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O som do silêncio: sobre interditos e não ditos nos arquivos quando o tema é escravidão ou escorre para o racismo foto 23

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  • O som do silncio: sobreinterditos e no ditos nosarquivos quando o tema escravido ou escorrepara o racismo

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  • O SOM DO SILNCIO: SOBRE INTERDITOS E NO DITOSNOS ARQUIVOS QUANDO O TEMA ESCRAVIDO OUESCORRE PARA O RACISMO

    RESUMOO objetivo desse artigo estabelecer certos padres de tratamentoda justia tomando alguns caso retirados do arquivo EdgardLeuenroth, envolvendo sobretudo negros (escravos ou no).Verificou-se no s a violncia da justia, mas como os africanosnegociavam e agenciavam seu lugar. Menos do que objetos,eles se mostraram, muitas vezes, protagonistas de sua situao.Destaque-se ainda que esse artigo resultado de palestraproferida em seminrio do IEL/UNICAMP e antes umexperimento e uma homenagem ao Instituto.

    PALAVRAS-CHAVELei. Escravido. Violncia. Agncia.

  • O SOM DO SILNCIO: SOBREINTERDITOS E NO DITOS NOSARQUIVOS QUANDO O TEMA ESCRAVIDO OU ESCORRE PARAO RACISMO2

    INTRODUO: O SOM DO SILNCIO

    Nos relatos de finais do XIX, a memria ou desmemriada escravido tema constante. Por vezes devidamente ocultada,por vezes suavizada, muitas vezes objeto relegado ao passado, aideia do cativeiro passou por vrios tratamentos, ainda mais nosdocumentos deixados nos arquivos espalhados pelo pas. Nadacomo lembrar o Hino da Repblica, criado em 1890, portantodois anos aps a abolio da escravido, e que entoava solene:Ns nem cremos que escravos outrora tenham havido em tonobre pas! A escravido mal havia acabado e j era objeto dopassado remoto; do outro.

    Essa caracterstica de jogar para o outro, seja na histria,no tempo, na geografia ou na situao social, o prejuzo daescravido e do racismo, mais claramente expresso a partir definais do XIX e incios do XX, caracterstica recorrente, insistentee persistente de um certo modelo brasileiro de pensar o temaracial.

    Essa condio de outro, de jogar no outro seja ele opassado, uma regio, ou outra pessoa faz parte de uma sriede relatos nacionais, que justificam sempre o carter excepcionaldas situaes de violncia e demarcam o lado inclusivo daexperincia brasileira. E mais: quando assim no fazem, jogampara o vizinho, para a pessoa ao lado, para um local prximo mas

    Lilia Schwarcz1

    1 Docente do Departamento de Antropologia da USP. [email protected] 2 Este artigo foi feito a partir de palestra proferida no seminrio do IEL

    Instituto de Estudos de Linguagem, da Unicamp. Por isso, no apresentamuitas notas e apenas uma bibliografia ao final, que d conta dos artigosaqui citados.

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    diferente do que se est ou vive a culpa pela discriminao. Todoesse cenrio lembra uma modalidade de preconceito amplamentepraticada no Brasil: uma espcie de preconceito de terpreconceito. Tal tipo de racismo retroativo foi descrito pelaprimeira vez por Florestan Fernandes, nos anos 1960, e j naquelaocasio o socilogo conclua como costumamos jogar para ooutro a discriminao e o racismo. Trao resistente, at os diasde hoje mais fcil julgar algum outro como preconceituoso, doque chamar para si tal tipo de defeito ou aspecto mais negativo.

    Mesmo no contexto final do XIX, quando as teorias raciaistinham grande influncia no pas e determinavam de maneirargida hierarquias pautadas na biologia da poca, modelos deinferioridades ou superioridades fixas entre os homens, nuncase apagou essa caracterstica de praticar uma certa discriminaoencabulada, escondida, mas igualmente eficaz. No se quer dizerque por aqui jamais tenham existido exemplos de sociabilidadediversos e verificados sobretudo em reas como cultura, esporte,religio ou culinria. No entanto, por aqui incluso combina comexcluso e no elimina a discriminao.

    Ao lado desse perfil retroativo impe-se, pela prtica epelo costume, uma outra forma de racismo pautado mais na cordo que na origem social. Oracy Nogueira em 1954 chamou ofenmeno de preconceito de marca, contraposto ao deorigem, mais praticado em pases como frica do Sul e EstadosUnidos; duas naes sempre lembradas, como o outro lado doespelho, quando se trata de analisar o racismo existente por aqui.O suposto que, diferentemente de outros pases, cuja baseobjetiva da discriminao o passado e a quantidade de sanguenegro ou branco (o famoso modelo norte-americano do one dropblood rule), no Brasil os padres se apresentariamcomparativamente mais flexveis, uma vez que oscilariam a partirda contingncia (do momento), da situao social e da origemcultural. Ou seja, uma pessoa pode definir-se mais ou menosbranca em funo daquele que faz a pergunta, do contexto emque se encontra, ou da situao econmica que vivencia. Essaprtica antiga, sendo famosa a passagem citada pelo viajantefrancs Saint-Hilaire, que em pleno sculo XIX, percorrendo ointerior de Minas Gerais, deparou-se com uma pequena milcia elogo indagou pelo chefe. Um dos membros apontou ento paraum soldado, e foi quando o francs reagiu dizendo: aquele

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    negro l? Ao que o mesmo oficial respondeu: No, ele nopode ser negro uma vez que chefe.

    O importante que na literatura ou nos documentosencontrados nos arquivos vai se conformando um retrato fiel daambivalncia das prticas de racismo praticados no pas. Durantea vigncia da escravido, a prpria condio, o estado servil, jimpunha e naturalizava uma determinada situao social, adespeito dessa negociao em torno da cor j se apresentar demaneira constante. Nas rodas de expostos esto cheios osexemplos em que se descrevem gradaes de cor, assim comonos documentos policiais que, mais do que simplesmenteclassificar a raa, tentam determinar a colorao. No pas em quequem enriquece, embranquece; em que o sucesso deixa todosmais claros, tambm a escravido passou por essa palheta.Escravos mais claros eram mais valorizados; e at mesmo doenascomo vitiligo, que produzem manchas no corpo, eram tomadascomo milagre e sinal de embranquecimento.

    Mas foi a partir de 1870 que, paralelamente aodesmantelamento gradual da escravido, tomou fora um discursoque desqualificou o princpio da igualdade e do livre arbtriopara afirmar a proeminncia da cincia sobre a anlise dahumanidade. Determinismos de toda ordem imperaram no pas,sobretudo os raciais que passavam a explicar a desigualdade nomais em termos sociais ou histricos, mas sim biolgicos. Nessedepartamento, cor importava menos; origem muito; e marcasraciais ainda mais. Como se v, na virada do sculo XIX para oXX, conviviam uma srie de discursos, representaes, smbolos,padres, hierarquias, teorias e modelos a demarcar temas comoescravido, raa, servido, mas tambm cidadania, igualdade eliberdade.

    No obstante, tais discursos, sem se anularem, acabarampor se sobrepor. Ao lado da explicao cientfica da diferena,se apresentavam os velhos modelos que fizeram a marca daparticularidade e da ambivalncia dos padres raciais no pas.De um lado, essa agncia em torno da cor; de outro, essatendncia de jogar no outro a culpa e a conta do racismo.

    Tomemos um exemplo famoso. Joaquim Nabuco deixou,em seu conhecido texto Massangana, pginas memorveis nessesentido, mostrando o que chamou de saudade do escravo;saudade melanclica de um ethos de pretos dadivosos, queagradeciam ao ato da abolio como quem se mostra para sempre

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    fiel ao presente e pessoa do presente. Interessante que numapoca marcada pelo evolucionismo social, Nabuco parece terescapado da lio, uma vez que no usa tais argumentos. Nessecaso, o menos foi mais, j que os argumentos do publicistada abolio centram-se no tema dos males da escravido e noescapam para a biologia. No entanto, e mesmo assim, o autor fazuso de nossos e outros, como se os males do cativeiro fossemmais destacados no Sul mercenrio do que no Nordeste da boa eafetiva escravido.

    E a vai a dialtica do escravo, pensada em termostropicais.

    que tanto a parte do senhor era inscientemente egosta,tanto a do escravo era inscientemente generosa. Aescravido permanecer por muito tempo como acaracterstica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossasvastas solides uma grande suavidade; seu contato foi aprimeira forma que recebeu a natureza virgem do pas, efoi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse umareligio natural e viva, com os seus mitos, suas legendas,seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suastristezas sem pesar, suas lgrimas sem amargor, seusilncio sem concentrao, suas alegrias sem causa, suafelicidade sem dia seguinte... ela o suspiro indefinvelque exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto amim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; elaenvolveu-me como uma carcia muda toda a minhainfncia; aspirei-a da dedicao de velhos servidores queme reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domniode que faziam parte... Entre mim e eles deve ter-se dadouma troca contnua de simpatia, de que resultou a terna ereconhecida admirao que vim mais tarde a sentir peloseu papel.

    inegvel que Nabuco descrevia uma modalidadebastante especial de sociabilidade que se desenvolveu, sobretudo,com os escravos domsticos. inegvel tambm que toda aviolncia desse sistema do trabalho forado ficava escondida,diante dessa narrativa afetiva.

    Nessa escravido da infncia no posso pensar sem umpesar involuntrio... Tal qual o pressenti em torno de mim,ela conserva-se em minha recordao como um jugo suave,

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    orgulho exterior do senhor, mas tambm orgulho ntimodo escravo, alguma coisa parecida com a dedicao doanimal que nunca se altera, porque o fermento dadesigualdade no pode penetrar nela.

    A lembrana da escravido ficava assim guardada numcanto escuro da memria; tanto que a morte da madrinha aparececomo uma cortina preta que separa do resto de minha vida acena de minha infncia. Diz ele que moradores, libertos, osescravos, ajoelhados, rezavam, choravam, lastimavam-se emgritos; era a consternao mais sincera que se pudesse ver, umacena de naufrgio; todo esse pequeno mundo, tal qual se haviaformado durante duas ou trs geraes em torno daquele centro,no existia mais depois dela: seu ltimo suspiro o tinha feitoquebrar-se em pedaos.

    Aqui j temos um regime de oposies construdas demaneira ambivalente: de um lado, a escravido da infncia (dopassado), outra da maturidade (do presente). De um lado, aescravido das fazendas de cana do Nordeste (com seus senhoresseveros mas bondosos), de outro, o Sul mercenrio, ou o outroproprietrio, desumano e sem afeto.

    Nabuco tinha oito anos na memria e seu mundo estavaprestes a mudar. O pai o mandaria buscar e o menino rumariapara o Rio de Janeiro. A ficava guardado e preservado oNordeste da boa escravido, dos bons senhores, da infnciaprotegida, do carinho da madrinha, do paraso perdido, pooda infncia. Massangana ficou sendo, pois, a sede de um orculontimo.

    como se o tabu se transformasse em totem, mito deamor e de poltica.

    O fato que o modelo fez escola e ganhou sua versomais complexa e ambivalente em Gilberto Freyre, nos anos 1930,que mostrou uma sociedade que se equilibrava entre violncia epassividade; candura e atos vis, incluso e excluso. Um equilbriode contrastes que no implicava pensar fuso ou sincretismoabsoluto. Eis um lado, igualmente verdadeiro da equaobrasileira: incluso social definida pela afeio e pela cultura,entendida como traos compartilhados, na msica, na religio,nos costumes divididos.

    Mas todo lado tem seu oposto lgico: no h comoesquecer os relatos que acentuam mais a excluso, nessa sociedadeinclusiva. A temos outra experincia comum: uma sociedade

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    escravista mas tambm miscigenada; dada miscigenao. Todosunidos e igualmente separados.

    Pensemos em outro documento de autor igualmenterenomado. Com nove anos de distncia, Lima Barreto tambmusaria da memria para falar e repensar o presente. O adultorelembra uma passagem na escola.

    Era bom saber se a alegria que trouxe cidade a lei daabolio foi geral pelo pas. Havia de ser, por que j tinhaentrado na convivncia de todos a sua injustia originria.Quando eu fui para o colgio, um colgio pblico, ruado Rezende, a alegria entre a crianada era grande. Nsno sabamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nostinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral,uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou asignificao da coisa; mas com aquele feitio mental decrianas, s uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava quepodamos fazer tudo que quisssemos; que dali em dianteno havia mais limitao aos progressistas da nossafantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Comoainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras edas leis! (...) So boas essas recordaes; elas tm umperfume de saudade e fazem com que sintamos aeternidade do tempo. O tempo inflexvel, o tempo que, comoo moo irmo da Morte, vai matando aspiraes, tirandoperempes, trazendo desalento, e s nos deixa na almaessa saudade do passado, s vezes composto de fteisacontecimentos, mas que bom sempre relembrar. Quantaambio ele no mata. Primeiro so os sonhos de posio,os meus saudosos; ele corre e, aos poucos, a gente vaidescendo de Ministro a amanuense; depois so os de Amor oh! como se desce nestes! ... Viagens, obras, satisfaes,glrias, tudo se esvai, e esbate com ele. A gente julga quevai sair Shakespeare e sai Mal das Vinhas; mas tenazmenteficamos a viver, esperando, esperando... O que? Oimprevisto, o que pode acontecer amanh ou depois; quemsabe se a sorte grande, ou um tesouro descoberto noquintal?3

    3 BARRETO, L. , escritor e jornalista. O traidor. [S.l.], [19__]. Orig. Ms. 10f. FBN/Mss I-06,35,0964. Fundo/Coleo Lima Barreto.

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    O relato no parece ter sido escrito para ser lembrado oulegado para a posteridade (diferentemente do caso deMassangana). Alis, foi deixado nas costas de um papel doMinistrio da Guerra, local em que Lima atuava como amanuense.O escritor nunca escondeu suas antipatias para com a profisso eusava do tempo livre para se dedicar literatura e escrevercrnicas, contos, novelas.

    O tom em tudo diferente do anterior. Ambos carregamcerta nostalgia, mas se um fala com saudades de um tempo queno existe mais apagado pela ptina do tempo , j o segundo marcado por certo ressentimento. O tempo passado no era.Diverso de um certo preconceito retroativo, presente no textode Nabuco, nesse caso o modelo o da excluso social. O tempoque no foi, que, na verdade, no existiu. A abolio que no foi;a repblica cujo sonho foi curto.

    Temos aqui, pois, o contrrio do contrrio que resultaem semelhante. Nabuco, ao valorizar a escravido brasileira,desfralda todo o racismo da elite nacional. Lima, ao temer pelasorte dos seus, denuncia e desnuda a importncia de certassociabilidades brancas, assim como mostra de que maneira sevira negro, mesmo revelia. No h pois preto no branco; oumero efeito de contraste. O panorama mais fugidio, hbrido,definitivamente mestiado e no se deixa aprisionar. So muitaspossibilidades que se apresentam quando o tema implica pensarem raa e racismo, nas prticas e discursos locais. Em comumpersiste, porm, um certo silncio, parte de um pacto igualmentesilencioso e ambguo. Melhor no dizer, melhor calar.

    Nesse campo, tudo lembra ao relato de Walter Benjamin,no texto Experincia e pobreza de 1933, quando o autor podeobservar o retorno dos soldados da Primeira Guerra Mundial.Tudo feito em silncio. Diante do horror da guerra, parecia noexistir palavra suficiente. Uma narrativa do silncio e do nodito.

    Vale a pena lembrar, tambm, da Nota Preliminar,escrita com certeza ao final da feitura de Os sertes. Nessemomento, Euclides da Cunha se forja tarefa de denunciar.

    Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.E foi, na significao integral da palavra, um crime.Denunciemo-lo.

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    Denunciar de alguma maneira levar ao conhecimento, eEuclides se valia da posio de testemunho, daquele queexperimentou a situao in loco. O escritor, porm, ao invs doimaginrio da guerra, se sai com essa narrativa ausente, ou mesmocom a impossibilidade discursiva de narrar o horror. Do vazio,do silncio. No por acaso se refere ao abismo para dar contade realidades to distintas.

    Poderamos multiplicar as referncias, mas meu objetivoaqui iluminar um punhado de relaes que s se expressampelo silncio da narrativa, no inenarrvel ou ento pelo famosoboca fechada. Tais procedimentos so, porm, denunciados pordetalhes, por sinais, como pretende mostrar o historiador CarloGinzburg com seu mtodo indicirio.

    E se tal procedimento vale para os registros inquisitoriais,pode ser testado nos documentos policiais que recobrem o perodoem que conviveram escravos, imigrantes e uma nova classetrabalhadora, que crescia junto com a industrializao e aurbanizao.

    Neles, cor, raa e origem so marcadores sociais profundose partilhados pelos interditos dos registros.

    NOS SILNCIOS E LACUNAS DOS ARQUIVOS

    E os arquivos brasileiros esto repletos de exemplos dessetipo de procedimento.

    Ao contrrio de outras naes, onde o passadoescravocrata sempre lembrou violncia e arbtrio, no Brasil ahistria foi, durante muito tempo, reconstruda de forma positivae alentadora, mesmo encontrando pouco respaldo nos dados edocumentos pregressos. Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa ento ministro das finanas ordenou que todos os registrossobre escravido, existentes em arquivos nacionais, fossemqueimados. Se a empreitada no teve como sabemos sucessoabsoluto, e no foram, por certo, eliminados todos os documentos,o certo que se procurava esquecer um determinado passado eo presente significava um novo comeo, a partir do zero. Desdeento, uma narrativa romntica, que falava de senhores severos,mas paternais, e escravos submissos e serviais, encontrou terrenofrtil, ao lado de um novo argumento que afirmava ser amiscigenao alargada existente no territrio brasileiro um

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    impeditivo para as classificaes muito rgidas, apenas bipolares:negros de um lado; brancos de outro.

    O fato que, a despeito do ato de Rui Barbosa, no sedestruiu a totalidade dessa memria feita, sobretudo, de pistas,traos e alguns sinais.4 Diante de uma populao impossibilitada,na sua maior parte, de deixar registros escritos, restaram asanotaes feitas pelos prprios senhores, os relatos da represso,os registros de revoltas, os documentos de seguro, venda emanumisso de escravos e as inmeras descries do cotidiano.

    Claro est que no se encontram, na arrasadora maioriadas vezes, documentos de primeira mo escritos pelos prpriosescravos , mas no de hoje que se perdeu uma certaepistemologia positiva e ingnua, que supunha que os textospodiam ser neutros. Basta ver, nesse sentido, a retomada, desdeos anos 1980, dos arquivos da represso no Brasil e, nahistoriografia europeia, a recuperao dos processos inquisitoriaisreferentes bruxaria. Como bem mostrou Carlo Ginzburg, noseu texto O Inquisidor como antroplogo, possvel ler porcima dos ombros do inquisidor e recuperar verdadeirasdialogias: universos compartilhados, mas realidadesdiferenciadas.5

    E pode-se dizer que o mesmo tem sido feito comreferncia aos estudos sobre escravido no Brasil. Dos jornaisaos documentos policiais, da iconografia s fontes primrias, dosdocumentos s fontes orais... evidente como se tem investidoem novos objetos e em suas mltiplas leituras.

    * * *

    Se tomarmos o arquivo da Biblioteca Nacional, e, aomenos, os registros Oitocentistas, facilmente se perceber comoa escravido est por toda parte e aparece de forma naturalizada;o cativeiro africano est imerso no cotidiano e o constitui.

    4 Referncia obra de GINZBURG C. Mitos, emblemas e sinais. So Paulo:Companhia das Letras, 1978.

    5 GINZBURG, C. O inquisidor como antroplogo. In: A micro-histria e outrosensaios. Lisboa: Difel, 1989.

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    Se, por um lado, destaca-se uma srie de documentosoficiais cartas de alforria; documentos de compra, venda ealuguel, aplices de seguro de escravos; impostos e taxas; sisas emeia sisa; alvars rgios concernentes ao tema; taxas de matrculasde escravos, passaportes de escravos, ou mesmo o famosoDecreto de extino da escravatura (lei 3353) por outro, noso poucos os manuscritos que descrevem o dia-a-dia daescravido na Corte do Rio de Janeiro.

    O cotidiano era feito por muitos e inusitados ngulos ese os documentos falam de crimes e castigos; descrevempagamentos de escravos por jornada ou aluguel; tambmmencionam doenas e cuidados necessrios com essa populao,assim como comentam prticas religiosas que no distinguem,mas aglutinam brancos e negros.

    Mas o que mais salta aos olhos como o dia-a-dia feitode negociaes. De um lado, os proprietrios brancos negociamsem parar. Por vezes pedem para que uma sentena deenforcamento de um escravo seja cumprida, em outros momentos,ao contrrio, suplicam para que seja comutada a pena e restitudaa propriedade. No poucas vezes regateiam preos para a solturade escravos ou pedem indenizao pela morte de um escravo,que trabalhava em servios pblicos. Reclamam tambm dosbatuques e desordens e pedem providncias nesse sentido ou,ento, descrevem tais prticas com certo interesse. Alm do mais,no pas do preconceito de marca, e em que se esquece da origem,causa espanto um documento em que o senhor branco pede aanulao de um casamento, sob alegao de que a noiva bisnetade escravos. Isso sem esquecer um manuscrito em que oproprietrio alega que no pagar pela jornada do escravo, jque no sabia que o mesmo era roubado.

    Como se v, mesmo do lado mais forte, era precisonegociar, a todo momento. Mas causa ainda mais espanto o outrolado. A partir dos manuscritos, pode-se notar a constantenegociao dos escravos, que buscam utilizar-se das poucas frestasque o sistema deixa escapar. Alguns cativos pedem a liberdadepor estarem doentes, velhos ou cegos. Outros recorrem justiaquando seus senhores se recusam a receber a parte restante desua alforria. H aqueles que pedem mais liberdade para praticaremseus rituais ou que, simplesmente, exigem seus direitos, jconquistados, como libertos. O conjunto descreve, pois, relaesviolentas, mas tambm ambivalentes, uma vez que sempre

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    investidas de novos significados. Longe da imagem oficial dapea e mercadoria, no trato com viventes, impe-se a agnciae a tentativa de manipular, de parte a parte.

    PROCESSOS CRIMES DE SO PAULO

    Num seminrio em homenagem ao arquivo EdgardLeuenroth, nada como exercitar a mesma questo a partir deuma documentao presente nessa instituio. Por certo, trata-se de um experimento, no sentido forte do termo. A ideia tomar alguns registros e testar de que maneira marcadoressociais como raa, regio, procedncia, gnero e origem,interagem e aparecem nos registros; ora de maneira isolada,ora dialogada e em tenso. suposto que, se a fonte fossecontrastada com outros documentos, novos desenhospoderiam aparecer. Mas certo, tambm, que no conjuntodocumental essa mesma viso ambivalente da escravido saltaaos olhos do consulente mais desavisado.

    Tomemos assim alguns exemplos, retirados do arquivodo Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura (Cecult),da Unicamp, cujas cpias encontram-se no arquivo EdgardLeuenroth, para refletir acerca de algumas mximas,constncias, insistncias... seja l o nome que se d aofenmeno. O fato que estamos diante de uma srie deruidosos silncios, que parecem envolver os processos sobrenegros e, ainda mais, escravos.

    O Banco de Processos-Crimes de So Paulo foi originadoem novembro de 2004 pelo Cecult. Atualmente consiste em 42fichas sobre processos criminais (sendo que em 12 dessesprocessos houve recurso jurdico), 26 sobre inquritos policiaise 4 fichas correspondentes a documentos relativos a inquritosdo banco, da dcada de 1890, em um total de 82 fichas. As fontestrabalhadas so todas da coleo do Arquivo do Estado de SoPaulo (AESP): Inquritos Policiais e Autos Crimes. O recortecronolgico de 1814 a 1901.

    O recorte feito para o levantamento da documentaoremete s dcadas de 1880 e 1890, e privilegia processos einquritos que envolvem negros e imigrantes italianos.Realizou-se um levantamento dos autos atravs do catlogoCrimes em So Paulo. Catlogo de fundos dos Juzos da Capital

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    existentes no Arquivo do Estado de So Paulo (1821-1899),organizado em 1998, visando indivduos envolvidos em crimese que tivessem, em primeiro lugar, o sobrenome italiano. Asfichas dos Inquritos policiais e de documentos relativos estopresentes no banco de dados, e tambm foram levantadossegundo esse mesmo critrio.6 H, ainda, algumas fichas deprocessos que envolvem escravos e o tema da escravido e foisob essas que me debrucei, prioritariamente.

    Como veremos, paira em torno da escravido e de tudoque a cerca uma espcie de indizvel, ou como diz o crtico literrioporto-riquenho Arcdio Quinhones: um inenarrvel.

    Escravos tm sempre s um nome (o prprio), enquantoseus acusadores tm nomes completos e locais de origem. Massalta aos olhos um detalhe. S eles merecem a descrio de suasituao: livres, liberto ou escravo. Para os demais (os no pretos)a rubrica parece, simplesmente, no se aplicar. Por outro lado,escravos esto sempre envolvidos em casos que recorrem eacabam em violncia (a prpria ou a cometida contra ele) e nomais das vezes so objeto de sua condio.

    Trabalharei assim apenas com alguns casos, com aesperana que formem um universo significativo sobre o temaque nos comum, o racismo presente nas fontes e documentosdos arquivos nacionais. Fio-me tambm na certeza de que essesexemplos funcionam apenas como casos, a indicar (e pedir) estudomais sistemtico que venha a confirmar (ou no) algumas dashipteses aqui expressas.

    CASO 1. O CASO DE JOAQUIM: CONTESTANDO A SUAPRPRIA PROPRIEDADE

    Comeo com o processo criminal datado de 7 de janeirode 1861, e que ganhou o nmero 1090. O ano mal comeava e jse assinalava um homicdio em So Paulo. A sentena determinavaforca: o ru foi condenado pena de morte, que seria dada na

    6 Gostaria de agradecer ao professor Fernando Teixeira e Silva, que mefacultou o acesso a esse material e aos funcionrios do AEL ArquivoEdgard Leuenroth, que gentilmente se prontificaram a ced-lo para que eupudesse realizar palestra no seminrio e depois elaborar este artigo.

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    forca. O acusado, um escravo, a despeito de ter entrado, juntocom a defesa, com pedido de graa ao imperador, morreu nacadeia antes de sair o resultado do inqurito, por problemas nofgado.

    Mas vamos ao caso, que teria se passado na Freguesia doBrs. A primeira testemunha, branca e definida comoproprietrio, logo define o acusado como um mau escravo,que costumava andar pelo quarteiro com uma faca embrulhadaem folha de bananeira.

    Esse primeiro relato, em tudo difere dos demais, legadospor diferentes testemunhas informantes. Esses, ao contrrio,referem-se a Joaquim como bom escravo. Bom ou mau escravoso, pois, cdigos, compartilhados pela comunidade: supostosque parecem no carecer de maior explicao.

    Diante do impasse, o problema pareceu se limitar senhora do mesmo escravo, que o fazia trabalhar demais, e nolhe dava comida. Ficamos sabendo mais: que Joaquim andavamuito aborrecido com sua senhora Jesuna e que desejava novosenhorio.

    Interessante que longe de contestar o cativeiro, Joaquim,quando lhe permitido depor, apenas contesta a propriedade.Parece que temos aqui, o outro lado da discusso acima enunciadapor Joaquim Nabuco: antes de coisa passiva, tambm o cativodiscernia entre bons e maus senhores.

    Descrito como africano e benguela, de estado civil casado,Joaquim apresentado como ru e sua ocupao definida comocarreiro. Joaquim afirma ter assassinado sua senhora JesunaMaria de Godoy a facadas, por conta de alegados maus tratos eexcesso de trabalho. Alega, ainda, no reconhecer a mesmacomo sua senhora.

    No entanto, o depoimento de Joaquim parece no tersido levado muito a srio, uma vez que, na sequncia e nasobservaes o escrevente indica que o processo contm otraslado de compra e venda do escravo Joaquim de ManoelRodrigues Jordo por Jesuna Maria de Godoy, em 30 de outubrode 1854. Tal informao parece anular a alegao de Joaquim, jque a lei e a ordem reconhecem a propriedade.

    Mesmo assim, mais frente e seguindo-se as inmeraspginas do processo, Manuel Rodrigues Jordo, proprietrio etestemunha de acusao, quem informa que aps a morte daprimeira mulher, deu-se a diviso dos bens e Jordo figurou,

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    desde ento, como proprietrio do escravo Joaquim. Jordo,por sua vez, teria ento passado a viver com Jesuna que, segundoo mesmo escravo, a maltratava.

    Enfim, o problema de direitos numa sociedade quedeliberadamente solapa a ideia de direitos para parte sensvelde sua populao. O juiz de Direito da comarca, Jos Pedro deAzevedo Segurado, diante de tantos indcios, condena o escravo morte natural que seria dada na forca, mesmo sabendo queesse, a essas alturas, j morrera de morte natural (?), ocorrida napriso local.

    Se o escravo Joaquim teve voz, careceu de direitos e apsseu primeiro depoimento ficou em silncio, ao menos nos autos.Por outro lado, usou das frestas do sistema para se manifestar.No exatamente contra a escravido, que parece ser, nesse caso,sina e destino, mas quanto ao seu direito de ter o proprietrioque julga ser o correto e que no o maltrata. De toda maneira,no se conformou passivamente. Ao contrrio, pretendeu negara sua propriedade e alegar maus tratos, nesse sistema pautadona violncia e, justamente, nos maus tratos.

    CASO 2. A ESCRAVA CATHARINA VAI SUBDELEGACIA

    Localizado como processo criminal nmero 1644, destaca-se um episdio ocorrido em 24 de novembro de 1877. A escravadomstica Catharina procurou a polcia para denunciar sua senhoraMaria Leonor da Silva Bueno. A escrava afirma ter sofridocastigos excessivos e queimaduras em diversas partes do corpo,provocadas por caf fervente derramado nela por sua senhora.Catharina apresentou-se na Freguesia de Santa Ifignia, que aencaminhou para o subdelegado da Freguesia do Brs.

    Ouvidos os testemunhos, o caso parecia certo: tratava-sede uma senhora que tinha por prtica maltratar seus escravos edeixar-lhes marcas.

    At mesmo a vizinha de Maria Leonor (Francisca Mariade Menezes Cavalheiro), que dizia desconhecer que a amigamaltratasse seus escravos, afirma: Porm, certa vez apresentou-se a ela testemunha a escrava mais velha de Maria Leonor,dizendo que a menor Catharina havia fugido da casa de suasenhora. As escravas diziam que Maria Leonor era muito bravae costumava dar-lhes pancadas.

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    H ainda o testemunho do cunhado da r, que declarouem juzo que Catherina teria lhe dito que havia entornado cafsobre si. Seu nome Horcio Badar e ele, mesmo ao final,afirma que fora isso mais ou menos o que ouvira.

    J o conjunto dos demais relatos segue todo a favor deCatharina. Essa a opinio de Joo Baptista de Arajo, guardanoturno, que inclusive afirma que essa no era a primeira queixade escravos de Maria Leonor. O mesmo diz o empregado pblico,Luiz Pinto Homem de Menezes; mas alega, ao mesmo tempo,que no viu sinais de castigos nas escravas. J o sargento deurbanos Pedro Antonio Barboza, testemunha que estava naestao quando se apresentou a menor bastante queimada, teriadito que se tratava de senhora muito m.

    Mesmo com tantos dados a favor da r, em fevereiro doano seguinte, o promotor pblico interino julga a dennciaimprocedente [...] pois sua declarao no corroborada pelodepoimento das testemunhas. O que era improcedente jamaissaberemos; o que sim sabemos que a declarao de Catharinafoi corroborada pelas testemunhas. Mas, nesse contexto, quemse importa...

    Como se v, termos como bons e maus servem paradefinir escravos, mas tambm senhores, sobretudo nessemomento em que o regime servil j comea a ser colocado emquesto.

    CASO 3. SUSPEITA DE

    Vadiagem categoria ampla, que recaa sobre negrosvagando pelas ruas, mas tambm imigrantes consideradosdesocupados. Em boa parte, a suspeita transformava-se emcerteza e o acusado era punido e reconduzido sua condio,fosse l ela qual fosse. Mas, em alguns casos, poucos, a denncia julgada improcedente e a priso relaxada.

    Esse o exemplo do processo 1419, referente a furto eroubo. O caso envolveu o africano, liberto, Benedito JoaquimMirante, servente de pedreiro, e habitante no bairro da Mooca,So Paulo.

    Eis o relato do ocorrido: Disse que no cometeu o furto.Que tinha sado da cadeia naquele dia e foi para casa/ Pediupara um dos filhos comprar remdio para ele, pois estava um

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    pouco doente. Como seu filho estava demorando muito, eleacusado foi procur-lo mas foi preso na rua da Glria, acusadode ter furtado roupas e mais alguns objetos de casa de unsestudantes localizados na rua da liberdade.

    Seguem-se os depoimentos, dados por estudantes eguardas urbanos, que vo caracterizando Joaquim como umlarpio costumaz; um velho conhecido dos urbanos.

    Depois ficamos sabendo que os acusados levavam umatoalha, uma caixa de sabo e uma pea de morim. Como nohouve priso em flagrante, o preso no foi enquadrado no delito.No entanto, e mesmo assim, ele e o filho foram condenados a 15dias de priso.

    Nesses casos, os descritores apontam o crime devadiagem como mote do processo e observaes do tipo soconhecidos vagabundos ou ouviu-se dizer que so gatunos,parecem suficientes para uma pena ou para o pagamento da fiana,quando as finanas assim o permitem.

    CASO 4. ESCRAVOS, CAPANGAS E A AMSIA AFRICANA(DE 80 ANOS)

    O processo de nmero 0011 envolve um padre JoaquimFranco de Melo e sua suposta amsia Maria Joaquina de Lima:uma senhora africana liberta, uma mulher da mais baixacondio, apesar de sua idade avanada, de uns 80 anos. Elateria atuado como testa de ferro(expresso utilizada noprocesso) do referido Padre o qual, por sua vez, estaria sendoacusado de incitar uma invaso nas terras do proprietrio Joaquimdos Santos.

    O processo longo e no vou incomod-los com detalhes.Para resumir a histria temos todo um bas fond da escravido e doracismo que a rodeia. Uma africana velha sempre uma africana: aamsia sedutora. J os demais escravos so capangas para o queder e vier: objetos, sempre, de sua condio. Ao que tudo indica, ahistria deu-se ao revs: foi o fazendeiro que invadiu as terrasvizinhas, inclusive a de Maria Joaquina sem nunca aceitar acordoscom a vizinhana. Ao contrrio, teria usado seus capangas e escravosarmados (com armas de fogo) para afrontar a todos com insultos,assim como plantou nas terras da africana acusada. O padre foiabsolvido e Maria Joaquina sequer ouvida.

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    Por sinal, outras africanas aparecem envolvidas nessetipo de insinuao: Esse o caso de Francisca, de 25 anos, definidacomo alugada/cozinheira. O mais estranho que o acusante que a denuncia. O processo corre, porm, contra o ru por contade sua fama como homem amigo de importar-se com a vidaalheia e tido como difamador de reputao. Datado de 1880, oprocesso desenvolve-se de lado a lado e, nesse caso, a acusao de difamao. A prpria Francisca ao depor desnuda a situao:Disse que tinha relaes ilcitas com o acusador e que ao noquerer mais trabalhar na casa do queixoso, o acusado de raivapor ela no querer morar em sua companhia faz-lhe uma intriga.

    CASO 5. ELES NO SABEM O QUE FAZEM

    O escravo Antonio, do capito Jos Jacques da CostaOuriques, que trabalhava como cozinheiro faleceu no hospitalda Misericrdia aps seis dias de internao. A causa: gangrenanas partes feridas com arma de fogo.

    O ato havia sido desferido pelo africano Thomaz, que omatou com um tiro de pistola, mas sem m f ou inteno. Oacontecimento fora um acidente e no propriamente um crime.O africano, que j vivia no Brasil h 30 anos, no sabia lidar comas armas e nem tinha condies para tal, por isso pensou estardescarregada. Exemplo de como se tratam de casos deirresponsabilidade penal, tema largamente defendido porcientistas como Nina Rodrigues, o evento s coloca mais gua nomoinho daqueles que, nesse momento, defendiam a existnciade diferentes cdigos penais, adaptados s diferentes condiese situaes raciais.

    CASO 6. ESCRAVO ROUBADO PARA REVENDA

    Nesse processo criminal de nmero 71 vemos o caso deum escravo que no aparece nem como ru, nem comotestemunha. Ele totalmente passivo no cenrio que o toma einunda.

    O escravo Antonio foi roubado para revenda em Cubato,Santos. Ele teria sido induzido e vendido ao Alferes Sirino,sem mostrar qualquer reao ou iniciativa. Ao fim e ao cabo. o

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    ru foi inocentado pois no se podia julgar na cidade de SoPaulo um caso ocorrido em Cubato, e tambm porque o ex-proprietrio Silvrio Rodrigues Jordo afirmou que no queriamais ser parte do processo pois perderia, alm de seu escravoAntonio, mais dinheiro ainda. E eu acrescentaria: perderia amoral.

    UM CALEDOSCPIO DE CASOS

    Esse conjunto de casos, dispostos como peas de umcaledoscpio, no se pretende exaustivo e muito menossistemtico. Compem, porm, uma estrutura ampla mas, de certamaneira, previsvel acerca das relaes que se estabeleciamdurante o perodo em que vigorou a escravido no Brasil. Se deum lado vingou uma certa normalidade, verificada pelo nmerode casamentos, por relaes assentadas, e convivncias estveis;os processos criminais oferecem um outro lado, do mesmoespelho. Assassinatos, furtos, contos do vigrio, adultrios,estupros, desordem, casos de embriaguez, de suspeita de escravo,de vagabundagem ou gatunagem so as peas combinatriasdesse panorama. Mais ainda, revelam um mundo de no ditospresentes em toda a narrativa: a violncia do sistema, aambivalncia das relaes, a naturalizao do corpo escravo ounegro e depois do imigrante. No poucos processos envolvem aambos, como o de nmero 2253, ocorrido em 4 de outubro de1887, quando os acusados so um italiano e um preto. VicenteLuis (italiano) acusado de andar embriagado e de provocardesordem e turbulncia. O mesmo mora numa chacrinha emcompanhia do preto Toto, que foi preso por dar uma pancadaem Vicente, que de pronto deu queixa na Estao. Vicente narratoda sua histria e se defende. Diz que no fez barulho e nemestava embriagado. Diz mais, que brigou com Toto por essepegar suas roupas e no querer devolv-la. Afirmou que foi Totoque lhe deu pancadas e que ele no revidou. Segundo o ru:foi preso por vingana. Toto ao menos dessa vez se safou enem aparece no inqurito. presena nebulosa: um preto, umvingador, um arruaceiro.

    Crnica de um tempo morto, esses processos crimesrevelam, quem sabe, um limite discursivo e os pressupostospartilhados a ampar-los. Como mostram Ashis Nandy e tambm

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    Arcdio Quinones, para outro contexto, ao invs do modeloexterno e s demonizado, o que se afirma uma experinciantima no s com o colonialismo, mas com essa escravidointerna/familiar. Nota-se o agenciamento de parte a parte, mastambm a ambivalncia de parte a parte e a violncia ntima epor isso natural; ou melhor, naturalizada. A relao entre senhore escravos converte-se numa espcie de inimizade ntima, nostermos de Nandy, uma vez que permanece marcada porambiguidades e ambivalncias. Eles so quase um contraponto,nos termos de Said, uma vez que se lamenta, mas no se escapadeles.

    Por outro lado, vemos como a linguagem cria sua prprianormatividade, enquanto os textos policiais vo descrevendo acor, a condio, a pele, a situao. Nem tudo cabe nas palavras emuito no se fala, mesmo utilizando-as com frequncia. Dizerque so africanos deixar supor que so outros, pertencentesa outro tempos e espaos. Que so sobretudo diferentes em seusatos, gestos, comportamentos, e moral

    PARA TERMINAR

    No livro Corao das trevas, Conrad deixou as maisimpactantes pginas sobre o horror. Localizado formalmente noCongo Belga, o episdio ultrapassava a delimitao geogrficapara refletir sobre uma condio. Uma forma de ser e estar nessemundo. A estava uma impossibilidade narrativa, ou a narrativado horror e sobretudo de seus silncios. Da impossibilidade dedizer.

    Quando estava para terminar este texto, fiquei pensandonos provrbios, que sempre dizem mais do que anunciam depronto. Ou melhor, dizem por associao e experincia partilhada.

    Lembrei logo de um: De noite todos os gatos sopardos.

    Pardo termo que no se define e de noite fica aindapior. Ferrez, poeta da periferia paulistana, em conferncia recente,dizia algo paralelo: de noite e na favela at japons preto.

    De suspeito e vadio, potencialmente violento, todoescravo tinha um pouco. Era sempre um outro: aquele que nosomos ns. Mas era tambm humano e nessa condio serelacionava, negociava, agenciava. Por isso, todos so suspeitos,

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    mas todos igualmente negociam sua condio; at mesmo nummomento em que lhes era negada a cidadania ou a igualdade.

    Mas processos criminais so sempre recursos nas mosde determinado grupo que avalia, analisa, e condiciona o outro.Neles, os escravos ou africanos ganhavam tratamento diferente,mesmo que diferente seja menos em alguns casos, mais emoutros. Menos, no nome prprio: no nome destitudo desobrenome e passado, tradio, histria. Mais, pois s a eles eraatribuda uma situao: escravos, livres, libertos.

    Paradoxalmente, sua cor parecia pedir, nesse momento,explicao de sua condio; definio essa que no se fazianecessria para os demais. Todos devidamente compreendidose classificados, fosse por sua procedncia, fosse pela coloraobranca, verdadeiro sinaleiro social entre ns.

    A esto termos fortes que condicionam formas de ver.Olhar e classificar. E a, afinal, e como bem mostrou Foucault,que se destaca a lgica dos museus e arquivos, cuja origem datade finais do XIX (e deve muito a uma lgica evolucionista). Taisinstituies foram desde sua gnese pautadas pela lgica dogrande classificador que, nesse caso, no esconde mas expe seuscritrios que ope a civilizao (a nossa) barbrie (a deles).Instituies totais, elas foram grandes responsveis, nesse mesmocontexto, por transformar marcadores sociais em elementos fortesa delimitar a possibilidade (ou no) do gozo da cidadania.

    Mas pensei, para terminar, em ainda outro provrbio,que casaria bem com esse contexto que estamos aqui deixando:Eles que so brancos que se entendam.

    Se paira um grande subentendido sobre a outridadedos negros e pardos (sejam eles quem forem), j dentre os brancoso suposto o da mesmice, dos supostos partilhados.

    No h aqui a inteno de esgotar o material, apenas de,a partir dele, pensar nos no ditos e interditos presentes emqualquer arquivo. O racismo uma tentativa de fazerdeterminadas diferenas sejam elas fsicas, religiosas, sociais,histricas, regionais dizerem e atuarem mais do que poderiam. ainda uma forma de hierarquizar diferenas, ao invs de fazercom que convivam. E mais, no contexto recortado por esse artigo,transformou-se em cincia, com o apangio da biologia.

    Esses pequenos casos podem funcionar, pois, como bonspretextos, quase sinais ou pistas para refletirmos sobre esses tantossilncios que permanecem reclusos na memria da escravido.

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    Como mostra Walter Benjamin, engana-se aquele que pensa queo que a histria faz narrar. Ela antes matria paraesquecimento e seleo.

    BIBLIOGRAFIA CITADA

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  • THE SOUND OF SILENCE: SILENCE AND NOISE IN THEBRAZILIAN ARCHIVES WHEN THE SUBJECT IS RACISMAND SLAVERY

    ABSTRACTThe main goal of this article is, using some examples from theEdgard Leuenroth archive, analyze how the black population(among slaves or libertos) could act in front of the violence of thelaw. They were less objects and mostly the protagonists oftheir life and destiny.

    KEY WORDSLaw. Slavery. Violence. Agency.

  • Da esquerda para a direita: Germinal Leuenroth, Pedro Catallo, EdgardLeuenroth, Breno e Izabel [S.l., 196-?].(Acervo Famlia Leuenroth; Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP,Campinas, So Paulo, foto reproduzida n. 23.)