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  • Verba Juris ano 4, n. 4, jan./dez. 2005

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    Estado social e democrtico de direito e jurisdio penitenciria: um novo paradigma da execuo da pena privativa de liberdade

    Gustavo Barbosa de Mesquita Batista*

    RESUMO. O presente trabalho retrata a crise do sistema penitencirio atravs da anlise do papel da jurisdio penitenciria enquanto parte integrante e reprodutora desta crise. Entretanto, o trabalho no se resume denncia do problema, mas sugere um modelo de jurisdio penitenciria, conforme o paradigma do Estado Social e Democrtico do Direito, mais apto a promover uma constitucionalizao da execuo da pena privativa de liberdade no Brasil e, por conseguinte, a concretizao do respeito aos direitos humanos. Palavras-chave: Jurisdio penitenciria. Sistema Penitencirio. Execuo Penal.

    1 Noes Introdutrias H tempos, tem-se discutido bastante acerca da

    falncia da pena de priso e no faltam trabalhos acadmicos (BITENCOURT, 2001) e informaes jornalsticas oferecendo-nos um panorama cinzento acerca da execuo de pena privativa de liberdade. Esta crise determina um descrdito quanto aos efeitos da aplicao de uma pena de priso (FOUCAULT, 2000, p. 131-132) e sugere um conjunto de motivos que comprovam a ineficcia desta: altas cifras de impunidade;

    * Mestre em Cincias Jurdicas pela Universidade Federal da Paraba (UFPB) e professor do Centro de Cincias Jurdicas da UFPB.

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    superpopulao carcerria; violaes de direitos fundamentais do homem e evases e motins. Entretanto, todo o momento de crise tem a possibilidade de determinar uma mudana paradigmtica capaz de trazer solues para os problemas apresentados por uma realidade anterior. Tais solues encontram-se no nvel das escolhas polticas e traduzem um compromisso com um projeto de sociedade que mediado pelo Estado, tendo por base a ordem jurdica. Desta forma, em virtude dos objetivos previstos pela ordem jurdica constitucional brasileira, deve-se acreditar que este compromisso seja com uma sociedade mais justa e mais fraterna (CF, art. 3., incisos I ao IV), mediado por um Estado Social e Democrtico de Direito, preservando-se a idia de supremacia da constituio e, com ela, da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1., inciso III), que um dos princpios fundamentais de todo este projeto poltico.

    O paradigma que ora vai ser apresentado exige uma interpretao do direito penal enquanto garantia (prpria do direito penal mnimo) (FERRAJOLI, 2002). Nesse sentido, para este modelo, o direito penal trata-se de uma garantia contra o arbtrio estatal e sua funo poltica (BRANDO, 2002, p. 43 e seg.) sobrepuja qualquer outro fim pretendido com o direito penal. A funo poltica do direito penal guarda um intenso compromisso com a 1 Gerao de Direitos do Homem, as declaraes de direitos individuais, referindo-se a idia de limitar o poder de punir do Estado. Logo, o paradigma de jurisdio penitenciria, que iremos expor, tem por fundamento maior oferecer mecanismos que buscam limitar o poder de punir do Estado.

    Compreendemos que o Estado possui tambm um compromisso com a segurana e a transformao da

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    sociedade (Estado Social). Porm, os compromissos assumidos atravs da 2 Gerao de Direitos do Homem, no podem ser utilizados como argumentos criminalizador e maximizador (PASCHOAL, 2003; ANDRADE, 2003) das intenes do direito penal (como foram nos Estados totalitrios nazofascistas e socialista sovitico). O Estado social e democrtico de direito no importa, em nome do princpio social (LUISI, 2003, p. 30-32), a eliminao da fora jurdica dos direitos individuais do homem, mas, contrariamente, em nome do princpio democrtico, reconhece os direitos das minorias (CANOTILHO, 2002, p. 327) e, entre elas, dos apenados, limitando a interveno repressiva do Estado e garantindo o acesso das minorias, inclusive a minoria apenada, a todos os direitos fundamentais do homem, sobretudo o direito de limitar o poder punitivo do Estado de acordo com a legalidade penal (PALAZZO, 1989, p. 43 e seg.).

    As transformaes sociais que devem ser executadas pelo Estado Social e Democrtico de Direito no podem buscar adaptar o indivduo sociedade, porm, em sentido contrrio, buscam adaptar o espao social para acolher o indivduo, respeitando seu fundamental direito de ser diferente, ou seja, de ser minoria (SCHMIDT, 2002, p. 50). O sentido de minoria aqui tomado refere-se aos padres polticos, culturais e de orientao moral encontrados numa sociedade, pois que, minoria no sentido econmico (que ser tomado mais adiante) refere-se classe social de maior concentrao das riquezas diante de uma ampla maioria excluda do acesso aos benefcios destas riquezas. Esta ampla maioria excluda das riquezas, a multido inquieta, pode muito bem ser classificada como minoria conforme os parmetros polticos e scio-culturais reveladores de sua

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    dependncia (CHOMSKY, 1999). Por isso, o conceito de minoria alcana uma idia qualitativa e no quantitativa fora do contexto econmico.

    2 O Tempo Como Pena

    A pena de priso trouxe a falsa idia de dominar o

    tempo. No mundo moderno, a noo de tempo crucial, especialmente para estrutura econmica da sociedade. Ao adquirir valor econmico, o tempo torna-se uma importante categoria da vida social moderna, da servir muito bem para determinao da pena. Esta viso do tempo como pena, todavia, faz com que o tempo da pena distancie-se do tempo do apenado, bem como do tempo que se realiza no espao social (MESSUTI, 2003, p. 19-50). Como o tempo da pena pensado de forma abstrata, em nome da idia de defesa da sociedade, e, sendo a sociedade um conceito perene (eterno), este tempo acaba desconhecendo as possibilidades da existncia humana, incluindo a perspectiva da finitude do homem. Assim, quando um juiz condena algum ao cumprimento de uma pena de vinte (20) anos, desconhece o magistrado se o apenado ir cumprir realmente esta pena, tendo em vista a possibilidade de fuga ou morte do preso. Tambm desconhece a possibilidade de mudanas no espao social que desautorizem a aplicao da pena ou que impliquem a desnecessidade de aplicao da pena. Por ltimo, a aplicao da pena no devolve a harmonia quebrada pela prtica da infrao, pois o crime conhecido como o registro de uma ao passada e no h como voltar no tempo. Como disse Agostinho de Hipona: Nossos anos

    vm para ir-se, no vm para ficar conosco; passam sobre

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    ns, nos pisam e nos fazem valer cada dia menos (Apud MESSUTI, 2003, p. 50).

    3 Evoluo Histrica da Pena Privativa de Liberdade

    A pena privativa de liberdade uma forma

    punitiva recente na histria das penas (FOUCAULT, 1999, p. 117 e seg.). Apesar da priso ser conhecida, desde os primrdios da humanidade, esta no possua carter punitivo, tratando-se de um simples mecanismo de custdia dos presos, durante o julgamento, como forma de se garantir, ao final, a aplicao da verdadeira pena, quase invariavelmente de morte ou corprea. A execuo de pena privativa de liberdade produto da ilustrao que ps fim aos espetculos punitivos executados em praa pblica denominados suplcios. Logo, o modelo punitivo centrado na pena de priso data dos fins do sculo XVIII e incio do sculo XIX, correspondendo a um perodo histrico que tem por volta de 200 anos (a contemporaneidade) c. Todavia, a idia contempornea da pena de priso foi moldada, ainda no medievo, enquanto forma eclesistica (BITENCOURT, 2001, p. 11-14) de se punir, da a origem do termo penitenciria, cujo significado o de local de penitncia (OLIVEIRA, 2001, p. 5). Tambm podemos vislumbrar, como origem da pena de priso, as famosas Casas de Correio holandesas e as Casas de Trabalho (Workhouses/Bridewells) britnicas, produtos da idade moderna.

    Os primeiros sistemas de execuo da pena privativa de liberdade (sistemas penitencirios) tm origem nos Estados Unidos da Amrica(BITENCOURT, 2001, p. 57-80) e foram denominados de sistema filadlfico ou pensilvnico (sistema celular dos Quackers)

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    (FOUCAULT, 1999, p. 201) e sistema auburniano ou silent system. No primeiro, um rigoroso isolamento celular era mantido durante toda a pena de priso e o indivduo ficava a merc de um tutor (Quacker), que o acompanhava promovendo estudos e leituras bblicas e esperando alcanar o arrependimento e a purificao espiritual do apenado. O segundo propiciava o trabalho comum durante o dia, mantendo a regra do isolamento celular apenas para noite. A disciplina deste sistema penitencirio exigia que o trabalho comum fosse executado totalmente em silncio (da a denominao de silent system) e tinha por finalidade formar operrios padres para o nascente capitalismo industrial do norte dos Estados Unidos (da a implantao deste sistema em Auburn no estado americano de Nova Iorque). (FOUCAULT, 1999, p. 200).

    Tanto o sistema filadlfico como o silent system foram duramente criticados pelos cientistas penitencirios (RODRIGUES, 2001). O primeiro, sistema filadlfico, em virtude da promoo de um isolamento absoluto do homem, contrrio a idia do homem como ser social, e por determinar uma doutrinao moral do apenado o que importa em violao do princpio de liberdade de orientao moral, desdobramento indispensvel da dignidade da pessoa humana. O segundo, sistema auburniano, por impedir o principal recurso do homem enquanto ser social, a comunicao, e, nesse sentido, transformar o seres humanos em simples coletividades amorfas, guiadas totalmente por um capataz que distribua as tarefas e acompanhava a execuo do trabalho, mediante ordens. Assim, o sistema auburniano deixa claro o seu compromisso com a disciplina da fbrica que, nos primrdios de sua organizao, exigiu a constituio de uma multido silenciosa de trabalhadores

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    submetida ordem de um nico gerente ou capataz. Legitima-se, portanto, atravs do silent system o domnio de um nico homem sobre uma multido, to necessrio para configurao de uma classe subalterna, conformista e, em virtude do bloqueio da comunicao, tambm individualista, ou seja, incapaz de lutar por direitos sociais e coletivos.

    Na Europa, os modelos penitencirios sempre guardaram a tica de que o criminoso era um ser anormal, anti-social e merecedor de um tratamento. A diferena entre estes modelos, basicamente, estava na qualidade e intensidade do tratamento, alguns sugerindo um modelo mdico de tratamento [Lombroso] (MOLINA, 2000, p. 190; LOMBROSO, 2001) e outros um tratamento ressocializador composto por anlise meritocrtica, envolvendo um jogo de estmulos e contra-estmulos (LISZT, 1995, p. 80-91). Para tais modelos, a classificao dos criminosos em categorias diferentes era essencial em virtude da determinao de um tratamento especfico a cada categoria de criminoso (Preveno Especial). As propostas de tratamento excluam os indivduos considerados incurveis, para quem era sugerida a inocuizao: pena de morte, pena de priso perptua, ou medida por tempo indeterminado (LISZT, 1995, p. 85-87).

    Os sistemas progressivos, ingls e irlands (BITENCOURT, 2001, p. 82-88), apesar de, historicamente, antecederem a consolidao do paradigma ressocializador (MOLINA, 2002, p. 467), foram, a partir da ideologia do tratamento de ressocializao, implementados com os parmetros deste, permitindo um retorno gradual do apenado sociedade de acordo com as avaliaes meritocrticas exercidas pelos agentes da execuo (diretores do estabelecimento prisional; conselhos

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    penitencirios; assistentes sociais e mdicos). Estes modelos so criticados por se fundamentarem num direito penal de autor, consubstanciando um sistema de execuo penal autoritrio e, muitas vezes, arquitetado por ideologias que ferem frontalmente o princpio da dignidade da pessoa humana, especialmente pela excluso moral que feita no momento em que se declara a anormalidade do apenado, impedindo-lhe a progresso do regime e desconsiderando a existncia de um direito fundamental: o direito de divergir. Nesse sentido, frise-se que o princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, desdobra-se em duas grandes protees concretas, a da integridade fsica da pessoa humana e a da sua integridade moral, ambas merecedoras de tratamento constitucional, no tocante aos apenados, pelo disposto no art. 5, inciso XLIX da Constituio Federal de 1988.

    4 Os Modelos de Ressocializao

    O paradigma da ressocializao permite observar

    dois modelos ressocializadores: mximo e mnimo (MOLINA, 2002, p. 474-475). Conforme o modelo mximo de ressocializao, o apenado deve ser submetido a um tratamento intenso para sua reinsero social, permeado de instrumentos meritocrticos de avaliao. Em geral, tais avaliaes fundamentam-se em discursos da rea mdica, administrativa ou social, que orientam a disciplina interna dos estabelecimentos penitencirios e as tcnicas utilizadas pelo tratamento ressocializador. O objetivo do tratamento ressocializador mximo a reforma moral do apenado (CARVALHO, 2001, p. 202-207). Portanto, conforme o que aqui foi exposto, um modelo mximo de ressocializao no est de acordo com a ordem jurdico

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    constitucional brasileira, pois a pena privativa de liberdade restringe, no Brasil, apenas a liberdade de locomoo, permanecendo vlidos para os presos todos os demais direitos fundamentais previstos nesta Carta Magna. Assim, o apenado preserva todas as demais liberdades, inclusive a liberdade de orientao moral (CARVALHO, 2001, p. 195), da o firme e iniludvel direito, por exemplo, de no se arrepender do crime praticado, sendo e permanecendo ele mesmo. Este direito consigna o princpio de integridade moral do apenado (dignidade da pessoa humana), invalidando, constitucionalmente, no Brasil, qualquer modelo ressocializador mximo.

    O presente trabalho prope um modelo ressocializador especial, centrado na neutralizao das causas do delito, visando apenas evitar a reincidncia, porm no buscando qualquer reforma moral do indivduo (programa vinculado a um modelo de ressocializao mnimo). Entende-se que o programa de ressocializao deve obter o consentimento do apenado (perfil democrtico de adeso), no se vinculando a qualquer parmetro ideolgico ou meritocrtico e no visando o arrependimento e a demonstrao de reforma moral, mas oferecendo condies sociais, culturais e econmicas para que seja evitada a reincidncia (proposta assistencial). Nesse sentido, age externamente ao sistema penitencirio buscando, na assistncia aos familiares dos detentos e na desarticulao dos mecanismos crimingenos (melhoria das condies sociais; desmantelamento de quadrilhas, bandos e crime organizado), um meio de possibilitar a reinsero social definitiva do apenado. A pena no vista com o carter repressivo e de tratamento, mas como um perodo de

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    tempo que o Estado d a si mesmo, vislumbrando um projeto de transformao social que garanta, mediante interveno social externa, condies de acolhimento do ru no meio social, evitando-se a reincidncia.

    O aspecto positivo deste modelo ressocializador mnimo que o apenado no visto como um sujeito anormal, mas como produto de toda uma realidade social que o Estado se compromete a transformar. Da, a ressocializao voltada para sociedade, para acolhida do apenado, trata-se de uma garantia de retorno social num espao amigo. O tempo da pena um tempo que o Estado d para si, em virtude da necessria desarticulao dos mecanismos crimingenos existentes no meio social (princpio de interveno social externa ao estabelecimento penitencirio). Assim, no um tempo voltado para reeducao do apenado, mas para criao de um novo espao social que permita o retorno do apenado ao convvio com a sociedade. No se tratando de tempo para avaliao da pena, mas de tempo para atuao social do Estado, os incidentes da execuo (progresso de regime; livramento condicional; sadas temporrias) devem ser encarados como um direito pblico subjetivo do apenado e no guardam qualquer relao com a insegurana pblica e a ineficincia das polticas sociais produzidas, reflexos da m atuao do Estado, incapaz de realizar as transformaes necessrias s quais se encontra normativamente vinculado. Alcanado o trmino da pena, ou incidente de execuo libertrio (como p,ex. O livramento condicional que garante o retorno do apenado ao convvio social), este deve ser colocado em liberdade, independente da avaliao dos riscos de reincidncia por parte dos rgos administrativos, pois quem deve minimizar tais riscos o prprio Estado.

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    Neste modelo, o juiz no volta sua ateno para o controle do perfil pessoal do apenado (este programa vinculado a um paradigma mnimo nega a utilizao de um direito penal de autor e a necessidade de reforma moral do apenado), mas sim procura fiscalizar as atividades estatais que se comprometem com a transformao social, possibilitando o retorno ao convvio da sociedade por parte de quem executa a pena. Portanto, o tempo da pena examinado sem prognoses para o apenado, de maneira que todos os direitos e benefcios da execuo devem ser oferecidos sem qualquer trauma pelo juiz, pois quem tem a tarefa de transformao social o Estado Administrao, cuja ineficincia no pode violar os direitos do apenado. Contrariamente, compete ao poder judicirio, conjuntamente com o Ministrio Pblico, tratando-se de guardies do Estado democrtico de direito (guardies do respeito s minorias) e dos preceitos constitucionais, preservarem a segurana jurdica da execuo penal, evitando o agravamento, ou modificao (no sentido de intensificar a represso) do contedo da sano penal por fato que de responsabilidade do Estado. Assim, no se pode negar o gozo por parte do apenado de direitos pblicos subjetivos (direito progresso de regime, direito substituio da pena privativa de liberdade por medida alternativa e direito ao livramento condicional) pelos seguintes e recorrentes motivos: falta da construo de estabelecimentos prisionais; ausncia de julgamento de processos em andamento (flagrante violao do principio constitucional da presuno de inocncia); ausncia de oferecimento da assistncia jurdica; ausncia da desarticulao externa do crime, especialmente os crimes que so cometidos em ao de quadrilha, bando ou crime organizado etc. Todas estas

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    so tarefas do Estado que no podem alterar ou limitar os direitos do apenado, pelo contrrio, so os direitos do apenado que limitam o poder punitivo do Estado. A hermenutica da lei penal no permite interpretao administrativa, porm, contrariamente, submete os interesses administrativos de segurana pblica aos preceitos e limites da legalidade penal, enquanto garantia dos direitos individuais e fundamentais do homem. O princpio constitucional da proporcionalidade no pode ser utilizado, em matria penal, para restringir direitos, mas to somente para concretiz-los.

    Infelizmente, a Lei de Execuo Penal brasileira (LEP) de 1984 assumiu um paradigma de ressocializao mximo, proposto pela Escola da Nova Defesa Social de Marc Ancel, que redimensiona os princpios da preveno especial, maximizando a importncia dos atores administrativos, mdicos e sociais na execuo penal (CARVALHO, 2001, p. 193 e seg.). O resultado que a LEP acaba possibilitando o vcio do controle penal de autor atravs de verdadeiras prticas inquisitoriais, como, por exemplo, so os exames das comisses tcnicas de classificao (triagem) para concesso dos direitos da execuo e progresso de regime, ou a aplicao de sanes por faltas disciplinares, estas, no tocante s faltas mdias e leves, muitas vezes em flagrante desrespeito ao princpio constitucional da legalidade penal (SCHMIDT, 2002, p. 68-69). Na verdade, a LEP, por ser uma legislao infraconstitucional e anterior a Constituio de 1988 merece ser completamente relida de acordo com o paradigma da supremacia da constituio e, portanto, no recepcionada naquilo que expressa ou tacitamente contraria os princpios constitucionais.

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    Compete aos juzes da execuo penal realizar uma hermenutica constitucional da LEP e no, por exemplo, simplesmente indeferir um pedido de progresso de regime porque o parecer da comisso tcnica de classificao indica que o apenado declara no ter se arrependido do crime (quando, ao contrrio, deve-se respeito ao direito de pensar diferente: integridade moral do apenado), bem como tambm no indeferir direitos da execuo, como o livramento condicional, porque o ru ainda responde a vrios outros processos, caso, inclusive, em que o indeferimento retrata um flagrante desrespeito ao princpio constitucional da presuno de inocncia1 (pense no caso, se o ru acabasse no sendo condenado em nenhum outro processo e tivesse indeferido o livramento condicional por motivo da existncia destes processos em andamento o dano seria irreversvel, pois o tempo indevido de pena executado no pode jamais ser devolvido ao apenado). Outrossim, no compete a um juiz penal ou de execuo penal exercitar futurologia (coisa prpria de muitos diagnsticos mdicos, administrativos, psicolgicos e de assistentes sociais em sede de execuo penal). Assim, por exemplo, as lombrosianas prognoses de que o delinqente no voltar a delinqir (FREITAS, 2002, p. 173 e seg.), que continuam no receiturio do Cdigo Penal brasileiro e da LEP, no foram recepcionadas pela atual Constituio, uma vez que no atendem ao critrio do direito penal do fato, fundamento do processo acusatrio, da ampla defesa e do contraditrio, caracterstica essencial do princpio constitucional do devido processo legal e da 1 Sobre os efeitos do art. 118, I da LEP diante da nova ordem constitucional, observe julgamento n 295.047.534 da 4 Cmara Criminal do TJRS. In: Crtica Execuo Penal: doutrina, jurisprudncia e projetos legislativos, 2002. p. 698-699.

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    democrtica instruo acusatria do processo que exige o fundamento do fato como pr-requisito do contraditrio e da ampla defesa. Nesse sentido, o juiz deve ainda agir sobre a mxima de d-me o fato, que eu lhe darei o direito, se no h fato (fato futuro no ainda fato), no existe fundamento para represso penal, pelo contrrio, prevalece o princpio da prevalncia da liberdade individual que constitucionalmente intangvel na ausncia do fundamento de fato. Para este modelo de anlise exige-se, simplesmente, que o juiz da execuo penal constitucionalize a LEP e no, como feito na maioria dos casos, ordinarize a Constituio (SCHMIDT, 2002, p. 76), desrespeitando, abusivamente, o princpio da supremacia constitucional.

    5 Proposta de Soluo para a Crise

    A LEP tentou empreender um modelo misto de

    gesto penitenciria: jurisdicional e administrativo. Entretanto, com o advento da Constituio de 1988, o modelo preponderante deve ser o jurisdicional (at porque, conforme o art. 5, XXXV da CF/88, a lei no excluir da apreciao do poder judicirio nenhuma leso ou ameaa a direito). Desta forma, o terreno est aberto para que a LEP seja reconstruda a partir da interpretao constitucional a ser dada pelos magistrados. Lembrando sempre que o juiz no aplica a lei, mas cria a lei para o caso concreto, por meio do exerccio da hermenutica jurdica.

    Torna-se desnecessrio retratar tambm a importncia de ampliar, ainda mais, o rol das infraes submetidas ao modelo penal alternativo como uma das solues da crise do sistema penitencirio nacional. Os crimes patrimoniais cometidos sem violncia e grave

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    ameaa pessoa deveriam permitir, em todas as hipteses, um controle penal alternativo, atravs de medidas que no impliquem a execuo de pena privativa de liberdade. Assim, evitaramos ainda mais ter que submeter algum a todas as mazelas do crcere que so por demais ofensivas a dignidade da pessoa humana.

    Entretanto, voltando particularmente para o problema da execuo de pena privativa de liberdade, deve-se tentar promover uma mudana na forma de se processar os incidentes de Execuo Penal, ou seja, o processo de execuo criminal, especialmente quando se trate da apurao de falta grave. Na realidade, a constituio ao prev o modelo acusatrio para o processo penal, abre espao para que ele tambm seja aplicado em sede de execuo. Portanto, somos favorveis a uma drstica reduo dos atores da execuo penal queles presentes no processo penal clssico: defesa; acusao e juiz2. Sendo assim, fica retirado o poder disciplinar (exceto na tomada de medidas preventivas) dos diretores de estabelecimentos penitencirios, cuja funo seria meramente informativa quanto aos incidentes, deixando a cargo eminentemente judicial a anlise das faltas disciplinares. Por sua vez, tambm nestes casos, o juiz de execuo no pode agir de ofcio, devendo, em virtude do recebimento das informaes por parte da autoridade

    2 Esta drstica reduo somente deve operar-se em sede de apurao de falta disciplinar. No tocante ao requerimento de direito pblico subjetivo do ru, a ampliao dos atores faz-se necessria, podendo qualquer dos atores administrativos, familiares e at mesmo qualquer do povo, intervir e reivindicar direitos para os apenados, sem restries para legitimidade destes requerimentos em virtude da condio peculiar do preso que permite a criao de um microsistema jurdico de defesa do seu direito bastante amplo e favorvel.

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    administrativa intimar o Ministrio Pblico que continua sendo o dominus litis da ao penal em sede de execuo3 (v. art. 129, I da CF/88). Trata-se de uma ao penal de execuo da pena e, logo, competncia do Ministrio Pblico que pode, aps a anlise do incidente que o administrador informa a existncia de falta disciplinar, pedir arquivamento, propor a no aplicao da sano, ou, por fim requerer a aplicao da sano administrativa. Ao juiz compete apenas aguardar a manifestao do rgo ministerial no podendo aplicar a sano por falta disciplinar de ofcio, ou mediante a simples intimao das partes para oferecerem pareceres, de acordo com o que atualmente ocorre. Esta forma de processar a falta disciplinar garantiria uma maior imparcialidade do juiz (princpio da no contaminao) em sede de execuo penal e um melhor controle e fiscalizao dos atores deste processo, tendo em vista sua reduo aos atores clssicos do modelo acusatrio (acusao; defesa e juiz). Por sua vez, este modelo processual determinaria o afastamento 3 Muitos contestam a existncia de um Processo de Execuo Criminal autnomo, em virtude da oficialidade do ato pelo qual o juiz determina o lugar de cumprimento da pena. Entretanto, hoje em dia, at mesmo este incio de forma oficial vem sendo contestado, alm de que, especialmente nas faltas disciplinares, persevera o princpio da presuno de inocncia, pois se trata de um fato completamente novo, garantindo-se a ampla defesa e o contraditrio. Obviamente, diante das repercusses trazidas pelas faltas graves, algumas redundando em modificao substancial da pena por uma mais intensa do que a que est originariamente prevista no Cdigo Penal, ou at mesmo um acrscimo na quantidade de pena a ser cumprida superior a de alguns delitos, no h como se negar, sob um parmetro garantista, a necessidade de reinterpretao constitucional do processo de execuo penal que passa a seguir os trmites normais previstos para o devido processo legal em matria penal, ou seja, o modelo acusatrio, impedindo-se a oficialidade do juiz, necessitando da apreciao do rgo ministerial para o processamento.

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    do discurso abstrato de segurana, por parte da administrao penitenciria, encerrando a discusso da matria de execuo penal na anlise de um fato concreto que a suposta falta disciplinar, o que traria muitas vantagens para defesa e uma melhoria sensvel das condies de execuo dos apenados.

    Tambm vedada a utilizao de sanes que no estejam expressamente previstas na LEP, do contrrio h sria violao do princpio da legalidade penal. Assim, os administradores penitencirios no podem, nem mesmo a ttulo preventivo, se servirem de mecanismos repressivos que no estejam dentre os previstos no art. 53 da LEP (advertncia verbal; repreenso; suspenso ou restrio de direitos; isolamento celular; incluso em regime disciplinar diferenciado). Por exemplo, algemar detentos nas grades das celas, torturas fsicas e morais, recolhimento celular despido e impedimento coletivo das visitas4, so hipteses no expressamente previstas em lei, logo no encontrando guarida no ordenamento jurdico constitucional e, inclusive, tipificando crimes na Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 4.898/65) e na Lei de Tortura (Lei n. 9.455/97).

    Por fim, vale lembrar que o princpio do Estado Social limitado pelo princpio democrtico do Estado de Direito. Assim, o argumento de segurana, que prprio do Estado Social (presente nos relatrios das comisses de

    4 vedado pelo art. 45, 3 da LEP qualquer sano de natureza coletiva. As medidas que assumam o carter de uma sano coletiva, restringindo coletivamente um direito indicado pela LEP, tambm estariam, por analogia, proibidas, como, por exemplo, vedaes indiscriminadas e coletivas ao direito de visitas sob o fundamento da segurana. Na verdade, o que se deve assegurar o direito atual, presente num artigo da lei, e no uma presuno de risco futurologicamente fundada pelo administrador.

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    classificao e nas avaliaes mdicas e sociais da execuo), nunca poder determinar a supresso ou a no concretizao de um direito individual, previsto na constituio de forma declarada e concreta. Nem mesmo a ttulo do juzo de proporcionalidade, tendo em vista que o valor administrativo de segurana no um juzo presente e concreto, mas uma prognose abstrata (mdica, sociolgica ou administrativa), pode-se afastar o gozo de um direito individual elucidado de forma clara e objetiva na Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Vale sempre lembrar, que o discurso de segurana um exerccio de futurologia e o discurso dos direitos fundamentais embasado numa clara declarao de direitos presente no texto da atual Constituio. A verdadeira segurana que devemos preservar, no a segurana do juzo do administrador, mas a segurana jurdica do respeito ao texto constitucional, evitando que qualquer pessoa sofra restries em virtude de uma prognose administrativa ou judicial cujo tempo futuro demonstre sua completa irrealizao, bem como a completa impropriedade da medida restritiva tomada, s a se percebendo a injustia das restries impostas a um indivduo submetido de forma antecipada s conseqncias da malha penal.

    A dicotomia direito penal mnimo versus direito social mximo, no se resolve pela excluso do indivduo, mas, contrariamente, pela sua incluso no tpico de defesa da sociedade atravs do impedimento da ao repressiva do Estado (SCHMIDT, 2002, p. 90). Defender a sociedade defender as pessoas que a compem de forma concreta e visvel e no defender uma abstrao intangvel da sociedade: a sociedade criada pelo discurso do juiz, do mdico, do assistente social ou do administrador

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    penitencirio. Assim, a defesa do apenado contra os desmandos e o autoritarismo do Estado, retrata a verdadeira defesa da sociedade e no um discurso falacioso (de saber poder) em prol de uma entidade social desconhecida e abstrata elaborada para benefcio de alguns poucos e o sofrimento de muitos. Nesse sentido, vale repetir que a verdadeira e nica funo possvel ao Direito Penal a de limitar o poder de punir do Estado.

    6 Reflexo Acerca do Modelo Garantista na Execuo da Pena

    bastante esclarecedor o pronunciamento de Salo

    de Carvalho, concordando com Luigi Ferrajoli acerca da violncia da pena:

    A histria das penas tornou-se, sem dvida, mais horrenda e infamante para a humanidade, de que a prpria histria dos delitos, porque as violncias produzidas pelos delitos so menores que as produzidas pelas penas. Enquanto o delito tende a ser uma violncia ocasional, impulsiva e em alguns casos, obrigatria, a violncia da pena sempre programada, consciente e organizada por muitos contra um. Logo, contrariamente a idia de defesa social, no exagerado afirmar que o conjunto de penas cominadas na histria produziu para o gnero humano um custo de sangue, de vidas e de humilhaes incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos

    os delitos(CARVALHO, 2001, p. 207).

    O significado da pena de priso seja como local de

    isolamento e penitncia, ou, seja como lugar de tratamento

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    e trabalho, guardou sempre um fundamento preponderante esclarecido pelo princpio do less eligibility (NEDER, 2004, p. 14), ou seja, a idia de que o ambiente prisional deve garantir ao apenado uma existncia inferior quela que propiciada para as classes mais subalternas de uma sociedade. Segundo os estudiosos deste princpio, caso o sistema punitivo oferecesse condies para o apenado superiores s condies em que vivem as classes mais pobres de uma sociedade, o efeito de intimidao da pena restaria comprometido. Assim, por exemplo, as Casas de Trabalho surgiram num momento em que a escassez da mo de obra determinava a prtica de altos salrios e um instante de prosperidade da classe trabalhadora, tudo isto nos primeiros sculos da modernidade (XVI e XVII) (RUSCHE, 2004, p. 43-58). Portanto, um modelo punitivo que forasse ao trabalho no remunerado e garantisse mo de obra barata para capitalistas em ascenso parecia adequado e guardava em si o princpio do less eligibility: o tratamento dado ao apenado, em virtude da explorao gratuita de seu trabalho, era inferior ao das classes trabalhadoras assalariadas.

    Logicamente, o princpio do less eligibility permite tambm analisar as razes da atual crise do sistema penitencirio brasileiro, basta fixar o olhar sobre a questo social no Brasil para que possamos perceber os reais motivos da degradao dos estabelecimentos penitencirios. Trata-se de mais uma forma sutil e cruel de legitimao do controle social exercido por uma minoria (aqui no sentido econmico) prspera sobre uma multido inquieta e faminta, os excludos dos benefcios da prosperidade econmica, avisando que a situao deles pode vir a ficar bem pior dentro de um ftido crcere

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    brasileiro, por motivo da, muitas vezes, necessria prtica de um crime como meio de inovao5 (uso de recurso ilegtimo pela ordem social e jurdica): a prtica de um delito para atingir as condies mnimas de sobrevivncia (crimes famlicos) ou a prtica de um crime na perspectiva de incluso social e prosperidade (crimes funcionais de inovao). Sendo assim, talvez no precisssemos de tantos crceres se desenvolvssemos polticas sociais srias, pois nosso povo demonstra-se conservador e no rebelde, ou seja, age no sentido dos valores sociais impostos pela identidade social assumida e no no sentido de rebelio e desconstruo dos valores sociais inerentes a uma sociedade capitalista ocidental como a nossa.

    5 Na perspectiva sociolgica de MERTON, o comportamento de inovao no busca uma mudana dos valores sociais, mas, pelo contrrio, termina afirmando estes valores, pois compreende a escassez dos recursos legtimos para alcanar os fins culturais socialmente almejados, valendo-se de meios alternativos inidneos. Assim sendo, numa sociedade capitalista, onde vigora os valores do cidado consumidor e da propriedade, ou seja, o valor do ser para ter e do ter em essncia, completamente normal, diante da escassez de meios legtimos para alcanar tais virtudes sociais, que sejam praticados comportamentos de inovao, fazendo com que diversos indivduos se sirvam de meios alternativos ilegtimos para chegarem aos fins sociais pretendidos. No h na inovao uma discordncia com os fins sociais, mas uma busca destes fins por meios ilegtimos (roubos; furtos; trfico etc...). Desta forma, os comportamentos de inovao no so rebeldes, mas so conservadores quanto aos fins culturais de uma sociedade. Da tambm as crticas ao paradigma da pena enquanto instrumento de ressocializao, pois quem pratica crimes por meio de inovao no precisa ser ressocializado, apenas necessita que sejam ampliados os canais de acesso para servir-se dos meios legtimos no sentido de alcanar os valores sociais que so comuns a todos. Aqui, o erro est na incapacidade do sistema social e econmico fornecer os meios legtimos para integrao dos valores sociais.

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    No se pode separar pessoa e sociedade como se fossem conceitos completamente autnomos (ELIAS, 1994). Somente existe sociedade, porque existem as pessoas que a integram. Logo, no vlido um discurso de defesa social que negue os direitos fundamentais da pessoa humana, pois estaria negando a razo da prpria sociedade e, portanto, tratar-se-ia no de um discurso em defesa da sociedade, mas do interesse de alguns. Sobre o modelo de um Estado Social e Democrtico de Direito as possibilidades sero sempre de ampliao de direitos e cidadania, reconhecendo uma grande variedade de direitos (individuais e coletivos) e de sujeitos de direitos. Portanto, o discurso de segurana, embasado numa equivocada noo do Estado Social, restringindo direitos individuais fundamentais, trata-se, no de um discurso em defesa da sociedade, mas do interesse de alguns que dominam o cenrio poltico, sejam: os capitalistas neoliberais contemporneos, os militares soviticos de outrora, ou atuais autoridades de execuo penal brasileiras, comprometidas, ainda que inconscientemente, com o status quo de um sistema penitencirio desumano que se esconde por traz de um sofisma muito bem elaborado: a iluso da segurana pblica O problema que a abstrao do discurso da segurana acaba neutralizando a conscincia de nossa humanidade e finitude e passamos a agir de forma quase que inconsciente e inconseqente, banalizando, burocraticamente o mal, acreditando que, em nome da segurana pblica, temos o poder absoluto para destruir as vidas humanas dos apenados condenando-os a um tempo definido apenas em um pedao de papel, mas capaz de causar, no tempo real da condenao, a degradao de seu suporte fsico e moral. Na realidade, quando observamos

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    as taxas de impunidade6, somadas aos erros judiciais capazes de gerar a condenao de inocentes, percebemos que no alteramos quase nada do cenrio social dentro desta nossa nsia punitiva. Resta-nos, portanto, convencer-se de que a funo do direito penal no punir, mas, pelo contrrio, limitar o poder de punir do Estado, ou seja, a perspectiva que sugerida pelo modelo penal garantista. Somente dentro desta perspectiva encontraremos legitimidade para o discurso da dogmtica jurdico penal.

    A banalidade do mal foi um tema discutido por Hanna Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalm (ARENDT, 1999). Infelizmente, as autoridades brasileiras no se deram ainda conta da banalizao do mal que est reproduzida nos crceres do Brasil. Na obra Eichmann em Jerusalm, Hannah Arendt revela o quanto a incapacidade de reflexo, ou seja a incapacidade de construir fora dos parmetros legais e burocrticos desenvolvidos por um Estado, no caso tratado pelo livro o Estado totalitrio Nazista, pode abstrair a humanidade das pessoas e provocar imensas tragdias em nome de discursos abstratos. Eichmann, comandante nazista que executou e organizou planos de deportao e extermnio dos judeus, acabou condenado morte, porm aterrador observar que, mesmo diante de um tribunal formado por judeus,

    6 No Brasil, no tocante ao crime de homicdio, a taxa de impunidade beira os 80 %, ou seja, nunca conseguimos punir todos os assassinos que continuam circulando livremente em nosso meio social. bom percebermos que mesmo pases como os Estados Unidos, onde as cifras da impunidade sofreram uma queda nos ltimos anos, as cifras da impunidade beiram os 60%, da questionar-se muito os custos do encarceramento em massa que vem sendo efetivado pela adoo da poltica de tolerncia zero.

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    em Jerusalm, ele demonstrava no compreender os motivos pelos quais estava sendo julgado, ainda que estivesse diante dos relatos de sofrimento e terror das vtimas de aes por ele comandadas estas imagens e documentos deste seu terrvel passado eram insuficientes para faz-lo comover-se do mal que havia causado. Para Eichmann, tudo o que havia feito durante a guerra era legal e legtimo, pois estava cumprindo ordens vlidas e, tratando-se de um funcionrio exemplar do Estado Alemo, exerceu seu papel de servidor do Estado, cumpridor fiel da lei e da ordem legitimada pelo regime poltico vigente, restando, portanto, tudo o que fez durante a guerra perfeitamente legal e justificado.

    Em outra excelente obra, intitulada a Lei dos Juzes, Franois Rigaux pondera que a magistratura alem concedeu ao regime nazista toda a legitimidade de que ele precisava para realizar as atrocidades que foram perpetradas. Nesse sentido, Rigaux revela com detalhes as jurisprudncias que legitimaram desde os atentados da Noite dos Cristais, passando pelas leis de Nuremberg e, por fim, as solues de deportao e extermnio do povo judeu (RIGAUX, 2000, p. 107-147). O relato contundente e demonstra que tudo foi feito sem parcimnias, no se tratando de decises a que foram forados a tomar os magistrados, mas de uma completa adeso ao regime nazista. O princpio contido na Lei dos Juzes aterrador e denuncia o Poder Judicirio enquanto um rinco aristocrtico incapaz de conter os avanos de um Estado Autoritrio, antes servindo de escudo e dando suporte a expanso do autoritarismo estatal. Nesse sentido, as decises judiciais tomavam por base a equivalncia das foras no momento histrico do Nazismo e no os ditames constitucionais da democrtica constituio de Weimar,

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    que ainda estava em vigor. Na verdade, teria consubstanciado uma posio vlida de resistncia por parte da magistratura alem, a adeso aos pressupostos formais da Teoria Pura do Direito kelseniano, ou seja, o respeito judicial ao pice da pirmide normativa de Kelsen: a Constituio. A simples observncia da Constituio de Weimar nas decises judiciais teria evitado, ou, ao menos, tornado imediatamente pblicos e questionveis os males mais horrendos causados pelo nazismo. Os juzes do Nazismo no eram kelsenianos, como querem afirmar alguns estudiosos superficiais do fenmeno do totalitarismo alemo, mas schmittianos, ou porque no dizer, propriamente nazistas, autoridades que aderiram ao discurso severo da segurana e conservao do Estado em detrimento das garantias individuais da pessoa humana.

    7 Consideraes Finais

    No Brasil atual, exatamente o desvirtuamento da proposta de interpretao do direito com base nos preceitos constitucionais, proposta que tem base no modelo garantista, que agrava a crise do Sistema Penitencirio, tendo em vista que, fundamentando-se numa interpretao da lei ordinria (a LEP), sem observar a preservao dos valores constitucionais inalienveis e as convenes internacionais de direitos humanos, elevados ao patamar de normas constitucionais, as autoridades responsveis pela administrao penitenciria mantm pessoas detidas em pssimas condies e do ordens que violam a dignidade da pessoa humana, argumentando estas decises com base numa abstrata e intangvel idia de segurana da sociedade. A incapacidade para pensar pode transformar homens comuns e aparentemente

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    inofensivos em cruis personagens da histria. Ocorreu com Eichmann, que por ausncia de uma reflexo crtica e tica no se comoveu diante da tragdia de suas vtimas. Ocorre ainda hoje na crise pela qual passa o Sistema Penitencirio brasileiro e mundial: juzes, promotores e diretores de estabelecimentos penitencirios no se comovem diante da tragdia a que submetem os presos, porque no conseguem pensar suas decises conforme o paradigma constitucional do Estado Democrtico de Direito e continuam utilizando-se do hobbesiano e autoritrio modelo do Estado Segurana. Na crise do sistema penitencirio, nos encontramos, mais uma vez, diante da banalidade do mal e da expanso do autoritarismo estatal. Esperemos que uma atitude crtica das autoridades envolvidas nesta crise, especialmente da magistratura, barre a expanso da poltica repressiva do Estado e dirija os esforos do Poder Pblico para polticas sociais verdadeiramente democrticas e inclusivas e no para o desenvolvimento de um Estado Penitncia.

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    Social and democratic state of law and penitentiary jurisdiction: a new paradigm of execution of liberty private penalty. ABSTRACT. The present work deals with the crisis of the penitentiary system through the analysis of the role of penitentiary jurisdiction as an integral part and reproducer of this crisis. However, the work is not limited to revealing the problem, but also to suggest a model of penitentiary jurisdiction, according to the paradigm of the Social and Democratic State of Law, more capable of promoting a constitutionalization of the execution of liberty private penalty in Brazil and, consequently, the realization of the respect towards human rights. Keywords: Penitentiary jurisdiction. Penitentiary system. Penal Execution.

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