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225 Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, p. 225-243, jul./dez. 2012 Mitos e origens na psicanálise freudiana Myths and origins in freudian psychoanalysis Monah Winograd* Larissa da Costa Mendes** Resumo: Em diversos momentos de sua teoria, Freud recorreu aos mitos e às referências e me- táforas mitológicas para abordar e explicar as origens, preenchendo lacunas teóricas que sur- giam quando era levado a teorizar para além do que lhe parecia formalizável conceitualmente. Neste artigo, abordaremos a questão das origens e o recurso a alguns mitos a partir de três eixos: (1) o conceito de originário e a hipótese do recalcamento originário, (2) a hipótese filogenética e (3) o mito científico da horda primitiva. Palavras-chave: Freud, mito, origem, recalcamento primário, filogênese, horda primitiva. Abstract: At various points of his theory, Freud turned to the myths and to mythological references and metaphors to address and explain the originary, filling theoretical gaps that appeared when he was obliged to think beyond what seemed conceptually formalizable. In this text, we discuss the question of the origins and the use of some myths from three axes: (1) the concept of originary and the hypothesis of primary repression, (2) the phylogenetic hypothesis and (3) the scientific myth of the primal horde. Keywords: Freud, myth, origin, primary repression, phylogeny, primal horde. * Psicóloga, psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica/ UFRJ, profa. do Programa de Pós- -Graduação em Psicologia Clínica/ PUC-Rio. ** Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica/PUC-Rio.

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  • Mitos e origens na psicanlise freudiana

    225Cad. Psicanl.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, p. 225-243, jul./dez. 2012

    Mitos e origens na psicanlise freudianaMyths and origins in freudian psychoanalysis

    Monah Winograd* Larissa da Costa Mendes**

    Resumo: Em diversos momentos de sua teoria, Freud recorreu aos mitos e s referncias e me-tforas mitolgicas para abordar e explicar as origens, preenchendo lacunas tericas que sur-giam quando era levado a teorizar para alm do que lhe parecia formalizvel conceitualmente. Neste artigo, abordaremos a questo das origens e o recurso a alguns mitos a partir de trs eixos: (1) o conceito de originrio e a hiptese do recalcamento originrio, (2) a hiptese filogentica e (3) o mito cientfico da horda primitiva.Palavras-chave: Freud, mito, origem, recalcamento primrio, filognese, horda primitiva.

    Abstract: At various points of his theory, Freud turned to the myths and to mythological references and metaphors to address and explain the originary, filling theoretical gaps that appeared when he was obliged to think beyond what seemed conceptually formalizable. In this text, we discuss the question of the origins and the use of some myths from three axes: (1) the concept of originary and the hypothesis of primary repression, (2) the phylogenetic hypothesis and (3) the scientific myth of the primal horde.Keywords: Freud, myth, origin, primary repression, phylogeny, primal horde.

    * Psicloga, psicanalista, doutora em Teoria Psicanaltica/ UFRJ, profa. do Programa de Ps--Graduao em Psicologia Clnica/ PUC-Rio.

    ** Psicloga, mestre em Psicologia Clnica/PUC-Rio.

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    Em psicanlise, no existe conceito especfico nem concepo una de tempo, embora ele seja fundamental para abordar a problemtica da consti-tuio do sujeito. Da a presena, dentre tantos modos heterogneos de con-ceber o tempo, da idia de um tempo mtico necessariamente ligada questo das origens. Esta idia se apresenta de maneiras diversas em muitos momen-tos da obra freudiana: por exemplo, atravs do conceito de recalque origin-rio (inaugurao da clivagem psquica), do conceito de complexo de dipo (ponto chave da organizao libidinal), do mito original da horda primitiva (nascimento da cultura), da teoria das pulses (definida por Freud como mi-tolgica), da hiptese filogentica (tempo herdado e pr-individual) etc. Se-gundo Guillamin (2003), podemos mesmo encontrar em Freud duas epistemologias que se sucedem periodicamente e, aparentemente, se contra-dizem. Uma delas expressa uma abordagem segundo a qual o fora e o social seriam determinados pelo dentro e pelo indivduo. De acordo com a outra abordagem, ao contrrio, a interioridade do psiquismo individual seria ex-plicada pelo recurso a um arqueopsiquismo mergulhado no corpo (a filo-gnese), ou seja, um mais-aqum ou uma anterioridade radical. O risco deste modo de pensar seria ter de fazer desta presena originria uma esp-cie de limite e de pano de fundo para uma experincia interna inacessvel e incognoscvel que s retornaria e chegaria conscincia no a posteriori de uma projeo retrgrada sobre o social. De modo que, na teoria freudiana, o recurso ao mitolgico como alegoria, como metfora ou como uma ante-rioridade inacessvel e no-localizvel na histria do sujeito expressa uma tentativa de pensar o que estaria entre, ou melhor, o que conjugaria o pr--psquico (anterior ou mais-aqum da interioridade psquica individual) e o ps-psquico (ulterior e exterior ao psiquismo individual).

    Pastore (2012) lembra ser a palavra mito originria do termo grego mythos, derivado dos verbos mytheio contar, narrar e mytheo contar, conversar. Na Grcia Antiga (do sc. VIII ao sc. VI a. C.), o sentido primor-dial de mythos era palavra ou discurso, configurados particularmente como narrativas das desventuras de deuses e heris. Nesta poca, logos e mythos no era opostos, pois diziam respeito a um relato sagrado transmitido oralmente atravs das geraes. A antinomia entre logos e mythos somente ocorreu com a filosofia helnica, no sculo IV a. C., a qual distinguiu o relato mtico da argu-mentao racional (Pastore, 2012). Designando composies de diversos g-neros literrios (pico, lrico e dramtico), relatos histricos, lendas da tradio oral, assim como os tipos de relao que se estabelecem entre os elementos constitutivos dos relatos, o termo mito mltiplo desde sua raiz grega.

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    Segundo Lalande (1999), o conceito de mito pode ser desdobrado em trs definies: (1) narrativa lendria e fabulosa de origem popular e no refletida, pertencente tradio cultural de um povo, que tende a explicar as caracters-ticas do que dado no presente; (2) exposio de uma ideia ou de uma doutri-na sob uma forma voluntariamente potica e narrativa, na qual a imaginao se mistura s verdades subjacentes, como um discurso alegrico que tem como objetivo disseminar uma doutrina atravs de uma representao simblica e (3) imagem de um futuro fictcio que exprime os sentimentos de uma coletivi-dade e serve para desencadear a ao. De acordo com a primeira definio, os mitos so narrativas de acontecimentos ocorridos num tempo primordial que pretendem ilustrar as origens. Ou seja, os mitos contam como o homem se tornou o que ele hoje e o que determinou sua organizao, suas regras sociais e sua tica.

    Se, como ensina Eliade (2000), o mito narra a origem do mundo, do ho-mem, do animal, do fogo, da guerra, das coisas como elas so hoje, embora situados em um tempo irrecupervel e perdido para o sujeito, os mitos tornam o sujeito contemporneo a este tempo fabuloso que, atualizado, incorpora-se sua histria: so mitos vivos e vividos, pois presentificam-se em histrias ver-dadeiras, vivas e em movimento (Eliade, 2004). Ou seja, os mitos no so explicaes destinadas a satisfazer curiosidades: so ingredientes vitais da civi-lizao humana, pois, longe de serem fabulaes vs, teorias abstratas ou fan-tasias artsticas, so realidades vivas s quais se recorre incessantemente (Malinowsky, 1926).

    Eis o paradoxo do mito, que o torna to especial e to caro a Freud: uma narrativa construda para explicar uma realidade ao mesmo tempo em que a cria. Com efeito, para o pai da psicanlise, o real pode ser mitologizado tanto quanto o mtico pode engendrar fortes efeitos de realidade (Huyssen, 2000, p.16). Da podermos afirmar que, na obra freudiana, a primeira definio de mito se mistura inextrincavelmente segunda: em diversos momentos de sua teoria, Freud recorreu aos mitos de origem e s referncias e metforas mitol-gicas tanto para abordar e explicar as caractersticas do que ele observava no presente, quanto para preencher lacunas tericas que surgiam quando ele no via claramente, isto , quando tentava pensar para alm do que parecia forma-lizvel conceitualmente. Para Gondar (1995), o recurso ao mito apontaria para um limite na teoria que impediria a construo de um sistema totalizante.

    No toa que o conceito de pulso abstrao metapsicolgica que engendra importantes efeitos de realidade no sujeito foi apresentado como entidade mtica: A teoria das pulses , por assim dizer, nossa mitologia. As

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    pulses so entidades mticas, magnficas em sua impreciso. Em nosso traba-lho, no podemos desprez-las, nem por um s momento, de vez que nunca estamos seguros de as estarmos vendo claramente (Freud, 1933b, p. 98). Em uma carta para Einstein, Freud escreveu:

    Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma esp-cie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradvel. Todas as cincias, porm, no chegam, afinal, a uma espcie de mitologia como esta? No se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua fsica (Freud, 1933a, p. 204)?

    Com isso, Freud criticava a ideia de uma construo terica totalizante e autoexplicativa e afirmava serem todas as cincias mitologias cientficas, isto , forjadas para dar conta de uma determinada questo.

    Neste artigo abordaremos especificamente o recurso freudiano aos mitos na abordagem da problemtica do originrio, a partir de trs eixos: (1) o con-ceito de originrio e a hiptese do recalcamento originrio; (2) a hiptese filo-gentica segundo a qual a histria da espcie ecoaria e, em certa medida, se repetiria em cada indivduo e (3) o mito cientfico da horda primitiva, do nas-cimento da cultura e de seus interditos.

    O originrio e o recalque originrio

    Relativamente questo do originrio em Freud e na esteira de Mezan (2010), destacamos os trabalhos de Stein (1987), Le Guen (1974 e 1991) e La-planche (1992 e Laplanche & Pontalis, 1985). Se os dois primeiros desen-volvem pontos de vista diametralmente opostos, cada um a partir de conceitos prprios, o terceiro opera uma espcie de sntese dos dois, tambm a partir de conceitos prprios. Em todos, a discusso sobre os acontecimentos originrios deverem ser considerados mticos ou no.

    Stein (1987), ao discutir amplamente a questo do originrio, articulou-a ao setting analtico, o concebendo como o espao privilegiado de atualizao do originrio. Para este autor, por mais remotas e elaboradas que sejam, lem-branas da infncia jamais levaro o sujeito descoberta de uma cena primiti-va nica, real, reveladora e detentora da verdade neurtica, porque no existiria um acontecimento real causador do sintoma: a fantasia seria a produ-tora de verdades sempre provisrias. Da ela poder e dever ser constantemente atualizada, de modo poder expressar, na medida do possvel, as origens dos sintomas. Assim, para Stein (1987), o originrio seria sempre mtico por estar

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    situado fora do tempo da histria individual, sendo a situao analtica o lugar privilegiado de produo e de reproduo destas fices singulares. Mais radi-calmente, o originrio e a situao analtica seriam equivalentes, pois o primei-ro no existiria fora da segunda, definindo-se como uma construo que s pode se dar na presena do analista. Para o autor, qualquer narrativa constru-da sobre o indivduo, incluindo a cena primria, seria sempre um mito da constituio do sujeito (Stein, 1987, p. 83). Sobre as ideias de Stein (1987), Mezan (2010) escreveu:

    Para Stein, a cena primitiva a atualizao mais prxima do fantasma inconsciente. Ela apresenta um carter mtico pelo fato de que todos os seus representantes so transposies mais ou menos deformadas destes fantasmas; caracterizada pela fascinao do sujeito, que nela se acha implicado na condio de testemunha. Resulta, enfim, de um movimento regrediente, cuja origem a situao analtica; pelo jogo combinado da regres-so, da transferncia e da interpretao que ela se estrutura, fru-to de um trabalho de construo (Mezan, 2010, p.106).

    J Le Guen (1991), ao contrrio de Stein (1987), considera como reais os eventos da infncia e acredita serem efetivamente determinantes para a orga-nizao psquica, alm de influenciarem radicalmente o percurso analtico. Contudo, para este autor, a histria individual no escrita somente linear-mente de trs para frente, a partir de acontecimentos reais da infncia: a hist-ria do sujeito se faz num movimento constante de continuidade e ruptura com a histria da infncia. Atualizado permanentemente, o passado devir.

    De modo aparentemente contraditrio, Le Guen (1991) remete o origin-rio a uma situao real, ainda que no precisamente datvel. Para isso, o autor constri um novo conceito o de apoio/a posteriori , composto pelas duas faces da mesma realidade fundamental. Importa esclarecer que o autor no contesta o uso especfico do conceito de apoio em Freud, mas sugere ampli-lo. Segundo Mezan (2010), a novidade deste conceito estaria na barra que ao mes-mo tempo, une e separa o apoio do a posteriori, enfatizando uma relao dia-ltica e contraditria entre estes dois termos. Para Le Guen (1991), o que caracteriza o apoio que um antes indica e restringe o caminho para um de-pois, isto , o posterior delimitado pelo anterior. Da a estruturao de deter-minadas defesas e no de outras, de determinados desejos e no de outros: o efeito do apoio seria limitar as possibilidades do desenvolvimento, determi-nando certos rumos e bloqueando outros. Neste sentido, o conceito de apoio no se limitaria ao apoio entre as pulses ou da pulso no instinto, mas se re-

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    feriria a toda passagem de um nvel ou estado para outro, desempenhando papel fundamental na construo do psiquismo.

    Porm, por estar articulado noo de a posteriori, designaria um proces-so duplo, isto , um mesmo processo com dois momentos distintos: o passado determina o atual e o atual confere e remaneja o sentido deste passado. Um bom exemplo o conceito central de dipo Originrio (Le Guen, 1974), se-gundo o qual o complexo de dipo seria a pedra angular dos destinos do de-senvolvimento: o romance triangular edpico apoia a construo do sujeito, ou seja, o pano de fundo que sustentar certa narrativa e delimitar o campo de possibilidades. Mais ainda, para Le Guen (1974), o contedo do originrio seria predominantemente composto pelo conflito traumtico edpico a ser re-visitado no setting. De modo mais genrico, o autor (Le Guen, 1991) ilustra suas ideias de seguinte modo: uma gota dgua sobre um plano inclinado pode seguir caminhos diversos, mas isso s pode acontecer se o plano estiver incli-nado. O conceito de apoio ampliado funcionaria como esse plano inclinado, ou seja, de acordo com o modelo freudiano dos caminhos da sexualidade in-fantil (Freud, 1905), o estgio anal se apoiaria sobre o estgio oral anterior etc. Dito de outro modo, o apoio permitiria uma evoluo da escolha de objeto ao longo do desenvolvimento.

    Mas, ao mesmo tempo, a complexidade da organizao psquica no pode ser explicada exclusivamente pelo apoio, pois ele sofre os efeitos das significa-es e ressignificaes a posteriori. De tal modo que a (re)apropriao da his-tria pelo sujeito seria marcada por um devir a posteriori, uma vez que, de maneira aparentemente contraditria, sempre posteriormente que determi-nado acontecimento significado e historicizado. Seja como for, percebe-se que este modelo fundado na contradio e relaciona o originrio a uma situ-ao real (Mezan, 2010).

    V-se como Stein (1987) e Le Guen (1974 e 1991) divergem a respeito do papel atribudo realidade material, relativamente s origens da constituio psquica. De um lado, Stein (1987) recusa a realidade material, baseando-se na interpretao psicanaltica como fio condutor da reconstruo dos mitos his-tricos do indivduo: o nico originrio verdadeiro seria a situao analtica. De outro, Le Guen (1974 e 1991) contesta a ideia de um originrio exclusiva-mente mtico, pois, com efeito, ele se ancora na realidade biogrfica de cada um, ainda que sua significao seja conferida e remanejada a posteriori (Me-zan, 2010).

    Por sua vez, o terceiro autor, que destacamos, J. Laplanche (1992), define o originrio como conjuntamente emprico e mtico, deslocando a questo e,

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    com isso, ultrapassando a oposio entre Stein e Le Guen. Para Laplanche (1992), o originrio no corresponderia ao conflito edpico, mas ao que ele chamou de seduo originria. Com inspirao ferencziana, Laplanche (1992) afirma que a seduo infantil decorre do confronto entre a criana e um mun-do adulto que lhe prope significantes sexuais enigmticos e obscuros, para os quais ela ainda no dispes de recursos interpretativos e elaborativos. Este ori-ginrio estaria presente no incio da vida de modo universal e independente-mente de qualquer contingncia, pois a situao originria no se referiria a uma cena de seduo real por um adulto, mas a uma necessidade lgico-estru-tural da teoria: todas as crianas encontram-se confrontadas com os signifi-cantes enigmticos do mundo adulto desde seu nascimento. De modo que o originrio seria, ao mesmo tempo, imanente e transcendente, referido a uma generalizao terica e podendo ser mobilizado e revivido na cena analtica, em um esforo de metabolizao e traduo.

    diferena do que prope Le Guen (1974), o complexo de dipo ocuparia lugar secundrio relativamente seduo originria, princpio organizador da vida psquica. Antes do dipo propriamente dito, a criana encontra o adulto e, na posio de objeto, recebe significantes ainda sem recursos para decifr--los. Os processos de inscrio, simbolizao e traduo destes significantes, bem como seus restos, corresponderia, na perspectiva laplancheana, ao recal-que originrio subdividido em dois momentos. O primeiro corresponderia inscrio dos significantes enigmticos inconscientes do adulto na criana, exi-gindo um trabalho de simbolizao. O segundo momento corresponderia ao incio da tentativa de traduo desses significantes obscuros. Tal processo em dois momentos inscrio e traduo deixaria restos recalcados, formando o ncleo do inconsciente (Mezan, 2010). Ora, em estado de dicionrio, o con-ceito de recalcamento originrio designa um processo hipottico descrito como o primeiro momento da operao de recalque, tendo como efeito a for-mao de certo nmero de representaes inconscientes ou do recalcado origi-nrio (Laplanche; Pontalis, 1982). Embora obscuro, este conceito est presente ao longo de toda a obra freudiana desde o estudo do caso Schreber (Freud, 1911) e pea fundamental da teoria do recalque: uma representao no pode ser recalcada se no sofrer, simultaneamente ao da instncia re-calcadora, uma atrao por parte de contedos j inconscientes.

    Mas, se assim, como explicar a existncia deste marco-zero, destas for-maes inconscientes atratoras, anteriores a quaisquer outras que pudessem t-las atrado? V-se, claramente, como a questo das origens da constituio psquica que est em jogo e como a funo do recalque originrio seria forne-

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    cer uma explicao lgico-temporal para o recalque propriamente dito atravs do recurso a um tempo arcaico, originrio e mtico, anterior ao ingresso no simblico e impossvel de ser localizado cronologicamente na histria de qual-quer sujeito (Garcia-Roza, 1992).

    Dividindo o recalcamento em duas fases e aproximando o recalcamento originrio da fixao, Freud escreve:

    Temos motivos suficientes para supor que existe um recalca-mento originrio, uma primeira fase de recalque, que consiste em negar a entrada no consciente ao representante psquico (ideacional) da pulso. Com isso, estabelece-se uma fixao; a partir de ento, o representante em questo continua inalterado e a pulso permanece ligada a ele. (...). A segunda fase do recal-que, o recalque propriamente dito, afeta os derivados mentais do representante recalcado ou sucesses de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham entrado em ligao asso-ciativa com ele. Por causa dessa associao, essas idias sofrem o mesmo destino daquilo que foi originariamente recalcado. Na realidade, portanto, o recalque propriamente dito uma presso posterior (Freud, 1915a, p.153).

    Trocando em midos, os representantes-representao, aos quais foi ne-gado o acesso conscincia, comporiam o recalcado original ou primrio ao inaugurarem, atravs de sua inscrio, o sistema Inconsciente, funcionando como plos de atrao para o recalque secundrio posterior. Mas, se o recalque originrio est na origem das primeiras formaes inconscientes, o seu meca-nismo no pode ser explicado nem por uma ao do superego, nem por um investimento por parte do Inconsciente, nem por um desinvestimento do Pr--consciente/Consciente, pois estes sistemas ainda no esto formados. Trata--se, para Freud (1915b), do obscuro processo de contra-investimento como defesa contra um excesso de excitao proveniente do exterior, capaz de rom-per o pra-excitao provocando um traumatismo. Como destaca Guillaumin (2003), o traumatismo apresenta nitidamente o carter mtico de um aconteci-mento originrio insignificado, sobre o qual deve ser inventado um relato do passado, a posteriori, analgico realidade. A verdade testemunhal (a autenti-cidade) deste relato seria, assim, um falso problema, pois estaria ligada, para sempre e paradoxalmente, ao seu carter de metfora de um significado alta-mente real, mas inesgotvel pela representao. Isto de um ponto de vista tan-to individual (o trabalho de simbolizao e de elaborao de um sujeito em anlise) quanto terico: ao tentar explicar porque uma experincia como, por exemplo, a cena primria se tornaria excessivamente forte para um sujei-

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    to que ainda no disporia de um sistema simblico que lhe conferisse signifi-cao, Freud recorreu filogenia como sendo o informador arcaico dessas experincias originrias (Garcia-Roza, 1992).

    A hiptese filogentica

    Recurso terico recorrente na teoria freudiana, a hiptese filogentica aparece sempre em torno da problematizao sobre a constituio psquica em geral, os mecanismos originrios implcitos nesse processo, o estabelecimento de determinados padres de funcionamento (particularmente os egicos) e as formas de organizao psquica de que se tem notcia. O quanto disposio filogentica pode contribuir para a compreenso das neuroses, no podemos ainda estimar (1915c, p.10), escreve Freud num rascunho datado de 1915, encontrado em 1983. Para ele, seria legtimo admitir que as neuroses testemu-nham a histria do desenvolvimento psquico do ser humano e que a histria do desenvolvimento da libido recapitularia o desenvolvimento filogentico (Freud, 1915c).

    Embora, segundo alguns comentadores (por exemplo, Sulloway, 1979 e Ritvo, 1990), Freud fosse um darwinista convicto, ele no se furtou a fazer uso de outras teorias evolutivas que lhe parecessem interessantes por motivos variados. Com efeito, Freud tomou conhecimento das ideias de Darwin atravs da leitura feita pelo zologo alemo Ernest Haeckel; este, ao traduzir Darwin, acrescentou teoria da evoluo a Lei Biogentica Fundamental ou Teoria da Recapitulao, segundo a qual a ontognese recapitularia a filognese, ou seja, o desenvolvimento individual recapitularia as fases do desenvolvimento da espcie (Roudinesco & Plon, 1998). Apesar da fragilidade terica desta lei de Haeckel, decorrente da generalizao exagerada realizada com base em evi-dncias escassas e duvidosas, e dos ataques ferozes e variados que sofreu desde sua primeira publicao em 1866, ela foi uma das teorias que gozaram de grande prestgio, tendo exercido forte influncia no final do sculo XIX (Gould, 1981).

    Freud no escapou desta influncia, mas metabolizou-a de um modo bas-tante particular, organizando sua filogentica a partir de uma ideia central, expressa explicitamente em 1930, atravs de uma metfora grfica: imagine-mos a Roma moderna com todas as suas construes perfeitamente preserva-das desde os dias de Rmulo at hoje. Embora logicamente isto seja impossvel, pois dois objetos materiais no podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tem-po, nada impede que os processos psquicos possam corresponder a esta viso

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    de uma cidade verdadeiramente eterna (Freud, 1930). Ou seja, no psiquismo, o passado, via de regra, persevera: a sucesso envolve a coexistncia.

    Ao afirmar que, no psiquismo, estgios precedentes estariam presentes no estgio atual, Freud propunha que a dimenso temporal relativamente ao ps-quico precisava ser diversa da implcita na Teoria da Evoluo. Para pensar a evoluo biolgica e o desenvolvimento dos corpos, o evolucionismo operava com o tempo linear cronolgico: de antes para depois e do menos perfeito para o mais perfeito. Por sua vez, Freud considerava, simultaneamente, o tempo do agora, do instante em que o psquico acontece, e o tempo mtico da origem. No primeiro, as formas passadas so presentes, explcita ou implicitamente, tanto filo quanto ontogeneticamente: no psiquismo, o tempo no linear, espirala-do e pontual. Neste tempo, a evoluo no se daria em direo perfeio, mas, sim, no sentido de um desdobramento conforme o contexto e a histria, no qual os momentos anteriores no se apagam completamente, pois deixam marcas que, eventualmente, podem permitir a sua (re)construo e que, sobre-tudo, determinam as formas que surgem no presente.

    Destes estgios psquicos anteriores, Freud acreditava ter encontrado fs-seis, nas palavras de Pierre Fdida (1994). Em 1900, anunciou sua inteno:

    O sonhar, em seu conjunto, uma regresso condio mais primitiva do sonhador, uma reanimao de sua infncia, das moes pulsionais que ento o governavam e dos modos de expresso de que dispunha. Por trs desta infncia individual, se nos promete alcanar uma perspectiva sobre a infncia filo-gentica, sobre o desenvolvimento do gnero humano, do qual o do indivduo , de fato, uma repetio abreviada, influencia-da pelas circunstncias contingentes de sua vida (Freud, 1900, p. 542)

    E, depois de citar Nietzsche (no sonho segue em ao uma antiqssima relquia do humano que agora j no pode ser alcanada por um caminho di-reto [1900, p. 542]), Freud prossegue:

    [...] isso nos leva a esperar que mediante a anlise dos sonhos obteremos o conhecimento da herana arcaica do homem, o que h de inato em sua alma. Parece que os sonhos e as neuroses conservaram, para ns, da Antigidade da alma, mais do que poderamos supor, de modo que a psicanlise pode reclamar para si um lugar de destaque entre as cincias que se esforam em reconstruir as fases mais antigas e obscuras dos comeos da humanidade (Freud, 1900, p. 542)

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    Treze anos depois, o metapsiclogo levou esta convico s ltimas conse-qncias e embarcou num projeto evolucionista-antropolgico ambicioso: descrever o que os sonhos e as neuroses lhe faziam ver das origens do psiquis-mo humano, a saber, a passagem do estado de natureza para a civilizao e, nessa passagem, as origens da regulao sexual mais comum entre os homens, o tabu do incesto. Aqui, mais do que no rascunho de 1915, sua ideia de uma filognese psquica na origem do psiquismo e de alguns de seus processos ga-nhou visibilidade, pois, mesmo hesitante, Freud construiu publicamente o mito psicanaltico da histria da humanidade: a horda primitiva e o assassina-to do Pai tambm primevo. Embora fosse apenas um mito, Freud gostava dele o suficiente para referir-se a ele muitas outras vezes, at o final de sua vida.

    Gostava tambm de argumentar que o desenvolvimento libidinal geral dos indivduos recapitula uma sequncia de estgios da histria da civilizao. Vestido de antroplogo, comparava o narcisismo das crianas pequenas crena primitiva na personificao e no poder dos pensamentos (animismo), o vnculo sexual com os pais (complexo edpico) ao desenvolvimento da reli-gio monotesta, e o domnio maduro do princpio de realidade fase cientfi-ca da civilizao. Em O ego e o id, escreveu:

    As experincias do ego parecem, a princpio, estarem perdidas para a herana; mas, quando se repetem com bastante fre-qncia e com intensidade suficiente em muitos indivduos, em geraes sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em expe-rincias do id, cujas impresses so preservadas por herana. Dessa maneira, no id, que capaz de ser herdado, acham-se abrigados resduos das existncias de incontveis egos; e quan-do o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as (Freud, 1923, p. 51).

    Com essa ideia, Freud pressupunha uma preexistncia lgica da cultura que se encontra aqum da histria do sujeito e que, no entanto, faz parte dela e presentifica-se, atravs das geraes, da ordem simblica, dos discursos que vigoram e do fio histrico tecido pela gentica e pela cultura. Uma origem e um tempo mtico que extemporneo ao sujeito, mas no qual ele dever advir a fim de fundar a sua prpria temporalidade (Gondar, 1995, p. 80). Este mito filogentico est presente tambm nas formulaes sobre as proto-fantasias ou fantasias originrias: o patrimnio filogentico explicaria estas estruturas fan-tassticas que funcionariam como organizadores da vida fantasstica, no im-portando quais tenham sido as experincias pessoais de cada sujeito.

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    Segundo Laplanche & Pontalis (1982), o termo fantasia originria apa-rece na obra freudiana em 1915 por referncia a formaes psquicas que podem ser encontradas de modo muito generalizado nos sujeitos, sem que se possa remet-las a cenas realmente vividas individualmente. Por exemplo, a castrao no teria sido realizada ou ameaada de ser realizada por um pai indivi dual, mas teria sido realmente praticada pelo pai em um tempo remoto mtico.

    Acredito que essas fantasias primitivas, como prefiro denomi-n-las, e, sem dvida, tambm algumas outras, constituem um acervo filogentico. Nelas, o indivduo se contata, alm de sua prpria experincia, com a experincia primeva naqueles pon-tos nos quais sua prpria experincia foi demasiado rudimentar. Parece-me bem possvel que todas as coisas que nos so relata-das hoje em dia, na anlise, como fantasia seduo de crian-as, surgimento da excitao sexual por observar o coito dos pais, ameaa de castrao (ou, ento, a prpria castrao) fo-ram, em determinada poca, ocorrncias reais dos tempos pri-mitivos da famlia humana e que as crianas, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade individual com a verdade pr-histrica. Repetidamente tenho sido levado a sus-peitar que a psicologia das neuroses tem acumuladas em si mais antiguidades da evoluo humana do que qualquer outra fonte (Freud, 1917, p. 373).

    Ora, desde a inaugurao do campo psicanaltico, o mundo das fantasias apresenta consistncia prpria, ou seja, uma organizao e uma eficcia bem delineadas pelo prprio conceito de realidade psquica. De modo que notvel o conhecimento pleno da fantasia como um domnio autnomo explorvel, com consistncia prpria, no ter suspendido a questo freudiana sobre sua origem (Laplanche; Pontalis, 1985). No Homem dos lobos (Freud, 1918), por exemplo, o metapsiclogo procurou obsessivamente estabelecer a realida-de da cena de observao do coito dos pais. Mas, embora se mostrasse abalado pela tese junguiana, segundo a qual esta cena seria to somente uma fantasia retroativamente construda, sustentou insistentemente que a percepo teria fornecido indcios criana e introduziu o conceito de fantasia originria. Com isso, Freud revelava, ao mesmo tempo, seu desejo de encontrar o apoio do acontecimento real e de fundamentar a estrutura da fantasia em algo diver-so deste acontecimento. Por isso, ao atentarmos para os temas encontrados nas fantasias originrias, perceberemos que todos so relativos s origens. Assim como os mitos coletivos, as fantasias originrias parecem pretender contribuir, com uma representao e uma espcie de soluo, para o que a criana percebe

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    como enigma principal, pois dramatizam, como momento de emergncia e como origem de uma histria, o que aparece para o sujeito como uma realida-de espera de explicao. Para Laplanche & Pontalis (1985), a cena originria figuraria a origem do sujeito, as fantasias de castrao figurariam a origem da diferena sexual e as fantasias de seduo figurariam a origem da sexualidade.

    Totem e tabu: o mito cientfico

    Tradicionalmente lido como uma narrativa que pretendeu, seno explicar, ao menos ilustrar o tempo mtico das origens da cultura e das origens do sujei-to, o mito cientfico (Freud, 1921, p.146) freudiano, conhecido como Totem e tabu (Freud, 1913), se organiza em torno da proibio do incesto elemento nuclear da trama edpica. Para introduzir a ideia de uma passagem histrica da natureza para a cultura, da horda primitiva para a sociedade humana organiza-da por leis, Freud recorreu clebre narrativa mtica que tem no Pai morto a metfora da inscrio da lei que rege os homens e organiza a sociedade huma-na. Lei que opera tanto externa quanto internamente, pois, ao ser internaliza-da, a interdio do incesto regula tambm os comportamentos sociais. Para alguns comentadores (por exemplo, Roudinesco & Plon 1998), Totem e tabu seria mais um texto poltico do que uma obra antropolgica, como se preten-deu. Nos quatro ensaios que o compem, o mito filogentico ganhou ainda mais visibilidade, consolidando-se como uma verso psicanaltica da histria da humanidade (Winograd, 2007).

    Afinado com a literatura evolucionista da poca, o mito freudiano da hor-da primitiva e do assassinato do Pai est fortemente apoiado na Teoria da Re-capitulao de Haeckel (1868), na tese da herana dos caracteres adquiridos popularizada por Lamarck (1809) e na descrio de uma horda selvagem feita por Darwin (1871). De modo extremamente resumido, o mito freudiano narra um estgio primitivo da humanidade, durante o qual o pai-chefe da horda primeva tomava para si todas as mulheres do cl. Rebelando-se contra o pai, os filhos teriam, no apenas destitudo o dominador da horda selvagem, mas, num ato de violncia coletiva, assassinado o pai e comido seu cadver em uma orgia canibalesca. Aps esta passagem ao ato, teriam sentido-se culpados, re-negado sua ao violenta e institudo uma nova ordem social, estabelecendo como regras: a exogamia, o totemismo baseado na proibio do assassinato do substituto do pai (o totem) e a proibio do incesto. A possibilidade posterior de uma coletividade teria se sustentado, ento, mediante acordos entre os su-jeitos, segundo os quais cada macho renunciaria s fmeas do cl, embora ti-

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    vessem matado o pai para as possurem. Contudo, segundo Freud (1913), este pacto civilizatrio entre irmos parricidas seria, na verdade, frgil: persistiria o desejo de ocupar o lugar interditado do pai assassinado. Quanto ao totem, com a morte do pai, o animal escolhido como smbolo sagrado do ancestral no podia ser molestado ou morto, a no ser em uma ocasio: de tempos em tempos, os homens se reuniriam para um banquete no qual o animal totmico adorado fosse esquartejado e devorado coletivamente para que seu poder fosse repetidamente introjetado por todos, em um ritual simblico do parricdio original.

    V-se como o mito de Totem e tabu projetou, sobre a origem da civiliza-o, um mal-estar sombrio: crime, castigo (culpa) e interdio alicerces da ordem social. Ao mesmo tempo, os mecanismos de recalque e sublimao, herdeiros da tragdia filogentica, neutralizariam e aliviariam as foras pulsio-nais erticas e destrutivas, convertendo-as para o bem do prprio sujeito e da coletividade, em um movimento de renncia narcsica. Trocando em midos, o mito freudiano pretendeu ilustrar, na origem da civilizao, como se estabe-leceu esta constante tenso entre as exigncias pulsionais individuais e as exi-gncias coletivas e sociais que possibilitam o lao social. Nas palavras do prprio Freud,

    A vida humana em comum s se torna possvel quando se rene uma maioria mais forte do que qualquer indivduo isolado e que permanece unida contra todos os indivduos isolados. O poder desta comunidade estabelecido como direito, em oposio ao poder do indivduo, condenado como fora bruta. A substitui-o do poder do indivduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilizao. Sua essncia reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfao (1930, p.101).

    Mas, tambm possvel ler o complexo de dipo a partir da histria das origens da civilizao ilustrada em Totem e tabu: o mito da horda primitiva explicaria a origem das tendncias inconscientes homicidas e dos desejos in-cestuosos constitutivos do complexo de dipo, rebatendo, uma vez mais, a his tria da espcie (da cultura) na histria individual. A ideia de que os ir-mos da horda teriam sido tomados pelo mesmo jogo de foras contraditrias em operao no complexo de dipo, manifesto pelos pacientes neurticos, enco briria uma concluso ainda mais fundamental: os irmos no teriam sido invadidos por sentimentos edipianos que teriam levado a ao mas, inver-samente, o assassinato teria sido o fundador de tais sentimentos. O mito da

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    horda explicaria, desta forma, o surgimento dos desejos edipianos, e no o contrrio (Mezan, 1985). Assim, ao invs do crime corresponder aos desejos edipianos, estes seriam estruturados por ele. Ou seja, matar o pai e possuir a me seriam tendncias que existiriam no inconsciente recalcadas, justa mente a partir do crime cometido, e no o contrrio. Para Mezan (1985), esta seria a originalidade freudiana: associar a emergncia do complexo de dipo e o sur-gimento da sociedade civilizada por meio do mesmo ato. No final deste livro, Freud (1913) sustenta que a eliminac o do pai primevo pelos filhos deixou trac os indelveis na histria da humanidade e, quanto menos estes trac os fo-rem relembrados, mais substitutos originariam. Os indivduos mo dernos vi-veriam repetindo, coletiva e individualmente, os trac os deixados pelo ato fundante da civilizao.

    Ora, se assim, se a configurao edpica se pretende universal, tradu-zindo na histria familiar as proibies fundadoras de todas as sociedades humanas e fazendo do recalque uma operao psquica herdada atravs da histria, podemos supor que as formas de neurose descritas por Freud (histe-rias e neurose obsessiva) teriam sobrevivido aos tempos e se efetivado como organizaes psquicas adaptativas que perseveraram filogeneticamente; in-dependentemente das crticas variadas e pertinentes a respeito, esta foi a ideia expressa em A phylogenetic fantasy (traduzido para o portugus como Neuro-ses de transferncia: uma sntese) (Freud, 1915c). De qualquer modo, certo que Totem e tabu reforava a hiptese de que o desenvolvimento psquico individual repetiria, em certa medida, o desenvolvimento psquico da esp-cie. E isto, tambm relativamente ao surgimento do superego principal he-rana do complexo de dipo. A ocorrncia histrica do superego no seria em absoluto casual, pois ele teria como funo original salvaguardar e garan-tir a obedincia s leis que possibilitavam a vida coletiva, entre outros, atravs da culpa, sentimento que teria sido adquirido quando da morte do pai pelos irmos reunidos em bando (Freud, 1913, p. 25). Por esses motivos, Totem e tabu pode ser definido como um mito de origem ou como (...) um retrato bem conservado de um primitivo estgio de nosso prprio desenvolvimento (Freud, 1913, p. 21).

    Palavras finais: tempo, mito e origem

    At o final de sua obra, Freud perseguiu seus mitos, como se v em sua ltima publicao, Moiss e o monotesmo (1939). Nele, o metapsiclogo reto-mou e condensou elementos fundamentais de escritos anteriores sobre cultu-

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    ra e religio: o mito fundador da cultura (mito da horda primeva) foi vestido de signos da tradio judaica e nossa civilizao remetida aos mitos judaico--cristos. Essa obra foi classificada pelo prprio Freud (1939) como um ro-mance histrico, ou seja, um novo mito que instauraria uma articulao entre o verdadeiro e o falso e entre a cincia e a arte. Segundo Pastore (2012), aqui, a lei moral encontraria seu acabamento final ao expressar a hiptese freudia-na de que os deuses pagos do mundo grego foram substitudos pelo pai da religio judaico-crist. Destitudo o paganismo grego submetido ao impera-tivo do destino, no se poderia mais culpar os deuses pelos infortnios: o homem se tornou responsvel pelo inconsciente do qual deve se apropriar (Pastore, 2012).

    Em 1955, Lvi-Strauss (1955) definiu o mito como um sistema temporal relativo concomitantemente ao passado, ao presente e ao futuro, pois diz res-peito a acontecimentos que, apesar de serem supostos como tendo ocorrido em certo momento, compem uma estrutura permanente. Para ele, o mito tem uma estrutura tanto sincrnica, quanto diacrnica que, apesar de sua perma-nncia ao longo do tempo, traz a possibilidade de mudana. Mais ou menos na mesma poca que o antroplogo, o semilogo R. Barthes escreveu ser o mito uma fala:

    Naturalmente, no uma fala qualquer. So necessrias condi-es especiais para que a linguagem se transforme em mito; v--lo-emos em breve. Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o incio que o mito um sistema de comunicao, uma mensagem. Eis por que no poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele um modo de significao, uma forma (Bar-thes, 1957, p. 200)

    Barthes (1957) prossegue afirmando poder se dizer que a caracterstica fundamental do conceito que um mito expressa a de ser apropriado. Os mitos no so narrativas de acontecimentos reais originrios, mas construes que inventam comeos e, assim, repaginam a posteriori a histria segundo uma lgica temporal retroativa. Histria que no de acontecimentos passados e remotos, de uma infncia precoce e perdida, ou seja, de um mais-aqum da interioridade psquica individual. O passado s existe na medida em que historiado pelo presente: a histria do sujeito viva, constantemente (re)in-ventada e, nem por isso, menos verdadeira. Ao citar Goethe no captulo IV de Totem e tabu, Freud sublinhou a tarefa que se impe a todos: Aquilo que her-daste de teus pais, conquista-o para faz-lo teu (Goethe, Fausto, Parte I, Cena

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    I apud Freud, 1913, p.160). Este o imperativo dos mitos nunca abandonados por Freud at o final de sua obra.

    Monah [email protected]

    Larissa da Costa [email protected]

    Tramitao:Recebido em 23/08/2012Aprovado em 25/09/2012

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