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1)Desinstitucionalização, inclusão e proteção social—Programa de Volta para Casa Gina Ferreira 1 Repensando a cidade: articulação intersetorial no território. Como política contemporânea em saúde mental, a Reforma Psiquiátrica vem, ao longo do processo de transformação da assistência, centrando esforços na perspectiva de reverter o modelo hospitalocentrico. Para isso é criada uma rede de equipamentos e recursos não manicomiais na rede pública de assistência à saúde, com ênfase na inserção social dos pacientes, o que permite visualizar a desconstrução do manicômio. O processo estratégico para o desmonte da cultura institucional fundamenta-se no conceito de desinstitucionalização de Rotelli, aqui sintetizado em: “(...) um trabalho prático de transformação que, a começar pelo manicômio, desmonta a solução institucional existente para desmontar (e remontar) o problema (2001: 29) 2 Devemos acreditar que, quando os serviços têm suas práticas assistenciais baseadas na desinstitucionalização, isso significa ir além do transcurso: instituição asilar- novos serviços não manicomiais. A desinstitucionalização é, antes de tudo, um exercício político-ideológico voltado para a desconstrução da lógica manicomial, e concretizado em ações que potencializam os grupos vulneráveis cujos direitos de cidadania foram restringidos. É resgatar o direito à singularidade, à expressão, à participação no coletivo e aos direitos constitucionais. Para que possamos dizer que efetivamos práticas de desinstitucionalização nos novos serviços, temos que romper com o jogo de poder predeterminado no hospital psiquiátrico: uma estrutura hierárquica, na qual a equipe deve responder ao “desejo” da instituição e onde a vida é cronometrada longe dos apelos individuais dos pacientes e de suas singularidades. Esta estratégia de poder acarreta cisão entre o dentro e o fora do hospital, entre a equipe técnica de um lado (com suas especialidades bem marcadas) e de outro o paciente. Como conseqüência, impede a visão real do sofrimento, propiciando ambigüidades, traçando a relação com as imagens contraditórias que temos com o “sujeito em sofrimento/sujeito partido.” Cria-se um ambiente autoritário e repressor cuja resposta é a violência. O estatuto de periculosidade é destinado ao louco pelas instituições, que desejam desviar a atenção das agressões causadas pela ambiência estabelecida..O medo talvez seja o único poder exercido, seja pela agitação, pelo silêncio ou pela imobilidade. Sem rompermos com esse jogo estaremos criando, nos novos serviços, réplicas de espaços manicomiais. Política de Inclusão Social: De Volta Para Casa? A 8ª Constituição do Brasil foi reconhecida como Constituição Cidadã por sua importância capital ao dar prioridade ás políticas sociais, em especial à área de saúde pública, legitimando a proteção social inclusiva, universal, em todo o país. Uma vez que o campo da saúde, em distintos momentos, é organizado de acordo com interesses e necessidades referidas ao campo social, observamos que tanto o SUS, incorporado na constituição e reconhecido como significante sistema de proteção social quanto a Reforma Psiquiátrica, ambos inseridos no contexto democrático, exigem em sua planificação metodologia pautada na integralidade e na equidade, tendo como base a 1 Meste em Psicologia Social –UERJ Doutoranda de Psicologia Social – Universidade de Barcelona Coordenadora Projeto Cinema na Praça/Intervenção na Cultura - Petrobrás 2 Rotelli,F.Desistitucionalização:Uma Outra Via:A Reforma Psiquiátrica Italiana no Contextoda Europa Oci- Dental e dos “países avançados” In Nicácio F. (Org.) Desistitucionalização. Ed.Hucitec. SP

16Desinstitucionaliza+º+úo, inclus+úo e prote+º+úo social--Programa depvcginaferreira

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  • 1)Desinstitucionalizao, incluso e proteo socialPrograma de Volta para Casa Gina Ferreira1 Repensando a cidade: articulao intersetorial no territrio.

    Como poltica contempornea em sade mental, a Reforma Psiquitrica vem, ao longo do processo de transformao da assistncia, centrando esforos na perspectiva de reverter o modelo hospitalocentrico. Para isso criada uma rede de equipamentos e recursos no manicomiais na rede pblica de assistncia sade, com nfase na insero social dos pacientes, o que permite visualizar a desconstruo do manicmio. O processo estratgico para o desmonte da cultura institucional fundamenta-se no conceito de desinstitucionalizao de Rotelli, aqui sintetizado em: (...) um trabalho prtico de transformao que, a comear pelo manicmio, desmonta a soluo institucional existente para desmontar (e remontar) o problema (2001: 29)2 Devemos acreditar que, quando os servios tm suas prticas assistenciais baseadas na desinstitucionalizao, isso significa ir alm do transcurso: instituio asilar- novos servios no manicomiais. A desinstitucionalizao , antes de tudo, um exerccio poltico-ideolgico voltado para a desconstruo da lgica manicomial, e concretizado em aes que potencializam os grupos vulnerveis cujos direitos de cidadania foram restringidos. resgatar o direito singularidade, expresso, participao no coletivo e aos direitos constitucionais. Para que possamos dizer que efetivamos prticas de desinstitucionalizao nos novos servios, temos que romper com o jogo de poder predeterminado no hospital psiquitrico: uma estrutura hierrquica, na qual a equipe deve responder ao desejo da instituio e onde a vida cronometrada longe dos apelos individuais dos pacientes e de suas singularidades. Esta estratgia de poder acarreta ciso entre o dentro e o fora do hospital, entre a equipe tcnica de um lado (com suas especialidades bem marcadas) e de outro o paciente. Como conseqncia, impede a viso real do sofrimento, propiciando ambigidades, traando a relao com as imagens contraditrias que temos com o sujeito em sofrimento/sujeito partido. Cria-se um ambiente autoritrio e repressor cuja resposta a violncia. O estatuto de periculosidade destinado ao louco pelas instituies, que desejam desviar a ateno das agresses causadas pela ambincia estabelecida..O medo talvez seja o nico poder exercido, seja pela agitao, pelo silncio ou pela imobilidade. Sem rompermos com esse jogo estaremos criando, nos novos servios, rplicas de espaos manicomiais. Poltica de Incluso Social: De Volta Para Casa? A 8 Constituio do Brasil foi reconhecida como Constituio Cidad por sua importncia capital ao dar prioridade s polticas sociais, em especial rea de sade pblica, legitimando a proteo social inclusiva, universal, em todo o pas. Uma vez que o campo da sade, em distintos momentos, organizado de acordo com interesses e necessidades referidas ao campo social, observamos que tanto o SUS, incorporado na constituio e reconhecido como significante sistema de proteo social quanto a Reforma Psiquitrica, ambos inseridos no contexto democrtico, exigem em sua planificao metodologia pautada na integralidade e na equidade, tendo como base a

    1 Meste em Psicologia Social UERJ Doutoranda de Psicologia Social Universidade de Barcelona Coordenadora Projeto Cinema na Praa/Interveno na Cultura - Petrobrs 2 Rotelli,F.Desistitucionalizao:Uma Outra Via:A Reforma Psiquitrica Italiana no Contextoda Europa Oci- Dental e dos pases avanados In Niccio F. (Org.) Desistitucionalizao. Ed.Hucitec. SP

  • mesma poltica social inclusiva. Poderamos, ento, entender o programa De Volta Pra Casa aqui analisado, como um contrato de incluso significativo. Criado pela a Lei Federal 10.708 de 2003, este programa pretende evitar a desigualdade social, e conta com suporte de incentivo financeiro ,como facilitador do retorno ao meio familiar e social de egressos de hospitais psiquitricos. O beneficio significa uma bolsa mensal, com durao de at dois anos, podendo ser renovado. A importncia dessa lei agenciar metas de proteo social, oferecendo ao beneficirio, garantias de insero na rede de cuidados local e nas aes de integrao social por parte da famlia e da equipe. Deixa claro, que: como medida de investimento, o benefcio poder ser suspenso caso as aes sejam insuficientes para impedir o retorno do usurio internao hospitalar. Em 2005, a partir do programa Mutires da Cidadana, garantiu-se a possibilidade de registro de identificao tardia para pessoas com institucionalizao prolongada. A iniciativa de adeso ao Programa De Volta pra Casa, depende das equipes dos servios comprometidos com a poltica de integrao social. Residncias Teraputicas e Territrio : A Autonomia dos Usurios Os dispositivos substitutivos so criados em oposio ao manicmio. Sejam CAPS, Clubes de Lazer ou Residncias Teraputicas, devem oferecer instrumentos diversos que possibilitem a construo de um cotidiano que propicie qualidade de vida. Devem, ainda, possuir um conjunto de estratgias e de cuidados emancipadores que transformem o corpo-sujeito-asilado no corpo-sujeito-autnomo. Para isso necessrio tomar como base o acolhimento criado a partir de uma comunicao integral escuta atenciosa, onde o vnculo seja estabelecido pela confiana recproca e, acima de tudo, no interesse genuno pelo bem estar do usurio, garantido o compromisso igualitrio assegurado pelo tratamento. Partindo-se dessas premissas, so construdas as bases para a desinstitucionalizao: a autonomia dos usurios e a transformao cultural da sociedade que os acolhe. Os novos servios, sobretudo as residncias teraputicas, aparecem como marco importante no processo de transformao da assistncia, tendo como diretriz o desenvolvimento de atividades que permitam maior circulao dos moradores pela cidade. As residncias tornam-se espaos de integrao, canal de fora e ponto de partida para a reconstruo das relaes dos usurios no bairro, na cidade e no mundo. nessa perspectiva que se consolida e desenvolve,o principio fundamental para a lgica da Reforma Psiquitrica: restabelecer o conceito de autonomia, presente na concepo de praticas democrticas, ou seja, pessoas livres, com iguais ofertas de oportunidades, que possam administrar as prprias vidas e decidir o prprio destino. H divergncias conceituais entre os tericos da democracia, no entanto sobre a autonomia que convergem as mltiplas vises tericas. Segundo Held(1997:186)3 a criao das melhores circunstancias para que os cidados possam desenvolver sua natureza e expressar suas diversas qualidades. Autonomia no uma meta fixa nem normatizao, mas significa colocar-se em movimento ,requerendo a nossa participao em graus variados e eliminando obstculos que impeam a reconstruo da habilidade social do usurio. necessrio criar possibilidades para que este adquira o domnio sobre interesses que lhe so prprios, se apoderando dos recursos necessrios e identificando no entorno referncias culturais garantidoras da autonomia possvel a cada um. Como reforo destas afirmaes , apresentamos a efetivao das aes empreendidas,quando da implementao do Lar Abrigado do Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, em 1997, situado em espao prprio . fora dos muros hospitalares. Mostraremos como a

    3 Held,D. A Democracia e a Ordem Global.Barcelona Paids1997

  • prtica era voltada para a autonomia dos moradores, na medida em que ia se organizando o dia a dia na casa: No incio do processo, para planejar o funcionamento da casa,, teramos que primeiro conhecer o local e observar como as relaes se desenvolviam, principalmente entre os moradores e o lado de fora. A partir da, montaramos as estratgias de ao. (...) Sabamos que deveramos romper com algumas regras da rotina hospitalar, como hora para o caf da manh, hora para o almoo, para o banho e para dormir. (...). Uma vez que cada morador teria atividades fora da casa, em horrios diferentes, sentimos a necessidade de escolher uma refeio para ser feita juntos fortalecendo as relaes entre todos os envolvidos no projeto.. Foi escolhido o horrio do jantar, sem interferir em qualquer programa ou compromisso que quisessem ter depois. No exerccio dirio foram surgindo atividades diferentes. Caminhar no Aterro, ir na praia do Leme e do Flamengo, andar no calado de Ipanema, freqentar os jardins da Casa Rui Barbosa. Oferecemos natao, tai-chi-chuan ou Yoga., vendo quem iria se engajar. (...) Alguns gostavam de exerccios fsicos, e era importante adequ-los aos recursos do bairro, aos seus desejos e necessidades: aulas de alongamento, dana de salo (comeamos a conseguir bolsas aqui e ali). Outras necessidades foram se incorporando de acordo com a solicitao dos prprios moradores, do que eles descobriam no bairro e suas aspiraes. Assim, um deles foi matriculado como ouvinte no curso de Historia da UFRJ, que depois abandonou e preferiu freqentar um curso do Parque Laje. Um outro quis retornar ao primeiro grau depois de 30 anos sem estudar e foi matriculado no curso noturno da escola publica, que freqenta at hoje. Surge a idia do Grupo de Estudos(...): reunir amigos numa noite de quinta-feira, convidar pessoas prontas a discutir com todos algum tema da experincia humana. Com a necessidade de terem um trabalho, ou eram matriculados em cursos profissionalizantes ou procuravam alternativas de trabalho no prprio bairro. Neste ponto aparece a idia de formar uma papelaria. Estabelece-se em um quiosque, localizado em via publica, ao lado do metr de Botafogo. L , so vendidas caixas, blocos e cadernos confeccionados num mutiro da equipe. Alm de obter algum retorno financeiro para a casa e seus moradores, aquele corredor comercial, com 50 quiosques, e circulao de pessoas de todos os lugares da cidade, faz com que as diferenas se diluam. Esse cotidiano, com todas estas variveis na ateno e na gesto do tempo e espao, pelos moradores do Lar, se constitui , para alm de instrumento tcnico, como resgate de direitos. 4Diante de tal autonomia nos perguntvamos qual seria o risco..Partamos do princpio de que as questes da vida devem ser colocadas acima da doena e de que so necessrias condies polticas e sociais para dotar de poder uma pessoa. Sabamos da importncia da participao ativa em estruturas intermediarias sociais (organizaes comunitrias, associaes de moradores ) e que o paradigma da nova assistncia em sade mental, enfatiza o territrio como instrumento de reabilitao e espao de sociabilidade. Assim as aes que durante o processo de ateno psicossocial, envolvem a participao da comunidade, passam a ser utilizadas como canais de interlocuo, estimulando a participao popular na organizao dos novos equipamentos , atravs da freqncia dos profissionais e usurios em Conselhos de Sade, Associaes de Moradores, Associaes Culturais.Para manter o plano de trabalho para o Lar Abrigado era importante evitar que os moradores no retornassem ao hospital, sob nenhum pretexto, a no ser para o ambulatrio psiquitrico, que j seria o bastante. Para a concretizao do projeto era preciso, mapear os recursos da comunidade e assim implementar algumas aes inerentes ao projeto, como relatado acima fortalecendo rede de relaes cooperadoras. Era a formao do nosso capital social, o que s se torna possvel , com o planejamento do servio fundamentado tanto no trabalho de equipe, como em mecanismos de coordenao que assegurem a continuidade desta 4 Ferreira G.- Conversando em Casa Ed.7 Letras. 2001 -RJ

  • proposta. Esta com certeza um caminho possvel em direo ao que buscamos: uma sociedade justa e igualitria para todos.

    2)Desinstitucionalizao, incluso e proteo social : Programa Cinema na Praa Derrubando Muros: transformando a cultura

    A desconstruo de uma instituio total invariavelmente excludente a pea capital de uma poltica de sade mental digna e democrtica, cujo alcance bem maior do que o espao dos servios. Resignificar conceitos para que ocorra de fato uma mudana nos valores indutores da segregao, via de regra intransigentes e inflexveis, questionar os nossos princpios ticos (nossas ambigidades) para que se possa perceber provveis divergncias existentes entre a teoria e a prtica. O desafio da Reforma Psiquitrica transformar mentalidades e cultura.. Para fortalecer estratgias polticas de incluso, dos considerados socialmente desiguais, necessria uma verdadeira revoluo social, pautada em aes coletivas, em abrir a cidade, em derrubar preconceitos arcaicos e conservadores, construindo uma rede de tecnologias sociais includentes dentro das polticas pblicas. imprescindvel, neste sentido, firmar parcerias com instituies da sociedade civil como as Associaes de Usurios e Familiares, Associaes de Bairro, Movimentos Populares, entre outros, que tenham representao e participem dos espaos pblicos e privados, capazes de interferirem de forma transformadora no espao das polticas pblicas, para a construo de um aparato que de sustentabilidade Reforma Psiquitrica.

    Confirmando essas assertivas, oportuno apresentar o projeto Cinema na Praa/Interveno na Cultura, estratgia voltada para facilitar a insero social de pacientes de longa permanncia, originrios de um macro hospital psiquitrico da rede conveniada, em vias de fechamento, em meados de 2004.Neste cenrio, encontramos uma srie de questes sociais, como: o desemprego, a baixa renda e a desigualdade, decorrentes da falta de investimento em polticas sociais e cujos efeitos se fazem sentir, sobretudo a rea de sade mental. Estes indicadores de carncias sociais so capazes de alterar gravemente o bem estar de uma comunidade, mudar seu perfil e criar cultura de excluso absoluta, tal como aconteceu no Municpio de Paracambi localizado na regio metropolitana do Estado do Rio de Janeiro.

    O municpio de Paracambi, localizado na Regio Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro tem 43.011 habitantes ( IBGE 2001). Quanto a sua economia, sofreu grande impacto com a falncia, quase que simultnea, de grandes empresas que movimentavam a economia local, nos anos 80, passando a dispor de poucos recursos oramentrios,dada a queda nas arrecadaes de tributos.

    Com a falncia industrial no municpio, coincidentemente surge o grande manicmio Casa de Sade Dr. Eiras. A entidade passa a ser o plo empregador local e se constitui no imaginrio popular como centro de convergncia econmica municipal, pois empregos geram circulao monetria e, portanto desenvolvimento do comrcio e servios.. A entidade procurada tanto pelos que buscam empregos quanto por aqueles que esperam ter acesso a possibilidade de benefcios, atravs do diagnostico psiquitrico. A cidade transfere o seu centro de poder real e simblico para a unidade hospitalar.. As festas cvicas e culturais da localidade passaram a ser realizadas em seu espao interno e no mais em praas pblicas. No mesmo perodo, os quatro cinemas locais, equipamentos usados como fonte de lazer, no conseguem subsistir, indo a falncia at seu fechamento A Casa de Sade passa a nortear o modo de vida da cidade imprimindo um outro olhar sobre si prpria e sobre: o hospcio, que passa a ser o seu retrato abstrato. Este fato pode

  • ser apreendido pelo conceito de estrutura, semelhante que Max Weber5 chama de cidade principado, ou seja, uma cidade onde a capacidade produtiva de seus habitantes depende direta ou indiretamente do poder aquisitivo da grande propriedade do prncipe. No caso aqui analisado, o municpio depende direta ou indiretamente do grande manicmio. Para melhor compreenso necessrio que se saiba que a Casa de Sade Dr. Eiras de Paracambi um macro hospital psiquitrico, conveniado com o SUS, que chegou a abrigar 2.500 pacientes na dcada de 80. Pelas condies degradantes que oferecia aos internos foi decretada interveno tcnica e gerencial na Instituio por exigncia do Ministrio Pblico, em 17 de junho de 2004. Para alm das medidas internas ao processo de fechamento da Casa de Sade, viu-se a necessidade de ampliar o olhar da desinstitucionalizao, extramuros. Seria fundamental envolver todos os atores locais, para que tivessem um compromisso real e fossem partcipes da nova situao.. Segundo a reflexo de Gonzles, durante a Primeira Jornada sobre Direitos Humanos e Sade Mental6, o tema sobre os direitos dos grupos com maior precariedade social visto com indiferena pelos mais privilegiados por no se identificarem com essa realidade. Para uma eficaz estratgia de poltica de integrao social, seria indispensvel uma interveno na comunidade que toque/transforme o imaginrio social, para que as reivindicaes possam ser assumidas como compromisso por todos, estabelecendo-se assim uma pauta de condutas pblicas marcada pela cidadania.

    O contexto social da cidade de Paracambi sofreu por dcadas influncia de um poder negativo, gerando a produo de doenas e desajustes sociais, tanto no real quanto no simblico das representaes da comunidade sobre a cidade e sobre si prpria. O fechamento e quebra financeira sucessiva das unidades fabris, que fortaleciam o poder social e mantinham relaes scio-afetivas no cotidiano municipal, criou perfil de passividade entre os moradores, que passam a no ter questionamentos ou reflexo crtica, frente aos problemas sociais. Quando das estratgias voltadas para a nova realidade trazida pela interveno na unidade, tornou-se importante uma abordagem de mediaes na comunidade, onde se conjugam multiplicidade de aes, com potencialidade para resgatar habilidades e superar adversidades, propiciando a conquista de direitos. Em Paracambi a falncia das fbricas trouxe concentrao do desemprego, causando desequilbrio econmico e social, e a nica alternativa possvel passa a ser grande manicmio, como j indicado acima, tanto na oferta de trabalho quanto na seguridade social. No houve efetividade na promoo da qualidade de vida da populao, nos aspectos econmico, social ou emocional. Em 2004, poca em que se inicia a interveno na Casa de Sade Dr. Eiras, e com a retirada gradativa dos pacientes da instituio para habitarem casas populares, alugadas pela prefeitura do municpio, verificou-se reao de hostilidade da populao frente a este projeto de incluso dos antigos internos, no convvio social. Este projeto voltado para os pacientes internados deveria motivar reflexo e possibilitar o esclarecimento a comunidade local, sobre as condies de vida dos portadores de sofrimento psquico, como forma de transformar a maneira como a sociedade lida com a loucura e com as pessoas vinculadas ao manicmio. Nesse sentido qualquer ao emancipatria deveria estar junto s demandas sociais, seja atravs dos sujeitos, ou das organizaes,

    5Weber M in O Fenmeno Urbano Conceito e Categorias da Cidade, Org. Velho O.G. Ed.Zahar, 1979 RJ 5 Realizada em Barcelona,- Gonzlez J.Garcia- Primeres Jornades sobre Drets Humans i Salut mental Ayutament de Barcelona -2002-Espanha

  • significando resistncia dominao dos valores at ento vigentes na localidade e contribuindo para a equidade social. Utilizando o cinema como instrumento de interveno, para transformar o imaginrio social sobre a loucura e sobre os meios de tratamento excludentes, o projeto buscou trazer a incluso social para um grupo duplamente excludo tanto por uma prtica de total afastamento do convvio social decorrente de longos anos de asilamento forado, quanto vitimados pelo preconceito que a desinformao sobre o sofrimento psquico provoca na sociedade. O projeto, atualmente, est em sua segunda fase de realizao, A primeira edio consistiu em na exibio mensal de uma seleo de filmes brasileiros, escolhidos por uma competente curadoria, na principal praa da cidade de Paracambi,. Com equipamentos de timo nvel, que garantem uma projeo de qualidade, a exibio dos filmes funciona como catalisador para o encontro entre a populao local e os usurios da Casa de Sade Dr. Eiras, portadores de sofrimento psquico. Nesse espao de convvio, em torno de uma atividade cultural, atendendo a uma necessidade , da qual a regio carente, a interao entre esses dois grupos, separados por dcadas, propicia uma transformao que vem de encontro valorizao da cidadania, sob a forma de aceitao e solidariedade. As sesses foram realizadas em um sbado por ms, durante doze meses. .Para avaliar o impacto das exibies no imaginrio social da comunidade local sobre a loucura e sobre a presena dos internados na vida da cidade, foi estruturada uma pesquisa de opinio pblica, 7 Ao final de um ano, 63% da populao entrevistada concordavam com o fechamento da Dr. Eiras e com a transferncia dos pacientes para Residncias Teraputicas e 85% era a favor da interveno, mas, ainda consideravam a palavra fechamento muito forte. Do Principado ao Estado de Direito.

    A palavra fechamento para a cidade de Paracambi estava associada memria da marginalizao econmica e social, vivida pela populao do municpio, como resultado do fechamento das fbricas e ao sofrimento decorrente da ausncia de mercado de trabalho. Considerado este indicador ,foi realizado junto equipe de sade coletiva, um diagnstico situacional nas regies de maior precariedade scio econmica cultural do municpio:. Constatou-se nos resultados, a presena de altos ndices de diabetes, de hipertenso arterial, de abuso de lcool e outras drogas, de casos de violncia domstica e abuso sexual infantil, alta demanda de busca por benefcios, negligncia no uso da medicao com propsito de obteno de benefcios sociais de aposentadoria, causando aumento na incidncia de bitos por AVC. Tornou-se fundamental a construo de uma rede de recursos internos e externos ao municpio, que pudesse conduzir processos de mudana na qualidade de vida do conjunto da populao de Paracambi. Na segunda fase do projeto ficou evidente para a equipe, a necessidade de trabalhar para reconstruo de identidade comunitria, e que para isso seria importante a realizao de aes coletivas, que permitissem um processo de conscientizao frente realidade atual, vivida pela populao, como o desemprego aumentando, decorrncia inevitvel das mudanas no manicmio, e suas conseqncias adversas. A segunda edio (fase) do projeto, ento, passa a ter abrangncia ampla com vrios objetivos: contribuir para formao de identidades em atores singulares, facilitando a identificao coletiva; aumentar o cooperativismo intra-social atravs de parcerias internas e parcerias externas no municpio; formar teia organizadora; incentivar a populao a ocupar os espaos pblicos para assuntos de interesse coletivo visando sua emancipao.

    7 Ncleo de Opinio Pblica, coord: Flvia Ferreira, publicitria especialista em Opinio Pblica - UERJ

  • Nesta fase, a preocupao maior era estabelecer compromissos entre as aes coletivas e os principais atores da comunidade , fortalecendo as parcerias intersetoriais com a incluso de aes agregadoras . So implementadas oficinas de vdeo nas escolas pblicas, como forma de desenvolver nos jovens estudantes o senso crtico necessrio participao mais efetiva na vida comunitria; oficinas de reciclagem de papel em praa pblica, com reflexes sobre o meio ambiente e sua preservao e nfase na ao positiva do ser humano frente natureza, reforando o sentido de pertencer quela localidade, ao pas e ao planeta. Para o aumento da auto-estima local, so incentivadas performances teatrais que, por seu carter ldico e inusitado, possibilitam uma abordagem mais efetiva no que diz respeito diversidade cultural, ponto-chave na compreenso maior sobre o outro, sobre a alteridade, sobre a diferena, o que nos remete ao ponto de partida do projeto.Estimula-se a criao de um programa de rdio para informaes scio-educativas e para a abertura de canais de participao interativa com o pblico . As novas aes do projeto induziram a uma nova apreenso da populao quanto ao fechamento do hospital psiquitrico, desvelando-se a possibilidade de desapropriao do terreno da Dr. Eiras, e sua transformao em um bem pblico. Em relao a esse tema inicia-se uma campanha, ainda lenta. Esta conquista vincula-se, para sua concretizao, ao interesse e a participao de outros nveis do governo,. As parcerias do projeto foram ampliadas para atender s solicitaes de um posto de sade em rea de grande complexidade social ,com acolhimento ao grupo de mulheres vtimas de violncia domstica. Atravs da estratgia de rodas de conversa com profissionais da rea de sade mental, percebe-se o interesse maior do pblico pelas aes do projeto. Tambm so realizadas filmagens com personalidades da cidade a respeito de: espaos histricos e eventos locais. A iniciativa de editar o vdeo e apresent-lo antes da exibio de cinema tem como objetivo resignificar a auto-estima da populao, fortalecendo a importncia da cidadania e do vnculo com a cidade..

    Com a relao de confiana estabelecida junto populao, amplia-se a dinmica de atuao, incrementando a parceria firmada com as instncias do poder pblico. promovida a organizao e apresentao de debates de profissionais, abertos populao, sobre abuso sexual infantil e outros agravos contra crianas e adolescentes, detectados no diagnstico e que demandam a presena de uma rede de entidades e aes voltadas para a proteo da infncia.

    Dessa forma, nos setores da educao, do meio ambiente, da cultura e turismo e no desenvolvimento social, so organizadas aes com participao popular, abordando temas de interesse local, que permitem, atravs de discusso e publicizao dos mesmos, conscientizar os participantes e mudar a realidade do municpio. A mltipla produo de instrumentos de interveno comunitria desperta maior dinmica social e constri estmulos para agilizar mudanas.

    No final do segundo ano do projeto a pesquisa de opinio pblica revelou que 85% da populao entrevistada era favorvel ao fechamento da Casa de Sade Dr. Eiras dando aos pacientes o direito de conviver nos espaos sociais. No processo histrico-poltico do Municpio de Paracambi a ausncia de trabalho como garantia bsica para a qualidade de vida da populao residente , produziu na comunidade a incapacidade de se autogerir frente as necessidades essenciais para viver de forma digna . Esta situao cria focos de tenso no meio social,provoca a sua desorganizao e desenvolve uma cultura assentada na excluso dos menos favorecidos em qualquer aspecto: fsico, financeiro, etrio, tnico e de gnero.Este quadro, encontrado ao longo do trabalho,trouxe motivos suficientes para justificar uma

  • interveno comunitria, com incentivos produzidas pelas parcerias intersetoriais objetivando a diminuio da desigualdade social. No entanto, para vencer a resistncia simblica de uma cultura de excluso foi e necessrio transformar a lgica em que essa cultura foi produzida. Ao efetivarem-se aes voltadas para a reconstruo da auto-estima coletiva e singular e do sentimento de pertencimento da comunidade, junto ao fortalecimento da participao social, criaram-se as condies necessrias transformao do contrato social at ento vigente na localidade e ao restabelecimento do Estado de Direito, do qual a populao fora privada. interessante e fundamental que se perceba nesse relato, a indissociabilidade de aes, em princpio voltadas para a sade mental e a real contribuio em todas as reas onde a vida humana se faz presente. Para fortalecer estratgias polticas de incluso, dos considerados socialmente desiguais, necessria uma verdadeira revoluo social, pautada em aes coletivas, em abrir a cidade, em derrubar preconceitos arcaicos e conservadores, construindo uma rede social includentes dentro da realidade e contexto onde se quer atuar. Desconstruir o manicmio desconstruir os conceitos de autoritarismo, preconceito e indiferena, enclausurados nos muros reais e simblicos