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Seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeojulio jeha

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Seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeojulio jeha

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[2018]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532‑002 1049301 Satildeo Paulo 1049301 spTelefone (11) 3707‑3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Copyright da seleccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo copy 2018 by Julio JehaCopyright dos contos Shirley Jackson ldquoA loteriardquo copy ltcompletargt Lygia Fa‑gundes Telles ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo copy by Lygia Fagundes Telles Stephen King ldquoVovoacuterdquo copy ltcompletargt

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009

CapaEstuacutedio Passeio

Projeto graacuteficoClaudia Espiacutenola de Carvalho

PreparaccedilatildeoAna Paula Martini

RevisatildeoThaiacutes Totino RichterHuendel Viana

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

Contos claacutessicos de terror seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Julio Jeha ndash 1050344ordf ed ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2018

isbn 978-85-359-3177-8

1 Contos de terror ndash Coletacircnias I Jeha Julio

18-20263 CDDndash80883

Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Contos Coletacircnias Literatura 80883Iolanda Rodrigues Biode ndash Bibliotecaacuteria ndash crbndash810014

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo | julio jeha 7

george sand | Esperidiatildeo 11

walt whitman | Morte na sala de aula 25

edgar allan poe | O barril de Amontillado 35

r l stevenson | O ladratildeo de corpos 45

machado de assis | A causa secreta 73

villiers de lrsquoisle-adam | A tortura pela esperanccedila 87

thomas hardy | Baacuterbara da Casa de Grebe 97

bram stoker | A selvagem 147

h g wells | Pollock e o homem do Porroh 167

henrique coelho neto | A tapera 191

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w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 2: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

Seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeojulio jeha

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Seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeojulio jeha

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[2018]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532‑002 1049301 Satildeo Paulo 1049301 spTelefone (11) 3707‑3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Copyright da seleccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo copy 2018 by Julio JehaCopyright dos contos Shirley Jackson ldquoA loteriardquo copy ltcompletargt Lygia Fa‑gundes Telles ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo copy by Lygia Fagundes Telles Stephen King ldquoVovoacuterdquo copy ltcompletargt

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009

CapaEstuacutedio Passeio

Projeto graacuteficoClaudia Espiacutenola de Carvalho

PreparaccedilatildeoAna Paula Martini

RevisatildeoThaiacutes Totino RichterHuendel Viana

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

Contos claacutessicos de terror seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Julio Jeha ndash 1050344ordf ed ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2018

isbn 978-85-359-3177-8

1 Contos de terror ndash Coletacircnias I Jeha Julio

18-20263 CDDndash80883

Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Contos Coletacircnias Literatura 80883Iolanda Rodrigues Biode ndash Bibliotecaacuteria ndash crbndash810014

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo | julio jeha 7

george sand | Esperidiatildeo 11

walt whitman | Morte na sala de aula 25

edgar allan poe | O barril de Amontillado 35

r l stevenson | O ladratildeo de corpos 45

machado de assis | A causa secreta 73

villiers de lrsquoisle-adam | A tortura pela esperanccedila 87

thomas hardy | Baacuterbara da Casa de Grebe 97

bram stoker | A selvagem 147

h g wells | Pollock e o homem do Porroh 167

henrique coelho neto | A tapera 191

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w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 3: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

Seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeojulio jeha

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[2018]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532‑002 1049301 Satildeo Paulo 1049301 spTelefone (11) 3707‑3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Copyright da seleccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo copy 2018 by Julio JehaCopyright dos contos Shirley Jackson ldquoA loteriardquo copy ltcompletargt Lygia Fa‑gundes Telles ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo copy by Lygia Fagundes Telles Stephen King ldquoVovoacuterdquo copy ltcompletargt

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009

CapaEstuacutedio Passeio

Projeto graacuteficoClaudia Espiacutenola de Carvalho

PreparaccedilatildeoAna Paula Martini

RevisatildeoThaiacutes Totino RichterHuendel Viana

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

Contos claacutessicos de terror seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Julio Jeha ndash 1050344ordf ed ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2018

isbn 978-85-359-3177-8

1 Contos de terror ndash Coletacircnias I Jeha Julio

18-20263 CDDndash80883

Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Contos Coletacircnias Literatura 80883Iolanda Rodrigues Biode ndash Bibliotecaacuteria ndash crbndash810014

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo | julio jeha 7

george sand | Esperidiatildeo 11

walt whitman | Morte na sala de aula 25

edgar allan poe | O barril de Amontillado 35

r l stevenson | O ladratildeo de corpos 45

machado de assis | A causa secreta 73

villiers de lrsquoisle-adam | A tortura pela esperanccedila 87

thomas hardy | Baacuterbara da Casa de Grebe 97

bram stoker | A selvagem 147

h g wells | Pollock e o homem do Porroh 167

henrique coelho neto | A tapera 191

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w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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[2018]Todos os direitos desta ediccedilatildeo reservados agraveeditora schwarcz saRua Bandeira Paulista 702 cj 3204532‑002 1049301 Satildeo Paulo 1049301 spTelefone (11) 3707‑3500wwwcompanhiadasletrascombrwwwblogdacompanhiacombrfacebookcomcompanhiadasletrasinstagramcomcompanhiadasletrastwittercomcialetras

Copyright da seleccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo copy 2018 by Julio JehaCopyright dos contos Shirley Jackson ldquoA loteriardquo copy ltcompletargt Lygia Fa‑gundes Telles ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo copy by Lygia Fagundes Telles Stephen King ldquoVovoacuterdquo copy ltcompletargt

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009

CapaEstuacutedio Passeio

Projeto graacuteficoClaudia Espiacutenola de Carvalho

PreparaccedilatildeoAna Paula Martini

RevisatildeoThaiacutes Totino RichterHuendel Viana

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (cip) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

Contos claacutessicos de terror seleccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Julio Jeha ndash 1050344ordf ed ndash Satildeo Paulo Companhia das Letras 2018

isbn 978-85-359-3177-8

1 Contos de terror ndash Coletacircnias I Jeha Julio

18-20263 CDDndash80883

Iacutendice para cataacutelogo sistemaacutetico1 Contos Coletacircnias Literatura 80883Iolanda Rodrigues Biode ndash Bibliotecaacuteria ndash crbndash810014

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo | julio jeha 7

george sand | Esperidiatildeo 11

walt whitman | Morte na sala de aula 25

edgar allan poe | O barril de Amontillado 35

r l stevenson | O ladratildeo de corpos 45

machado de assis | A causa secreta 73

villiers de lrsquoisle-adam | A tortura pela esperanccedila 87

thomas hardy | Baacuterbara da Casa de Grebe 97

bram stoker | A selvagem 147

h g wells | Pollock e o homem do Porroh 167

henrique coelho neto | A tapera 191

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w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 5: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo | julio jeha 7

george sand | Esperidiatildeo 11

walt whitman | Morte na sala de aula 25

edgar allan poe | O barril de Amontillado 35

r l stevenson | O ladratildeo de corpos 45

machado de assis | A causa secreta 73

villiers de lrsquoisle-adam | A tortura pela esperanccedila 87

thomas hardy | Baacuterbara da Casa de Grebe 97

bram stoker | A selvagem 147

h g wells | Pollock e o homem do Porroh 167

henrique coelho neto | A tapera 191

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w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 6: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

w w jacobs | A matildeo do macaco 233

joseph conrad | A Fera 249

joatildeo do rio | Emoccedilotildees 281

hugh walpole | O tarn 291

h p lovecraft | Na cripta 311

humberto de campos | Os olhos que comiam carne 327

shirley jackson | A loteria 335

lygia fagundes telles | Venha ver o pocircr do sol 349

stephen king | Vovoacute 361

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 7: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

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Apresentaccedilatildeo

a literatura assombrada pelo medo

Julio Jeha

O medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias como indiviacuteduos e civilizaccedilotildees O que satildeo as empreita‑das da agricultura e da engenharia senatildeo defesas contra a fome as doenccedilas os terremotos e as intempeacuteries Contudo natildeo batalhamos apenas contra situaccedilotildees naturais adversas potencialmente fatais Noacutes tambeacutem nos deparamos com o mal moral exercido por seres humanos 1049301 muitas vezesconscientes de que estatildeo causando sofrimento e ateacute mesmo sentindo prazer nisso Assim a filosofia e a literatura entre outras realizaccedilotildees culturais satildeo tentativas de entender os obstaacuteculos que nos impedem de atingir a perfeiccedilatildeo para aleacutem das necessidades do cotidiano

Tanto nas empreitadas fiacutesicas quanto nas intelectuais o mal absoluto e definitivo eacute a morte jaacute que ela encerra nos‑sa existecircncia Com a morte acaba‑se nossa esperanccedila de

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

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uma vida melhor passamos de uma realidade conhecida para outra da qual nada sabemos Portanto nossa sensaccedilatildeo mais baacutesica no sentido de mais primitiva e fundamental eacute o medo A situaccedilatildeo mais aterradora dentre todas as que nos as‑sombram eacute o medo do desconhecido que eacute o medo da morte

Assim a literatura eacute tambeacutem uma ferramenta que nos prepara para esse embate final Das primeiras narrativas babilocircnicas ateacute as histoacuterias que contamos hoje de um modo ou de outro encenamos o conflito entre o bem e o mal isto eacute entre nossa sobrevivecircncia e nossa destruiccedilatildeo De forma mais expliacutecita a literatura que se convencionou chamar de terror ou ainda goacutetica e de horror nos permite viver por procura‑ccedilatildeo situaccedilotildees angustiantes paralelas agraves de nossa experiecircn‑cia Ou ainda situaccedilotildees que desejariacuteamos nunca experimen‑tar Entre a seduccedilatildeo e o medo poreacutem criamos estrateacutegias muitas vezes cataacuterticas de elaborar a morte

Em alguns casos o agente maligno que provoca a destrui‑ccedilatildeo das personagens eacute um animal uma casa ou mesmo um navio aparentemente dotados de vontade proacutepria Casos de possessatildeo demoniacuteaca ou de feiticcedilos maleacuteficos apenas transfe‑rem para a esfera metafiacutesica a responsabilidade moral uma casa assombrada pode natildeo ter agecircncia como um ser humano mas compartilha com ele o desejo de destruiccedilatildeo

Os contos reunidos nesta coletacircnea transitam entre goacute‑tico horror e terror sem se afiliar a nenhuma dessas ca‑tegorias com exclusividade Contudo vale deixar de lado a tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo conceito mais amplo e abrangente Nessa forma literaacuteria uma personagem eacute viacutetima ou testemunha de um ato cruel que causa sofrimento gratuito a ela ou a outro

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 9: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

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ser vivo prenunciando sua morte Essa aberraccedilatildeo moral eacute tamanha que torna por algum tempo ou indefinidamente a personagem ou o narrador incapaz de reagir Tal ato abo‑minaacutevel ocorre para infligir dor seja por vinganccedila prazer saacutedico ou ambos Em grande parte das histoacuterias o mal surge como retribuiccedilatildeo por um ato cometido num passado longiacuten‑quo por um antepassado ou no passado recente pelo per‑petrador que agora ocupa o lugar da viacutetima

Como as histoacuterias a seguir nos mostram a literatura do medo eacute sobretudo muacuteltipla e natildeo se deixa capturar em um soacute desenho A retoacuterica do indiziacutevel marcada pela presenccedila do monstro torna a proacutepria literatura monstruosa recusan‑do‑se a ser circunscrito por uma definiccedilatildeo o mal causa um curto‑circuito na significaccedilatildeo ao se conectar com uma rede de metaacuteforas sem limites

A representaccedilatildeo do mal natildeo eacute uma empreitada simples O uacutenico meio que parece capaz de incluir essa enormidade em si mesmo eacute a narrativa O teoacutelogo suiacuteccedilo Karl Barth defron‑te agrave impossibilidade de falar o nada afirma que a proacutepria teologia deve se tornar narrativa para incluir em si fratura e limite Mas a narrativa parece ser movida e libertada pela forccedila do mal natildeo apenas para incluiacute‑lo mas para se tornar sua cuacutemplice ldquoA literatura natildeo eacute inocenterdquo diz Bataille ldquoela eacute culpada e deveria reconhecer‑se como talrdquo Apenas quando a literatura reconhece sua cumplicidade com o mal eacute que ela cumpre sua natureza que eacute comunicar o essencial

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George Sandesperidiatildeo

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 10: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

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George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 11: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

George Sandesperidiatildeo

(Episoacutedio)

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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avia trecircs noites que eu natildeo dormia Na quarta por volta de meia‑noite peguei uma tesoura uma lanterna uma alavanca e penetrei sem ruiacutedo numa igreja decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginaccedilatildeo

revestia de uma forma celeste e que minha razatildeo ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma

Cheguei agrave pedra do Hic est ergui‑a sem muito esforccedilo e co‑mecei a descer a escada lembrava‑me de que havia doze degraus Mas natildeo havia descido cinco e minha cabeccedila jaacute es‑tava perturbada Ignoro o que acontecia dentro de mim se eu natildeo tivesse passado por isso nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tan‑to terror covarde Fui tomado pelo frio da febre o medo fez tremer meus dentes deixei cair a lanterna senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo

Um espiacuterito sincero natildeo teria tentado superar essa afli‑ccedilatildeo Ele teria desistido de perseguir uma provaccedilatildeo acima de suas forccedilas teria adiado seu encontro para um momento mais favoraacutevel teria esperado com paciecircncia e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais Mas eu natildeo queria desmentir a mim mesmo Estava indignado com minha fra‑queza queria romper e atrofiar minha imaginaccedilatildeo Continuei a descer nas trevas mas meu espiacuterito esvaneceu e me tornei viacutetima das ilusotildees e dos fantasmas

Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Eacuterebo Enfim cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz luacutegubre pronunciar estas pa‑lavras que parecia confiar agraves entranhas da terra

ldquoEle natildeo subiraacute a escadardquo

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Nesse instante ouvi erguer‑se em minha direccedilatildeo do fun‑do de abismos invisiacuteveis mil vozes que cantavam num ritmo estranho

ldquoVamos destruiacute‑lo Que ele seja destruiacutedo O que ele vem fazer no meio dos mortos Que seja levado de volta ao sofri‑mento Reconduzido agrave vida rdquo

Entatildeo uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no uacuteltimo degrau de uma escada tatildeo vasta como a base de uma montanha Atraacutes de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho agrave minha frente apenas o vazio o abismo do eacuteter o azul sombrio da noite sob meus peacutes e sobre minha cabeccedila Fui tomado por uma vertigem e saindo da es‑cada sem pensar que fosse possiacutevel subir por ela lancei‑me no vazio blasfemando Mas mal pronunciara as sentenccedilas de maldiccedilatildeo o vazio se encheu de formas e cores confusas aos poucos percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria e avancei tremendo A escuridatildeo ainda reinava ao meu redor mas o fundo da aboacutebada iluminava‑se com um claratildeo vermelho revelando formas estranhas e terriacuteveis da arquitetura Todo esse monumento parecia por sua forccedila e tamanho gigantesco ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras Natildeo distinguia os objetos mais proacuteximos de mim mas agrave medida que avanccedilava adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro e meu terror aumentava a cada passo Os enormes pilares que sustenta‑vam a aboacutebada e ateacute mesmo os ornatos desta representa‑vam homens de um tamanho sobrenatural todos entregues a torturas espantosas uns suspensos pelos peacutes e espremidos por serpentes monstruosas mordiam o solo e seus dentes penetravam no maacutermore outros afundados no chatildeo ateacute a

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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Page 14: 14585 - Contos clássicos de terror miolo.indd 1 10/30/18 2 ... · tentativa de distinguir essas formas entre si e pensar numa literatura do medo, conceito mais amplo e abrangente

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cintura eram puxados de cima uns pelos braccedilos com a ca‑beccedila no alto outros de cabeccedila para baixo voltavam‑se para capiteacuteis compostos por figuras humanas debruccediladas sobre eles e obstinadas a torturaacute‑los Outros pilares representa‑vam um enlaccedilamento de figuras que se devoravam e cada uma delas mostrava apenas um tronco roiacutedo ateacute os joelhos ou ombros mas cuja cabeccedila furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto Havia os que es‑folados pela metade se esforccedilavam com a parte superior do corpo para desprender a pele da outra metade presa ao capitel ou retida na base e ainda outros que ao se debate‑rem haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressatildeo de oacutedio e sofrimento indi‑ziacuteveis Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos revestidos de forma humana mas de uma feiuacutera espantosa ocupados em decepar cadaacuteveres devorar membros de corpos humanos torcer viacutesceras refestelar‑se de despojos sanguinolentos Da aboacutebada pendiam no lugar de fechos e rosaacuteceas crianccedilas mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes ou que fugindo atemorizadas dos devora‑dores de carne humana se precipitavam com a cabeccedila para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo

Quanto mais eu avanccedilava mais essas estaacutetuas aclaradas pela luz do fundo adquiriam o aspecto da realidade esta‑vam forjadas com uma verdade que a arte dos homens nunca teria podido alcanccedilar Parecia uma cena de horror que um cataclismo desconhecido teria surpreendido no meio de sua realidade viva e teria enegrecido e petrificado como a argila no forno A expressatildeo de desespero de raiva e agonia era por demais impressionante em todos os rostos contraiacutedos o mo‑

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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vimento ou a tensatildeo dos muacutesculos a exasperaccedilatildeo da luta o frecircmito da carne enfraquecida eram reproduzidos com tanta exatidatildeo que era impossiacutevel suportar a cena sem desgos‑to e terror O silecircncio e a imortalidade dessa representaccedilatildeo talvez acentuassem ainda mais seu efeito horriacutevel em mim Tornei‑me tatildeo fraco que parei e quis voltar

Foi entatildeo que escutei nos fundos das trevas que havia atravessado rumores confusos como os de uma multidatildeo em movimento Em pouco tempo as vozes tornaram‑se cla‑ras e os clamores mais ruidosos e os passos apressaram‑se tumultuosamente aproximando‑se com uma rapidez incriacute‑vel era um barulho de corrida irregular estremecida mas cujo estreacutepito se tornava mais proacuteximo mais impetuoso mais ameaccedilador Imaginei que estava sendo perseguido por essa multidatildeo desregrada tentei ultrapassaacute‑la precipitando‑me debaixo da aboacutebada no meio das esculturas luacutegubres Mas me pareceu que aqueles personagens comeccedilavam a agitar‑se a umedecer‑se de suor e sangue e que seus olhos de esmalte giravam nas oacuterbitas De repente percebi que todos me olhavam e curvavam‑se sobre mim uns com a expressatildeo de um riso medonho outros com uma aversatildeo furiosa Todos erguiam o braccedilo sobre meu corpo e pareciam prontos a me esmagar sob os membros palpitantes que arrancavam uns dos outros Alguns me ameaccedilavam com a proacutepria cabeccedila nas matildeos ou com cadaacuteveres de crianccedilas que haviam arrancado da aboacutebada

Enquanto minha visatildeo era turvada por essas imagens abo‑minaacuteveis meus ouvidos se enchiam de barulhos sinistros que se aproximavam Havia a minha frente objetos medonhos e atraacutes de mim ruiacutedos ainda mais terriacuteveis risos gritos amea‑ccedilas soluccedilos blasfecircmias e de repente momentos de silecircncio

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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em que a multidatildeo levada pelo vento parecia transpor dis‑tacircncias enormes e ultrapassar‑me cem vezes mais

Enfim o ruiacutedo aproximou‑se de tal forma que sem espe‑ranccedila de escapar tentei esconder‑me atraacutes dos pilares da galeria mas as figuras de maacutermore subitamente se anima‑ram e agitando os braccedilos que se estendiam freneticamente para mim queriam me agarrar para devorar‑me

Fui entatildeo arremessado pelo medo ateacute o meio da galeria onde os braccedilos natildeo podiam alcanccedilar‑me e a multidatildeo veio em meu encalccedilo e o espaccedilo encheu‑se de vozes o solo inun‑dado de passos Foi como uma tempestade nos bosques uma rajada de vento nas ondas uma erupccedilatildeo vulcacircnica Tive a impressatildeo de que o ar estava abrasado e de que meus ombros se dobravam sob o peso da onda Fui carregado como uma folha de outono no turbilhatildeo de fantasmas

Todos usavam vestes negras e seus olhos ardentes bri‑lhavam sob um capuz sombrio como os de um tigre no fun‑do de seu antro Havia os que pareciam mergulhados num desespero sem limite os que se entregavam a uma alegria insensata ou feroz e outros cujo silecircncio selvagem me dava calafrios e me amedrontava ainda mais Agrave medida que avan‑ccedilavam as figuras de bronze e de maacutermore agitavam‑se e se contorciam com tamanho esforccedilo que acabavam por se li‑vrar de sua terriacutevel constriccedilatildeo por se desprender do solo que lhes acorrentava os peacutes por arrancar os braccedilos e os ombros da cornija os mutilados da aboacutebada tambeacutem se despren‑diam e arrastando‑se como cobras ao longo das paredes conseguiam chegar ao chatildeo E entatildeo todos esses antropoacute‑fagos gigantescos todos esses seres esfolados e mutilados juntavam‑se agrave multidatildeo de espectros que me arrastavam e

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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ao recobrarem a aparecircncia de uma vida plena comeccedilavam a correr e a gritar como os outros assim o espaccedilo ao nosso redor se avolumava e a multidatildeo espalhava‑se nas trevas como um rio que rompeu seu dique mas o claratildeo longiacutenquo ainda a atraiacutea e a guiava Subitamente essa claridade paacutelida ficou mais viva e vi que haviacuteamos chegado ao fim A multidatildeo se dividiu se espalhou nas galerias circulares e eu percebi embaixo de mim a uma distacircncia imensuraacutevel o interior de um monumento que a matildeo do homem nunca poderia ter construiacutedo Era uma igreja goacutetica com o estilo das que os catoacutelicos construiacuteam no seacuteculo xi numa eacutepoca em que seu poder moral tendo alcanccedilado o apogeu comeccedilava a cons‑truir cadafalsos e fogueiras Os pilares afilados as arcadas pontiagudas os animais simboacutelicos os ornatos estranhos todos os caprichos de uma arquitetura pretensiosa e extra‑vagante estavam ali desdobrados num espaccedilo e em dimen‑sotildees tais que um milhatildeo de homens poderiam ser abrigados sob a mesma aboacutebada Mas essa aboacutebada era de chumbo e as galerias superiores onde a multidatildeo se espremia eram tatildeo proacuteximas que ningueacutem conseguia ficar de peacute com a cabeccedila encurvada e os ombros quebrados eu era obrigado a olhar o que acontecia no fundo da igreja sob meus peacutes a uma pro‑fundeza que me dava vertigem

De iniacutecio soacute pude distinguir os reflexos da arquitetura cujas partes inferiores flutuavam num vaacutecuo enquanto as partes intermediaacuterias iluminavam‑se de clarotildees vermelhos entrecortados por sombras negras como se um foco de in‑cecircndio tivesse explodido em algum ponto imperceptiacutevel Aos poucos a claridade sinistra espalhou‑se por todas as partes do edifiacutecio e eu divisei um grande nuacutemero de figuras ajoe‑

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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lhadas na nave enquanto uma procissatildeo de padres usando haacutebitos sacerdotais desfilava lentamente no meio e dirigia‑se ao coro cantando com uma voz monoacutetona

ldquoVamos destruiacute‑lo Vamos destruiacute‑lo Aquele que pertence agrave tumba que seja reconduzido agrave tumba rdquo

Esse canto luacutegubre reavivou meu terror olhei ao redor de mim mas vi que estava sozinho num dos vatildeos entre duas vi‑gas a multidatildeo invadira todos os outros e natildeo parecia preo‑cupada comigo Entatildeo tentei escapar desse lugar pavoroso em que um instinto secreto me anunciava a realizaccedilatildeo de algum terriacutevel misteacuterio Vi vaacuterias portas atraacutes de mim mas estavam vigiadas por horriacuteveis rostos de bronze que caccediloa‑vam falando entre si e dizendo

ldquoVamos destruiacute‑lo os despojos de sua carne nos pertenceratildeordquo Paralisado por essas palavras aproximei‑me da balaus‑

trada curvando o corpo ao longo da rampa de pedra para natildeo ser visto Senti tamanho horror do que ia acontecer que fechei os olhos e tapei os ouvidos Com a cabeccedila coberta com meu capuz e curvado ateacute os joelhos acabei por imaginar que tudo isso era um sonho e que eu adormecera num catre de minha cela Fiz um esforccedilo incriacutevel para acordar e escapar ao pesadelo e com efeito pensei ter acordado mas ao abrir os olhos encontrei‑me no mesmo vatildeo rodeado agrave distacircncia por espectros que me haviam conduzido ateacute ali e vi no fundo da nave a procissatildeo de padres que chegara ao meio do coro for‑mando um grupo coeso em cujo centro acontecia uma cena de horror que nunca esquecerei Havia um homem deitado num caixatildeo e esse homem estava vivo Ele natildeo se lamentava natildeo mostrava nenhuma resistecircncia mas soluccedilos sufocantes escapavam de seu peito e seus suspiros profundos acolhi‑

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

traduccedilatildeo de milton hatoum

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dos por um silecircncio morno perdiam‑se sob a aboacutebada que os devolvia agrave multidatildeo insensiacutevel Perto dele vaacuterios padres munidos de martelos e pregos iam enterraacute‑lo assim que lhe arrancassem o coraccedilatildeo Com os braccedilos sanguinolentos e en‑terrados no peito entreaberto do maacutertir cada um vinha re‑mexer e torcer em vatildeo as entranhas do homem ningueacutem podia arrancar seu coraccedilatildeo invenciacutevel pois um feixe de dia‑mante parecia protegecirc‑lo De vez em quando os carrascos deixavam escapar um grito de raiva e imprecaccedilotildees mistu‑radas com vaias respondiam do alto das galerias Durante essas abominaccedilotildees a multidatildeo prosternada na igreja per‑manecia imoacutevel numa atitude de meditaccedilatildeo e recolhimento

Entatildeo um dos carrascos se aproximou todo ensanguenta‑do da balaustrada que separa o coro da nave e disse a seus homens ajoelhados

ldquoAlmas cristatildes fieacuteis fervorosos e puros oacute meus irmatildeos bem‑amados orai Redobrai suacuteplicas e laacutegrimas a fim de que o milagre se realize e vocecircs possam comer a carne e beber o sangue de Cristo vosso divino Salvadorrdquo

E os fieacuteis passaram a rezar em voz baixa a golpear o pei‑to e a espalhar cinzas em suas faces enquanto os carrascos continuavam a torturar sua presa e a viacutetima murmurava chorando essas palavras

ldquoOacute meu Deus livra essas viacutetimas da ignoracircncia e da im‑postura rdquo

Parecia que um eco da aboacutebada como uma voz misterio‑sa trazia esses lamentos aos meus ouvidos Estava tatildeo para‑lisado pelo medo que em vez de lhe responder e aumentar minha voz contra os carrascos apenas me dedicava a espiar os movimentos dos que me cercavam com a esperanccedila de

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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bronze e de maacutermore ora devoradoras ora devoradas um siacutembolo das almas que o catolicismo embruteceu e mutilou uma imagem dos combates que as geraccedilotildees consagraram agrave Igreja profanada devorando‑se entre si restituindo umas agraves outras o mal que haviam suportado Essa onda de fan‑tasmas furiosos que te arrastou eacute a incredulidade a desor‑dem o ateiacutesmo a preguiccedila o oacutedio a cupidez a inveja todas as paixotildees maleacuteficas que invadiram a Igreja quando a Igreja perdeu a feacute e esses maacutertires cujas entranhas os priacutencipes da Igreja disputavam eram os Cristos os maacutertires da nova verdade os santos do futuro atormentados e dilacerados ateacute o fundo do coraccedilatildeo pelos impostores invejosos e traidores Tu mesmo movido por um instinto de nobre ambiccedilatildeo tu te viste deitado nesse cenotaacutefio ensanguentado aos olhos de um clero infame e de um povo imbecil Mas foste duplica‑do aos teus proacuteprios olhos e enquanto a metade mais bela do teu ser suportava a tortura com perseveranccedila e recusava entregar‑se aos fariseus a outra metade egoiacutesta e covarde se escondia na sombra e para escapar a seus inimigos dei‑xava a voz do velho Fulgecircncio expirar sem eco Foi assim oacute Aleacutexis que o amor agrave verdade soube preservar tua alma das paixotildees vis do povo mas foi assim oacute monge que o amor ao bem‑estar e o desejo de liberdade te tornaram cuacutemplice do triunfo dos hipoacutecritas com quem estaacutes condenado a viver Vamos acorda e procura na virtude a verdade que pudeste encontrar na ciecircnciardquo

Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ouro e puacuterpura no fundo do coro Vi nitidamente a pessoa que se dirigira a mim ingressar nesse claratildeo e apagar‑se como se fosse confundida com a luz celeste Sentia‑me abatido por um sono de morte e meus membros estavam entorpecidos pelo frio da tumba O sino batia as matinas apressei‑me em recolocar a pedra sobre a cova e pude sair da igreja antes que alguns devotos fervorosos que natildeo dispensavam os ofiacute‑cios da manhatilde entrassem no templo

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que natildeo despejassem sua raiva contra mim vendo que eu natildeo era um deles

Depois tentei despertar e durante uns segundos minha imaginaccedilatildeo me conduziu a cenas alegres Numa bela manhatilde eu me via sentado na cela rodeado pelos meus livros prefe‑ridos mas um novo suspiro da viacutetima me arrancava dessa visatildeo doce e de novo me encontrava diante de uma intermi‑naacutevel agonia e de carrascos incansaacuteveis Olhava o paciente e parecia que ele se transformava a cada instante Natildeo era mais o Cristo e sim Abelardo e depois Jean Huss em seguida Lutero Eu me livrava desse espetaacuteculo de horror e parecia rever a claridade do dia fugindo com leveza e rapidez para o meio de uma agradaacutevel aacuterea campestre Mas um riso feroz vindo de perto de mim me tirava com um sobressalto des‑sa doce ilusatildeo e eu percebia Esperidiatildeo no atauacutede lutando com os infames que esmagavam seu coraccedilatildeo sem conseguir apoderar‑se dele Depois natildeo era mais Esperidiatildeo e sim o velho Fulgecircncio que me chamava e dizia

ldquoAleacutexis meu filho Aleacutexis Entatildeo tu vais me deixar morrerrdquoMal acabou de pronunciar meu nome vi em seu lugar

no caixatildeo meu proacuteprio rosto o peito entreaberto o cora‑ccedilatildeo rasgado por unhas e tenazes No entanto eu continua‑va escondido atraacutes da balaustrada entregue agrave anguacutestia da agonia e contemplando um outro que era eu mesmo Entatildeo senti que ia desmaiar meu sangue congelou nas veias um suor frio jorrava de todos os membros e suportei na proacutepria carne todas as torturas infligidas ao meu espectro Tentei reunir o pouco de forccedila que me restava e por minha vez evocar Esperidiatildeo e Fulgecircncio Meus olhos se fecharam e mi‑nha boca murmurou palavras de que meu espiacuterito natildeo tinha

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mais consciecircncia Quando reabri os olhos vi perto de mim uma bela figura ajoelhada numa atitude calma A serenida‑de repousava em seu rosto largo e seus olhos natildeo ousavam abaixar para meu supliacutecio Ele tinha o olhar dirigido para a aboacutebada de chumbo e notei que acima de sua cabeccedila a luz do ceacuteu penetrava por uma ampla abertura Um vento fresco agitava levemente os aneacuteis dourados de seu belo cabelo Ha‑via em seus traccedilos uma melancolia inefaacutevel misturada com desespero e piedade

ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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ldquoOacute tu cujo nome conheccedilordquo falei em voz baixa ldquotu que pareces invisiacutevel a esses fantasmas medonhos e que ousas dirigir‑te somente a mim a mim que te conhece e te ama salva‑me destes terrores livra‑me deste supliacuteciordquo

Ele se virou para mim e me olhou com olhos claros e pro‑fundos que pareciam ao mesmo tempo lamentar e desprezar minha fraqueza Depois com um sorriso angelical estendeu a matildeo e toda a visatildeo recolheu‑se nas trevas Entatildeo apenas escutei sua voz amiga que me disse assim

ldquoTudo que pensaste ver aqui existe apenas na tua cabe‑ccedila Tua imaginaccedilatildeo sozinha forjou o sonho horriacutevel contra o qual tu te debateste Que isto te ensine a humildade e te lembre da fraqueza do teu espiacuterito antes de tentares fazer o que ainda natildeo eacutes capaz de executar Os democircnios e fantasmas satildeo criaccedilotildees do fanatismo e da supersticcedilatildeo Para que te ser‑viu toda a tua filosofia se ainda natildeo sabes distinguir as puras revelaccedilotildees que o ceacuteu concede das visotildees grosseiras evocadas pelo medo Nota que tudo o que acreditaste ver aconteceu em ti mesmo e que teus sentidos abusados natildeo te fizeram outra coisa senatildeo dar uma forma agraves ideias que haacute muito tem‑po te preocupam Viste neste edifiacutecio formado de figuras de

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Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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Mal acabou de falar despertei eu estava na igreja do con‑vento estirado sobre a pedra do Hic est ao lado da cova en‑treaberta Amanhecera os paacutessaros cantavam alegremente ao redor dos vitrais o sol nascente projetava um claratildeo de

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