 NADEAU,NADEAU,Machiavel: domination et libert politique, p.327.55 MAQUIAVEL, Discursos, I, 4.56 Governo de um (monarquia), do pequeno nmero (aristocracia) e do grande nmero(democracia) e suas respectivas formas corrompidas (tirania, oligarquia e demagogia).57 Cf. esta argumentao de Claude Lefort no texto de Marie Gaille-Nikodimov. Conitcivil et libert: La politique machiavlienne entre histoire et mdiecine. Paris: HonorChampion, 2004.

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    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.72 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    esta a revoluo do pensamento de Maquiavel frente a toda uma

    tradio que via os conitos como perniciosos liberdade da cidade, que reco -

    mendava, inclusive, a sua anulao. A originalidade do autor orentino reside

    no fato de conceber o conito como elemento necessrio esfera poltica. Ao

    contrrio da tradio, inclusive de autores contemporneos seus, que acusa o

    conito como causa da perda da liberdade, nosso autor v nele a condio para

    a sua efetivao. O conito necessrio porque representa o alerta de uma

    das partes de que, no jogo do poder, se insinua um desequilbrio em favor de

    uma parte e em prejuzo de outra. A lei, como reguladora do conito, nasce

    exatamente do confronto entre as partes. A soluo indica, ento, segundo

    Maquiavel, para a normalizao do conito, sustentada unicamente numa boa

    constituio capaz de assegurar o equilbrio entre grandes e povo de modo que,

    vigiando-se reciprocamente, force cada qual a buscar o bem comum58. Isso,

    58 Para o secretrio orentino, o bem comum, no entanto, no se refere a um telos, um

    m para o qual a comunidade poltica naturalmente deva convergir, guiada pela foradas leis. Ainda que estas sejam o resultado do conito civil entre g randes e povo, o bemcomum no o resultado da satisfao dos seus desejos, mas antes um desejo que ambosos grupos envolvidos no conito podem desejar. De acordo com Ames (2009, p.194) oEstado pode velar pelo bem comum como bem supremo unicamente se um bem deter-minvel desejado por todos. Assim, Maquiavel abandona a idia de bem comum comonalidade ltima da vida coletiva. Partindo da centralidade do conito, a possibilidade deuma vida coletiva est condicionada armao da poltica como lugar da heterogenei -dade dos desejos. Em semelhante quadro, o bem comum, ou o comum desse bem,no tem mais como ser identicado, pois ele no se coloca mais sobre o plano de umbem partilhado por todos. Falar do bem comum, em termos estritos, supe que exista aomenos um desejo predominante que todos partilhem. No , claro, um desejo que todos

    possam satisfazer algo impossvel dada a natureza insacivel do desejo humano -, masque todos possam desejar. Somente se um mesmo objeto de desejo for visado conjun -tamente ele ser capaz de tornar-se partilhvel sem disputas. Maquiavel rompe com essarepresentao do bem comum: no somente nega a possibilidade de um objeto determi-nvel (um bem comum), mas tambm que possa ser um. O bem comum, como osublinha Sfez (1999, p.187), no tem nada de um bem; ele representa muito antes uma ta-refa, uma tarefa da disperso dos bens e da heterogeneidade dos desejos e dos objetivos.

    porm, no autoriza a concluir que a lei que resulta do conito leve soluo

    derradeira deste. A concrdia entre as partes sempre precria, momentnea,

    e permanentemente submetida ao movimento do conito.

    Maquiavel sustenta que as boas leis resultam dos tumultos e dos confron-

    tos entre aqueles que querem dominar e aqueles que no querem ser dominados.

    Os tumultos constituem, assim, a causa principal da liberdade poltica, aquela do

    Estado e aquela dos cidados e, consequentemente, de todas as boas leis que con-

    tribuem para esta liberdade. Assim, em oposio ao pensamento de sua poca, o

    secretrio orentino faz o elogio da desunio e da discrdia no porque so boas

    em si mesmas, mas pelos efeitos positivos que produzem para a comunidade

    poltica. E, citando Roma como modelo paradigmtico, sublinha que foram delas

    que nasceram as boas leis da cidade. O conito , assim, conforme os Discur-

    sos59,o motor de um Estado livre e poderoso, pois a grandeza de Roma, da qual

    Florena se pretende herdeira, no foi o resultado de uma sbia legislao, mas

    se edicou graas conjugao dos acontecimentos favorveis dafortunacom a

    expresso da virtde um povo livre que constantemente se confrontava com a

    nobreza e que resultava em leis favorveis ao bem comum.

    Neste sentido, podemos admitir que a concrdia seja possvel sim no

    pensamento poltico maquiaveliano. No entanto, esta concrdia, diferentemente

    da tradio, se sustenta num paradoxo: ela efeito das leis que, por sua vez, como

    vimos, resultam dos conitos. , portanto, assim como as leis, sempre uma con-

    crdia provisria porque permanentemente relanada pelos desacordos entre os

    atores polticos. A concrdia no desse modo resultado da anulao dos coni-

    tos entre grandes e povo, mas , antes, produto da normalizao do permanente

    confronto entre os dois humores. o acordo via desacordo. Todavia, esta nor-

    Assim, a crtica de Maquiavel ideia de bem comum no a negao do bem geral. Muitoantes, a armao de que ningum pode se apropriar do bem pblico, nenhum grupopode falar dele como coisa sua, nem mesmo o governo do Estado. No , por tanto uma

    verso originria do lema liberal da pluralidade de bens, e sim a armao da radicalindeterminao do bem comum como algo que no se deixa representar nem apropriar.59 MAQUIAVEL, Discursos, I, 4.

  • 7/22/2019 141762846 Filosofia Politica Artigo Maquiavel Teoria Dos Humores Conflito x Liberdade

    17/17

    Winter, L. M., Cadernos de tca e Filosofa Poltca19, 2/2011, pp.43-75.74 A teoria dos humores de Maquiavel: a relao entre o confito e a liberdade

    malizao ocorre sempre no espao pblico, o lugar privilegiado do debate, das

    discusses e onde grandes e povo apenas disputame no combatem.E a, anal, o

    lugar onde os conitos encontram o terreno frtil que conduz o Estado e os seus

    cidados vivncia da liberdade.

    The theory of the humors of Machiavelli: the

    relationship between the conict and the freedom

    Abstract:The purpose of this work consists of analyzing the place that the bigs andpeoples conict, circumscribed by the theory of humors, occupies in Machiavellispolitical thought and to investigate its relationship with the political freedom. The centralhypothesis is that the freedom can only be reached by a balance point among the forcesin conict. For that, it is necessary that the conict, not being annulled, be rationally re-gulated and normalized by the republican institutions, changing from negative force intoforce capable to converge in the State the commonwealth, the social order and the fre -edom of the whole political body. The republican law, born of the per manent confron-tation of the antagonistic desires, subverts the negative character of the humors of bigand people and it channels the force for the political life, demanding active citizenship oftheir members, it means, the participation of both humors in the public space as politicalagents for the maintenance of the freedom. To make it clear, we tried to demonstrate thecharacteristics of the conict of the humors, in agreement with those which the desire ofthe big gets confused with a desire of power, while the desire of the people is associated tofreedom. For Machiavelli, the true political freedom is only possible when the antagonis -tic humors can relieve their desires through the participation in the public space of debatesand collective decisions, what can only happen in a republican regime.Keywords: Machiavelli Antagonistic Humors Civil Conict Freedom Republic.

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