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0 Guia dos Perplexos Parte 2

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M

a im ô n id e s

0 G u ia

dos

P er plex o s

Parte 2

T radução U ri L am P refácio J o s é L uiz G o ld fa rb

LANDY

II

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Título original: M oré HáNevuchim© da presente edição:

Uri Lam e Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.Tradução e Introdução:

Uri Lam

Preparação de originais:

Sylm ara BelettiCapa:

C am ila M esquitaCoordenação editorial:

V ilm a M aria da SilvaEditor:

Antonio D aniel Abreu

Produção:Kleber Kohn.Editoração:

ETCetera Editora de Livros e Revistas Ltda. Fones: (011) 38253504 / 38264945 Fax: (011) 38267770 [email protected]

Direitos reservados para a língua portuguesa

aLANDY

Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda. Alameda Jaú, 1.791 Ð tel. efax: (11) 30814169 (troncochave) CEP 01420002 ÐSão Paulo, SP, Brasil [email protected] www.landy.com.br 2003

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Os m ais sinceros agradecim entos ao m eu orientador d e M estrado, Prof. Dr. Luiz Paulo R ouanet, p elo m om ento inspirado em que m e sugeriu trabalhar comO Guia dos Perplexos. Ao J o sé Luiz Goldfarb, p ela feliz indicação da Editora Landyp a ra a p u b lica çã o

desta obra. A toda a eq uipe da Landy, em especial ao Daniel, p o r acreditar no projeto, à Vilma e à Sylmara, pelo cuidado e sensibilidade na revisão epelas sugestões

que tanto enriqueceram este trabalho. Finalm ente, um agradecim ento especial à Nancy, q ue está tão orgulhosa quanto eu pela concretização deste trabalho cu ja im portância, sabem os hoje, superou em m uitas vezes as nossas expectativas iniciais.

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Sumário

P R E F Á C IO ................................................................................................................................... IN T R O D U Ç À O............................................................................................................................

13 15 25 25 26 27 28 31 35 40 43

A nálise da Parte 2 de O G uia dos P erp le x o s.................................................... In tro d u ç ão ......................................................................................................... Provas filosóficas paraa existência, incorporeidade e unicidade da P rim eira C ausa (cap. 1) ......................................................................... Sobre as EsferasCelestes e as Inteligências Puras ou Separadas (cap. 2 a 1 2 ) ....................................................................................................... Sobre a teoria da E ternidade do U niverso (cap. 13 a 3 1 ) ............ Sobre a P rofecia (cap. 32 a 4 8 ) ............:................................................... P ossível contribuição de M ainiônides p a ra a filo so fia socia l co

n tem p orâ n ea ..... O P ro feta com o m odelo de líder e crítico s o c ia l............................ A b raham lo sch u a H eschel: os Profetas com o m o d e lo ...............

O G U IA D O S P E R P L E X O S P arte 2 INTRODUÇÃO Y in te e seis proposições dos Peripatéticos para dem onstrar a existência, unicidade e in corporeidade de D e u s .........................................................................

47

PROVAS FILOSÓFICAS PARA A EXISTÊNCIA, INCORPOREIDADE E UNICIDADE DA PRIMEIRA CAUSA 1. Os argum entos filo só fic o s................................................................................. : 55

SOBRE AS ESFERAS CELESTES E AS INTELIGÊNCIAS PURAS OU SEPARADAS 2. 3. 4. Sobre a ex istên cia das In teligên cias P uras ou Seres P uram ente E sp iritu a is.................................................................................................................... Sobre a hipótese de A ristóteles acerca das causas dos m ovim entos das esferas celestes .................................................................................................. As esferas celestes e as causas do seu m o v im en to .....................................

65 69 71

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10

O GUIA

DOS

PERPLEXOS

5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

. Concordância da teoria de A ristóteles com os ensinamentos da Bíblia................

................................................................................

.......... O que se entende pelo term o Malách (Anjo) e suas acepções, especialmente a de Inteligências Separadas......................................... A polivalência do termo Malách (A njo)............................................... Sobre a música das esferas celestes...................................................... Sobre o número de esferas celestes...................................................... A influência das esferas celestes sobre a Terra se manifesta de quatro modosd iferentes.....................................................................

................ A teoria da Excentricidade preferível à dos Epiciclos....................... Sobre a natureza da Influência (Emanação) Divina e a das esferas celestes...

................................................................................

....................

75 79 85 87 89 91 97 101

SOBRE A TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO 13. Três teorias diferentes sobre a origem do U niverso.......................... 14. Sete métodos por meio dos quais os filósofos buscaram provar a Eternidade do U n iverso ......................................................................... 105 111 115

15. Aristóteles não prova sua teoria................................................

............ 16.

A teoria da Creatio ex nihilo, mais provável que a da Eternidade do U niverso.................................................................................................... 119

17. A s Leis da Natureza se aplicam às coisas criadas, mas não regulam o ato criativo que as produz. Refutação das quatro primeiras provas dos aristotélicos....................................................................................... 121 18. 19. 20. 21. 22. Refutação dos três últimos métodos dos aristotélicos.................... 125

Plano da Natureza. Provas em favor da Creatio ex nihilo. Refutamse algumas falhas da teoria aristotélica..................................................... 129 Objeções à teoria da Eternidade do U niverso.................................... A teoria da Creatio ex nihilo é preferível à da Eternidade do Universo 137 141

As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento das esferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem diante da idéia do Universo criado por D e u s ................................................. 145

23. A Teoria da Creatio ex nihilo é preferível àquela da Eternidade do U niverso.................................................................................................... 149 24. As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento das esferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem diante da idéia do Univ

erso criado por D eus....................................................... 151 25. A Teoria da Criação é adotada devido à sua superioridade própria, mesmo que as provas baseadas na Bíblia sejam inconclusivas......... 26. Exame de uma passagem de Pirkê

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diRabi Eliezer com relação à Criação ...................................................................................................... 157 161

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S U M Á RI O

II

27. A teo ria de um a fu tu ra d e stru ição do U n iv erso não faz p a rte da crença religiosa ensinada na B íb lia .................................................................. 165 28. O ensinamento bíblico está a favor da indestrutibilidade do Un

iverso. A do utrin a de Salom ão livro s sap ienciais a ele atrib uíd o s Ðcom relação àternidade do U niverso e sua p e rm a n ê n c ia .......................... 167 E xplicação das frases bíblicas que im p licam a destruição dos Céus e da T e r r a ................................................................................................................... 171 Interpretação filosófica de G ênesis 1 4 ........................................................ 183

29. 30. 31.

A instituição do Shabát serve para ensinar a Teoria da Criação e para prom over o b em estar do H o m em .................................................................. 193

SOBRE A PROFECIA 32. Três teorias a respeito da P ro fe c ia ................................................................... 195 199

33. A d ife ren ça en tre M o isés e os o utro s isra e lita s com resp eito à R evelaçãono M onte S in a i................................................................................... 34. 35. 36. 37. 38. 39.

E xplicação de Ê xodo 23:20 ................................................................................ 203 A d iferen ça en tre M oisés e os o utros P ro fetas comresp eito aos m ilagres perpetrados p or e le s ............................................................................ 205 Sobre as faculdades m entais, físicas e m orais dos P ro fe ta s................. 209 A E m anação D ivina sobre as f

aculdades im aginativas e m entais do H om em através do Intelecto A tiv o ................................................................ 215 A coragem e a intuição atingem o grau m ais alto da perfeição nos Profetas ........................................................................................................................ 219 M oisés foi o P ro feta m ais ap ropriado para receb er e p ro m u lg ar a L ei Im utável. Os P rofetas que o sucederam apenas a ensinaram e ex p licaram ................................................................................................................... 223 O teste da P rofecia V e rd a d e ira ......................................................................... 227 O que se entende p or V isão P rofética: os quatro m odos bíblico s Profetas receberam comunicação direta apenas em Sonhos ou Visões 231 235

40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48.

Sobre as parábolas dos P ro fe ta s........................................................................ 239 Sobre os diferentes m odos através dos quais os Profetas recebem m ensagens d iv in a s ................................................................................................... 243 Os diverso s tipos de P ro fetas: onze grau s de P ro fecia ou de P ercep ção P rofética; seu estudo cm três grupos .................................... 245 As parábolas dos Profetas fazem parte das visões P ro fé tic a s............ 253 Sobre o estilo m etafórico dos escritos p ro fé tic o s.................................... 257 A B íb lia confere a D eus, com o P rim eira C ausa de todas as coisas, os fenôm enos diretam ente originados de causas n a tu ra is ................... 261

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................... 265

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Prefácio

Em 1990, atuando então como editor, tive a oportunidade de con- vidar Haroldo de Campos a escrever a quarta capa da edição brasileira de Os 613 Mandamentos de Maimônides. E o sábio poeta pontuou:ªJ. G u in sb u rg escreveu a respeito de M aim ô n id es: ª O m o vim en to fi- lo só fico que se in icia co m A b raão ibn D au d e que exige um a sín tese o rgân ica, racio

n al, en tre as do utrin as p erip atéricas e os textos e sc ritu - rais en co n tra na obra de M aim ô n id es a sua Su m a R ab ín ica. C o m isso torn ouse ele o gran de lum in ar da escolásrica judaica da Id ad e M éd ia e, m ais ain da, p ela qualid ad e filo só fica e rig o r de suas fo rm u laçõ es, que co n stitu em resp o stas clássicas aos p ro b lem as in telectu ais de seu tem - po, um dos m aio res p ensado res em Israel de todos os tem p o s.º (D o E stu do e da Oração, Col. Ju d aic a, V. 3, Ed. P ersp ectiva, 1968). M aim ô n id es, que o auto r d e d E strela da R edenção , F. R o sen zw eig, ch am a ª o gran d e teórico da R ev elação º , in sp iro u em A ristó teles no seu em p en h o em m o strar a co m p atib ilid ad e da fé co ma razão. A tarefa assu m id a p ela teo lo gia ju d aica clássica, segun d o G. Scho lem , na fo rm u lação de ªan títeses ao p an teísm o e à teo lo gia m ític a º, ou sejaro v ar que estão errad o sº ÇA M ística Judaica, C ol. E stud o s, Ed. P ersp ectiv a,

1972). E ste livro , S eferH á M it^ votb (L ivro dos M an d a m en tos ou O s 613 M an dam en tos), co n fo rm e salien ta seu tradutor, G. N ah áíssi, ª co n stitu i a m elh o r in tro d u ção ao estudo da L ei M o sa icaº , (quarta cap a de O s 613 M an dam en tos , Ed. N o va Stella, 1990).

As palavras de Haroldo de Campos antecipamnos a dimensão do pensador que podemosagora conhecer em português na primorosa edição que aqui nos oferece a Editora Landy.Maimônides é sem dúvi- da um dos pilares do pensamento judaico. Não há hoje escola judaicareligiosa, leiga, filosófica que não reflita o pensamento de Maimônides.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Uri Lam, em sua brilhante pesquisa como mestrando, produziu uma tradução a um só tempo

 precisa e apaixonada da Segunda Parte Ðde três partes Ðde 0 Guia dos Perplexos, na qual segundo o exímio tradutor `Maimônides teve por meta estabelecer uma relação inteligívelntre a sabedoria judaica e a filosofia clássica grega através de uma espécie de diálogoentre os discursos dos nossos Sábios, por um lado; e os de Aris- tóteles (consideradopor Maimônides ªo Príncipe dos Filósofosº) e os Peripatéticos, por outroº. Fundir religiãoia, filosofia e fé, um projeto medieval, de uma Idade Média que há quase um século deixa de aparecernos como um período de Trevas e cada vez mais apaixona o contemporâneo. Um período fecundo em que o Ocidente grecolatino aprende/dialoga com o Oriente árabehebraico. Em que culturas e geografias diversas exi- gem um pensamento criativo e sintético. Nestas páginas vamos reconhecer questões que hoje sabemos te- rem sido devital importância nas determinações do contexto cultural em que se moldaram as origens da ciência moderna. Tomemos, para tomar apenas um caso emblemático, a discussão em to

rno da existên- cia da música das esferas celestes. Maimônides tem de enfrentarse, na defesa desta tese, com Aristóteles e com os Sábios de Israel. A mesma tese que viriaa influenciar Kepler e o próprio Isaac Newton. A heran- ça medieval incorporada à modernidade, de uma Idade Média redescoberta, tornase mais e mais redimensionada principalmente nos es- tudos da história da ciência. Conhecer mais a fundo esta erudita e importante contribuição filo- sófica de Maimônides é um convite para revisitarmos o séculomedieval, lançando ao mesmo tempo bases para compreendermos mais a fundo as origens da modernidade, sua ciência e sua tecnologia. As- sim poderemos melhor reconhecer as luzes do futuro que novamente estão a exigir sínteses entre Ocidente e Oriente.Como o tradutor, o jovem corajoso e audacioso Uri Lam nos indica, é hora de estudarmos Maimônides. Setembro, 2003.J o sé L u iz G o ld fa rb *

*

Professor de História da Ciência da PUCSP; Assessor de Gabinete, Secretaria de Estado da Cultura; curador do Prêmio Jabuti, CBL; Diretor Geral de Cultura, A Hebraica'.

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Introdução >

i Há uma antiga expressão sobre Maimônides que afirma: ªDe Moisés a Moisés, nunca houve ouo como Moisésº, A extensa obra de Maimô- nides sempre foi alvo de grande interesse. Suaimportância para o pen- samento judaico pode ser comparada à de São Tomás de Aquino para a filosofia cristã católica. Além de exercer inúmeras atividades durante sua vida, principal- mente médico da corte do Sultão Saladino no Egito, Maimônides foi também um important

e teórico e construiu uma obra considerável, que abrange a teologia, a filosofia, aastronomia e a medicina. Todavia, três de suas obras merecem maior destaque: M ishnaiót , ou os múltiplos Comentários sobre a M ish n á M ish n ê Torá (Repetição da Lei), ogantesca que lhe ocupou doze anos de trabalho contínuo (11681180) e marcou época na história do pensamento judaico talmúdico, pois se trata de uma sistematizaçâo da vastaliteratura talmúdica até então; e Dalalát alHairín (em árabe,) ou M oréH áN evucbim (emco), O Guia dos Perplexos (11801190) Ðescrito originalmente em árabe Ðtida como a obra de sua maturidade. Segundo Maeso,2 ªo M oréHáNevuchim só admite comparação, quanto à grosidade, com a Suma Teológica e a Divina Comédia, cada uma em seu gênero, a cujos autores precedeu em um século ou mais, balizando assim, os três, a história da cultura como figuras máximas da Baixa Idade Média (sécu- lo X II, Maimônides; século X III, São Tomásuino; século X IV , Dante Aliguieri)º.

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Mishná. o Código da Lei Rabínica que constitui o cerne do Talmnd. Cf. Maeso in: Maimônides. Guia de Perpkjos, p. 13.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Estas três obras maiores de Maimônides estão entremeadas crono- logicamente com outras muitas, cujas datas são impossíveis de preci- sar. Provavelmente escreveu seus tratados médicos nos últimos anos de vida, quando atuou quase que exclusivamente como médico da cor- te de Saladino.

2Maimônides, também conhecido como Rambám, um acrônimo for- mado pelas iniciais de seu nome completo, acrescido do título de Ra- bino Rav (Mestre, em hebraico), Moshé (Moisés),be.n (filho), Maimon Ðnasceu em Córdoba, na Andaluzia,3 Espanha, em 30 de março de 1135, no tempo da dominação dos Almohades* sobre a Península Ibérica. Córdoba era a cidade de sua família há oito gerações. Seu pai era estudioso do Talmúd e foi discípulo do Rabino Y

sêf ibn Migáts, da Academia Talmúdica de Lucena;5 era então o chefe do Tribunal Rabínico de Córdoba e o mais importante mestre das tradições judai- cas do local. Em 1148, os Almohades Ðsob a liderança de M ahadiibn

3 4

Andaluzia: também conhecida como AlAndalus^ ou Espanha Muçulmana. 

 Almohades do árabe ªConfessores da Unidadeº: grupo muçulmano fundamentalista liderado por Abd ei Mumin, cujo reinado se estendeu da Síria ao Oceano Atlântico. Os Almohades exigiam a conversão ao ªVerdadeiro Islamismoº, a emigração ou a morte; constituíram uma séria ameaça aoss e principalmente aos judeus, já então ameaçados pelas Cruzadas (cf. Nahaissi in: Maimônides, M. Ð Os 613 Mandamentos. 1990, p. 15). Lucena (AlYussana); cidade espanhola considerada, durante os séculos IX a XII, uma cidade de judeus. Com a decadência d

a Academia Talmúdica de Sura, na Babilônia, seus últimos mestres, após naufragarem em Córdoba e terem sido vendidos como escravos, foram resgatados por seus correligionários, in- corporaramse à comunidade judaica e transformaram a Andaluzia no centro espiritual do Judaísmo. Com o fim do califado de Córdoba, em meio a lutas pelo poder, muitos judeus fugiram para Lucena, já então denominada ªA Péro- la de Sefarádº (Espanha juda. Os séculos XI e XII foram o período de maior esplendor da Lucena judaica, cujo maior destaque foi a Academia Tal- múdica sob o comando espiritual de Isaac ibn Gaj^yát.A invasão dos Almoha- des, na primeira metade do século XII, culminou com a conversão, expulsão ou morte de todos os nãomuçulmanos. Em 1148 a Academia de Lucena foi fechada. Os judeus, em boa parte, exilaramse em terras cristãs. O último rabi- no de Lucena,Meir ibn Yossêf, passou a ensinar a tradição talmúdica em Marbona, no sul da França.

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INTRODUÇÃO

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Tamurt, sucedido por Abd el Mumin Ðconquistaram a antiga capital do califado, o que desencadeou uma sangrenta perseguição contra judeus e cristãos, dandolhes as opções deconversão ao Islamismo, a emigração ou a morte. Dadas as condições, em 1151 a família Maim

 foi forçada a deixar Córdoba. Maimônides e sua família passa- ram por um período relativante pacífico em Almeria,6 até a toma- da também desta cidade pelos Almohades. A partir de então, iniciaram novamente a vida de peregrinos por diversas cidades do sul da Espa- nha. Em 1158, aos 23 anos, Maimônides iniciou sua carreira literária com um tratado sobre o calendário judaico; na mesma época escre- veu, em árabe, o livro Conceitos de Lógica. Em 1160, abandonaram a Espanha, rumo ao Marrocos (norte da África). Durante sua adoles- cência e juventude, Maimônides pôde se dedicar aos estudos, pois era sustentado por seu irmão mais velho, David, um próspero mercador de pérolas. Em 18 de abrilde 1165, um sábado, emigraram para a Terra de Israel, então Palestina. Maimônides tinha trinta anos. Chega- ram em Aco (Acre) no dia 16 de maio, depois de penosa travessia. A Terra de Israel na época estava devastada pelas Cruzadas. Seguiram então a Fustat (Velho Cairo, Egito). Neste ano faleceram: o pai de Maimônides, seu irmão David

 Ðem um naufrágio durante uma via- gem de negócios Ðe sua esposa. Maimônides casouse novante com a irmã de um influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos secretários do rei. Este, por sua vez, casouse com uma irm ã de Maimônides, com a qual teve um filho de nome Abrahão. Após um ano em estado depressivo, Maimônides recobrou a saúde física e emo- cional. Dedicouse então à prática da Medicina para assegurar o sus- tento da famíliase tornou um dos médicos mais respeitados de todo o Egito, Maimônides também abriu uma escola de Filosofia e se in- corporou à Academia de Medicina. Em 1168 terminou seugrande Tratado Sobre aM isbná, iniciado na Espanha ainda em 1158. Em 1171 foi nomeado médico da corte de Saladino, a convite do Vizir AlFadel Ð cargo que desempenhou até sua morte e herdado por seu filho e des- cendentes. Maimônides era especialista em Gastroenterologia e escre- veu uma longa série de tratados médicos, especialmente no campo da

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Almeria: província de posição estratégica, voltada ao m ar M editerrâneo. No século X os ás fundaram sua capital, Almoraciti, que se tornaria um dos mais importantes centros da Espanha muçulmana durante oito séculos.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

medicina preventiva. Em 1177 foi nomeado N aguíd (Presidente) da comunidade judaica do Egito. Em 1180 terminou de escrever sua obra de maior fôlego, o M ishné Torá, iniciada doze anos antes e, aos 45 anos, passou a escrever, em árabe, o Dalalát alHairín ÐO Guia dos Perplexos Ð que terminaria em 1190. Em 1199, Maimônides escreveu uma carta a Shmuêl ibn Tibon, residente em Lunel (França), que, em setembro daquele ano, iniciara a tradução do Dalalát alHairín para o hebraico, sob o título de M oré háNevuchím.ução, encerrada em 1204, foi aprovada por Maimônides. Maimônides morreu em 13 de dezembro do mesmo ano, aos 69 anos. Foi enterrado em Tiberíades, Israel.

3O objetivo inicial de Maimônides, com 0 Guia dos Perplexos, era res- ponder aos anse

ios de Yossêf ibn Yehuda ibn Aknin, que viera de Ceuta7 para Alexandria com o únicointuito de se tornar seu discípulo. Ele partiu, após dois anos, para Alepo, na Síria,por motivos ignorados. Antes de sua partida, obteve de Maimônides a promessa de que este redigiria um tratado no qual responderia as suas dúvidas. Maimônides acreditava que, ao escrever uma obra que abordasse a relação possível entre o texto bíblico e atradição oral contida no Talmud, por um lado, e a filosofia, por outro, poderia possibilitar o acesso da razão aos segredos contidos na Bíblia e, assim, aliviar a ªperplexida- deº dos judeus eruditos diante das dificuldades na compreensão do texto bíblico. Segundo o estudioso Nahaissi,8 Maimônides, ao escrever O Guia dos Perplexos , não visava o público em geral, mas sim os estudiosos das tradições judaicas. Para ele, ªa originalidade de Maimônides nesse tra- balho foi a de estabelecer um diálogo entre o mosaísmo e a filosofia, ao invés de se limitar à utilização de seus conhecimentos filosóficos para fazer a apologia do judaísmo. Ele não renuncia a nenhuma das tradições do pensamento ju

deu, nem tampouco alimenta a ilusão de poder ªconciliarº a verdade bíblica e a verdade filosófica. Ao invés

7 8

Ceuta: cidade portuária localizada na costa mediterrânea do Marrocos, cm frente ao Estreito de Gibraltar, Espanha. Veja em Maimônides, M. Os 613 Mandamentos. 1990, p. 27.

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INTRODUÇÃO

19

disso, confronta as duas tradições, de maneira a sobrepôlas. Assim, Maimônides se outorga a missão de guiar os estudiosos para o conhe- cimento metafísico, o qual, segundo ele, é uma possessão original do judaísmo que havia se perdido durante o Exílio, e c essa

 perda que torna o Exílio tão trágico. Ele tem a convicção de que o renascimento da compreensão mais elevada, obtida graças à introdução da filosofia nos estudos religiosos, é o fa libertador que conduzirá ao aconteci- mento messiânico, teoria essa que, aliás, acreditase ser ele o primeiro a introduzir naqueles tempos de Exílioº. Maeso, por sua vez, afirma que ª(...) a obra não é dirigida nem aos filósofos nem tampouco aos leigos de toda formação intelectual, mas sim ao círculo de estudiosos que se vêem desconcertados por certos problemas que aparentam contradi- ção entre a religião e a filosofia ou simplesmente a razão natural (...)º, e declara que filosofia e religião são ª(...) ambos os extremos que 0 Guia dos Perplexos se propõe a conciliarº.9 Conforme o historiador NachmanFalbel, o acesso de Maimônides à filosofia grega somente teria sido possível de formaindireta, por meio dos filósofos árabes muçulmanos Ðafinal de contas, segundo ele, Maimônides não sabia grego. Seu interesse em buscar a conciliação enffe filosofia e religião es

taria em criar uma teologia judaica de alto nível e em demonstrar que a leitura dos textos bíblicos não deveria ser literal.

4 0 Guia dos Perplexos consiste de uma introdução e três partes, cujos temas centraissão os seguintes: Plimeira Parte: Exposição das idéias esotéricas (sodótÐsegredos) con- tis Livros dos Profetas. Segunda Parte: Defesa da Teoria da Criação em contraposição à Teo-a da Eternidade do Universo de Aristóteles e seus seguidores, os Peripatéticos; caracterização dos conceitos de Profeta c Profecia. Terceira Parte: Exame e refutação do sistema e do método do Kalám Ð corrente filosófica de orientação islâmica; análise do M aassêou seja, do texto esotérico denominado Relato das Carruagens Divinas (Ezequiel 1).

9

Veja em Maimônides, Guia de Perplejos, p. 15.

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2.0

O GUIA

DOS

PERPLEXOS

De acordo com esta estrutura e seu conteúdo, o trabalho ao qual Maimônides se propôs termina com o sétimo capítulo da Terceira Par- te. Os capítulos que se seguem podem ser considerados um apêndice e tratam dos seguintes temas teológicos: a existência do Mal;Onisciência e Providência; Tentações; a Forma na Natureza; por dentro da Lei (Tora) e por dentro das narrativas bíblicas; e, finalmente, a verdadeira adoração a Deus. Pareceque o autor adotou este arranjo pelas seguintes razões: primeiro pretendeu estabelecer o fato de que os antropomorfismos bíblicos não implicam corporeidade e que o Ser Divino mencionado pela Bíblia poderia, portanto, ser considerado idêntico à Primeira Causa dos filósofos. Estabelecido este princípio, na Segunda Parte discute, a partir de um ponto de vista filosófico e em diálogo com

 

a filosofia aristotéüca, as propriedades da Primeira Causa e sua relação com o Universo. Uma vez estabelecida a possibil

idade de exposição das passagens da Bíblia à razão, na Terceira Parte Maimônides trata defutar o Kalám , demonstrando que os argumentos dele são ilógi- cos e ilusórios. Maimônidesra um grande admirador da filosofia de Aristóteles, se bem que, à primeira vista, afilosofia islâmica dos Mutakálemim 10 pudesse parecer mais simpática às crenças judaicas.O Kalám sustenta- va a teoria da Existência de Deus, da Incorporeidade e da Unicidade, juntamente com a Creatio ex nihilo. Maimônides, contudo, se opôs ao Kalám, expôs o queconsiderava ser, do seu ponto de vista, a fragilidade e as falácias desta filosofia e preferiu o sistema de Aristóteles, apesar de este incluir a teoria da Eternidade do Universo, contrária ao ensina- mento fundamental da Bíblia.

5A partir do original escrito em árabe, ao longo de oito séculos foram escritas muitas versões de 0 Guia dos Perplexos em diversas línguas. Abaixo, citamos as principais

: Hebraico: Há duas mais conhecidas Ða de Shmuêl ibn Tibon, reali- zada entre 1199 e 1204 e a de Yehudá al Harizí, contemporâneo de

10

Mutakálemim. partidários da filosofia muçulmana do Kalám.

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INTRODUÇÃO

21

Shmuêl ibn Tibon. A versão do primeiro, realizada ainda durante a vida de Maimônides,com quem trocou cartas de orientação, foi auto- rizada por ele. Segundo Friedlander,11 a versão de Shmuêl ibn Tibon é muito acurada; ele sacrificou a elegânda de estilo pelo

 desejo consáente de reproduzir o trabalho do autor, e não negligenciou nem mesmo, uma ínfima parte, p o r menos importante que pudesse parecer. Sua versão, por isso mesmo, é considerada um calco do original, favorecida até pelo fato de se tratar de duas lín- guas semíticas antigas muito próximas.

 

Embora a versão de Yehudá al Harizí seja coerada mais sofisticada e elegante, a literalidade e o fato de ter sido autorizada pelo próprio Maimônides consagraram a versão de Shmuêl ibn Tibon. A edição mais antiga q se tem notícia da versão de Shmuêl ibn Tibon encontrase na Biblioteca Nacional de Paris. Tratase de um manuscrito de 1452, copiado por um certo Shmuêl ben Yitzchák.12Utüizouse, nessa tradução, a versão de ibn Tibon. Tatim: Imaginase que já havia versões0 Guia dos Perplexos em latim no século XIII, pois a obra era conhecida de Alberto Magno e São Tomás de Aquino. A mais conhecida, e tida como a melhor, foi realizada por Juan Buxtorf Filho, publicada em 1629 na Basiléia, Suíça. Francês: Aquela que é consi

derada a melhor versão é a de Salomão Munk, sob o título U Guide dês Egarés, Traite de Théie et de Philosophie, parM oise ben Maimoun, dit Maimonide. Considerada por muitos como a melhor já escrita em línguas modernas,13 é referência para muitas tra- duções poiores. Publicada originalmente entre 1856 e 1866, era tida como obra rara até serreimpressa em 1970. Italiano: A primeira foi realizada por Amadeo M. di Recanati (Yedídia ben Moshé), que a ditou ao irmão, Elias. Este terminou a tradução para o idiomaitaliano (mas com letras hebraicas) em 1583. Uma se- gunda versão, na verdade uma retradução da versão francesa de Munk,

11

12

13

Maimônides, M. The Guideforthe Perplexed. Tradução por Moses Friedlander. 2a edição. New York, USA: Dover Publications, 1956 [1904], 414p. Tradução de: Da/alât alHairín, p. xxviii. Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 32. Idem, p. 33.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

foi realizada por j. Maroni nos anos de 18701871, em Firenze, sob o título Guida

degli Smarriti. Alemão: A obra foi traduzida parcialmente por três autores. A Ter- ceira Parte por Simon Scheyer, em Frankfurt A. M., em 1838; a Primei- ra Parte por R. Fürstenthal, em Krotoschin, em 1839 e a Segunda Par- te, por M. E. Stern, em Viena, em 1864. Inglês: São duas as versões mais conhecidas. A de M. Friedlander, The G uideforthe Perplexed, diretamente do árabe e com base na versão francesa de Munk. A Primeira Parte foi originalmente publicada em 1881. A versão completa e revisada, em três tomos, só viria a ser publicada em 1904. A outra versão é a de Shlomo Pines e Leo Strauss, sob o patrocínio da Universidade de Chicago, cuja primeira edição data de 1936. Embora a contracapa do livro a considere a melhor versão de O Gaia dos Perplexosjá escrita em inglês, Maeso consideraa excessivamente literal.1 4 Espanhol: Há uma antiga tradução em espanhol, realizada a partir da versão hebraica de Yehuda al Harizí, por um certo Pedro de Toledo entre 1419 e 1432. Somente na segunda década do século XX

surgiram outras versões espanholas (somente da Primeira Parte), retraduções da versão francesa de Munk: a mais conhecida sob o título Guia de los descarnados, por José Suarez Lorenzo. Em 1955 foi publicada uma nova tradução, pouco conhecida, realizada por Leon Dujovne. Em 1994, a primeira edição da versão de David Gonzalo Maeso foi publicada na Espanha, sob o título Guia de Perplejos, pela Editora Trotta. A terceira ediçãofoi lançada em 2001. Português: uma coletânea de O Guia dos Perplexos foi recentemente publicada pela Editora Sêfer em 2003. Esta tradução integral da Parte 2 de O Guia dos Perplexos, publicada agora pela Editora Landy, é a pri- meira traduzida diretamente do hebraico para a língua portuguesa. A primeira e terceira partes serão publicadas em breve pela Landy.

14

Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 33.

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INTRODUÇÃO

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A tradução de 0 Guia dos. Perplexos para o português foi realizada to- mandose por base a versão de Maeso em espanhol, comparada ã ver- são de Friedlander em inglês. Por últimoi feita a tradução definitiva a partir da versão em hebraico de Shmuêl ibn Tibon. Quanto

 à transliteração dos caracteres hebraicos para a língua portuguesa, optouse por uma das metodologias atualmente em voga no Brasil, particular- mente segundo o Sidur Completo com Tradução e Transliteração, livro de orações judaicas publicado pela Editora Sêfe Assim, utilizamos a seguinte metodologia quanto à translitera- ção de letras hebraicaspara o português: · · Consoante Guímel ÐG. Diante das vogais ªeº e ªiº, substituise por ªgpectivamente. Consoante H ei ÐH, pronunciada de modo aspirado, como em half, em inglês. No final da palavra tornase muda e nem sempre é transliterada. Consoantes C báf e C bêt ÐCH, pronunciadas de forma gutural, como o ªjº espanhol. Consoante R êish ÐR pronciada sempre como em ªcaroº. Consoantes Sámech e Sín ЪSº sempre que estiver no início daa, precedido ou seguido de consoante; ªSSº quando esti- ver entre vogais. Consoante Shín ÐSh.. Consoante TsádiÐTs.

· · ·· ·

Além destas regras, foi adotado também o uso de um hífen para dis- criminar o artigo dosubstantivo, que no hebraico vêm juntos. Por exem- plo, escrevese HáNevucbim (dos Perplexos), ao invés de Hanevuchím. As consoantes K a f e K u f foram transliteradas pela letra K.

15

Em FRIDLIN, 1 (prgl), Sidur Completo com Tradução e Transliteração. São Paulo: Sêfer, 199[1987], 707 p. Tradução do: Sidur Rinat Israel, pp. VIIVIII.

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INTRODUÇÃO

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Análise da Parte 2 de O Guia dos Perplexos

IN TRO D UÇÃO

Maimônides enumera, em princípio, vinte e cinco proposições , por meio das quais Aristóteles e os filósofos aristotélicos posteriores provaram a existência de Deus Ðna linguagemfilosófica, a Primeira Causa Ðe suas propriedades principais: o fato de ser incorpóreo, imutável, sempre atuante e único. As três prim eiras proposições afirmam a impossibilidade da existência de magnitudes e séries de causa e efeito infinitas. A quarta proposição determina quatro categorias sujeitas à mudança: 1) Substância Ðmo- dificada pela Gêneestruição ; 2) Q uantidade Ðsujeita a A umento ou Diminuição, 3) Q ualidade Ðsujeita a Trsformações

 

, e 4) L u ga rÐa pas- sagem de um lugar para outro é chamada de Movimento. O conceito de movimento é desenvolvido entre a q uinta e a nona proposição. A déáma, décima pm eira e déáma segunda proposições tratam das coisas abstratas, incorpóreas, ligadas à mat. São elas: a causa do objeto e os aciden- tes que existem através do objeto. Por esta

rem ligados ao objeto e este ser finito, tanto a causa quanto os acidentes são considerados finitos. A décima terceira, déáma quarta, déáma quinta, déáma sétima e décima oiposições falam sobre movimento e mudança, com destaque para a déáma quinta, que ressalta a ligação indissolúvel entre tempo e movi?nento. A déáma sexta proposição diferencia os serncorpóreos li- gados ao corpo Ðe, portanto, contados juntamente com estes Ðdos seres espirituais puros, que não podem ser contados, pois não estão ligados a um corpo; a décimanona proposição afirma que uma coisa abstrata, dependente de certas causas, somenteexistirá enquanto estas existirem Ðportanto, é finita. As seis últimas proposições tratam

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2.6

O GUIA

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PERPLEXOS

da diferença entre um ser de existência necessária , que não é conse- qüência de nenhuma ce seres compostos de no mínimo dois elementos, que são necessariamente materiais, têmuma causa exter- na que lhes provoca a existência e, antes de existirem de fato, perma- necem em estado de potência. Maimônides então acrescenta, a estas, uma vigésima sextaproposição, que afirma que o Tempo e o Movimento são eternos, constantes e de existência de fato, posição aristotélica da qual discorda. Apesar disto, propõese a aceitála provisoriamente, para posteriormente refutála e demonstrar sua própria teoria: somente Deus é eterno, constante e de existência constante.

PR O V A S FILOSÓ FICAS P A R A A EXISTÊNCIA, INCORPOREIDADE E UNI CIDADE D A PR IME IR A C A U S A (CAP. 1)

Os filósofos aristotélicos apresentam quatro argumentos para provar a existência, incorporeidade e unicidade da Primeira Causa: Primeiro argumento filosófico : Deve haver um prim eiro agente motor que mova todas as coisas transitórias e lhes dê condições para receber Torma. Somente uma possibilidade satisfaz esta condição, sem ferir as proposições men- cionadas anteriormente: que se trate de um ser incorpóreo e separado do Universo. Segundo argumento filosófico

 

. Se dois elementos coexistem em um estado combi- nado, e um destes elementospode também ser achado livre, então também o segundo elemento pode ser achado livre. Sendo possível existir seres sozinhos, é pos- sível a existência de um que possa mover, mas não ser movido Ða Primeira Causa, de acordo com o primeiro argumento, única, indivisível, incorpórea e atemporal: Deus. Terceiro argumento filosófico  . H á três possibilidades de existência. 1) Nada tem iníáo efim , 2) Tudo temníáo efim, 3) A lgumas coisas têm e outras não têm iníáo efim . A única possibilidade viá

rceira, pois além dos seres transitórios, deve haver um ser imortal que seja a causa dos demais, caso contrário, se o Universo fosse totalmente destruído, não poderia ser reproduzido. Quarto argumento filosófico, É necessário um agente externo que fa ça o outro sair do estado de potência para o estado de movimento. No limite, haverá ne- cessariamente uma Primeira Causa, que não é posta em movimento

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INTRODUÇÃO

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por nenhum agente externo Ðlogo, esta jamais esteve em estado de potência, pois, seassim fosse, nunca poderia colocar outra coisa em movimento. Do mesmo modo, não satisfaz a condição de um ser corpóreo, qual seja, ter estado em um determinado momento

em es- tado de potência. Portanto, é um ser incorpóreo. Como incorpóreo, não pode ser conto, então só poder ser Um. Além destes, Maimônides apresenta outros dois argumentos adi- cionais, relativos à unicidade de Deus: 1) ªNão se pode imaginar a atuação de dois deuses que agem de forma alternada na formação do Universoº: não há razão para que um esteja agindoo outro, não; por outro lado, deveria haver então uma causa anterior que permitisse a um atuar e ao outro não. A vinculação ao tempo e o estado de potência são condições impis para um Deus, como já vimos; logo, na hipótese de dois deuses, nenhum deles seria Deus de fato. 2) ªNão se pode imaginar dois deuses amando juntos na formação do Universoº: para que houvesse esta união seria necessário uma causa anterior; logo, nenhum deles seria, tampouco, Deus de fato. Quanto à incorporeidade de Deus, Maimônides argumenta que Ele é uno, enquan- to todo corpo é necessariamente composto de ao menos duas partes Ð portanto, Deus é incorpóreo.

SOBRE A S ESFERAS CELESTES E A S INTELIGÊNCIAS PU R A S OU SE P A R A D A S (CAP.2 A 12 )

A teoria filosófica da Primeira Causa foi relacionada ao conceito judaico de Deus. O Universo, do qual a Terra é o centro, é vivo e orgânico. Qualquer mudança na Terra é causada por uma seqüência constante de influências que fluem desde Deus, passando por quatro esferas: dos astros fixos; dos planetas; do Sol e da Lua. A divisão das esferas em quatro é tida como um insight de Maimônides. Para ele, esta divisão harmoniza as várias, redes de transmissão: a primeira transmissão de forças parte de Deus {PrimeiraCausa) e se distribui entre as quatro Inte- ligências Separadas, destas para as quatro esferas celestes, daí para os quatro elementos terrenos (terra, água, ar e fogo)e destes, finalmente, às quatro classes de seres: mineral, vegetal, animal e racio

nal (huma- no). Esta transmissão de forças de um nível para outro é denominada Shéfa (Emanu Injluênád).

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Maimônides segue Aristóteles em sua descrição das esferas celes- tes. As esferas não contêalquer dos quatro elementos do mundo terreno; são tidas como um Quinto Elemento, totalmente diferente. En- quanto as coisas na Terra são transitórias, os seres que habitam as esfe- ras celestes são eternos. Segundo Aristóteles, as esferas celestes e as Inteligências Separadas existem de forma permanente e coexistem desde sempre com aPrimeira Causa. Maimônides, fiel à tradição judaica, dis- corda de seu mestre: sustenta que tanto as esferas celestes quanto as Inteligências Separadas tiveram um início e passaram a existir a partir da vontade de Deus. As esferas são dotadas de Alma, quepermitem a elas se mover livremente.O impulso para o movimento é dado pelo Intelecto, que con- cebe uma idéia a partir do desejo de se assemelhar ao ideal, representado pela Primeira Causa (Deus). Cada esfera tem o seu intelecto, que, por sua vez

, recebe a influência de uma determinada Inteligência Separada. A Inte- ligência Separada que atua sobre o intelecto da esfera da Lua é denomina- da Intelecto Ativo (Sêchel háPoêl). Os anjos, mencionados na Bíblia como malachím, elohím ou adoním, são considerados iicos às Inteligências Se- paradas. são seres incorpóreos, e suas vontades tendem invariavelmente para aquilo que é bom e nobre. Mas, de acordo com Maimônides, o termo anjo contém diversos significados: assim, além de Inteligências Se- paradas, também significa ideais, Profetas, homens comuns e animais; até mesmo os quatro elementos podem ser identificados como anjos em um dado contexto, se estiverem servindo ao propósito de Deus,

SOBRE A TEORIA D A ETERNIDADE DO UNIVERSO (CAP. 13 A 3 1)

Não interessa a Maimônides comprovar sua teoria nem desmontar a teoria de Aristóteles.

 E suficiente para ele demonstrar que a teoria da Criação é uma possibilidade, de um ponto de vista filosófico, tão viável quanto a teoria da Eternidade do Universo; a partir daí, buscará com- provar que a sua teoria é a mais provável. Maimônides apresenta trêsias com respeito às origens do Uni- verso, a saber: 1) teoria bíblica judaica  . Deus criou o Universo a partir do nada; 2) teoria platônica e teoria islâmica (dos mutakálemim). Deus formou o Universo Ðque é transitório Ðde uma substância eterna; 3) teoria aristotêlica. Deus e o Universo são eternos e coexistentes.

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INTRODUÇÃO

Na terceira teoria, a Eternidade do Universo está fundada em pro- priedades da Natureza e da Primeira Causa, segundo os aristotélicos, e estas estão demonstradas em quatro e três métodos, respectivamente, aqui apresentados. Além destes, Aristóteles reforça sua teoria, consi- derando o fato de existir uma crença popular geral na Eternidade do Universo. Maimônides refuta os primeiros quatro métodos ao argu- mentar que estes não

levam em conta que as leis, por meio das quais o Universo está regulamentado, não precisariam vigorar antes de o Uni- verso existir, assim como é um equívoco considerar o funcionamento do organismo de um feto a partir do funcionamento do organismo de uma pessoa já nascida. De modo semelhante, quanto aos últimos três métodos, refutaos ao argumentar que as vontades e ações dos Seres Puramente Espirituais não estão sujeitas às mesmas leis que as dos seres terrenos: enquanto se necessita de uma alteração nos últimos ou na vontade do homem, não é necessário produzir uma mudança nos seres incorpóreos.Maimônides segue adiante e explica que não precisaria da autorida- de da Bíblia para adotar a teoria da Criação. Seguemse dois de vários argumentos: 1) Ao admitir que a grande variedade de coisas no mundo terreno está ligada àquelas leis imutáveis que regulamentam a influên- cia das esferas sobre estas mesmas coisas, a variedade de esferas so- mente pode ser explicada como resultado da Vontade Divina; 2) Se- gundo Aristóteles

, é impossível que um ser simples possa, de acordo com as leis da Natureza, ser a causa de seres compostos. Como Deus, que é um ser simples, é a causa de seres compostos, Ele não segue as leis da Natureza e, portanto, não precisa necessariamente ter uma cau- sa anterior, como é o caso do Universo. Logo, Deus é eterno, mas o Universo é criado. O autor aderiu à teoria da Criação ao verificar que os argumentos contrários eram insustentáveis. Surpreendeuse com Rabi Eliezer, sábio judeu que parece defender a teoria da Eternidade do Universo, a ponto de advertir seu discípulo para que não se equivocas- se ao ler os Pirké (Capítulos) de Rabi Eliezer. A teoria da Criação não envolve arença de que o Universo será destruído no futuro. Como não segue as leis da Natureza, ofato de ter havido um início determinado para o Universo não implica ne- cessariamente que haverá um fim Ðesta é uma possibilidade que de- pende exclusivamente da Vontade Divina, não é uma propriedade inerente ao Universo.

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O GUIA

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PERPLEXOS

O relato da Criação no livro do Gênesis e demais textos judaicos, em especial no Talmu

d, é explicado pelo autor segundo as duas regras seguintes: 1) Sua linguagem é simbólica. 2) Os termos empregados têm mais do que um significado. As palavras érets, máim, rúach e chóshech são polivalentes e, em princí- pio, significam respectivamente os quatro elementos: terra, água, ar e fogo; em outras instâncias, A rets é o Planeta Terra; Máim referese ou ao firmamento (Céus Inferiores) ou aos Céus Superiores; Ritach signi- fica vento ou Sopro Divino (Espírito); e Chóshech pode ser ou escuri- dão ou noite. SegundoMaimônides, o Universo teve um início execu- tado pela Primeira Causa; esta não faz parte do Universo criado nem coexiste com ele Ðdeu início ao Universo, mas não é a primeiraparte deste. Após a Criação, a diversidade de seres foi criada sucessivamente, sob influência do movimento das esferas celestes, bem como das di- versas combinações entre luz e escuridão. A partir do sétimo dia, Deus descansou e o Universo passou a seguir as Leis da Natureza. Este dia Ð o S habátÐfoi abençoado e santificado. Segundo o Talmud, o

s judeus devem guardar o Shabát por dois motivos: para se lembrarem da Cria- ção do Universo (Êxodo 20:1011);1 6 e em comemoração à saída do Egito (Deuteronômio 5:15),ll pois dunte o período da escravidão no Egito, eles não sabiam o que era liberdade e bemestar. Na história bíblica, os casais Ð Adão e Eva; a serpente e Samael (Satã) Ðsão metáforas quesentam, respectivamente: o intelecto e o corpo; a imaginação e o desejo. A imaginação e o desejo formam o par que influencia fortemente o aspecto físico do Homem. Enquan-to é dada maior atenção à imaginação e ao desejo, o intelecto se enfraquece e o corpo se drada. A imaginação, ao invés de ser guia- da e controlada pela razão, fica sujeita ao desejo, que enfraquece e

16 ªE o sétimo dia é Shabát para YHYH teu Deus. Não farás nenhuma obra tu, teu filho, tufilha, teu servo, tua serva, teu animal e teu peregrino que estiver em tuas cidades, porque em seis dias fez YHVH os Céus e a Terra, o mar e tudo o que há neles, e

repousou no sétimo dia. Portanto abençoou YHVH o dia do S h a b á te santificouo.º (Êxodo 20:1011). 17 ªE lembrarás que servo foste na Terra do Egito, e que de lá te tirou YHVH Teu Deus, com mão forte e braço estendido; portanto te ordenou YHVH, Teu Deus, para fazer o Dia do Shabát.º (Deuteronômio 5:15).

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INTRODUÇÃO

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degrada o corpo. Em seguida são estabelecidas outras metáforas, re- lativas aos filhos de Adão e Eva. Nos três filhos Caim, Abel e Set Maimônides encontra uma alusão, respectivamente, às três proprie- dades do ser humano: vegetativa Ð vital; animal Ð instintiva;

 e intelec- tual Ðracional. Abel (vegetalvital) é eliminado por Caim (animalinstintiva); este é superado por Set (intelectualracional) que sobrevive e forma a base da condição humana daí em diante. Fica claro que o fato de Maimônides considerar o texto bíblico como absolutamente verdadeiro não significa que faça dele uma leitura literal.A verdade do texto bíblico só pode ser extraída a partir de uma interpretação correta de seus simbolismos.

SO BRE A PR O FE C IA (C A P . 3 2 A 4 8 )

Nesta seção Maimônides trata das características dos Profetas e das Profecias. Inicia mencionando três opiniões correntes acerca da Profecia: 1) Segundo a visão popular , qualquer pessoa, independente de suas qualificações morais ou físicas, pode ser escolhida

 por Deus para se tornar Profeta. 2) Segundo osfilósofos aristotélicos árabes, a Profecia, cumpridas as qua- lificações físicas e morais, certamente será atingida através de muo estudo. 3) Segundo a tradiçãojudaica, além de perfeição física, retidão moral e estudo,nde da vontade de Deus para ser revelada a alguém. Maimônides define Profecia como uma Emanação que, através da vontade de Deus, flui para o Intelecto Ativo; deste para a faculdade racional e daí, finalmente, para a faculdade imaginativa das pessoas qualificadas para a condição de Profetas, segundo a terceira opinião apresentada. O Profeta é diferenciado dos filósofos Ðque somente receberam esta influência sobre o seu intelecto Ðe dos políticos, adivi- nhos e sonhadores Ðque somente tiveram a sua imaginação infenci- ada pela emanação divina. Maimônides considera o Profeta como al- guém com capacidadmaior do que o filósofo, pois acrescenta, à capacidade intelectual de leitura racional da realidade, a captação de idéias suprasensíveis, transmitidas por Deus através dos anjos e re- transmitidas em linguagem simbólica.

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Tudo aquilo que evita ou dificulta o desenvolvimento mental, des- via a imaginação e prejudica a força física, impedindo o homem de atingir a condição de Profeta. A ansiedade e a depressão também são obstáculos, ainda que temporários, à capacidade de profetizar; p ou- tro lado, a alegria e a música favorecem esta condição. Embora fosse considerada uma condição para o Profeta exibir ex- celente preparo físico, no momento da Profecia o corpo era adormeci- do com uma espécie de torpor. Em um estado extático de consciência, oProfeta transmitia as idéias puras que lhe chegavam à faculdade ra- cional, fluíam paraa imaginativa e finalmente eram reproduzidas em uma linguagem simbólica, de modo que seria impossível compreendêlas corretamente sem que houvesse uma interpretação das mesmas, adequandoas ao contexto e ao modo de pensar das pessoas. Geral- mente, a transmissão destas idéias era intermediada por um anjo, tido como o mensageiro que lev

ava a palavra de Deus aos Profetas. Este mensageiro tão especial podia aparecer nas formas mais diversas: como uma pessoa, um animal ou até mesmo um fenômeno natural, como os ventos. Todos os Profetas recebiam as Profecias por meio dos anjos, através de sonhos ou de visões diurnas (com o corpo entorpecido), e as transmitiam de forma simbólica Ðà exceção de Moisés, que se man- tinha consciente e com o corpo sob controo receber a emanação divina. Para ele, a transmissão do conhecimento também não era sim- ba, mas explícita e direta, pois a recebia de forma pura, sem a inter- mediação de um anjo, mas diretamente de Deus para sua faculdade racional. Desta forma, Maimônides enfatiza que, ao chamar Moisés de Profeta, o termo não tem o mesmo significado aplicado.aos demais Profetas Ðsão tão somente homônimos. Maimônides também explica que os poderesos Profetas não eram todos iguais: variavam tanto segundo suas condições físicas, morais e intelectuais, quanto com relação à freqüência, idade e hu- mor. Classificou as Profeciaem onze graus, divididos em três gru - pos. O prim eiro grupo é composto dos dois prim

eiros graus, considera- dos uma preparação para a condição de Profeta. E formado por pessoas que possuíam uma coragem ímpar, certas da presença de Deus, para socorrer os oprimidos e realizar ações boas, grandes e relevantes, bem como inspiradas para transmitir palavras de sabedo- ria e beleza. O segundo grupo abrange do terceiro ao sétimo grau: os Profetas, durante o sono, percebiam parábolas transmitidas em so- nhos proféticos. O terceiro grupo abarca do oitavo .ao décimo primeiro

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INTRODUÇÃO

grau: o Profeta principalmente Abrahão recebia as Profecias em Visão Profética, ou seja, acordado, embora em estado de êxtase. Em separado, considera um décimo segundo grau, para explicitar que Moisés, como já mencionado, é considerado Profeta como osoutros apenas por homonímia, pois profetizava em estado normal de cons- ciência e não entrava em torpor físico. Moisés foi o único capaz de ouvir e entender as palavras ditas

 por Deus no Monte Sinai, referen- tes aos oito últimos mandamentos Ðo enunciado moral destes teve que ser retransmitido por Moisés ao restante do povo, que os ouvira,porém não entendera. Na ocasião, as pessoas só ouviram claramente os dois primeiros mandamentos, de caráter doutrinário, que defini- am a questão da Existência e Unicidade de Deus. A teoria de que a linguagem metafórica é um elemento essencial na Profecia é apoiada pelo fato de que o discurso simbólico é predomi- nante no discurso profético. Nem sempre, no entanto, os Profetas es- clareceram que seus relatos eram frutos de um sonho, de uma visão ou de um fato concreto.

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INTRODUÇÃO

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Possível contribuição de Maimônides para a filosofia social contemporâneaªA voz escatológica dominante hoje em dia é claramente re- volucionária no Islã, em grup cristãos fundamentalistas e evangélicos americanos e entre certos grupos de judeus,

 em Israel e ao redor do mundo. Nós entendemos os motivos que impelem estas comunidades a aderirem a programas des- se tipo. Também estamos convencidos dos seus perigos: exclusivismo, triunfalismo, ações políticas radicais e, no extre- mo, militarismo eaté mesmo terrorismo.º18

Em 2004 completamse oitocentos anos da morte de Maimônides. Após oito séculos, alguns podem perguntar: ªConhecido como a maior autoridade haláchica,1 9 bem como o filósofo mais profundo que o Judaís- mo já produziu, muitas gerações referemse ao mestre pelo títo de sua grande obra ÐO Guia dos Perplexos. Embora este título seja ainda muito popular, algumas pessoas têm problemas em estudálo: por um lado, de fato, ele mesmo parece ser causador de perplexidade; por outro, muitos o repelem antes mesmo de conheceremno, por sua forma e seus con- ceitos reconhecidamente medievais. Será que Ma

imônides tem algo a nos dizer? (...) Será que este retrospecto medieval e aristotélico não relega Maimônides inevitavelmente a nada mais do que uma impor- tância histórica, tornando seu pensamento irrelevante para o contexto

18

19

Declaração de Princípios (1988) Ðdenominada Emêt VeEmuná, ªVerdade e Crençaº Ðda correnteonservative Judaism. Extraído do capítulo ªThe MessianicHopeº (ªA Esperança Messiânicaº),peito ao fundamentalismo. Autoridade haláchica

 

. versado em legislação judaica (Halachá), segundo a Tradi- ção Oral ou Talmud.

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PERPLEXOS

da ciência moderna e da filosofia?;º20 ou ainda: ªSerá que há mensa- gens de relevância at

que possam ser obtidas dos escritos de um filósofo que viveu há oito séculos? Será que as repreensões antiautori- tárias de Maimônides fazem sentido para os nossos dias?º2 1 Serque 0 Guia dos Perplexos, particularmente quando se refere aos Profetas, pode inspirar um modelo de crítica social do qual ainda podemos nos beneficiar nos tempos atuais? Para alguns, a filosofia de Maimônides teria sua contribuição unica- mente voltada ao aspecto ético e, mesmo assim, presa ao seu Zeitgeist, o ªespírito de sua épocaº. Particularmente entendo que, dada a geniali- dade, profundidade e profusão de temas eargumentos, é muito prová- vel que uma releitura da obra de Maimônides, incluído 0 Guia dos Per- plexos, à luz dos tempos contemporâneos, possa ser de grande valia. Infelizmente, no Brasil são praticamente inexistentes as obras que dis- cutem esta possibilidade. Inicialmente, para que possamos verificar esta possível contribui- ção, analisaremoso contexto histórico e geográfico em que viveu o Rambám. Filho de uma família respeitada

 na comunidade judaica es- panhola do século XII, Maimônides, ao mesmo tempo em que teve a oportunidade de se tornar um erudito em filosofia judaica, sofreu ªna peleº a perseguição dos fundamentalistas islâmicos almohades. Após migrar com sua família por muitas terras espanholas, passando pelo Marrocos e Israel, chegou finalmente ao Egito, onde passou boa parte de sua vida. Tornouse médico do Sultão Saladino e, segundoSoffer (1993), Saladino também veio a se tornar, junto a seus súditos, um fundamentalista islâmico. Amado e respeitado por judeus e muçulma- nos (que o chamavam de Abu Imran ou ibn Maimun), Maimônides pode ter moldado sua visão crítica social ao lidar comdois mundos entrelaçados: o judaico e o islâmico. Embora radicalmente enraizado nastradições judaicas e um pro- fundo conhecedor das leis rabínicas, Maimônides buscava harmonizálas à realidade dos judeus orientais de sua época. Foi neste contexto

20

Rabinovitch , in Rosner, F. & Kottek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Phjsician, Scientist andPhilosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993, p. 68. Soffer, in Rosner, F. & Kottek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Pbjsician, Sríentist and Philosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993, p. 207.

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INTRODUÇÃO

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que escreveu 0 Guia dos Perplexos, para judeus que viviam não somente de acordo com as leis e costumes judaicos, mas influenciados também pelo Islamismo e pelo pensamento clássico grego, as culturas domi- nantes da época. Por outro lado, embrenhado

tanto por motivos pro- fissionais quanto familiares (lembremonos que Maimônides casouse em 1165, após a morte de sua primeira esposa, com a irmã de um influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos secretários do rei) na cultura islâmica, deve ter exercitado como nunca sua capacidade de amar como um respeitado líder da comunidade judaica do Egito, em meio a um rigoroso controle de comportamentos e de pensamentos, imposto pelo Sultão Saladino. Podese dizer que Maimônides convi- veu bem com a corte islâmica, ao mesmo tempo em que se desdobrou para manter a liberdade religiosa e de identidade judaica. Este talento para lidar com a cultura dominante e serrespeitado como líder de uma minoria já serve, por si mesmo, como um modelo de convivência dig- no de ser estudado nos dias atuais, em que uma relação deste tipo parece pouco provável em diversas partes do planeta. Maimônides tinha um profundo senso da necessidade de se man- ter as leis básicas que regiam o povo judeu, a fim de garantir a

 sobre- vivência de sua identidade coletiva. Todavia, possuía clareza quanto à necessidade de adaptálas de acordo com a época e o local em que viviam estes judeus. Como exemplos, podemos citar a posição de Maimônides a respeito da possibilidade ou não de se navegar pelos rios Tigre e Eufrates em pleno Shabát e quanto à questão da conver- são ao Judaísmo. No primeiro exemplo, segundo as leis judaicas, o Shabát precisa ser absolutamente respeitado como um dia em que se deve descansar e não produzir qualquer forma de energia, a partir do conceito de Imitatio Dei Ðimitar as qualidades de Deus que, segundo a tradição bíblica judaica, após ter trabalhado na criação do Universo por seidias, des- cansou no sétimo, denominado Yom Shabát, o dia do descanso. Pois bem, Maimônides determinou que os judeus poderiam viajar pelos rios Tigre e Eufrates no Shabát, uma vez que eram demasiado largos e esse era um precedente necessário em benefício das pessoas que por lá moravam. A analogia às regras que regulamentam a circulação daspes- soas judias praticantes nos grandes centros urbanos dos dias atuais é direta: c

aso Maimônides estivesse vivo, será que ele consideraria proi- bido viajar de automóvelno Shabát, por entre as avenidas demasiado largas das grandes metrópoles modernas? Seria permitido, também,

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viajar de avião, no Shabát, dadas as largas distâncias entre cidades ou mesmo continentes? O segundo exemplo diz respeito às precondiçÕes para que uma pes- soa se converta ao Judaísmo. Segundo Soffer (1993), de acordo com o Talmud, se um homem vive com uma mulher nãojudia, mesmo que mais tarde ela se converta, está proibida de casarse com um judeu. Maimônides determinou, neste caso, que ªem nossa época [século XII], se ele não desposála, devemos assumir que continuará a viver com ela. Por isso, deve casarse com ela de acordo com a le iº. Também em seu M ishnê Torá (.Issurê Biá 14:1), defende q o tribunal rabínico deveria aceitar ªimediatamenteº uma conversão, após ouvir o desejo expresso do candidato ou candidata de se identificar com o povo judeu, ªconfun- dido e envolvido pelo sofrimento inerenteº. O candidato deve tornarse ciente dos princípios básicos do Judaísmo, ou seja, a unicidade de Deus e a proibição da idolatria. Em segu

ida, ele é informado de alguns mandamentos mais ou menos importantes, mas sem a necessidade de se aprofundar demais neles, pois mais importante do que isso é colocálo em um ªbom caminhoº, um caminho de justiça e misericórdia. Nes- tes casos, fica claro que Maimônides prioriza o bemestar social às leis, através do uso da razão como um antídotoao autoritarismo e ao fundamentaüsmo. Em outras palavras, estas regulamentações mostram um Maimônides que, por meio da crídca racional, relativiza a literalidade de antigas leis, tomadas por alguns como pétreas, em benefício da vida das pessoas no contexto das épocas e lugares em que vivem. Por outro lado, há uma certa controvérsia sobrese Maimônides tinha, de fato, uma boa relação com a corte islâmica de Saladino ou se foi coagido a assumir determinadas posições, de ordem teológica, em defesa de sua própria sobrevivência. Segundo Soffer (1993), Maimôni- des precisou lidar com uma situação dramáticde intolerância que afe- tou sua vida e refletiuse em seus escritos. Segundo ele, Maimônides escreveu, em julho de 1191, seu Tratado sobre a Ressurreição, uma apolo- gia à r

essurreição dos mortos Ðsob pressão. O renomado rabino hu- manista Abraham Joschua Heschel (19071972) escreveu a respeito deste assunto em sua biografia de Maimônides: ªJudeus chassidim (piedosos) antifilosóficos e muçulmanos acusaram O Guia \dos Perple- xos] de desviar as pessoas para a perversidade, uma posição que pode- ria levar a efeitos sérios dentro desta área de religião reacionária. Ao ignorar o dogma da ressurreição Ðenqo este aponta, por suas razões, para a idéia de imortalidade Ð Maimônides reforçou as suspeitas

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contra eleº.22 Contase também que, pouco antes de Maimônides es- crever seu Tratado sobre a Ressurreição , um árabe místico de nome Suhraawardi fora morto a mando de Saladino, por haver expressado ªpontos de vista independentesº; Saladino, bem como a população árab

e egípcia, acreditava com fervor no dogma da ressurreição. Para Maimônides, defender a ressurreição futura vinculada à condição de imortalidade do ser humano Ðo que iria contra s convicção de que somente Deus é Eterno e Imortal Ðseria, segundo alguns, a única forma de permanecer vivo naquela sociedade. Todavia, esta versão é desmentida no prefácio à ediçãorasileira do Tratado sobre a Ressurreição, de autoria do rabino David Weitman (1994). Ele afirma que Maimônides já havia escrito brevemente sobre o tema da ressurreição emseus livros Comentário da M ishná e M ishnê Torá. A crença na ressurreição é asseverada taseus famosos ªTreze Princípios da Fé Judaicaº, cujo décimo terceiro princípio é: ªEu creiocompleta que haverá a ressurreição dos mortos quando for do agrado do Criador (,..)º.23Segundo o rabino Weitman (1994, p.10), ª(...) Maimônides sustenta que, após a ressurreição, com as almas rein- vestidas nos corpos, haverá um outro estágio final, o Mundo Vindou- ro, exclusivamente para as mesmas, num mundo isento de matériaº.24 · De qualquer modo

 Ðquer tenha escrito este tratado convicto do tema da ressurreição, quer tenha escrito sob coação ÐMaimônides sabia muito bem da importância de manter boas relações com o poderinante, e o fez com maestria, conseguindo o feito de ser admirado tanto por judeus quanto por muçulmanos. A medida deste modelo de tolerância nas relações sociais podese encontrar na seguinte frase atri- buída a Maimônides: ªDeixe que o ignorante caia noerro de que qual- quer homem é responsável pelo estabelecimento de uma grande ver- dade. As leis religiosas são feitas não por indivíduos, mas pelo julgamento em concerto demuitas gerações de pensadoresº.25

Heschel, A. J. ªMaimônides: A Biographyº, in Rosner, F, & Kottek, S. S. (iorg.). Moses Maimônides: Physician, Scientist and Philosopher. Traduzido para o inglês por J. Neugroschel. Nova York: Farrar Satraus Giroux, 1982, nota do cap. 23, p. 269. 23 in Fridlin. J. (org.), Sidur Completo com Tradução e Transliteração, 1997, p. 120. 24 in

Maimônides, Tratado sobre a Ressurreição. 25 Soffer, A. ªMaimônides, an Enemy o f Authoritarianismº, in\ Rosner, F, & Kot- tek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Plysician, Scientist and Philosopher,: cap. 23, p. 211. 22

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Em outra crítica mordaz ao poder constituído, seja intelectual, reli- gioso ou político, Maimônides descreve a ªdoença dos intelectuaisº: ªSe eles são aplaudidos, pensam que conhem todos os ramos do conhecimento e, de uma hora para outra, tornamse autoridades. Nin- guém se opõe a eles e, então, cresce sua popularidade; é aí que sua doença se agrna mesma proporçãoº.26 Esta noção de que a verdade é construída por muitas pessoas, ao lone muitas gerações, de acordo com a época e o lugar e de forma dinâmica, constitui, ao mesmo tempo, a crítica social e o antídoto de Maimônides frente ao autoritarismo de um indivíduo ou grupo, tanto em sua época como nos dias atuais.

O PROFETA CO M O MODELO DE LÍDER E CR ÍT ICO SO CIAL

No capítulo 32 de 0 Guia dos Perplexos, Maimônides defende seu con- ceito de Profeta:um ªcandidato a Profetaº deveria ser fisicamente apto, irrepreensível do ponto de vista moral e um erudito do ponto de vista intelectual. Além disso, porém, deveria ser escolhido por Deus para que se capacitasse a receber, com seu intelecto e com a sua imaginação, a emanação divina que lhe proporcionaria o dom da profecia. Portanto, não éualquer um que pode se denominar Profeta: deve ser, obrigatoriamente, uma pessoa justa e piedosa. Mas não necessaria- mente um homem ou mulher justos e piedosos setornarão profetas. Tampouco é suficiente ser um filósofo dotado de grande sabedoria ediscernimento racional, se lhe falta capacidade de traduzir seu pensa- mento em uma linguagem acessível ao povo. Muito menos podem ser vistos como pretensos Profetas os políticos, os adivinhos e os charla- tões, pois a sua imaginação, na visão de Maimôni não é acompa- nhada de inteligência e probidade moral na mesma proporção. Dito isto, aindtomando por foco a pessoa, havia profetas e profe- tas. Todos põssuíam qualidades mora

is, intelectuais e imaginativas para realizarem profecias, bem como foram escolhidos por Deus para exer- cerem suas atividades. Porém, a qualidade e a freqüência de suas profe- cias variavam de acordo com a maior ou menor excelência daqueles atributos. Assim, alguns profetizavam somente uma vez na vida, inspi- rados por uma voz ou visão recebida através de sonhos. No outro

26

Idem , p. 212.

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INTRODUÇÃO

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extremo, o maior dos profetas (segundo Maimônides), Moisés, foi o único a ser inspirado por Deus de forma consciente e sem intermedi- ários. Também foi o mais inteligente,justo e crítico social que já houve na história do povo judeu, haja vista ter question

ado e enfrentado, segundo a tradição bíblica, o poder do Faraó do Egito que, em meio à opulência das fortalezas egípcias, mantinha, como escravos, gerações e gerações de judeus e doutros povos. Moisés ousou até mesmo en- frentar e criticar o ªpoder constituído desde sempreº de Deus em di- versos momentos, por ocasião da conhecida caminhada de quarenta anospelo deserto, entre a ªTerra da Escravidãoº e a ªTerra da Liber- dadeº, o que mostra quecaminhada de um crítico social pode ser longa, penosa e nem sempre reconhecida. O conteúdo das profecias variava também de acordo com o grupo ao qual os profetas sedirigiam. Para o importante pensador contem- porâneo norteamericano Michael Walzer,27 os Profetas Ðconsidera- dos por ele os mais antigos exemplos de crítico social Ðvoltavamse ora para os hebreus, seu próprio povo, ora para os povos estrangeiros. O motivo, porém, era o mesmo: a crítica ao modo de vida vigente de seus governantes, juizes e sacerdotes. No primeiro caso a crítica era mais contundente, pois os profeta

s sabiam para quem estavam falan- do e a quem estavam criticando Ðcomo é o caso do profeta Amós, ao atacar fortemente a riqueza desmesurada do reino de Jeroboão II, rei de Israel, entre os anos de 785 e 746 A.E.C.28, enquanto os pobres, os trabalhadores e os agricultores estavam cada vez em condições mais miseráveis. No último caso, osmotivos ficam um tanto obscuros, como não poderia deixar de ser quando se faz a crítica social de uma estru- tura política ou de uma realidade que se desconhece, ou que se conhe- ce muito pouco. Foi o caso do Profeta Jonas, designado por Deus para destruir a população de Nínive, porque recebeu a informação de que eram pessoas perversas. Aqui, nem o arrependimento daquela popu- lação por suas transgressões Ðdesconhecidas de Jonas, digase a bem da verdade Ðnem o perdão de Deus foram suficientes para Jonas. Aocontrário, o profeta ficou muito contrariado com Deus por isso, após têlo feito correr um alto risco de morrer, quer em meio a uma tem- pestade na viagem a Nínive, querna simbólica passagem de três dias

27 28

Walzer, M. Interpretation and S ocial Critirísm. Cambridge, M assachusscts, USA: Harvard University Press, 1987, 96p. A.E.C. (Antes da Era Comum) e E.C. (Era Comum) são notações encontradas em todos os textos judaicos. Correspondem respectivamentea A.C e D.C.

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dentro de um peixe. Parece que, depois de tanto sofrimento pessoal, ainda que apopulação de Nínive se redimisse, para Jonas deveria ser destruída mesmo assim, a fim de que ele ªnão perdesse a viagemº Ð não se sabe se mudou sua opinião após a repreensão diviinal, até mesmo Deus recuou da decisão de acabar com a cidade. Em ambos os casos, era comum aos profetas preverem grandes desgraças, que poderiam ser evitadas em caso de arrependimento, re- conhecimento dos erros e a lembrança dos valores comuns a todo um j povo. Este arrependimento era freqüentemente exigido dos mais ricos \ e privilegiados, graças às condições econômicas e políticas que goza- vam. A crítica, segundo, não era pelo fato de os ricos viverem com fartura, mas porque esta existia em detrimento das condições dos mais pobres. Deixar os mais necessitados de lado era, para os profetas, quebrar o Pacto da Aliança, estabelecido entre Deus e o Povo de Isr

ael e confirmado com o recebimento das Leis no Monte Sinai, após o aban- dono da escravidão no Egito. Tais leis baseavamse, sobretudo, na so- lidariedade e em relações justas entre as pessoas. Em outras palavras, tomandose o profeta como exemplo de críti- co social, podese compreender que a crítica social pressupõe o conhe- cimento do que é uma condição social justa, segundo os valores e a cultura de uma dada sociedade. Não há como exportar ªvalores justosº de uma sociedade para outra que os desconhece. O conceito de ªarrependi- mentoº Ðque, em hebraico, tem a mesma raiz que a palavra ªretornoº (shuvá ) Ðpressupõe conhecer para onde e para o quê se pretende voltar. Segundo Walzer, as profecias de Amós, portanto, são críticas sociais, ªpois desafiam os líderes, as convenç as práticas rituais de uma dada sociedade. E porque faz isso em nome de valores reconheci- dos e que são parte daquela mesma sociedadeº.29 Logo, seria um erro considerar que uma crítica social, a exemplo da mensagem dos profetas, pode ser universal; ela só poderia ser total- mente compreendida dentro d<e um determinado contexto cul

tural, temporal e local. Nas palavras de Walzer, ªcada nação tem sua própria profecia, tanto quanto sua própria história (...)º.30 No máximo, uma crítica social pode ser semelhante em lugares diferentes, e caso venha a se considerar a possibilidade de utilizála, devem ser feitas as devidas adaptações referentes às questões contextuais já expostasacima.

29

30

op. cit. p. 89. Ibid., p. 94.

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O GUIA

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de Martin Luther King em defesa dos negros, contra a discriminação violenta naquele

país, criticou a guerra do Vietnã; no outro, lutava pelo direito dos judeus de saíremda então União Soviética, onde como tantas outras populações religiosas Ðnão tinham libee de expres- são e eram discriminados social, profissional e politicamente. Aparen- temente, o que Heschel tinha a ver com os judeus da antiga União Soviética? Como podia compreender ou criticar a realidade em que viviam? A identidade cultural, histórica e religiosa criava as bases sobre as quais ele era capaz de compreender o sofrimento do seu povo em terras tão distantes e lutar por eles. Portanto, a figura do profeta como um modelo de liderança moral e intelectualmente digna, conectado local e historicamente com o povo a quem se dirige, tanto segundo o próprio Maimônides quanto segun- do pensadores contemporâneos, como Heschel, Rabinovitch, Soffer, Walzer e mais recentemente Leone (2002), entre tantos outros, já justi- fica um estudo mais detalhado de O Guia dos Perplexos, bem como da vasta obra filosófica de Maimônid

es, como um modo particular de resgate de uma importante fonte de reflexão a respeito da crítica e da justiça social.

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0 G u ia

dos

P er plex o s

Parte 2

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Introdução

V IN T E E SE IS PRO PO SIÇÕ E S DOS P E R IP A T E T IC O S P A R A DE- M O N S T R A R A E X IST Ê N C IA , U N IC ID A D E E IN C O RPO RE ID A D E DE DEUS

ª(...) em nome de YHVH,1 Deus de sempreº.2 Vinte e cinco das proposições que são utilizadas para a prova da existência de Deus Ðou dos argumentos que demonstram que Deus é inco

rpóreo, não é uma força conectada a um ser material e que Ele é Um Ðforam totalmente estabecidas e sua correção está acima de qualquer dúvida. Aristóteles e os Peripatéticos que oguiram prova- ram cada uma destas proposições. Há, no entanto, outra proposição que nós nãtamos qual seja, aquela que afirma a Eternidade do Universo Ð , mas iremos admitila por ora, pois, ao agir assim, estare- mos claramente em condições de demonstrar nossa própria teoria. Primeira proposição: A existência de uma magnitude infinita é impossíl. Segunda proposição: A coexistência de um número infinito de magnitudes finitas é impossel.

1 2

YHVH ÐTetragrama Imprommàávek referese a Deus, cujo nome é, segundo a tradição judaica, i

ronunciável (NT). Em Gênesis 21:33: ªE plantou [Abrahão] uma tamargucira (arbusto) em BeerShéva, e lá invocou em nome de YHVH, Deus de sempreº . (Maimônides)

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O GUIA

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Terceira proposição : A existência de um número infinito de causas e efei- tos é impossíve

inda que não sejam magnitudes. Se, por exemplo, uma Inteligência fosse a causa de uma segunda, a segunda a causa de uma terceira, a terceira a causa de uma quarta e assim por diante, as séries não poderiam continuar ad infinitum. Q uarta proposição : Quatro categorias estão sujeitas à mudança: a) substância Ðmudanças que afetam a substânciauma coisa são chamadas Gênese e Destruição

 

, b) quantidade Ðmudanças quanto à quantidade sumento ou a Diminuição

 

, c) q ualidade Ðmudanças nas qualidades das coisas são Transformaç, d) lu g a r Mudança de lugar é chamada de Movimento. O termo ªmovimentoº é aplicado para mudança de lugar, mas é também usado no sentido geral de todo tipo de mudança. Quinta proposição

 

. Todo movimento implica uma mudança e transição da Potência ao Ato. Sexta prosição : O movimento de uma coisa é ora essencial, ora aciden- tal; ou é devido a uma forçaxterna ou devido à participação de uma coisa no movimento de outra coisa. Este último tipo de movimento é semelhante ao acidental. Uma instância do movimento essencial pode

 ser encontrada na translação de algo de um lugar para outro. Afirmase que o acidente de uma coisa, como, por exemplo, sua cor negra, movese quando a própria coisa muda de lugar. O movimento de uma pedra para cima, devido à força aplicada sobre elanaquela direção, é uma instância de movimento causado por uma força externa. O movimen- toe um prego em um barco pode servir para ilustrar o movimento causado pela participação de uma coisa no movimento de outra coisa, pois, quando o barco se move, esperase do prego que também se mova do mesmo modo. É o mesmo caso com tudo o que é composto de muitas partes, quando a própria coisa se move, todas as suas partes movemse do mesmo modo. Sétima proposição  . Coisas mutáveis são, ao mesmo tempo, divisíveis. Por-o, tudo o que se move é divisível e, conseqüentemente, corpóreo. Porém, aquilo que é indivel não pode se mover e, por conseguinte, é incorpóreo.

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INTRODUÇÃO

Oitava proposição 

. Todo aquele que se move por acidente necessaria- mente tem de descansar, porque não se move por sua própria ini- ciativa. Portanto, o movimento acidental não pode continuar perpe- tuamente. Nona proposição: Uma coisa corpórea que coloca outra coisa corpórea em movimento só pode fazer isto ao se colocar em movimento no momento em que faz a outra coisa se movimentar. Décima proposição: Uma coisa da qual se afir

ma que está em um corpo deve satisfazer uma das duas condições seguintes: existir através desse objeto, como é o caso dos acidentes ou ser a causa da existência do objeto,como por exemplo, a forma física, sua propriedade essencial. Em ambos os casos, tratase de uma força existindo em um corpo. Décima primeira proposição: Entre as coisas que existem através de um objeto material, há algumas que participam na divisão daquele objeto e são, portanto, acidentalmente divisíveis, como, por exemplo, as cores e as demais qualidades distribuídas em todas as suas partes. Por outro lado, entre ascoisas que formam os elementos essenciais de um obje- to, há algumas que não podem ser divididas de modo algum, como a alma e o intelecto. Décima segunda proposição: Uma força que ocupa todas as partes de um corpo é finita, porque o próprio objeto é finito. Décima terceira proposição: Nenhum dos vários tipos de mudança pode ser contínuo Ðexceto o movento de um lugar para outro, desde que este seja circular. Décima quarta proposição: A

 locomoção é, na ordem natural dos diversos tipos, o primeiro e o principal movimento. Isto porque a geração e a destruição são precedidas por uma transformação que, por sua verecedida por uma aproximação do agente transformador ao objeto a ser transformado. O crescimento e a diminuição também são impossí- veis sem prévio nascimento e corrupção. Déa proposição: O tempo é um acidente que acompanha e é inerente ao movimento, de tal modo que nunca um é encontrado sem

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o outro. O movimento somente é possível no tempo, e a idéia de tempo não pode ser concebida senão em conexão com o movimento. As coisas que não se movem não têm relação com o temDécima sexta proposição, tudo aquilo que é incorpóreo somente pode ser enumerado quando se trata de forças situadas em um corpo; as muitas forças devem, então, ser contadas conjuntamente com as subs- tâncias ou objetos nos quais eles existam. Portanto, seresespirituais puros, que não são nem corpóreos nem forças situadas em objetos corpóreos, nãoodem ser contados, exceto quando consideradas as causas e os efeitos. Décima sétimaproposição: Quando um objeto se move, deve haver algum agente que o mova: seja de fora, como no caso de uma pedra colocada em movimento por uma mão; seja de dentro, por exemplo, quando o corpo de um ser vivo se move. Seres vivos possuem em si mesmos, simultaneamente, o agente do movimento e o objeto movido. No en- tanto, quand

o o ser vivo morre e o agente do movimento Ða alma Ð perde o corpo Ðisto é, a coisa movida Ð , o corpo permanece por algum tempo na mesma condição anterior e, todavia, não pode se mover do modo como se movia antes. O agente do movimento, quando in- cluso noobjeto movido, está oculto e imperceptível aos sentidos. Esta circunstância levou à crença de que o corpo de um animal se move sem a ajuda de um agente do movimento. Sendo assim, quando nós afirmamos, com respeito à coisa em movimento, que este é o seu pró- prio agente de movimento ou, como é dito em geral, que este se move por sua própria iniciativa, queremos dizer que a força que realmente põe o corpo em movimento existe no próprio corpo. Décima oitava proposição, Tudo o que passa da potência ao ato é levado asso por algum agente externo. A razão é que se aquele agente existisse na própria coisa e nenhum obstáculo impedisse a transição, a coisa jamais teria estado em estado de potência, mas sempre 110 de existên- cia necessária. Por outro lado, se enquanto a própriacoisa contivesse um agente, houvesse algum obstáculo e, em um certo momento, o obs

táculo fosse removido, o que provocou a remoção do obstáculo poderia, sem dúvida, ser descrito como a causa da transição da potên- cia ao ato (e não como uma força situada dentro dcorpo). Preste atenção nisso.

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INTRODUÇÃO

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Décima nona proposição, Uma coisa que deve sua existência a certas cau- sas tem somente nelas a possibilidade de existência, pois somente se estas causas existirem, a coisa existirá. Esta não existe se as causas não existem, se deixaram de existir ou se hou

ve uma mudança na relação que permite a sua existência como uma conseqüência neces- sáriaas causas. Vigésima proposição, Todo aquele que é de existência necessária não pode ter,existir, qualquer causa que seja. Vigésimaprimeiraproposição, Uma coisa composta dedois elementos tem necessariamente esta composição como a causa de sua existência pre- sente. Sua existência não é, portanto, devida à sua própria essência; esta depende da exista e da combinação destes dois componentes parciais. Vigésima segunda proposição. Objetosmateriais são sempre compostos por dois elementos ao menos e são, sem exceção, sujeitosa acidentes. Os dois elementos formadores de todos os corpos são: substância e forma. Os acidentes atribuídos aos objetos materiais são: quantidade, forma geométrica e posição. Vigésima terceira proposição : Tudo o que existe em potência, e cuja essên- cia inc certo estado de possibilidade, pode não existir de fato em um dado momento. Vigésima quarta proposição, Tudo o que é algo em potência é necessaria- mente material, pois o e

ado de possibilidade está sempre conectado à matéria. Vigésima quinta proposição, Toda sutância composta consiste de maté- ria e forma e requer um agente para a sua existência,ou seja, uma força que coloque a substância em movimento e, então, permita predispôla a receber uma certa forma. A força que assim prepara a substância de um determinado ser individual é chamada de Primeiro Motor. Aqui a necessidade leva à investigação das propriedades do movi- mento, do agente do movimento e da coisa movida. Mas isto já foi suficientemente explicado, e a opinião de Aristóteles pode ser expressa

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na seguinte proposição: ^4 matéria não se move p o r sua própria iniàativa Ð uma important

oposição que levou à investigação do Primeiro Mo- tor (o primeiro agente de movimento). Deas vinte e cinco proposições apresentadas, algumas podem ser verificadas por meio de pouca reflexão e da aplicação de algumas pro- posições passíveis de provas, ou de axiomasteoremas com pratica- mente a mesma força, assim como foi explicado por mim. Outrasre- querem muitos argumentos e proposições. Todas elas, no entanto, foram estabelecidas através de provas conclusivas, em parte na Física (no livro Acroasis) e seus comentários e em parte no livro da Metafísica e seus comentários. Já destaquei que, neste trabalho, minha intenção não é copiar os livros dos filósofos ou explicar problemas difíceis,as sim- plesmente mencionar aquelas proposições que estão mais proximamente ligadas ao nosso assunto e são necessárias ao nosso propósito. As proposições acima, é preciso acrescear mais uma: a que enun- cia que o universo é eterno. Aristóteles sustenta que ela é verdadeira e também mais aceitável do que qualquer outra teoria. No momento nós vamos adm

itila, por hipótese, apenas com o propósito de demonstrar nossa teoria. A proposição é aseguinte: Vigésima sexta proposição 

. O Tempo e o Movimento são eternos, cons- tantes e têexistência de fato. De acordo com essa proposição, Aristóteles é compelido a assu- mir quexiste, na verdade, um corpo com movimento constante, sem- pre em ato, que é o Quinto Elemento. Por esta razão, ele sustenta que o Céu não está submetido à gênese ou à destruique o seu movi- mento não pode ser gerado nem destruído. Também defende que todo movimento deve ser precedido de outro movimento, ora do mesmo tipo, ora diferente. A crença de que a locomoção do animal não é precedida de outro movimento não é verdade, pois asa para que o animal se mova, após ter repousado, remonta à intenção de obter as várias coisas que originam aquela locomoção: uma mudança no estado de saúde, alguma imagem ou uma nova idéia que possa produzir um desejo de buscar aquilo que conduza ao seu bemestar ou de evitar o que lhe contraria. Cada uma dessas três causas coloca o ser vivo em movimento e cada uma delas é produzida por vários tipos de movimento. Aristótele

s, dessa forma, afirma que tudo o que é cria- do deve, antes de sua criação de fato, ter existido em estado potencial.

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INTRODUÇÃO

Por inferências a partir dessa afirmativa, ele busca confirmar sua pro- posição Ða coisa que se move é finita e o seu caminho é finito, mas esta repete o movimento no seu caminho um número infinito de ve- zes. Isto somente pode ocorrer quando o movimento é circular, assim como ficou demonstrado pela décima terceira proposição. Deduzse, por- tanto, que um número infinito de coisas não pode coexistir, mas elas podem suceder umas às

 outras infinitamente. Aristóteles se esforça constantemente em confirmar esta proposi- ção, mas eu acredito que ele não considerou suas provas conclusivas. Pareceulhe ser a proposição mais provável e aceitável. No entanto, seus seguidores e os comentaristasde seus livros defendem que a pro- posição não contém somente uma prova corroborável, masmons- trativa e que foi, de fato, totalmente estabelecida. Por outro lado, os Mutakálemim tentam provar que a proposição não pode ser verdadeira, assim como, na opinião deles, é impossível conceber como um núme- ro infinito de coisas poderia vir a existir mesmo de forma sucessiva. Eles assumem esta impossibilidade como um axioma. Eu, no entanto, penso que aquela proposição é admissível, mas não é demonstrativa como os comentartas de Aristóteles afirmam, nem, por outro lado, impossível, como os Mutakálemim dizem. Nós não temos a intenção de explicar aqui as provas fornecidas por Aristóteles, como tampouco expor nossas dúvidas a respeito, nem enunciar nossas opiniões sobre a Criação do U

niverso. Eu desejo simplesmente mencionar aquelas pro- posições de que iremos precisar para provar os três princípios expos- tos acima. Havendo, portanto, citado e admitido estas proposições, irei agora tentar explicar o que pode ser inferido delas.

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Provas filosóficas para a existência, incorporeidade e unicidade da Primeira Causa

C A P ÍT U LO

1

OS AR G U M E N T O S FILOSÓFICOS

Primeiro argumento filosófico : De acordo com a vigésima quinta proposição, deve existir um agente de movimento que move a substância de todas as coisas transitórias existentes e que deu a elas as condições para rece- ber Forma. A causa do movimento deste agente é encontrada na exis- tência de outro motor, de sua espécie ou diferente, sendo o termo mudança, em um senso geral, comum a quatro categorias (quarta proposi- ção). Esta série de mudanças não é infinita ( terceira proposição). Acredita- mos que ela pode continuarté o Quinto Elemento, e então pára. O movimento do Quinto Elemento é a fonte de toda força que move e prepara qualquer substância na terra para sua combinação com uma determinada forma, e é conectado com aquela força através de uma corrente de movimentos intermediários. ^4 Esfera Celeste (ou o Quinto Elemento) possui o movimento de locomoção, que é o primeiro de uma série de tipos de movimentos {décima quarta proposição), e toda locom

o- ção acaba sendo um efeito indireto do movimento desta esfera; por exemplo, uma pedra é colocada em movimento por um bastão; o bas- tão, pela mão de um homem; a mão, pelos tes; os tendões, pelos músculos; os músculos, pelos nervos; os nervos, pelo calor natural do corpo e o calor do corpo, por sua forma. Esta é, indubitavelmente, a causa motivacional imediata, mas a ação desta causa imediata ocorre de acordo com um certo projeto, por exemplo, o de jogar uma pedra

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no buraco, atingindoa com um bastão, para fechar a fenda, a fim de que não penetre

ali o vento que sopra. O movimento do ar que causa o vento é feito do movimento da esfera celeste. Do mesmo modo, pode ser demonstrado que a causa última de toda geração e destruição pode ser traçada até o movimento da esfera celeste. De forma semelhantedeve ser mostrado que a causa última de toda gênese e destruição pode ser traçada pelo movimento da esfera. Mas o movimento da esfera deve, igualmente, ser movido por umagente (,décima sétima proposição ) que resida fora da esfera ou dentro dela; um terceiro caso é impossível. No primeiro caso, se o motor está fora da esfera, este deve ser corpóreo ou incorpóreo. Se incorpóreo, não pode ser dito que o agente está fora da esfera,somente pode ser descrito como separado desta, pois um objeto incorpóreo só pode ser descrito como residindo fora de um determinado corpo metaforicamente. Na segunda condição, se o agente reside dentro da esfera, deve ser ou uma força distribuída ao longo de toda a esfera, de modo que cada parte dela inclua uma parte da força, como é

o caso do calor do fogo, ou uma força indivisível, como é a alma e o intelecto (décima e déáma p ri- meira proposições). O agente que coloca a esfera em movimento deve ser, conseqüen- temente, um destes quatro casos, 1) um corpo exterior à esfera; 2) um ser incorpóreo, separado desta esfera; 3) uma força espalhada por toda a esfera; 4) ou uma força indivisível (dentro da esfera). O primeiro caso, que supõe um agente de movimentoda esfera como um corpo exterior a ela, é impossível, como será explicado. O agente de movimento, sendo corpóreo, deve se mover ao colocar outro obje- to em movimento (nonaproposição). Assim que este sexto elemento igual- mente se mover ao transmitir movimento a outro corpo, será colocado em movimento por um sétimo elemento, que também deve se mover. Deduzse daí que um número infinito de corpos iria ser necessário antes que a esfera pudesse ser posta em movimento. Isto é contrário à segunda proposição. 0 terceiro caso Ðo motor da esfera é uma força difundida por toda a esfera Ðé do mesmo modo impossíl. Sendo a esfera corporal e ne- cessariamente finita [primeiraproposição), sua força se

rá igualmente fini- ta (décima segunda proposição), desde que cada parte da esfera contenha parte da força (décima primeira proposição), a última não poderá, conse- qüentemente, pum movimento infinito, como afirmamos na vigésima sexta proposição , que por ora admitimos.

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PROVAS

FILOSÓFICAS.

0 quarto caso é igualmente impossível Ða esfera é posta em movi- mento por uma força indivel, que resida dentro da esfera assim como a alma reside no corpo humano. Porque esta força, ainda que indivisível, não pode ser, por si só, a causa do movimento infini

to. Se fosse esse o caso, o Primeiro Motor teria um movimento acidental {sexta proposição). No entanto, o que se move acidentalmente deve descansar {oitavaproposição ), portanto quando algo é posto em movi- mento também descansa. O que se segue deve servir como uma ilus- tração da natureza do movimento acidental. Quando o homem (apre- sento como exemplo) é movido por sua alma Ðque é sua forma Ð para subir a um aposento superior, seu corpo se move diretamente, enquanto a alma Ða causa realmente eficiente domovimento Ð , par- ticipa acidentalmente disso. Pois, pelo deslocamento do corpo docentro da casa até o aposento superior, a alma também muda de lugar. Então, o corpo, posto em movimento por este impulso, vai descansar, e o movimento acidental da alma é descontinuado. Con- seqüentemente, o movimento daquele suposto Primeiro Motor deve obedecer a alguma causa que não faz parte das coisas compostas por dois elementos, ou seja, o agente de movimento e o objeto movido. Se esta causa, o princípio do

 movimento, se encontra presente, o Primeiro Motor, situado em tal complexo, colocará o outro elemento em movimento; na falta desta causa, não haverá movimento. Os seres vivos, portanto, não se movem continuamente, ainda que cada um te- nha um elemento motivacional indivisível. Isso porque seu motor não move constantemente, o que aconteceria se este produzisse movimen- to por iniciativa própria. Ao contrário, as coisas às quais a ação está ligada são separadas do motor. A ação é causada pelo desejo do agrpor aversão àquilo que é desagradável, por alguma imagem ou por uma idéia Ðquando o ser mótem a capacidade de concebêla. Quando alguma destas causas está presente então o motor ama; seu movimento é acidental e necessariamente se encaminha para um fim {oitava proposição ). Se o motor da esfera celeste fosse desse tipo, não poderia se movimentar ad injinitum. Nosso oponente,3 no entanto, sustenta que as esferas se movimentam continuamente ad infinitim .

3

No sentido de antagonista, de opinião oposta, não precisamente adversário: referese a Aristóteles, cuja opinião, acerca da eternidade do Universo, M aim ô- nides combate mais adiante (Maeso).

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O GUIA

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PERPLEXOS

Se assim fosse, e isto é de fato possível (décima terceira proposição), a causa eficientedo movimento da esfera deveria ser, de acordo com a divisão acima, pertinente ao segundo caso , ou seja, um ser incorpóreo e separado da esfera. Fica, pois, demonstrado que a causa eficiente do movimento da esfera celeste, se este é eterno e contínuo, não pode ser, de modo al- gum, corporal nem residir em um corpo; não pode se mover por inici- ativa própria ou por acidente; deve ser indivisível e imutável (sétima e quinta proposições). Este Primeiro Motor da esfera celeste é Deus (Ben- dito seja o Seu Nome!). A hipótese de que existam dois deuses é inadmissível, pois seres absolutamente incorpóreos não podem ser contados (décima sexta p r o - posição), exceto por suas causas e eftos. A relação de tempo não é aplicável a Deus (décima quinta proposição), pois o movimentde ser predicado a Ele. Conseqüentemente, o resultado da argumentação acima é o se- guinte

: 1) a esfera celeste não pode se mover ad infinitum por iniciativa própria; 2) o Primeiro Motor não é corpóreo nem uma força residindo em um corpo; 3) é Um, imutável, e suaistência independe do tempo. Três dos nossos postulados estão, portanto, provados pelos princi- pais filósofos. Segundo argumento filosófico: Os filósofos empregam outro argumen- to,baseado na seguinte proposição de Aristóteles: ªCaso se tenha uma coisa compostade dois elementos, e um deles sabese que existe por si mesmo, separado daquelacoisa, então o outro deve igualmente existir por si mesmo, separado daquele composto. Pois se a natureza dos dois elementos fosse tal que eles apenas pudessem existir em conjunto, como por exemplo a matéria e a forma, nenhum dos dois poderia existir, de qualquer forma que fosse, sem o outro. Assim, o fato de um dos elementos ter uma existência separada prova que os dois elementos não estão indissoluvelmente ligados; portanto, o ou- tro elemento também pode ter uma existência separada. Concluímos, então, quanto à existência do vinagre com mel e do mel sozinho, que também o vinagre

 existe sozinhoº. Logo após expor esta proposição,

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PROVAS

FILOSÓFICAS.

Aristóteles continua: ª...encontramos muitos objetos compostos de um m otor e de ummotum, ou seja, os objetos põem outras coisas em movimento e, ao mesmo tempo em que fazem isto, eles mesmos são postos em movimento por outras coisas. Isto está claro

 em todos os elementos intermediários de uma série de coisas em movimento. Mas tambémvemos uma coisa que é movida, sem que ela mesma mova algo, ou seja, é o último membroda série. Conseqüentemente, um m otor deve existir sem ser, ao mesmo tempo, um motum, e este é o Primeiro Motor, o qual, não sendo sujeito ao movimento, é indivi- sível, incorpóreo e independente do tempo, como foi exposto no argumento anterior.º Terceiro argumento filosófico : Extraído das palavras de Aristóteles, em- bora este o tenha formulado de uma forma diferente. Sua argumenta- ção é a seguinte: não há dúvida que muitas coisaistem de fato, quais sejam, aquelas percebidas pelos sentidos. Somente pode haver três possibilidades: 1) nenhuma destas coisas tem início e fim; 2) todas elas têm início e fim; 3) algumas têm e outras não têm início e fim. O primeiro caso é evidentemente inadmissível, pois percebemos claramente objetos que vêm a existir e são subseqüentementedestruí- dos. O segundo também é inadmissível, pois se tudo tivesse somente uma existência

emporária, todas as coisas seriam destruídas, e aquilo que representa toda uma classe de coisas é necessariamente perma- nente. Todas as coisas, portanto, deveriam caminhar para um fim, e então nada poderia existir, porque não haveria ser algum para produzir qualquer coisa. Conseqüentemente, nada existiria (se todos os seres fossemtransitórios). Mas como nós vemos as coisas existirem e perce- bemos a nós mesmos como seres existentes, concluímos o seguinte: desde que há seres que, indubitavelmente, têmexistência temporária, deve existir também um ser eterno que não é sujeito à destruição existência seja real, não somente possível. Argumentouse, posteriormente, que a existência deste ser é neces- sária, seja com relação a si mesmo ou a uma força externa. Em suma,a existência ou inexistência seria igualmente possível, devido às suas próprias propriedades, mas sua existência seria necessária devido a uma força externa. Aquela força seria,então, o ser que possui existência

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absoluta (décima nona proposição). Fica, pois, demonstrada a obrigatorie- dade de haverum ser, cuja existência seja absolutamente independente e também a fonte da existência de todas as coisas, sejam elas transitó- rias ou permanentes, se, como defende Aristóteles, existe uma coisa que é o efeito de uma causa eterna e, portanto, deve ser,ela mesma, eterna. E uma demonstração cuja correção não admite dúvida, nem discussão ou reexceto por aqueles que não têm conhecimento do método demonstrativo. Depois disso, nós diremos que qualquer coisa cuja existência é independente não deve sua existência a alguma causa (décima proposição ), e que um ser assim não inclui, de modo algum, qualquer pluralidade (vigésima primeiraproposição ). Do que se conclui que não pode ser um corpo, nem uma força residindo em um corpo (vigési- ma segunda proposição). Fica agora claro que deve haver um ser com exis- tência absolutamente independente, um cuja existência não pode

 ser atribuída a nenhuma causa externa e que não admite elementos dife- rentes. Ele nãopode ser corpóreo nem uma força residindo em um corpo. Este ser é Deus. Pode ser facilmente demonstrada a impossibilidade de que a exis- tência absolutamente independente não pode ser atribuída a dois se- res. Pois se fosse este o caso, a existência absolutamente independente seria uma propriedade adicionada à substância de ambos. Assim, ne-nhum deles seria absolutamente independente devido a sua essência, mas somente devido a uma certa propriedade, ou seja, a da existência independente, comum a ambos. Poderia se explicar de múltiplas ma- neiras que a existência independente não pode se conciliar com o prin- cípio do dualismo por uma série de motivos. Não faria diferença se imaginássemos dois seres com propriedades semelhantes ou distintas. A razão para tudoisso está, sobretudo, na absoluta simplicidade no nível mais alto de perfeição da essência deste ser, que é o único mem- bro de sua espécie e nunca depende de causa alguma. Esteser, portan- to, não tem nada em comum com os outros seres. Q uarto argumento filosófi

co: Este também é um conhecido argumento filosófico. E sabido que estamos constantemente vendo coisas que, da potência, passam ao ato, mas em todo caso há, para a transição de uma coisa, um agente separado dela (décima oitava proposição). Está claro, outrossim,que o agente também passou da potência para o ato. Ele foi primeiro potencial, porque não poderia ser amante devido a alguns

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PROVAS

FILOSÓFICAS.

obstáculos contidos nele ou devido à falta de uma certa relação entre ele e o objeto desua ação. Tornouse um agente amante assim que a relação tornouse amai. Seja qual for o caso, um agente é novamente necessário para remover o obstáculo ou criar a relação. O mes

mo pode ser argumentado com respeito ao agente antes mencionado, que cria a relaçãoou remove o obstáculo. Esta série de causas não pode seguir ad infinitum ; nós devemos finalmente chegar a uma causa da transição de um objeto de um estado de potência àquele de ato, que seja constante e não admita potência de qualquer tipo. Nada existe de potencial na essência desta causa, pois se a sua essência incluísse alguma possibili- dadede existência, não existiria de forma alguma (vigésima terceira propo- sição), esta não pser corpórea, mas deve ser espiritual (vigésima quar- ta proposição ). E o ser imaterial que nunca inclui possibilidade, mas existe em ato por sua própria essência, é Deus. Desde que Ele seja incorpóreo, como tem sido demonstrado, seguese que Ele é Um {déci- ma sexta proposição ). Mesmo que admitíssemos a Eternidade do Universo, nós podería- mos, poralquer um destes métodos, provar: a existência de Deus, que Ele é Um e Incorpóreo e não reside como uma força em um corpo. Além disso, há outro método correto para provar a Incor

poreida- de e a Unicidade de Deus: se houvesse dois deuses, seria obrigatório que possuíssem algo em comum, pelo fato de serem deuses, e outro elemento pelo qual seriam diferenciados um do outro e exisdriam como dois deuses. O elemento diferenciador poderia, em ambos, ser diferente da propriedade comum aos dois Ðneste caso, ambos consisdriam de elementos diferentes, e nenhum dos dois poderia ser a Primeira Causa ou teriam existência absolutamente independente. Po- rém, a existência de ambosdependeria de certas causas (décima nona proposição) ou, caso o elemento diferenciador estivesse somente em um deles e fosse diferente do elemento comum a ambos, entãoo ser não poderia ter independência absoluta. Outraprova da unicidade de Deus, Temsido demonstrado que o Universo inteiro é um corpo orgânico, cujas partes estão interligadas, e que as influências das esferas acima impregnam toda a substância terrestre e a prepara para suas formas. Estabelecido isto, é impossível considerar que uma deidade esteja engajada na formação de uma parte e outra deidade, na formação de outra par

te deste corpo orgânico, cujas partes estão tão estreitamente

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O GUIA

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PERPLEXOS

interligadas. Uma dualidade não pode ser imaginada desta forma, quer uma deidade e

steja ativa por um tempo e a outra por outro tempo; quer ambas atuem simultaneamente, tudo sendo feito somente pelas duas juntas. A primeira alternativa é absurda por vários motivos: se, no tempo em que uma deidade esteja ativa, a outra pudesse também estar ativa, não haveria razão por que uma poderia agir e a outra não; se, por outro lado, for impossível para uma deidade agir enquanto a outra está trabalhando, deve haver então outra causa (entre estas deidades) que (por um certo tempo) permita a uma agir e não permita à outra. Esta diferença não poderia ser causada pelo tempo, pois o tem- po é imutável e o objeto da ação, do mesmo modo, remonta a um e ao mesmo todo orgânico. Além disso, cada uma das duas se incluiria dentro do tempo, quando sua atuaçãoestivesse conectada a ele. Cada uma das duas passaria da potência ao ato, ao atuar, de maneira que ambas necessitariam de um agente para esta transição. Enfim, have- ria na essência de cada uma das duas uma possibilidade (de existência). Pois bem, supo

r que ambas, conjuntamente, operam sempre em tudo quanto se realiza no Universo, de maneira que uma não atue sem a outra, é absurdo. Com efeito, sempre que uma determinada ação só pode se realizar por um conjunto de forças, nenhuma destas forças age poriniciativa própria, como tampouco é a causa imediata de tal ação Ðmas a união é a causa imta. Já se demonstrou que a ação do Absoluto não pode se dar devido a uma causa (externa). A união é também um ato que pressupõe uma causa que leve a esta união. E se há esta caus ela é indubitavelmente Deus. Porém, se isto tam- bém consiste de um número de forças sepadas, uma causa é neces- sária para a combinação destas forças, assim como no primeiro casoE assim se chegará necessariamente a um ser único, causa da existên- cia do Universo, que é um todo; não fará diferença se assumirmos que a Primeira Causa produziu o Universo pela Creatio ex nihilo ou se o Universo coexistiu com a Primeira Causa. Então ficaclaro como po- demos provar, do fato de que este Universo é um todo, a Unicidade deDeus. Outro argumento para estabelecer a incorporeidade de Deus: 1) todo corpo é c

omposto de matéria e forma (vigésima segunda p r o - posição), ·2) toda composição desteselementos requer um agente para efetuar a combinação.

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PROVAS

FILOSÓFICAS.

Logo, é evidente que um corpo é divisível e tem dimensões. Um corpo é, portanto, indubitavelmente sujeito a acidentes. Como con- seqüência, não pode ser uma unicidade, seja porque tudo o que é corpóreo é divisível ou porque é uma composição. Portanto, pode ser logicam

 dividido em dois elementos, pois um corpo só pode ser definido como um corpo determinado quando o elemento dife- renciador é acrescido ao substratum corpóreo e deve, assim, incluir dois elementos. No entanto, já ficou demonstrado que o Absoluto nunca admite dualismo. Agora que já discutimos estas provas, iremos expor nosso própriométodo, como havíamos prometido.

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Sobre as Esferas Celestes e as Inteligências Puras ou Separadas

CA P ÍT U LO

2

SOBRE A EXISTÊNCIA D A S INTELIGÊNCIAS PU R A S OU SERES PURAM ENTE ESPIRITUAIS

Este Quinto 

Elemento, a esfera celeste, tem que ser necessariamente transitório,assim como o movimento, ou eterno, como afirma o opo- nente. Se as esferas são transitórias, então Deus é o seu Criador, pois tudo quanto existe após a inexistência pressupõem agente, sendo absurdo considerar que a coisa gerou a si mesma. Todavia, se esta esfera não cessou nem cessará de se mover, com movimento perpé- tuo e eterno, seguese necessariamente, de acordo com as proposi- ções precedentes, que o agente deste movimento perdurável não é um corpo, nem força em um corpo, é Deus (Bendito seja o Seu nome!).Veja claramente que a existência de Deus Ðser necessário, carente de causa e cuja existência está por si isenta de toda possibilidade Ðdemons- trase com provas diretas e certas, seja o mundo Creatio ex nihilo a partir da inexistência ou não. Fica, desta forma, provado que Ele é um e incorpóreo , como dissemos, pois a demonstração de sua unicid

ade e incorporeidade é comprovada, mesmo sem qualquer referência à teo- ria da Criação ouernidade do Universo, conforme expusemos no terceiro argumento filosófico 4 (sobre a existência de Deus) e, também, em

4

Vide capítulo 1 (NT).

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PERPLEXOS

nossa descrição subseqüente dos métodos dos filósofos em provar a incorporeidade e unicidade de Deus. Pareceme conveniente completar as teorias dos filósofos expondo suasprovas acerca da existência das Inteligências Separadas, de modo a demonstrar explicitamente sua concordância com os princípios de nossa religião. Refirome, aqui, à existência dos anjos. Terminado este assun- to, voltarei ã prometida argumentação sobre a Creatio ex nihilo, dado que nossas provas mais sólidas a esse respeito somente serão válidas e claras depois de bem entendida a teoria da existência das Inteligências Separadas e de apresentadas suas provas. Mas, antes de tudo, mostrare- mos os segredos de todo este tema, tanto dos capítulos anteriores quanto dos posteriores. Observação preli

m inar: É importante saber que não é meu propósito neste Tratado ocuparme das ciências naturais, nem elucidar as ques- tões da metafísica, segundo certos sistemas, ou demonstrar o que já está demonstrado. Tampouco foi minha intenção resumir e compendiar a disposiçãdas esferas celestes ou dar a conhecer o seu número, já que os livros sobre esses assuntos são suficientes e, se não o foram em alguma dessas matérias, o que eu poderia acrescentar não valeria mais do que o já dito. Meu objetivo no presente Tratado é aquele indi- cado na Introdução, ou seja, esclarecer os pontos obscuros da Bíblia e expor explicitamente o verdadeiro sentido de seus fundamentos, en- cobertos à inteligência do povo. Por isso, quando me referir à existên- cia e ao número de Inteligências Separadas oudas esferas, bem como às causas de seus movimentos ou ao verdadeiro conceito da matéria e da forma; ou então ao sentido da Manifestação Divina ou coisas seme- lhantes, nãonse que eu abrigue o propósito de investigar acerca de algum ponto filosófico, poisestas matérias têm sido expostas em nu- merosos livros e a maior parte comprovada. Min

ha única intenção é trazer à memória o que possa elucidar certas obscuridades da Lei,   parque algumas dificuldades sobre o conhecimento deste assunto desapareçam. Você já sabe, pela introdução deste Tratado, que seu objetivo aponta para a explanação do delato da Criação Ð M aassêBereshít (Gênesis 1 a 3) e do delato da Carruagem Divina Ð M aassêM erkaváel 1) e, também, para a elucidação de questões a respeito da Profecia

5

A Lei: referese à Torá ou à Palavra de Deus descrita na Bíblia, segundo a tradição judaic(NT).

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

e do conhecimento de Deus. Sempre que, em um capítulo, eu abordar a explicação de um p

onto já demonstrado, seja nas Ciências Naturais, seja na Metafísica, ou apresentado simplesmente como o mais prová- vel ou, ainda, um assunto relacionado à Matemática, saibaque este ponto é a chave imprescindível para se compreender algum aspecto dos Livros dos Profetas, com respeito a sua interpretação esotérica. Por isso, menciono, explico e demonstro o ponto em questão como útil para a compreensão dos relatos da CarruagemDivina ou da Criação ou para a exposição de algum princípio relacionado à Profecia ou à crm quaisquer das verdades ensinadas na Bíblia. A partir desta observação prévia, voltaremos ao tema que começa- mos a tratar.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

6p

C A P ÍT U LO

3

SOBRE A HIPÓTESE DE ARISTÓ TELES A C E R C A D A S C A U S A S DOS M O VIM EN TO S D A S ESFERAS CELESTES

A teoria formulada por Aristóteles acerca das causas dos movimentos das esferas celestes levouo a assumir a existência das Inteligências Separadas. Ainda que se tratem de hipóteses indemonstráveis, são, não obstante, entre as opiniões que podem ser enunciadas, as menos ex- postas a dúvida, como afirma Alexandre (de Afrodisia) no livro in

titu- lado ^4 Origem do Universo,6 Inclui máximas idênticas àquelas ensinadas na Bíblia, sobretudo segundo as interpretações midráshicas genuínas mais famosas, conforme demonstrarei. Por este motivo exporei as ditas te- orias e provas, selecionando as coincidentes com a Torá e com a dou- trina dos nossos Sábios.

6

ªO tratado de Alexandre de Afrodisia, não conservado em grego, parece ser o mesmo que menciona Casiri com o título De rerum creatorum principiis e cuja tradução árabe se encontra no manuscrito árabe DCCXCIC de El Escoriai. Vide Casiri, Bibliotheca ar. Hisp., 1.1., p. 242º (Munk).

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SOBRE

AS ESFERAS

CELESTES.

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CAPÍTULO 4

AS ESFERAS CELESTES E AS CAUSAS DO SEU MOVIMENTO A simples reflexão evidencia quea esfera celeste está dotada de alma. Não obstante, há aqueles para quem, à primeira vista, isto seja consi- derado ininteligível, ou seja rechaçado de pronto, imaginando que quando consideramos as esferas como dotadas de alma, tratase de uma alma comoa do homem, do asno ou do touro. Não é este o sentido, mas sim que sua locomoção indicaque ela possui em si, indubitavel- mente, um princípio por meio do qual se move, e é,com toda segu- rança, uma alma. Seria absurdo considerar que o princípio do movi- mentocircular das esferas fosse semelhante ao movimento retilíneo de uma pedra, para baixo, ou do fogo, para cima, de tal maneira que fosse uma propriedade natural e não

 uma alma. Pois aquilo que possui tal impulsão natural somente é movido pelo princípio que possui em si mesmo quando se encontra fora de seu lugar e tende a voltar aele. Assim que chega lá, passa a descansar.7 No entanto, a esfera celeste moveseem círculos, dentro de sua órbita, e não é porque está dota- da de alma que tem de se moveassim, pois todo ser animado se põe em movimento por instinto ou pela ra%ão. Por instinto, aqui, entendo

7

Vide Primeira Parte, cap. 72 (Maeso).

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72.

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PERPLEXOS

como a tendência ao conveniente ou a fuga ao repulsivo, não impor- tando se o agente motor é externo, como, por exemplo, quando o animal foge do calor solar e, sedento, dirigese ao local onde está a água. Não faz diferença se o motivo realmente existe ouse é fruto de sua imaginação, dado que o animal é impulsionado, desta forma, pela repulsa ao nocivo e tendência ao conveniente. Pois bem, a esfera celeste não se move porque seu propósito é fugir do prejudicial ou aproximarse do benéfico, já que o ponto parao qual converge é o da partida, Além disso, caso seu movimento tivesse tal objetivo, ocorre- ria necessariamente que, ao chegar a sua meta, permaneceria em re- pouso, posto que, ao se mover para buscar ou para evitar algo, sem jamais poder alcançálo,o movimento resultaria inútil. A ação circu- lar de uma esfera somente pode se efetuar em virtude de uma idéia determinante para que se mova assim. Todavia, se uma idéia so

men- te é factível em seres dotados de intelecto, então a esfera celeste é um ser dotado de intelecto. Pois bem, todo aquele que possui intelecto, por meio do qual con- ceba uma idéia, e uma alma, pela qual possa se mover, realiza isso por obra da mera representação mental, dado que esta, por si só, não ne- cessita de movimento. Isto já foi eosto na Metafísica , de Aristóteles. Você mesmo reconhecerá que concebe muitas coisas pelas quais pode- ria se mover e, sem dúvida, não se move de modo algum até que não lhe sobrevenha um desejo impulsivo em direção ao objeto representa- do. Somente então se mobiliza para a consecução do planejado. Fica claro, portanto, que nem a alma, fonte do movimento, nem o intelecto, fonte das idéias, são suficientes para originar o movimento se não hou- ver o desejo pelo objeto. Seguese daqui, portanto, que a esfera celeste possui desejo por um ideal tal como ela o compreende e que este ideal, pelo qual anseia, é Deus (Bendito seja!). E neste sentido que se afirma que Deus move asesferas celestes, pois as esferas desejam se tornar semelhantes ao com- preendido

por elas como ideal. Este ideal é somente no sentido estrito da palavra, não sujeito à mudança ou alteração de qualquer tipo, mas constante na produção de tudo o que é bom. Pa esfera, como corpo, isto é impossível, porque sua ação é o movimento circular e nada mais, esta é a única ação de seres corpóreos que pode ser perpétua, é o movi- mento mais simp um corpo e não permite nenhuma mudança na essência da esfera nem nos resultados benéficos de seu movimento.

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SOBRE

AS

ESFERAS

CELESTES.

Aristóteles, ao chegar a estes resultados, investigou o tema poste- riormente e descobriu, por inferência, que as esferas são muitas e que todas se movimentam em círculos, mas diferem entre si em velocidade e direção. Ele argumenta que o ideal compreendido por uma esfera que completa seu circuito em um dia é diferente, naturalmente, do de outra esfera que efetua seu circuito completo em trinta anos. Daí con- clui categoricamente que existem tantos ideais quantas são as esferas e que cada esfera tem um desejo por aquele ideal, fonte de sua existên- cia, e o desejo é a causa de seu movimento individual. Portanto, de fato, o ideal coloca a esfera em movimento. Nem Aristóteles nem qual- quer outro pensador decidiu se o número destes ideais é dez ou cem, ele afirma somente que são tantas quantas são as esferas. Pois bem, como algunsde seus contemporâneos sustentavam que o número de esferas era cinqüenta, Aristóteles di

sse que, se isso fosse verdade, o número de ideais seria igualmente de cinqüenta. Em seu tempo os conhecimentos matemáticos eram escassos e, todavia, imperfeitos. Acreditavase que, para cada movimento, precisavase de uma esfera em separado, pois ignoravam que a inclinação de uma só esfera origina muitos movimentos visíveis, como,por exemplo, o caso da mudança na longitude de um astro, sua declinação e os lugares de seu nascimen- to e ocaso, vistos no círculo do horizonte. Mas como este não é nosso objetivo no momento, voltemos ao tema. Os filósofos modernos têm afirmado que as Inteligências Separa- das são dez, porque contaram as esferas que têm astros e a esfera cir- cundante, ainda que algumas delas contenham numerosas órbitas. Há no total nove esferas: a esfera circundante universal, a dos astros fixos e as dos sete planetas. Nove Inteligências Separadas correspondem às nove esferas e a Décima Inteligência é o Intelecto Ativo, cuja existên- cia está demonstrada pela transição, por parte do nosso intelecto, da potência ao ato; e pela mesma transição no caso das formas de todos os seres tran

sitórios. Pois tudo quanto passa da potência ao ato neces- sita de um agente externo do mesmo tipo. Com efeito, o artífice não fabrica um cofre por ser um artífice, mas sim porque tem em sua men- te a forma do cofre, e é esta forma na mente do artífice que,ao traba- lhar na madeira, faz o cofre passar da forma potencial à existência. E o que transmite forma à matéria deve ser forma pura; logo, a fonte do intelecto deve serInteligência Pura, neste caso, o Intelecto Ativo. A relação deste com os elementos e seus componentes é análoga à das

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DOS

PERPLEXOS

Inteligências Separadas junto às respectivas esferas. E o nosso intelec- to em ação Ðorigido no Intelecto Ativo e que nos permite compre- endêlo Ðencontra paralelo nos intelectos de cada uma das esferas, originados na Inteligência Separada correspondente acada esfera ce- leste, e que, da mesma forma, possibilita à esfera compreender a sua Inteligência Separada, formar uma idéia dela e se movimentar no sen- tido de se tornar semelhante a ela. Aristóteles depois inferiu o que já foi explicado: Deus não ama por contato direto. Assim, quando Ele destrói tudo pelo fogo, este é posto em ação através do movimento das esferas, e estas, pelas Inteligências Separadas. Estas são idênticas aos anjos, que estão em volta Dele, e suas ações por influência direta são, conseqüentement cada uma na sua vez, a causa do movimento das esferas. Pois bem, como os SeresPuramente Espirituais não diferem em sua essência, nem são de modo algum suscetíveis de

numeração quanto a sua diversidade, deduzse, segundo ele (Aristóteles), que Deus criou a Primeira Inteligência, que é o agente de movimento da primeira esfera. A Inteligência que mobili- zou a segunda esfera tem como causa e princípio a Primeira Inteligên- cia, e assim sucessivamente, de maneira que a inteligência que põe em movimento a esfera mais próxima à Terra é a fonte e a origem do Intelecto Ativo, o último na série de Seres Puramente Espirituais. A série de corpos materiais começa, de forma semelhante, pela esfera superior e termina pelos elementos e seus componentes. A Inteligên- cia que move a esfera superior não é o Ser Absoluto, pois há um ele- mento comum a todas as Inteligências, que é a propriedade de ser um agente de movimento de uma esfera, e há outro elemento pelo qual cada uma é distinta das demais. Cada uma das Dez Inteligências inclui, portanto, dois elementos e, conseqüentemente, outro ser deve ser a Primeira Causa. Esta é a teoria e a opinião de Aristóteles, e seus argumentos a res- peito têm sido expostos, enquanto podem sêlo, nas obras da Escola Aristotéüca. Em suma, ele acre

dita que: as esferas são seres dotados de alma e intelecto, capazes de compreender totalmente os princípios de suas existências; existem Seres Puramente Espirituais (Inteligências Separadas) incorpóreos, cuja existência é derivada de Deus, e estes formam o elemento intermediador entre Ele e este mundo material. Nos capítulos seguintes vou expor quanto os ensinamentos da Bí- blia estão em harmonia com estes pontos de vista e o quanto deles diferem.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

CAPÍTULO 5

CONCORDÂNCIA DA TEORIA DE ARISTÓTELES COM OS ENSINAMENTOS DA BÍBLIA A Bíblia sustenta ateoria de que as esferas celestes são dotadas de alma e intelecto, isto é, capazes de compreender as coisas. Não são, como acreditam os ignorantes, corpos inanimados como o fogo e a terra, mas sim Ðcomo asseguram os filósofos Ðdotados de vida, obedientes a seu Senhor, Louvandoo e Elogiandoo em alto grau: ªOs Céus declaram a Glória de Deusº (Salmo 19:2). É um grande erro pensar que esta é somente uma figura de linguagem,pois os verbos higníd (declarar) e sipêr (narrar), quando usados juntos, em hebraico, referemse a seres dotados de inteligência, é isto o que o Salmista realmente quer dizer ao descrever a própria ação celeste. Em outras palavras, o que as esferas fazem de fato, e não o que o Homem pensa sobre elas, pode ser inferido melhor das palavras: ªNão há fala e não há palavras, não são ouvidas suas vozesº (Salmo 19:4). Assim, está

manifesto que se refere a elas mesmas, louvando a Deus e anunciando Suas maravilhas, sem palavras de lábios ou lín- gua. Quando o ser humano louva a Deus com palavras pronuncia- das, descreve apenas as idéias que ele concebeu; mas são as idéias que formam o verdadeiro louvor. A razão pela qual ele dá expressão a estas idéias está no seu desejo em comunicálas aos outros ou de se

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PERPLEXOS

certificar de que foi ele mesmo quem as concebeu. Por isso é dito a este respeito:

 ªReflitam em seus corações quando estiverem em seus leitos, e silenciem.º (Salmo 4:5),conforme expusemos.8 Somente pessoas ignorantes ou obstinadas poderiam recusarse a admitir esta prova obtida da Bíblia. De acordo com a opinião dos nossos Sábios, nãovejo necessidade de explicação nem de prova. Considere tão somente a forma que eles deram à benção recitada ao se ver a Lua Nova9 e as idéias recorrentes nas orações e comentármidráshicos, a propósito das seguintes pas- sagens: ªE os exércitos dos Céus se prostram ae Tiº (Neemias 9:6) e ªEm um único clamor os astros da manhã e os aplausos de todos os filhos de Deusº (Jó 38:7). E m BereshitKabá, sobre a passagem: ª VeháA ret ^ haitáüòYm. vaerra estava va^ja e sem form aº (Gê- nesis 1:2), nossos Sábios se expressam assim: ªAs palavras

 

Tôhu e Vôhu significam lamentavase e chorava ; a Terra se lamentava e chorava por sua má sorte, como se dissesse: `Eu e os Céus fomos criados junta- mente; e no entanto os seres acima vivem para sempre e nós somos mortais'º. Nossos Sábios, por meio dest

e comentário, indicam sua crença de que as esferas são seres dotados de alma e não de matéria inanimada como os elementos. A opinião de Aristóteles, de que as esferas são capazes de com- preensão e concepção, está de acordo com as palavras de nossos profetas, teólog ou Sábios. Os filósofos concordaram posterior- mente com o fato de que este mundo inferior é governado por influ- ências que emanam das esferas celestes,1 0 e que estas compreendem e têm conhecimento das coisas que as influenciam. Esta teoria tam- bém é encontrada na Bíblia: [os astros Ðtodo o exército dos Céus] ª(..,) que separou YHVH Teu Deus aeles, para todos os povos sob os Céusº (Deuteronômio 4:19). O que quer dizer: Deus mostrou que os astros existem para serem os intermediários no governo de Suas cri- aturas, não para serem objetos de adoração por parte do Homem. Isto foi, portanto, deixado bem claro na passagem: ªE para governar (Limshól) de dia e de noiteº (Gênesis 1:18). Aqui, o sentido do termo

89

10

Vide Primeira Parte, cap. 64. Bênção da Lua: Bircát HáLevaná (NT). Vide Primeira Parte, c. 72.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

Governo ( 

Memsbalá) referese ao poder que as esferas possuem de go- vernar a Terra,

 é uma idéia complementar à de oferecer lu ^ e trevas Ð estas últimas, causas diretas da geração e da destruição, tal como é esclarecido nas palavras: ªseparar a luz das trevasº (G 1:18). É impossível supor que quem governa algo seja ignorante das coisas que governa, se tom à im os governar n o seu sentido próprio. Acrescen- taremos outro capítulo a este assunto.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

79

CAPÍTULO

6

O QUE SE ENTENDE PELO TERMO MALÁCH (ANJO) E SUAS ACEPÇÕES, ESPECIALMENTE A DE INTELIGÊNCIAS SEPARADAS Com respeito à existência dos anjos, é desnecessário citar provas da Bíblia, onde o fato é freqüentemente mencionado. O termo TLlohím significa Jui\esn como em: ªAcausa de ambas as partes deve ser leva- da diante dos ju iz esº (Exodo 22:8). Aplicase metaforicamente aos anjos e também a Deus, como Juiz acima dos anjos. Quando está escrito: ªEu sou YHVH, vosso Deusº, o pronome vosso se refere a toda a Humanidade, mas a frase Hlohê háTLlohím (Juiz dos Juizes) referese ao Deus dos anjos e, em A do

nê háAdoním (Senhor dos Se- nhores), ao Deus das esferas e dos astros, que são os senhores de todas as demais criaturas corpóreas. Os nomes Hlohím (Juizes) tA doním (Se- nhores), nestas frases, não se referem a juizes humanos ou mestres, pois estes estão em umnível inferior ao dos corpos celesdais; muito menos se referem à Humanidade em geral, incluindo mestres e servos, ou a objetos de pedra e madeira adorados por alguns como deuses, pois não seria elogio ou honra a Deus fazêlo superior por meio de uma pedra, madeira ou pedaço de metal. Estas frases, portanto, não

11

Vide Primeira Parte, cap. 2.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

admitem outra interpretação além desta: Deus é o Juiz dos Juizes, isto é, o Senhor dos anj

os e o Senhor das esferas celestes. Já dedicamos anteriormente um capítulo para demonstrar que os anjos são incorpóreos, com o que também concorda Aristóteles. Há apenas umadiferença nos nomes empregados: ele denomina Inteligên- cias Separadas ao que nós chamamos Anjos, Sua teoria é a de que as Inteligências Separadas são seres intermediários entre a Primeira Causa e as coisas existentes, e produzem o movimento das esferas, de cujo movimento depende a existência de todas as coisas. Esta é a visão também encontrada em toda a Bíblia, na qual toda ação de Deus é descrita como tendo sido realizada porMalacbím (Anjos). Mas anjo sig- nifica mensageiro. Portanto, todo aquele que é imbuído de uma certa missão é um anjo. Mesmo os movimentos do animal irracional são, às vezes, semelhantes à ação de um anjo, quando estes movimentos ser- vem ao propósito de Deus, que nele pôs uma força executora de tal movimento. Por exemplo, quando Daniel afirma: ªMeu Deus enviou o seu anjo, que fechou a boca dos leões, e não me atacaramº (Daniel 6:22).

Outro exemplo está nos movimentos do asno de Bilám, descri- tos como causados por um anjo. Até mesmo os elementos recebem igualmente a denominação de malachím (anjos ou mensageiros), como acon- tece em: ªQue faz Seus anjos (malacháv) os ventos, Seus ministroso fogo flamejanteº (Salmo 104:4). Não há dúvidas de que a palavra anjo é usada como: 1) um mensageiro entre os homens, por exemplo: ªE Enviou Jacob anjos/mensageiros (  malachímj à sua frenteº (Gênesis 32:4); 2) um Profeta, por exemplo: ªSubiu o anjo/Profeta de YHVH de Guilgál a Bochínf

 

 (Juizes 2:1), ªe enviou um anjo/Profeta (malách), e nos tiroudo Egitoº (Números 20:16); 3) ideais percebidos pelos Profetas em visões proféticas; 4)faculdades anímicas nos homens, conforme explicaremos mais adiante. Quando afirmamos que a Bíblia ensina que Deus governa este mundo por meio dos anjos, queremos dizer que estes anjos são idênti- cos às Inteligências Separadas. Em algumas passagens, utilizase o plural em referência a Deus, como em: ªFaçamos o Homem à Nossa Ima- gemº (Gênesis6), ou ªVamos, desçamos e confundamos ali a sua línguaº (Gênesis 11:7). Nossos Sábios expl

am isso do seguinte modo:

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SOBRE

AS

ESFERAS

CELESTES.

Deus não faz nada antes de contemplara Família Superior. A expressão contemplar é surpreendente, pois é a mesma utilizada por Platão ao dizer que ªDeus contemplou o Mundo das Idéias, e então produziu os seres existentesº. Em certas passagens nossos Sábios declaram de forma decidida: ªDeus não faz nada sem consultar a Família Superiorº (a palavra fam ília significa exêráto em grego). Sobre as palavras: ªo que Eles já fizeramº (Eclesiaste2:12), o seguinte comentário é feito no Talmúd, no Beresblt Rxibá e no Midrásb Kohélet. ª diz `O que Ele tem feito', mas sim `o que Eles têm feito'º, do que se conclui que Ele e S tribunal deliberam com respeito a cada um dos membros da hu- manidade antes de colocar a cada um deles no seu lugar, conforme se diz: ªEle, teu pai, te assumiu, Ele te fez e te preparouº (Deuteronômio 32:6). O Bereshít Rabá explica que, onde quer queo termo e (Deus) ocorra na Bíblia, entendase E le e Seu tribunal. Em todos estes

textos não se insinua que Ele fale, delibere, exa- mine ou consulte com o propósito de se servir da opinião alheia, como acreditam os ignorantes. Como Deus poderia serajudado por aqueles a quem Ele criou! Tudo isto somente mostra que todas as partes do Universo, mesmo os membros do Reino Animal em sua forma atual, foram feitos por meio dos anjos, já que forças naturais e anjos são idênticos. Quão ruim e injuriosaa cegueira da ignorância! Se você diz a uma destas pessoas, que afirma pertencer aos Sábios de Israel, que Deus envia Seu anjo para formar o feto no útero da mu- lher, ele ficará satisfeito com o resultado, acreditará e até considerará como uma manifestação dooder e Sabedoria Divina. Ao mesmo tempo, ele acredita que o anjo consiste de fogo ardente e que seu tamanho se iguala a um terço do universo inteiro e considera isto possível, como um milagre divino. Mas digalhe que Deus pôs no sêmen uma força formativa que modela e estrutura os membros de uma espécie, e que esta força é chamada de anjo , ou que esta força é o resultado da influência do Intelecto A tivo e este é um anjo

 e o Príncipe do Mundo, de quem tanto falam nossos Sábios, ele não acreditará, porque é incapaz de compreender o sentido dessa autêntica grandeza e poderio das forças criativas, amando em um corpo sem serem per- cebidas pelos sentidos. Os Sábios já esclareceram, para quem é inteli- gente, que cada uma das forças que residem em um corpo são forças ativas no Universo Ðsão anjos. A teoria de que cada força ama somente de um determinado modo é expressa no Bereshít Rabá (cap. 1), em que lemos: ªUm anjo não faz

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

duas coisas, e dois anjos não fazem umaº. Esta é exatamente a proprie- dade destas forças.

 Podemos encontrar a confirmação de que as forças naturais e psíquicas de um indivíduo denominamse anjos, como fre- qüentemente dizem nossos Sábios, originalmente no Bereshít Rabá (cap. 78): ªTodos os dias Deus cria uma legião de anjos; eles cantam para Ele e desaparecemº. Quando, em objeção a esta posição, outras posi- ções afirmam que os anjos são e com efeito, reiteradamente temse explicado que eles vivem permanentemente Ða resposta é que uns são permanentes e outros, perecíveis. E esta é a realidade, pois as forças individuais são transitórias, enquanto as das espécies correspon- dentes são permanentese imperecíveis. Novamente, lemos (em BereshitRabá, cap. 85), referindose à relação entreJudá e Tamar: ªRabi Yochanán disse que Judá quis prosseguir (sem ver Tamar), mas Deus colocou diante dele um anjo da cobiça, quer dizer, da disposição libidi- nosa, para apresentarse a eleº. Esta disposição humana é chamada aqui de anjo. Do mesmo modo, encontramos freqüentemente a frase: ªum anjo designado para isto ou aquiloº. No Midrásb Kohélet (sob

re Eclesiastes 10:7)1 2 está escrito: ªEnquanto o homem dorme, sua alma conversa com o anjo, e este com o querubimº. O leitor inteligente encontrará aqui uma afirmação clara de que a faculdade imaginativa também se chama anjo e o intelecto, querubim. Quãobelo isto deve parecer para aqueles que entendem e quão absurdo para os ignorantes! Já fizemos constar que as formas com as quais os anjos aparecem fazem parte da Visão Profética. Alguns Profetas vêem os anjos como se fossem seres humanos, por exemplo: ªE eis que três homens (anashím ) estavam parados à sua frenteº (Gênesis 18:2). Outrosrcebem um anjo como um ser temeroso e terrível, como em: ªE o seu aspecto era como o aspecto de um anjo (malách) de Deus muito terrívelº (Juizes 13:6). Outros, ainda, osvêem como fogo, por exemplo: ªApareceulhe o anjo (malách) de YHVH em uma chama de fogoº (Êxodo 3:2). Em Bereshit Rabá (cap.l), há o seguinte comentário: ªA Abrahão, cujo po- dfético era fantástico, os anjos apareceram na forma de homens; para Lot, cujo poderera deficiente, apareceram como anjosº. Há aqui um princípio importante da Profecia qu

e será melhor discutido quan- do tratarmos do tema (cap. 32). Em outra passagem do Bereshit Rabá

12

Eclesiastes 10:7: ªVi escravos sobre cavalos e príncipes caminhando como escravos sobre a naçãoº (NT).

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

(;ibid..) se afirma: ªAntes de os anjos cumprirem suas missões, eram chamados homens

; depois de realizadas, eram anjosº. Considere como eles dizem claramente que o termo anjo não significa mais do que uma determinada ação, e que toda aparição de um anjo érte de uma visão Profética, dependendo da capacidade da pessoa que o percebe. Naquilo que Aristóteles deixou dito sobre o particular, tampouco há algo contraditório com a Bíblia. A grande diferença entre ele e nós é que ele acredita que todas estas coisas sãoeternas, coexistentes com a Primeira Causa como seu agente necessário, e nós acreditamos que elas tiveram um início, que Deus criou as Inteligências Separadas e deu às esferas celestes a capacidade de buscarem ser como elas. Ao criar as Inteligênúas e as esferas, Ele as dotou de capacidade para governar. Neste ponto discordamos dele. No decurso deste Tratado iremos tratar de sua teoria, bem como da teoria da Creatio ex nihilo, ensinada na Bíblia.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

C A P ÍT U L O 7

A POLIVALÊNCIA DO TERMO M ALÁCH (ANJO)

Já foi explicado que o termo Malácb é um termo polivalente que com- preende as Inteligências Separadas, as esferas e os elementos, pois todos eles executam o Comando Divino. Mas não pense que as In- teligências e as esferas são como outras forças que residem nos corpos e que atuam segundo as leis da natureza, inconscientes do que fazem. As Inteligências Separadas e as esferas são conscientes de suas ações e escolhem por livre arbítrio os objetos de sua in- fluência, embora não do mesmo modo como nós exercemos o livre arbítrio e o governo sobre outras coisas que dizem respeito somen- te a seres temporários. Adotei esta teoria devido a algumas passagens na Bíblia. Quando um anjodiz a Lot: ªporque não poderei fazer nada (...)º (Gênesis 19:22) e, ao liberálo, o anjo d

iz: ªVeja, atenderei a teu pedidoº (Gê- nesis 19:21). Novamente: ªGuardate diante dele eescuta sua voz, não te rebeles contra ele, porque não perdoará vossos delitos, por- queMeu Nome está nele.º (Êxodo 23:21). Todas estas passagens demonstram que os anjos são conscientes do que fazem e têm livre arbítrio na esfera da ação confiada a eles, assim como nós temos livre arbítrio em nossa cidade, de acordo com o poder entregue a nós em toda a nossa existência. A diferença é que o que fazemos é o

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

mais baixo estágio de excelência, e nossa influência e o que fazemos são precedidos da a

usência de ação. Já com as Inteligências e esferas ocorre sempre o que é bom; nelas está cdo o que é bom e perfei- to, como será mostrado adiante, e têm sido continuamente ativas desde o início.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

C A P ÍT U LO 8

SOBRE A MÚSICA DAS ESFERAS CELESTES

Uma das antigas opiniões, muito difundida entre os filósofos e as pessoas em geral, éa de que o movimento das esferas celestes origina sons formidáveis e violentos. Eles observaram como pequenos obje- tos produziam, por meio de um movimento rápido, um ruído alto, estrépito e retumbante, e concluíram que este deve ser o caso, em um nívelmuito mais alto, dos corpos solar, lunar e estelar, dado seu ta- manho e velocidade. Os Pitagóricos acreditavam que estes corpos emitem sons harmoniosos e que, mesmo altos, mantêm as mesmas proporções entre eles que as notas musicais mantêm entre si. Expli- caram também o motivo pelo qual não ouvimos estes sons tão fortes e tremendos. Esta crença também se espalhou por nossa nação. Nos- sos Sábios descrevem a grandeza do som p

duzido pelo Sol no ci- clo diário de sua órbita. A mesma descrição é dada para todos os coos celestes. Aristóteles, no entanto, rejeita esta idéia e sustenta que eles não produzem sons. Esta opinião pode ser encontrada no livro Os Céus e o Mundo (De Coeló). Não se deve achar estranho que Aristóteles discorde aqui da opinião dos nossos Sábios. A teoria da Música das Esferas está ligada à teoria do movimento dos astros fi- xos em uma esfera, e nossos Sábios, nesta questão astronômica, aban- donaram sua própria teoria em favor da teoria de outros. Logo, é

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

confirmada a afirmação de que os Sábios das outras nações venceram os Sábios de Israel. E

rdade que nossos Sábios abandonaram a sua pró- pria teoria, pois todos tratam os problemas especulativos de acordo com os resultados de seus próprios estudos e aceitamo que lhes é estabelecido através de demonstração.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

CAPÍTULO

9

SOBRE O NÚMERO DE ESFERAS CELESTES Já lhe expusemos que o número das esferas não foi determinado no tempo de Aristóteles, e aqueles que atualmente contam nove esferas consideram que uma esfera com várias órbitas é uma, segundo é notó- rio para quem tem conhecinto de Astronomia. Por isso, não deve- mos rejeitar a opinião daqueles que assumem a existência de duas esfe- ras, de acordo com as palavras da Bíblia: ªPertencem a YHVH TeuDeus os Céus e os Céus dos Céus.º (Deuteronômio 10:14). Eles calcu- lam todas as esferas c os astros, ou seja, todas as órbitas nas quais os astros se movem, como uma; e aEsfera Circundante, na qual não há astros, é considerada por eles como a segunda. Porisso, eles susten- tam que há duas esferas. Apresentarei, aqui, uma explanação necessária

para a compreensão do nosso ponto de vista sobre este assunto. Há discrepância de opini- ões entre os antigos astrônomos se as duas esferas de Vênus e Mercú- rio estão acima ouixo do Sol, pois não está demonstrada a posição destas duas esferas. A opinião de todos os antigos era a de que elas estavam acima do Sol. Veja bem, depois veio Ptolomeu, afirmando que se encontram abaixo do Sol, pois acreditava que, desta maneira, o arranjo das esferas seria mais razoável. O Sol estaria no meio, com três planetas acima e três abaixo. Mais recentemente, alguns estudiosos

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

andaluzes13 concluíram, segundo alguns princípios deixados por Ptolomeu, que Vênus e M

ercúrio se encontravam acima do Sol. Chabir ibn Aflá, de Sevilha, com cujo filho merelacionei, escreveu um livro famoso sobre o tema, como também o excelente filósofoAbu Bakr ibn AlSaíg, de um de seus discípulos recebi aulas, que examinou a questão eformulou alguns argumentos Ðque dele copiamos Ðsobre a improbabilidade de Vênus e Mercúrio estarem acima do Sol. As pro- vas oferecidas por Abu Bakr mostram somente a improbabilidade, não a impossibilidade. Em suma, de qualquer forma, todos os antigossitu- avam Vênus e Mercúrio acima do Sol e, por este motivo, contavam cinco esferas: a da Lua, indubitavelmente a mais próxima de nós, a do Sol, necessariamente por cimadela, a dos outros cinco planetas, a dos astros fixos e a esfera que a tudo circunda, na qual não há astro algum. Conseqüentemente, o número de esferas que c o n t e mfiguras Ðou seja, astros, chamados de figuras pelos antigos em seus famosos tra- balhos Ðsão quatro: a esfera dos astros fixos, a dos cinco planetas, a do Sol, a da Lua

 e, por cima de todas, uma esfera vazia, sem astro algum. Este número é muito importante para mim, por causa de uma idéia que nenhum dos filósofos esclareceu e à qual fui levado por diversas declarações dos filósofos e dos nossos Sábios. Agora vou descrevêlae explicála.

13

Nova referência de M aimônides a sua terra natal, o que demonstra que estava muito atento ao movimento cultural em A ndaluzia nesta época (Maeso).

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S O BR E AS

ESFERAS

CELESTES.

C A P ÍT U LO

1 0

A INFLUÊNCIA DAS ESFERAS CELESTES SOBRE A TERRA SE MANIFESTA DE QUATRO MODOS DIFERENTES E conhecido e difundido em todas as obras filosóficas sobre a Ordem do Universo que o regime no mundo sublunar dos seres transitórios depende das forças procedentes das esferas, Temos afirmado isso reiteradamente e do mesmo modo nossos Sábios dizem : ªNão há abai- xo nem a mais insignificante erva sem o seu M a^ál (Astro) que a im - pulsiona e a ordena crescer, pois está dito: `J á aprendeu as leis dos Céus, se estas policiam a Terra?º' (Jó 38:33). O termo Ma^ál, literal- mente uma constelação do Zodíaco, éambém para todo astro, como pode ser inferido da seguinte passagem no inicio do Beresbít Kabá (cap. 10), em que se afirma: ªEnquanto u m M «^ / completa sua órbita em trint

a dias, outro completa em trinta anosº. Portanto, indi- case claramente nesta passagem que todo ser individual no mundo tem seu astro correspondente. Embora as influências das esferas se estendam sobre todos os seres, o indivíduo está sob a influência de- terminada de um astro específico dirigido a cada espécie em particu- lar. Este fato também é percebido com referência a diversas forças em um único organismo, pois todo o Universo é como um único organis- mo, conforme já dissemos. Por este motivo, os filósofos falam da influência peculiar da Lua sobre o elemento particular da água. Este

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

caso é comprovado pelo aumento e diminuição da água dos mares e rios, de acordo com o crescimento e a diminuição da Lua, também pela subida e descida das marés conforme o avançoou o retorno da Lua, isto é, sua ascensão e descenso nos diversos quadrantes de sua órbita, como é claro a quem já tenha observado este fenômeno.14 A influência dos raios solares sobre o fogo pode ser facilmente verifica- da pelo aquecimento ou resfriamento da Terra, de acordo com a apro- ximação ou o afastamento solar. Isto é tão claro que nãorecisa de mais explicações. Ocorreume que as quatro esferas que contêm astros exercem in- fluência sobre todos os seres terrestres que vêm a existir e, de fato, são a causada existência dos mesmos, mas cada uma das quatro esfe- ras é fonte exclusiva das propriedades de apenas um dos quatro ele- mentos, e se torna, a partir de seus movimentos, a causa do movi- mento e das mudanças daquele elemento. Assim, a água é posta em mo

vimento pela esfera lunar; o fogo, pela esfera solar; o ar, pela esfe- ra dos outros planetas, que se movem em cursos variados e diferen- tes, com retrocessos, progressos e paradas, e então produzem as vári- as formas de ar com suas freqüentes m udanças, contrações e expansões; e a esfera dos outros astros, ou seja, os astros fixos, que colocam a terra em movimento. Razão pela qual, talvez devido ao movimento lento dos astros fixos, a terra se movimente tão lenta- mente e se combine com os outros elementos. A influência particular que os astros fixos exercem sobre a terra está implícita na declaração dos nossos Sábios de que o número das espécies de plantas corres- ponde aoas individualidades incluídas no termo geral astros. A or- dem do Universo, portanto, pode ser assumida da seguinte forma: quatro esferas, quatro elementos postos em movimento por elas e, também, quatro propriedades principais das quais os seresterrestres derivam, como já expusemos. Além disso, as causas do movimento de cada esfera são quatro, a saber, os seguintes elementos essenciais da esfera:

14

ªO que o autor declara aqui, a respeito do influxo da Lua não somente sobre os mares, mas também sobre o caudal dos rios, é uma hipótese que se encontra já em alguns autores antigos. Sem dúvida, nos escritos que nos restam de A ris- tóteles, apenas se faz alguma alusão ao fluxo e refluxo do mar.º (Munk).

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

1) 2) 3) 4)

seu formato esférico; sua alma; seu intelecto, através do qual a esfera é capaz de formar idéias; a Inteligência Separada, que a esfera deseja imitar.

Veja, a explicação para o que eu disse é a seguinte: a esfera não poderia estar continuamente em movimento se não tivesse esta forma peculiar, e a continuidade do movimento só é possível quando o movi- mento é circular. O movimento retilíneo, mesmo que se repi freqüen- temente , não pode ser contínuo, pois, quando um corpo se movimenta sucessivamente em duas direções opostas, passará necessariamente por um momento de descanso, como foi demonstrado no lugar apropria- do. A necessidade de um movimento contínuo, repetido constante- mente no mesmo local, implica a necessidade de uma forma circular. As esferas devem ter uma alma, pois somente seres animados podem se mover livr

emente. Deve haver uma causa para o movimento e, desde que isto não consista no temor de algo que seja injurioso ou no desejo de algo que seja agradável, deve serencontrada na noção for- mada pelas esferas de um determinado ser e no desejo de se aproximar deste ser. A formação desta noção exige, em primeiro lugar, que as esferas possuam intelecto e, depois, que exista algo correspondente àquela noção , da qual as esferas desejam se aproximar. Estas são as quatro causas do movimento das esferas celestes. Em seguida temos as quatro principais forças derivadas diretamente das esferas: 1) 2) 3) 4) a natureza dos minerais; as propriedades particulares das plantas (vegetativas); as faculdades animais (anímicas); o intelecto.

Um exame destas forças nos mostra que elas possuem duas fun- ções, a saber: 1) Produzircoisas. 2) Perpetuálas. Ou seja, preservar perpetuamente as espécies e os indivíduosde cada espécie por um certo tempo. Estas são também as funções da Natureza, da qual se di

z que é sábia para governar o Universo, preocuparse em

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

planejar a produção de seres vivos e se preocupar também com a sua preservação e perpetuaçA Natureza cria faculdades formativas, que são a causa da produção de seres vivos, e faculdades nutritivas como fonte de sua existência temporal e preservação. Deve ser por meio da Natureza que o Desejo Divino, que é a origem daqueles dois tipos de faculdade por meio da mediação das esferas celestes, é cumprido. O número quatro é estranho e merecedor de nossa atenção. No M/í/m^Ta^huma1 5 se diz: ªQuantos degraus tinha a Escada dejacob? Ð Q uatroº. Tratase da passagem: ª(...) e eis uma escada apoiada sobre a Terraº (Gênesis 28:12). Em todos os Midrashím se constata que havia quatro legiões de anjos, afirmação repetida com freqüência.16 Em al- guns escritos se pode ler: ªQuantos degraus hia na escada? ÐSeteº; mas todos os escritos e todos os Midrashím expressam unanimemente que os anjos, vistos por Jacob subindo e descendo a escada, eram so- mente quatr

o, dois que subiam e dois que desciam. Estes quatro anjos Ðos dois que subiram e os dois que desceramÐocuparam, alinhados, um degrau da escada. Daí se inferiu que a extensão da escada, na visão Profética, era equivalente a quatro terços do Universo, pois o tamanho de um anjo na visão Profética era igual a um terço do Universo. Em conformidade com este outro texto: ªE o seu tamanho era como dois sextosº (Daniel 10:6), osquatro anjos, portanto, ocupavam quatro ter- ços do Universo. Zacarias, ao descrever a seguinte visão metafórica: ªQuatro carruagens saem do meio de duas montanhas; e asmonta- nhas são montanhas de cobreº (Zacarias 6:1), acrescenta a explicação: ªEis quatro vtos dos Céus saindo para se apresentar diante do Se- nhor de toda a Terraº (Zacarias 6:5), que são a causa de todas as mu- danças no Universo. A palavra cobre aqui empregada, assim como a frase ªcobre polidoº, utilizada por Ezequiel (Ezequiel 1:7),1 7 são ter- mos em certa medida homônimos, o que será discutido mais adiante.

15 16

17

M idrásh Tan'huma : Comentário talmúdico de Rav (Mestre, Rabino, Sábio) Tan'huma (NT). ª V por exemplo, P irk ê (Capítulos) de Rav E liézer, cap. 4, em que se afir- ma que o Trono de Deus está circundado por quatro legiões de arcanjos: M iguel, G abriel, Uriel e Rafael.º (Munk). Sobre este tem a em geral, veja ^4 A.ngelologia na L iteratura R abínica e Sefaradí, por C. Gonzalo Rubio (Barcelona, 1977). (Maeso). Ezequiel 1:7: ªE seus pés Ðpé reto, e a sola dos seus pés Ðcomo a sola do pé de um bezerro, como não há colidoº. (NT)

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SOBRE

AS

ESFERAS

CELESTES.

Quanto à afirmação dos nossos Sábios de que um anjo é igual a um terço do Universo ou, nasalavras do Bereshít Rabá (cap. 10), que o anjo é uma terça parte do mundo, isto está totalmente claro, nós já o explicamos em nossa grande obra sobre a Santa Lei.1 8 A Criação, em sua totalidade, consiste de três partes: 1) as Inteligências Puras, ou anjos; 2) os corpos das esferas celestes; 3) a matériaprima ou os corpos sob as esferas celestes, sujeitos a mudanças constantes. Desta forma irão entender os ditos obscuros dos Profetas aqueles que desejarem entendêlos, aqueles que despertarem do sonho does- quecimento, salvandose do mar da ignorância e elevandose para mais próximo dos seres superiores. Mas aqueles que preferirem nadar nas águas da sua ignorância Ðe ªvocê descerá muito baixoº (Deuteronôrnio 28:43) Ðnão precisam cansar o corpo nem o coração. Precispenas parar de se movimentar e, então, descerão segundo a lei da natureza. Pense nis

so e reflita bem sobre tudo o que eu lhe disse.18

M aimônides referese aqui à sua grande obra de sistematização das leis judai- cas, o M ishnê Torá (NT).

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

CA P ÍT U L O

1 1

A TEORIA EPICICLOS

DA

EXCENTRICIDADE

PREFERÍVEL

À

DOS

Devese levar em conta, com respeito às questões astronômicas trata- das, que se um simples matemático as lê e compreende, pensará que a forma e o número das esferas são fatos comprovados. Este não é o caso, pois nem é isso o que busca a ciência astronômica, embora inclua temas que podem ser provados, como por exemplo, a comprovação da inclinação indubitável da órbita solar até o Equador. Mas ainda não se decidiu se a esfera solar é excêntricaou contém um epiciclo giratório. O astrônomo não pára a fim de pensar nisso, dado que a finalidade desta ciência é simplesmente formular uma hipótese que leve a um movimento circular e uniforme dos astros, sem aceleração, retarda- mento ou mudança, e cujo resultado esteja de acordo com a observa- ção. Ele também buscará uma hipótese que exigirá o movim mais simples e o menor número de esferas. Irá, portanto, preferir uma hipó- tese que ex

plique todo o fenômeno dos astros por meio de três esferas a outra que requeira quatro esferas. Por esta razão, tratandose da órbi- ta do Sol, optamos pela Teoria da Excentricidade e rejeitamos a Teoria dos Epiciclos, assumida por Ptolomeu. Quando então percebemos que todo o movimento dos astros fixos ocorre de maneira uniforme e na mesma direção, sem a menor diferença, concluímos que estão todos

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

em uma mesma esfera. É possível que os astros tenham, cada um, a sua própria esfera, c

om um centro em separado, e, mesmo assim, movamse na mesma direção. Se esta teoriafor aceita, um certo número de Inteligências Separadas deve ser admitido, igual ao dos astros, con- forme o afirmado na Bíblia: ªHá número para suas divisões milita- res?º (J pois as Inteligências Separadas, os corpos celestes e as forças naturais são chamados de Exércitos de Deus. Todavia, suas es- pécies não podem ser numeradas e, não obstante, ainda poderíamos justificar a contagem das esferas dos astros fixos coletivamente,como uma só esfera. Assim como as cinco esferas dos planetas, as numero- sas esferas que estas contêm são tomadas por nós como uma só. Nos- so propósito em adotar este númeromo você já sabe, dividir as influências que podemos perceber no Universo de acordo com o cará- ter geral destas, sem nos preocuparmos em fixar o número das Inteli- gências e das esferas celestes. Nosso objetivo, em suma, tem sido provar que: 1) Toda a Criaçãoestá dividida em três partes, a saber: a) as Inteligências Separadas; b) os corpos das

 esferas celestes, dotados de formas permanen- tes (as formas destes corpos não se transferem de um subs- trato a outro, nem o seu substrato sofre qualquer mudança, qualquer que seja); c) todos os seres terrestres transitórios, que consistem da mes- ma matéria. 2) O governo emana do Criador e é recebido pelas Inteligências Separadas conforme o seu tipo. Parte daquilo que é Bom e da Lu% outorgada às Inteligências Separadas é comunicada às esfe- ras celestes que, de posse da abundância por elas extraída, trans-item forças e benefícios sobre os seres do mundo transitório. Devemos acrescentar quea parte que beneficia a outra do modo descrito não tem, como objetivo de sua existência, somente a pro- dução daquele benefício, pois, se fosse este o caso, levaria ao para-doxo de que as coisas mais elevadas, melhores e mais nobres existi- riam pelo bemdas coisas inferiores, quando, na realidade, o objetivo deve ser mais importante do que os significados utilizados para definilo. Nenhuma pessoa inteligente poderia admitir esta possibilidade.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

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A natureza da influência que uma parte da Criação exerce sobre a outra deve ser explicada da seguinte forma: uma coisa de certo modo perfeita ou é perfeita em si mesma, sem que tenha condições de co- municar esta perfeição a outro ser, ou é tão perfeita quez de aperfeiçoar outro ser. Uma pessoa pode possuir riqueza suficiente para suas próprias necessidades e nada lhe sobrar para beneficiar al- guém, ou pode ter riqueza suficiente para beneficiar também a outras pessoas, até mesmo enriquecêlas bastante, e ainda doar parte de suas propriedades a outros. Da mesma forma, a ação criativa doAltíssi- mo, ao dar existência às Inteligências Separadas, dota estas primeiras de força pa dar existência a outros, e assim sucessivamente até o Intelecto Ativo, o nível maisbaixo dos Seres Espirituais Puros. Pela produção de outras Inteligências, cada Inteligência dá existência a uma das esferas celestes, da mais elevada à mais baixa, que é a esfe

ra da Lua. Após esta última, seguese o mundo transitório, ou seja, a matéria e tudo o que é composto dela. Assim, os (quatro) elementos recebem certas propriedades de cada esfera e, então, uma sucessão de geração e destruição é produzida. Já mencionamos que eeorias não se opõem ao que foi ensina- do pelos nossos Profetas ou pelos nossos Sábios.Nossa nação é sábia e perfeita, conforme foi declarado pelo Altíssimo por meio de Moi- sése nos aperfeiçoou: ªSomente um povo sábio e prudente é esta grande naçãoº (Deuteronômio 4:s quando os malvados bárba- ros aniquilaram nossas boas qualidades, destruíram nossa ciência e literatura e assassinaram nossos Sábios, tornamonos ignorantes. Isto foi previsto pelos Profetas, quando pronunciaram a punição por nos- sos pecados: ªE se perderáa sabedoria de seus Sábios, e o conheci- mento de seus prudentes se eclipsarẠ(Isaías 29:14). Nós nos mistu- ramos a outras nações, aprendemos as suas opiniões e seguimos seus caminhos e atos. O Salmista, deplorando a imitação das ações de ou- tras nações, diz: ªE se mram às nações e aprenderam seus atosº (Salmo 106:35). Do mesmo modo, Isaías se queixa de q

ue os israelitas adotaram as opiniões de seus vizinhos, e declara: ªE com os filhosdos estrangeiros pactuaramº (Isaías 2:6) ou, de acordo com o Targum 1 9 Ða versão aramaica de Yonatán ben Uziel: ªE eles andam pelos caminhos das naçõesº. Assim, pois, ao nos habituarmos às opiniões

19

Targum: tradução do texto b íb lico do hebraico p ara o aram aico (NT).

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das pessoas ignorantes em Filosofia, inclinamonos a considerar estas opiniões filosóficas como estranhas à nossa religião, do mesmo modo que as pessoas nãoeducadas consideramnas estranhas às suas pró- prias concepções. Mas, na verdade, não é assim. Dado queos falado repetidamente da influência que emana de Deus e das Inteligências Separadas, passaremos agora a explicar qual é o significado verdadeiro desta influência e, depois disso, discutirei a teoria da Criação.

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

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C A P ÍT U L O

1 2

SOBRE A NATUREZA DA INFLUÊNCIA (EMANAÇÃO) DIVINA E A DAS ESFERAS CELESTES

E evidente que sempre que uma coisa é produzida, uma causa eficiente, que não existia anteriormente, deve existir para sua produção. A causa eficiente imediata pode ser tanto corpórea quanto incorpórea. Se corpórea, não é uma causa eficiente devido a sua corporeidade, mas sim por ser um corpo individual, ou seja, devido a sua forma. Falarei sobre isto depois. A causa eficiente imediata de uma coisa pode ser também e

novamente de outras causas, e assim por diante, porém, não adinfinitum. A série de causas para um determinado produto deve necessariamente ser concluída com a VrimeiraCausa, que é a verdadeira causa daquele produto e cuja existência não depende de nenhuma outra causa. Surge então a questão: por que esta coisa foi produzida agora e não muito antes, posto que a causa sempre existiu? A resposta é que, se a causa fosse corpórea, faltaria uma determinada relação entre causa e produto; ou, se fosse incorpórea, a substância não estaria suficientemente prepa- rada. Tudo isso está de acordo com os ensinamentos das Ciências Na- turais. Ignoraremos por ora a questão se consideramos a Eternidade do Universo ou a Creatio ex nihilo. Não pretendemos discutir isto aqui.Já foi exposto na Física que um corpo que ame sobre outro corpo deve estar em contato direto com este ou, indiretamente, através da

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DOS

PERPLEXOS

mediação de outros corpos. Assim, por exemplo, um corpo que está sendo aquecido está emcontato com o fogo, ou o ar que envolve o corpo está sendo aquecido pelo fogo e transmitiu o calor ao corpo: a causa imediata do aquecimento deste corpo é a substância corpórea do ar aquecido. A pedraímã atrai o ferro à distância por meio de uma certa for transmitida ao ar que envolve o ferro. O magneto não exer- ce esta atração a qualquer distância, assim como o fogo não aquece a qualquer alcance, mas na proporção em que o arentre o fogo e o objeto seja afetado pelo primeiro. Quando o ar não é mais afetado pelo fogo que está sob um pedaço de cera, a última não derrete. E o mesmo caso do magnetismo. Quando um objeto, não aquecido previ- amente, fica quente, a causa para o seu aquecimento, então, foi criada agora: ou algum fogo foi produzido ou a distância entre o fogo e o objeto foi modificada. A causa criada nesse momento é a relação alte- rada

entre ambos. Analogamente, descobrimos as causas de todas as mudanças do Universocomo alterações na combinação dos elemen- tos que atuam sobre os outros, quando um corpo se aproxima ou se separa de outro. Há, no entanto, mudanças que não estão ligadas à combinade elementos, mas dizem respeito somente à forma das coisas. Estas precisam, do mesmo modo, de uma causa eficiente, assim deve exis- tir uma força que produza as diversas formas. Esta causa é incorpórea, pois aquela que produz forma deve ter, ela mesma, uma forma abstrata, como ficou demonstrado anteriormente. A comprovação deste teorema também foi exposta em capítulos anteriores. Os pró- ximos poderão servir para ilustrar o seguinte: todas as combinações de elementos estão sujeitas a aumento ou redução, e esta mudança ocorre gradualmente. No entanto, com as formas é diferente: elas não se modificam gradualmente e, portanto, são imóveis; aparecem e desaparecem instantaneamente e, conseqüentemente, não resultam da combinação de elementos corpóreos. Esta combinaçãonte prepara a matéria para receber uma determinada forma. A causa efi- ciente que pr

oduz a forma é indivisível, pois é do mesmo tipo que a coisa produzida. Logo, concluise que este agente que produziu uma determinada forma, ou deu a ela uma determinada substância, deve ser, ele mesmo, uma forma abstrata. A ação deste agente incorpóreoindepende de uma determinada relação com o produto corpóreo. Sendo incorpóreo, não pode se aproximar de um corpo ou afastarse dele, assim como nem um corpo poderia se aproximar ou se afastar

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SOBRE AS

ESFERAS

CELESTES.

de um agente incorpóreo, pois não há relação de distância entre seres corpóreos e incorpór

 razão pela qual a ação não ocorreu antes deve ser vista com base no fato de que a substância não estava prepa- rada para a atuação da forma abstrata. Fica claro que a ação recíproxercida pelos corpos, de acordo com suas formas, prepara a substância para receber a ação de um ser incorpóreo, ou Vorma. Portanto, a existência de ações de Seres Pura- menspirituais, em todos os casos de mudança que não se originem da mera combinação de elementos, está agora firmemente estabeleci- da. Estas ações independem de contato ou de umadeterminada dis- tância. São denominadas influências ou emanações, por analogia com a semeança da aspersão de água. Este ato espalha água em todas as direções, sem um local determido para receber ou gastar seu con- teúdo; a água é aspergida para todos os lados e molha continuamente tanto os lugares vizinhos quanto os distantes. Igualmente, os seres in- corpóreos, ao receberem força e distribuíla aos outros, não estão lim i- tados a ugar, distância ou tempo particulares. Sua ação é constante e, sempre que um objeto está su

ficientemente preparado, ele recebe o efeito desta ação contínua, denominada Shéfa (influência ou emana- ção). Sendo Deus incorpóreo e tudo aquilo que é obra Dele é causa eficienafirmamos que o Universo foi criado por Influência Divina e que todas as mudanças no Universo emanam Dele. Do mesmo modo se diz que Ele é a causa da Sabedoria que emana de Si mesmo e se dirige aos Profetas. Em todos estes casos nós queremos apenasdizer que um Ser Incorpóreo, cuja ação denominamos influência, produziu um determinado efeito. O termo influência é considerado aplicável ao Criador devido à similaridade entre Suas ações e aquelas da aspersão de água. Esta analogia é o melhor caminho para descrever a ação de um ser incorpóreo, já que não pode ser encontrado qualquer termo que possa descrevêla de forma precisa. Por isso é tão difícil formar uma idéia desta ação quanto formaridéia do próprio ser incorpó- reo. Assim como imaginamos somente corpos ou forças residindo em corpos, imaginamos, do mesmo modo, ações possíveis somente quan- do o agente está primo, a uma determinada distância e em um deter- minado lado. Há, portanto, pessoas que

, ao estudarem que Deus é incorpóreo ou que Ele não se aproxima do objeto da Sua ação, acredi- tam que Ele comanda os anjos e estes cumprem os atos mediante aproximação ou contato direto Ðassim como quando nós produzimos algo. Estas pessoas então imaginam que os anjos também são corpos.

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°

GUIA

DOS

PERPLEXOS

Há aqueles que acreditam que Deus comanda uma ação com palavras que consistem, como as nossas, de letras e som, e que a ação é feita desta forma. Tudo isso é puro processo imaginativo, o que é, na verda- de, semelhante a uma má inclinação. Pois todos os nossos defeitos de expressão ou de caráter se devem à ação direta ou indireta da imagina- ção. Estema deste capítulo, em que pretendemos explicar o termo influênáa assim como é aplicado a seres incorpóreos, ou seja, a Deus e às Inteligências Separadas (ou Anjos). Mas o termo também se aplica às forças das esferas celestes em seus efeitos sobre a Terra. E aqui nos referimos à influênáa das esferas, mesmo que estas sejam corpóreas Ðe os astros, sendo corpóreos, atuam somente a determinadas distâncias, ou seja, conforme se coloque

m mais ou menos distantes do centro da ação ou a uma distância definida uns dos outros. Esta cir- cunstância levou à Astrologia. Quanto ao mencionado por nós, que a Bíblia aplica a noção de influência a Deus, compare: ªAbandonaramme as fontes de águas vi- vasº (Jers 2:13), ou seja, a Influência Divina que dá Vida ou Existência Ðpois Vida e Existência sãindubitavelmente idênticas. Mais adiante se diz: ªPorque Contigo está a fonte da Vidaº (Salmo 36:10), ou seja, a Influência Divina que fornece a Existência. As pa- lavras finais deste Salmo, ªEm Tua luz veremos luzº (Salmo 36:10), expressam exatamente o queafirmamos: por meio da influência do Intelecto Ativo que emana de Deus, tornamonos sábios e assim so- mos guiados e postos em condições de compreender o Intelecto Ativo. Entenda bem isso.

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Sobre a teoria da Eternidade do Universo

CAPÍTULO

13

TRÊS TEORIAS DIFERENTES SOBRE A ORIGEM DO UNIVERSO Entre aqueles que acreditam na

existência de Deus, sào três as teorias que discutem se o Universo é eterno ou não: Primeira Teoria: Aqueles que seguem a Lei de M oshé Kabênir susten- tam que o Universo inteiro, à exceção de Deus, foi por Ele trazido à existência a partir da nàoexistência. No inímente Deus havia, e mais nada; nem anjos, nem esferas celestes, nem o quanto nelas existi- ria. Ele então produziu do nada todas as coisas existentes, tais como são,por Sua vontade e desejo. Mesmo o tempo pertence às coisas criadas, pois o tempo depende do movimento, isto é, de um acidente sobre as coisas que se movem. E as coisas de cujo movimento o tempo depende são, elas mesmas, seres criados, que passaram da inexistência à existência. Afirmamos que Deus existe antes da Criação do Universo, embora o verbo existir implique a noção de tempo. Acreditamos tam- bém que Ele existe porum espaço de tempo infinito antes da Criação do Universo, mas, neste caso, não queremosdizer tempo no seu sentido concreto. Utilizamos o termo para significar algo análo

go ou seme- lhante ao tempo, pois este é, indubitavelmente, um acidente e, de acor- do com a nossa consideração, um dos acidentes criados Ðtais como a

1

M oshé Rabêmt Moisés Nosso Mestre: modo pelo qual os judeus costumeiramente se referem a Moisés, em hebraico (NT).

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O GUIA

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PERPLEXOS

negrura ou a brancura Ðnão é uma qualidade, mas um acidente ligado ao movimento. Istodeve ser claro para quem compreendeu o que Aris- tóteles afirmou sobre o tempo e sua real existência. Vamos expor aqui uma idéia que, ainda que marginal à nossa aborda- gem, poderá ser útil no decurso de nossa discussão. Muitos cientistas não sabem realmente o que é o tempo, e homens como Galeno ficaram tão perplexos acerca deste assunto quequestionaram se o tempo é real ou não. A razão para esta dúvida pode ser encontrada no fato de o tem- po ser um acidente de um acidente. Acidentes que estão diretamente ligados a corpos materiais, como as cores e os sabores, são facilmente compreendidose formamse noções corretas a respeito deles. No en- tanto, há acidentes ligados a outro

s acidentes, como o brilho da cor, a inclinação ou a curvatura de uma linha; destes émuito difícil formar uma noção correta, principalmente quando o acidente que forma o subs- trato para outro acidente não é constante, mas variável. Ambas as difi- culdades estãpresentes na noção de tempo: ele é um acidente do mo- vimento, que, por sua vez, é um acidente do objeto movido. Além disso, não é uma propriedade fixa. Ao contrário, sua condiçãordadeira e essencial é não permanecer no mesmo estado nem por dois momentos consecutivos. Esta é a fonte da ignorância acerca da natureza do tempo. Consideramos o tempo uma coisa criada: vem à existência assim como os demais acidentes e as substâncias que formam os substratos para os acidentes. Por esta razão, pelo fato de o tempo pertencer às coisas criadas, não se pode dizer que Deus produziu o Universo no iníáo. Vejabem: este argumento serve para quem não compreende sua incapaci- dade de refutar asfortes objeções levantadas contra a teoria da Creatio ex nihilo. Se você admitir a existência do tempo antes da Criação, será compelido a aceitar a teoria da Eternidade do Un

iverso Ðpelo fato de o tempo se tratar de um acidente que requeira um substrato. Então terá que admitir que algo (junto a Deus) existiu antes da Criação do Universo, posiçãqual é seu dever se opor. Esta é a primeira teoria e é, indubitavelmente, um princípio funda- mental da Lei de Moisés; a mais importante depois do princípio da Uni- cidade de Deus. Não siga nenhuma outra teoria. Avraham A vinu (o Patri- arca Abrahão)2 foi o primeiro a ensinar isto depois de têla estabelecido

2

A vraham A vinu: A brahão N osso Pai.Tratase do modo como os judeus costumeiramente se referem ao Patriarca Abrahão em hebraico (NT).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

por meio de pesquisa especulativa. Ele então proclamou: ªEm nome de YHVH, Deus de Sempreº (Gênesis 21:33). E declarou publicamente esta crença ao dizer: ªCriador dos Céus e da Terraº (Gênesis 14:22). Segunda Teoria: A teoria de todos os filósofos, cujas opiniões e traba- lhos nos são conhecidos, é a seguinte: é impossível que Deus produza tudo do nada ou que reduza tudo a nada. Em outras palavras, é impos- sível que um objeto consistente de matéria e forma pudesse ser produ- zido quando a matéria era absolutamente inexistente ou que pudesse ser destruído de tal modo que a matéria passasse a não existir

mais. Dizer que Deus pode produzir uma coisa do nada ou reduzir uma coisa a nada é, de acordo com a opinião destes filósofos, o mesmo que afirmar que Ele poderia levar uma substância a ter, simultaneamente, duas propriedades opostas, ou de criar outro ser semelhante a Ele, ou se transformar em corpo, ou, ainda, produzir um quadrado cuja diagonal fosse igual a um de seus lados, ou coisas igualmente inviáveis. Os filó- sofos, portanto, acreditam que não é um defeito no Ser Supremo a nãocriação deas impossíveis, pois a natureza do que é impossível é constante Ð independe da ação de umte e, por esta razão, não pode ser modificada;3 do mesmo modo que, segundo eles, não hádefeito na grandeza de Deus por Ele ser incapaz de produzir uma coisa do nada, pois eles consideram isto uma das impossibilidades. Conseqüentemen- te, admitem que uma determinada substância coexiste com Deus pela Eternidade, de tal forma que nemDeus possa existir sem ela, nem ela sem Deus. No entanto, não defendem que a existência desta substância seja equivalente à de Deus, pois Deus é a causa de sua existência.

A substância está para Deus assim como a argila está para o ceramista ou o ferro, para o forjador, Deus pode fazer com isto o que lhe agrade: ora forma Céus e Terra, ora, qualquer outra coisa. Aqueles que sustentam esta visão assumem também que os Céus são transitórios, que vieram à existência Ðmas não do nada Ðe podem deixar de existir, emborapossam ser reduzidos a nada. Os Céus são transitórios do mesmo modo que os indivíduos,entre os seres vivos: são produzidos de uma mesma substância existente e são novamente reduzidos à mesma parte da subs- tância, esta permanece existindo. O processo de gênese e destruição é, no caso dos Céus, o mesmo que em qualquer ser terrestre.

3

Veja Terceira Parte, cap. 15 (Maeso).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Os adeptos desta teoria se subdividem em várias escolas, cujas opi- niões e princípios é d

esnecessário discutirmos aqui, mas o que menci- onei é comum a todos eles. Também Platão sustenta a mesma opinião. Aristóteles conta, em sua obra Física (Acroasis), que, de acordo com Platão, os Céus são transitórios. Esta visão é tratada também em seu livro Timaeusa opinião, sem dúvida, é discordante da nossa crença. Somente pessoas superficiais e descuidadas admitem, de forma equi- vocada, que Platão acredita no mesmo que nós. Enquanto sustenta- mos que os Céus são criados do Nada Absoluto, Platão acredita que os Céus foram formados de algo.4 Esta é a segunda teoria. Terceira Teoria

 

. E a de Aristóteles,seus discípulos e comentaristas. Aristóteles argumenta, assim como os adeptos da segunda teoria, que um corpo não pode ser produzido sem uma substância corpórea. To- davia, ele vai mais longe e defende que o Céu é indestrutível. Ele afir- ma que o Universo, em sua totalidade, nunca foi diferente e nunca se modificará: os Céus, que são um elemento permanente do Universo e não estão sujeitos à gênese nem à destruição, têm sido sempre

O tempo e o movimento são eternos, permanentes e não possuem princípio nem fim. O mundo sublunar, que inclui os elementos transi- tórios, tem sido sempre o mesmo, porque a matériaprima é eterna e simplesmente se combina sucessivamente de diferentes formas; quan- do uma forma é removida, outra é assumida. Portanto, toda esta orga- nização, tto lá em cima quanto aqui embaixo, nunca é perturbada ou interrompida, e nada é produzido fora das leis ou do curso normal da Natureza. Ele ainda diz Ðembora não nestes termos Ðque considera impossível para Deus modificar Sua Vontade ou conceber um novodesejo, que Deus produziu este Universo em sua totalidade por Sua Vontade, mas não do nada. Aristóteles considera impossível admitir que Deus mude Sua Vontade ou conceba um novo desejo, seria como

4

ªComo se pode ver, de acordo com M aim ônides, a diferença entre Platão e Aristóteles é aguinte: este admite não somente a eternidade da m atéria, mas também a do movimento edo tempo, enquanto que Platão, ainda aceitando a eternidade da matéria e do Caos, acredita, não obstante, que o mundo, tal como é, teve um princípio; e que os Céus, como todo complexo sublunar, são produto do Caos; por conseguinte, o movimento e o tempotiveram um prin- cípio. A opinião de Platão tem sido interpretada neste sentido geralm ente pe- los árabes e os escolásticos (...)º (Munk). Esta nota de M unk se prolonga em um total de 76 linhas (Maeso).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

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acreditar que Ele é inexistente ou que Sua Essência é mutável. Conse- qüentemente, concluie que este Universo tem sido sempre o mesmo desde o passado e será o mesmo eternamente. Esta é uma mostra completa das opiniões daqueles que consideram que a existência de Deus, a Primeira Causa do Universo, foi estabeleci- da por meio de demonstração. Mas seria desnecessário mencionar as opiniões daqueles que não reconhecem a existência de

 Deus, porém acreditam que o estado de existência das coisas é resultado da combi- nação adental e separação dos elementos e que o Universo não tem um Legislador ou Governador. Esta é a teoria de Epicuro e sua escola, e de filósofos semelhantes, segundo Alexandre (de Afrodisia). Seria supérfluo repetir seus pontos de vista, já que a existênciade Deus já ficou demonstrada, enquanto a sua teoria é construída sobre uma base comprovadamente insustentável. E igualmente inútil corroborar a cor- reção dos seguidores da segunda teoria quando afirmam que os Céus são transitórios, pois, ao mesmo tempo em que acreditam na Eternida- de do Universo, adotam aquela teoria. Assim, é indiferente para nós se acreditam que os Céus são transitórios e que somente sua substância é eterna ou q os Céus são tidos como indestrutíveis, de acordo com a visão de Aristóteles. Aqueles queseguem a Lei de Moisés e do Patriar- ca Abrahão Ðe todos aqueles que partilham de teorias semelhantes Ð assumem que nada é eterno exceto Deus e a teoria da Creatio ex nihilo não inclui qualquer coisa que seja impossível, enquanto alguns pensa- dores ainda co

nsideram isto uma verdade estabelecida. Descritas estas diferentes concepções, mostraremos como Aris- tóteles provou sua teoria e o que o induziu a adotála.

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SOBRE

A TEORIA

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DO

UNIVERSO

III

CA P ÍT U L O

1 4

SETE MÉTODOS POR MEIO DOS QUAIS OS FILÓSOFOS BUSCA- RAM PROVAR A ETERNIDADE DO UNIVERS

ONão necessito repetir, em cada capítulo, que lhe escrevi este Tratado unicamente porque conheço sua formação e, conseqüentemente, é desnecessário que cite textualmente, em ca passagem, as palavras dos filósofos; basta resumir suas concepções. No entanto, apontarei os métodos a que recorriam, assim como fiz em relação às teorias dosMutakálemim? Nãoordarei a opinião de qualquer outro filósofo, além da de Aristóteles, pois suas teoriassão as únicas merecedoras de consi- deração. Caso nossas objeções ou dúvidas com respeitoquer coisa forem bem fundamentadas, isto acontecerá em um nível muito mais elevado do que seria se comparado a todos os outros oponentes de nossos princípios fundamentais. Agora passarei a descrever os métodos dos filósofos:

 

Primeiro Método : SegundoAristóteles, o movimento é eterno, ou seja, o movimento por excelência. Pois se o movimento tivesse um início, en- tão já teria havido algum movimento anterior quando surgiu,

 pois a tran- sição da potência ao ato e da inexistência à existência sempre implicam

5

Na Primeira Parte do livro (NT).

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O

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PERPLEXOS

movimento. Logo, este movimento anterior, causa do movimento se- guinte, deve sereterno, senão haveria uma série ad infmitum. De confor- midade com este mesmo princípio, Aristóteles sustenta que o tempo é eterno , porque está relacionado e ligado ao movimento. Não há movi- mento exceto no tempo, e o tempo somente pode ser percebido através do movimento, como ficou demonstrado. Com base neste argumento, Aristóteles prova a Eternidade do Universo. Segundo Método, A. Primeira Substância comum aos quatro elementos é eter- na. Pois, para que tivesse um início, teria vindo à existência a partir de outra substância; seria posteriormente dotada de uma forma, pois pas- sar a existir é nada mais do que receber uma Forma. Mas, por Primeira Substância nós entendemos uma

 substância sem forma; se esta, portan- to, não passou a existir a partir de outra substância, então não deve ter início nem fim. Assim, concluise que o Universo é eterno. Terceiro Método: ^4 substância das esferas não contém elementos opostos, pois o movimento circular não possui direções opostas como acontece no movimento retilíneo. Tudo o que é destruído deve a sua destruição aos elementos con- trários que contém. As esferas não contêmtos opostos. São, portanto, indestrutíveis e, pelo fato de serem indestrutíveis, tambémnão têm início. Aristóteles, assim, assume a seguinte máxima: tudo o que tem um início é dutível e tudo o que é destrutível teve um início; as coisas sem início são indestrutíveiscoisas indestrutíveis não têm início. Dessa forma, atingese a Eternidade do Universo.Q uarto Método: ^4 produção corrente de algo éprecedida, no tempo, p o r sua possibilidade. A mudança corrente de algo é, do mesmo modo, precedida, no tempo, p o r sua possibilidade. A partir daí Aristóteles conclui pela eterni- dade do movimento circular das esferas. Os aristotélicos, em tempos mais recentes, empregaram este método para de

monstrar a Eternida- de do Universo, Eles argumentam: quando o Universo ainda não exis- tia, sua existência era possível, necessária ou impossível. Sc era neces- sária, o Unio sempre existiu; se impossível, o Universo nunca existiria; se possível, a questão que se levanta é: qual é o substrato desta possibilidade? Porque deveria necessariamente existir algo que fosse o substrato desta possibilidade. Este é um forte argumento a favor da Eternidade do Universo. Alguns dos mais recentes pensado- res M utakâlemim imaginaram que poderiam resolver a dificuldade ao afirmar que a possibilidade está com o agente, e não com a produção. Mas esta objeção não tem qualquer força, poispossibilidades distintas, quais sejam:

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

1) a coisa criada teve a possibilidade de ser produzida antes do seu nascimento; 2) o agente teve a possibilidade de produzir, antes de têlo feito realmente. Há, desta forma, duas possibilidades Ð uma, de a subs- tância receber determinada forma e a outra, de o agente realizar uma determinada ação. Estes são os principais métodos, baseados nas propriedades do Universo, através dos quais Aristóteles prova a Eternidadedo Univer- so. Mas há também outros métodos para provála. São fundamentados nas noções fo de Deus e derivados da Filosofia de Aristóteles, por filósofos posteriores a ele. Alguns deles utilizaramse dos seguin- tes argumentos: Q uinto M étodo : Se Deus produziu o Universo do nada, antes de ser um agente de fato, Ele deve ter sido um ag

ente potencial que teria passado da potência ao ato Ðjá que a potência é simplesmente umapossibilidade e requer um agente para realizála. Este argumento é, da mesma forma,fonte de grandes dúvidas e qualquer pessoa inteligente deve examinálo com a intenção de refutálo, bem como de expor o seu caráter. Sexto M étodo : Um agente é ativo em um momento e inativo em outro, de acordo com as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis que porventura surjam. As circunstâncias desfavoráveis causam o aban- dono de uma ação pretendida; as favoráveis, por outro lado, permitem que seja criado o desejo, que não havia anteriormente, para determina- da ação. Como Deus não é sujeito a acidentes que permitam mudanças em Sua Vontade e não é afetado por obstáculos e impedimentos que venham a aparecer ou desaparecer, é impossível, argumentam, imagi- nar que Deus seja ativo em ummomento e inativo em outro. Ao con- trário, Ele está sempre ativo, do mesmo modo comoSua existência é constante. Sétimo M étodo : As ações de Deus são perfeitas. Elas jamais p ser defeituosas ou conter algo de inútil ou supérfluo. Em termos se- melhantes, Aristót

eles freqüentemente louva a Deus quando afirma que a Natureza é sábia e nada ocorre em vão, porém ela faz tudo da forma a mais perfeita possível. Os filósofos então afirmam que este Universo existente é tão perfeito que não pode ser melhorado e, por- tanto, deve ser permanente, pois é resultado da Sabedoria Divina, que não somente é sempre presente em Sua essência, mas é idêntica a ela. Todos os argumentos a favor da Eternidade do Universo funda- mentamse nos métodos acima e poderiam se reduzir a um ou a outro

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

deles. A seguinte objeção é também levantada contra a Creatio ex nihilo: Como Deus poder

ia ficar inativo, sem produzir ou criar nada, no pas- sado infinito? Como poderiapassar o longo período infinito prece- dente ã Criação sem produzir nada, como se a Criaçã Universo acontecera ontem? Mesmo que você dissesse, por exemplo, que Deus criou anteriormente tantos mundos sucessivos quanto a mais longín- qua esfera poderia conter grãos de mostarda e que cada um destes mundos existiria por muitos anos. Considerando a existência infinita de Deus, seria o mesmo que afirmar que Ele iniciou a Criação ontem. Desde que admitamos o início da existência das coisas após sua nãoexistênciadiferente se milhares de séculos passaramse desde o início ou apenas um curto espaçode tempo. Aqueles que defendem a Eternidade do Universo consideram ambas as posições igualmente improváveis. Oitavo M étodo : Este método está baseado na circunstância de que a teoria implica uma crença muito comum a todos os povos e épocas Ð universal portanto Ðque parece expressar um fato real e não simples- mente uma hipótese. Aristóteles afirma

 que todas as pessoas acredi- tam evidentemente na permanência e na estabilidade dos Céus e, ao pensarem que estes são eternos, declaramnos como sendo a habita- ção de Deuse dos Seres Espirituais ou Anjos. Por isso, ao atribuírem os Céus a Deus, expressamsua crença de que os Céus são indestrutí- veis. Muitos outros argumentos do mesmo tipo sãompregados por Aristóteles ao tratar este tema, de forma a reforçar os resultados desua especulação filosófica por meio do senso comum.

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

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UNIVERSO

CA P ÍT U L O

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ARISTÓTELES NÃO PROVA SUA TEORIA

Neste capítulo pretendo mostrar que Aristóteles estava bem ciente de que não provara a

 Eternidade do Universo e não se equivocara a este respeito. Ele sabia que não poderia provar sua teoria e que seus argu- mentos e provas eram apenas aparentes e plausíveis. Estas eram, no mínimo, questionáveis, de acordo com Alexandre. Mas, de acordocom a mesma autoridade, Aristóteles não poderia considerálas conclusi- vas, após ele mesmo nos ensinar as regras da lógica e os meios pelos quais os argumentos podem ser refutados ou confirmados. A razão pela qual expus este tema foi a seguinte: filósofos mais recentes, discípulos de Aristóteles, afirmam que ele provou a Eterni- dade do Universo, e a maioria daqueles que acreditam que são filóso- fos seguemno cegamente neste ponto e aceitam todos os seus argu- mentos como provas conclusivas e absolutas. Consideram errado discordar de Aristóteles ou pensar que ele ignorava ou se equivocava em alguma coisa. Por este motivo, partindo do ponto de vista deles, mostrarei que o próprio Aristóteles não pretendeu haver provado a Eternidade do Universo. Ele diz em sua obra Física ÇAcroasis) (8, cap. 1): ªTodos os físicos anteriores a nós acredi

taram que o movimento é eterno, exceto Platão, que sustenta que o movimento é transitório; se- gundo sua concepção, os Céus são, igualmente, transitóriosº. Pois bem,

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

se Aristóteles tivesse provas conclusivas para sua teoria, não conside- raria necessário

 reforçála citando as considerações dos físicos prece- dentes, nem apontar a loucura e asição absurda de seus oponentes. Pois uma verdade, uma vez estabelecida a prova, não ganha força nem certeza devido ao consentimento de todos os cientistas, nem perde pela discordância geral. Nós descobriremos, posteriormente, que Aristóteles, no livro Os Céus e o Mundo , apresenta sua teoria sobre a Eternidade do Universo do se- guinte modo; Investiguemos a natureza dos Céus e vejamos se é ou não produto de algo. Exposto o problema, segue citando os pontos de vista daqueles que defendem que os Céus tiveram um início, nos seguintes termos: Se assim procedêssemos, nossa teoria seria mais plausível e aceitável aos grandes pensadores. Sobretudo quando, como propomos, os ar- gumentos dos nossos oponentes são ouvidos antes. Pois se colocásse- mos nossa opinião e nossos argumentos sem mencionar os dos nos- sos oponentes, nossas palavras seriam recebidas de forma menos favorável. Aquele que deseja ser justo não deve se most

rar hostil ao seu oponente; melhor, deve ser simpático com ele e aceitar pronta- mente toda verdade contida em suas palavras. Deve admitir a corre- ção dos argumentos doseu oponente, assim como admitiria se estes fossem a seu favor. Este é o conteúdo das palavras de Aristóteles. Agora eu lhe pergunto, homem inteligente: poderemos reclamar dele depois dessa afirmação tão franca? Ou alguém pode imaginar que uma prova real possa ser dada para a Eternidade do Universo? Ou pode Aristóteles ou qualquer outro acreditar que um teorema, mesmo que totalmente demonstrado, seria inaceitável,a menos que os argu- mentos dos oponentes fossem totalmente refutados? Devemos tam-bém levar em consideração que Aristóteles descreve sua teoria como sua opinião e suas provas, como argumentos. Será que Aristóteles ignora- va a diferença entre argumento e prova? Entre as opiniões, qual deve- ria ser recebida mais ou menos favoravelmente? E asverdades passí- veis de demonstração? Ou, se houvesse uma prova real, seria feito um apelo retórico à imparcialidade com relação aos oponentes a fim de reforçar sua teoria? Certa

mente que não. Aristóteles desejava tão somente mostrar que sua teoria era melhor queas dos seus oponentes, tanto os que sustentavam que a especula- ção filosófica leva à convicção de que os Céus são transitórios, mas

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SOBRE

A TEORIA

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nunca foram totalmente inexistentes, quanto os que defendiam que os Céus tiveram um início, mas são indestrutíveis ou, ainda, aqueles que apoiavam qualquer um dos outros pontos de vista mencionados por ele. Nisso ele está indubitavelmente certo, porque sua teoria se mostra mais próxima da verdade do que as de seus adversários, tanto quanto uma prova pode ser obtida da natureza das coisas existentes. Nós dis- cordam

os dele, conforme será explicado. A Paixão, que exerce grande influência em todas as seitas, deve ter influenciado até mesmo os filó- sofos que desejavam afirmar que Aristóteles demonstrou sua teoria fundamentado em provas. Talvez eles realmente acreditem nisso, argu- mentando que o próprio Aristóteles não estava ciente disso, pois só foi descoberto após a sua morte! Estou convicto de que a afirmação de Aristóteles sobre a Eternidade do Universo Ða causa dos diversos movimentos das esferas e da ordem das Inteligências Ðnão pode ser corroborada e Aristóteles nunca pretendeu provar estas coisas. Con- cordo com ele que os caminhos para se provar sua teoria têm seus portões fechadosdiante de nós, e não há fundamento sobre o qual ela possa ser construída. Suas palavrassobre este tema são bem conheci- das. Ele declara: ªHá coisas sobre as quais somos incapazes de racioci- nar ou que consideramos muito difíceis para nós. Dizer por que estascoisas têm uma determinada propriedade é tão difícil quanto decidir se o Universo é eterno ou nãoº. São palavras textuais de Aristóteles. A interpretação oferecida por Abu Nasr (Al

arabi) é bem conhecida. Ele nega que Aristóteles tenha qualquer dúvida acerca da Eternidade do Universo e é muito severo com Galeno, que considera esta teoria ainda passível de dúvida, da qual se desconhece qualquer prova. Se- gundo Abu Nasr, é claro e demonstrável que os Céus são eternos, mas tudo o que está envolvido pelos Céus é transitório.ustentamos que nenhuma teoria pode ser estabelecida, refutada ou equilibrada se- gundo os métodos citados neste capítulo. Somente mencionamos estas coisas porque sabemos que a maioria daqueles que se consideram sábios, ainda que nada conheçam de filo-sofia, aceitam a teoria da Eternidade do Universo apoiandose na au- toridade de filósofos famosos. Eles rejeitam as palavras dos Profetas, já que estes não empregam qualquer método filosófico capaz de ins- truir somente às poucas pessoas intelectualmentebem preparadas, mas simplesmente comunicam a verdade tal como é recebida por meioda Inspiração Divina. Nos próximos capítulos demonstraremos a teoria da Criação se- gundonsinamentos da Bíblia.

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A TEORIA DA CREATIO EX N IH ILO , MAIS PROVÁVEL QUE A DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

Apresentarlheei, no presente capítulo, minha consideração a res- peito desta matéria e,em seguida, sustentálaei por meio da argu- mentação Ðnão com argumentos como os dos M utemim , que acreditam haver demonstrado a Creatio ex nihilo. Não me enganarei, cons

iderando métodos dialéticos como provas, e o fato de uma de- terminada proposição haver sido provada através de argumentos di- aléticos nunca me levará a aceitála. Ao contrário, eraquecerá m i- nha crença e me levará a duvidar dela, pois quando compreendemos a faláciade uma prova, nossa crença na própria proposição fica aba- lada. E preferível que, sendo ea indemonstrável, seja recebida como uma máxima, ou que uma de duas soluções possíveis doproblema seja aceita como autoridade. Os métodos estabelecidos pelos M u- takálemim em prol da Creatio ex nihilo já foram por mim descritos e os seus pontos fracos expostos. Assim como as provas de Aristóteles e seus seguidores para a Eternidade do Universo, eles são, na minha opinião, inconclusivos e sujeitos a fortes objeções, como será expli- cado. Pretendo mostrar que a teoria da Criação, conforme ensinada na Bíblia, nãoontém nada impossível, e todos aqueles argumentos filosóficos que aparentemente reprovam nosso ponto de vista apre- sentam pontos fracos que os tornam vulneráveis e os ataques de seus

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12.0

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defensores, insustentáveis. Estando eu convencido da correção do meu método, e considerando possíveis qualquer uma das duas teo- rias Ða da Eternidade do Universo e a da Criação Ð, aceito a última, apoiado na autoridade da Profecia, que pode ensinar coisas além do alcance da filosofia especulativa. Pois, como será mostrado no de- correr deste Tratado, a crença na Profecia é consistente até mesmo com a crença na Eternidade do Universo. Quando estabelecer a pos- sibilidade da nossa teoria, tratarei de demonstrar,por raciocínio filo- sófico, que a teoria da Criação é mais aceitável do que a da Eternidao Universo e que, mesmo que ela inclua pontos abertos à crítica, mostrarei que há razões muito mais fortes para a rejeição da teoria dos nossos oponentes. Passarei a exporagora o método por meio do qual as provas dadas a favor da Eternidade do Universopodem ser refutadas.

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SOBRE A TEORIA

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AS LEIS DA NATUREZA SE APLICAM ÀS COISAS CRIADAS, MAS NÃO REGULAM O ATO CRIATIVO QUE AS PRODUZ. REFUTA- ÇÃO DAS QUATRO PRIMEIRAS PROVAS DOS ARISTOTÉLICOS Tudo o que é produzido nasce a partir da inexistência. Mesmo que a substância de uma coisa já existisse e

tivesse somente mudado sua for- ma, a própria coisa, que passou a existir por meio do processo de gêne- se e desenvolvimento, ao concluir sua transformação, tem propriedades diferentes daquelas que possuía no início da transição da potência à realidade, ou mesmontes disso. Assim, tomemos o exemplo do óvulo humano quando se encontra no sanguefeminino, ainda contido em seus vasos. Nesse momento, sua natureza difere daquela que lhe era própria ao se efetuar a concepção, ou seja, quando foi encontrado pelo sêmen masculino e começou a se desenvolver. As propriedades do sê- men, naquele momento,são diferentes daquelas do ser vivo após o seu nascimento, já totalmente desenvolvido. É, portanto, praticamente im- possível inferir, com base na natureza que uma coisa possui após passar por todos os estágios do seu desenvolvimento, qual era o estado dela no momento do início do processo. Tampouco, partindo do mesmo esta- do, podese saber qual era a sua condição anterior. Se você se equivocar a respeito e se empenhar em provar a natureza de algo em estado de potência baseado nas propriedades agora ef

etivamente existentes, ficará muito confuso, rejeitará verdades evidentes e admitirá falsas opiniões.

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12.2.

O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Suponha, no exemplo apresentado, que um indivíduo nascido perfeito foi cuidado por sua mãe durante poucos meses e que, quando ela mor- reu, o seu pai levouo para viver sozinho em uma ilha deserta, até crescer, tornarse inteligente e adquirir conhecimento. Suponha, ainda, que este homem, que nunca viu uma mulher, nem mesmo um animal fêmea, per- gunte a alguém como um homem nasce e se desenvolve, e então receba a seguinte resposta: ªO homem inicia sua existência no ventre de uma pessoa de nossaespécie, ou seja, no ventre de uma mulher, que tem uma determinada forma. Quando está no ventre, ele é muito pequeno, mas tem vida, movese, alimentase e cresce pouco a pouco, até que chega a um certo estágio de desenvolvimento. Ele então deixa o ventre e conti- nua a crescer até que esteja em condições de ser notado por você. O órfao natulmente perguntará: E este indivíduo, quando estava dentro do ventre, vivo, movendos

e e crescendo, comia e bebia? Respirava pelo nariz e pela boca? Excretava alguma coisa?º A resposta será: Não. Indu- bitavelmente ele se recusaria a acreditar e se apressaria em demonstrar a impossibilidade de todas essas coisas, baseandose no ser totalmente de- senvolvido. Diria: ªSe qualquer um de nós fosse privado de respirar por um breve tempo, morreria e cairia inerte. Como imaginar que alguém possa permanecer durante meses dentro de um saco, e este saco, dentro de um corpo, e permanecer vivo e em movimento? Se alguém devorasse um pássaro vivo, este morreria instantaneamente ao chegar ao estômago e, por um motivo maior, quando chegasse no baixo ventre. Caso alguém não comesse nem bebesse, morreria, sem dúvida alguma, em poucos dias. Como, pois, poderia alguém ficar durante meses sem comer nem beber? Qualquer um que, tendo se alimentado, não evacuasse, sofreria dores terríveis e a morte chegariaem poucos dias. Como eu acreditaria que aquele homem viveu por meses sem esta função? Suponha que, por acidente, um buraco se formasse na barriga de uma pessoa Ðseria

 fatal. No entanto, temos que acreditar que o umbigo do feto ficou aberto! Comoo feto não abre os olhos, nem estende suas mãos, nem estira suas pernas, como você acredita que seus membros estejam inteiros e em perfeito estado?º Este tipo de raciocínio leva à conclusão de que o ho- mem não pode nascer e se desenvolver do modo descrito.Se os filósofos considerassem este exemplo e refletissem sobre ele, descobririam que representa exatamente a disputa entre Aristóteles e nós. Porque nós, os seguidoresde M oshé Kabênu e d ty4.vrahamA.vinu, acreditamos que o mundo foi produzido de umadeterminada maneira e criado em uma determinada seqüência. Os aristotélicos, por sua vez,

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

opõemse a nós argumentando com provas baseadas na existência do ser de fato, totalmente desenvolvido. Nós admitimos a existência des- tas propriedades, mas afirmamos que em nada se parecem com o ser no momento em que foi gerado. Sustentamos, ainda, que estas propri- edades vieram à existência a partir da absoluta inexistência. Portanto,os argumentos deles não se constituem em objeções à nossa teoria. E Eles somente possuem força demonstrativa contra aqueles que susten- tam que a natureza das coisas, comoexistem no presente, provam a Criação. Mas esta não é a minha opinião. Volto agora ao noss

o tema Ða descrição das principais provas de Aristóteles Ðdemonstrando que nada provam contra nós, que afirma- mos que Deus, do nada absoluto, levou o Universo inteiro à existência, e que Ele foi a causa do desenvolvimento até o estado presente. Aris- tóteles declara que a matériaprima é eterna e, baseandose nas coisas transitórias, tenta provarsua premissa. Assim, mostra que a matériaprima não poderia ser produzida, e ele está certo. Nós não sustenta- mos que a matériaprima foi produzida do mesmo modo como o ho- mem é produzido do ovo, nem que possa ser destruída da mesma maneira como o homem é reduzido a pó. Mas acreditamos que Deus crioua do nada e que, desde então, ela tem suaspróprias propriedades, ou seja, todas as coisas se formam a partir dela e são novamente redu- zidas a ela quando deixam de existir. Pois a matériaprima não existe sem forma e ela é a fonte de toda a gênese e destruição. Sua gênese não é igual à das coisas pros a partir dela, nem a sua destruição, pois ela foi criada do nada e, se agradasse ao Criador, Ele poderia reduzila a absolutamente nada. O mesmo argumento se apli

ca ao movimento. Aristóteles funda- menta algumas de suas provas no fato de o movimento não estar sujeito à gênese ou à destruição. Isto é verdade. Se considerarmos o movimenomo este que existe no momento, não imaginaríamos, em sua tota- lidade, que ele estaria sujeito, como movimentos individuais, à gênese e à destruição. De um certo modo Aristótes estava correto ao conside- rar que o movimento circular não tem começo, levandose em conta que, ao observarmos a rotação do corpo esférico na presente existên- cia, não concemos a idéia de que esta rotação tenha jamais faltado. Empregamos o mesmo argumento em relação à lei que preconiza que a potência precede todas as gêneses correntes. Esta lei se aplica ao Universo tal como existe no presente, quando tudo o que é gerado originase de alguma outra coisa. No entanto, nada percebido por meio

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GUIA

d o s

p e r p l e x o s

de nossos sentidos ou compreendido por nossa mente é capaz de pro- var que algo criado do nada esteve, anteriormente, em um estado po- tencial. Novamente, com respeito à teoria de que os Céus não contêm opostos (e são, portanto, indestrutíveis), admitimosa correção, mas não que os Céus foram formados como o cavalo ou o jumento, nem, por fim, que sejam como as plantas e os animais, destrutíveis devido à presença dos elementosopostos em seu interior. Em suma, as propri- edades das coisas, quando plenamentedesenvolvidas, nada têm a ver com as propriedades existentes antes de seu aperfeiçoamento. Nós não consideramos impossível a opinião daqueles que afirmam que os Céus foram produzidos antes da Terra ou o contrário, que os Céus já existiam sem os astros ou, aind

a, que certas espécies de animais exis- tiam e outras, não. Pois o estado de todo o Universo quando veio à existência é comparável àquele dos animais quando nasceram. O cora- çdentemente aparece antes dos testículos, e as veias, antes dos ossos. Todavia, quando o animal está plenamente desenvolvido, ne- nhuma das partes essenciais à sua existência está faltando. Esta obser- vação não é supérflua, se a descrição bíblica da Criação foalmente. Na verdade, pode não se considerála no sentido literal, como será mostrado quando tratarmos deste tema. O princípio desenvolvido a seguir deve ser bem compreendido, porque é uma grande muralha construída em torno da Lei, capaz de resistir contra tudo o que for atirado contra ela. Aristóteles Ðquero dizer, seus seguidores Ðtalvez nos perguntasse como sabemos que o Universo foi criado e quais as outras forças, além das existentes no presente, atuaram na sua Criação, já que sustentamos que suas proprie- dades, tal como existem no presente, nada provam a respeito de sua Criação? Respondemos que, segundo nosso plano, não há necessidade disso, pois não desejamos prova

r a Criação, mas tão somente a sua possibilidade. E não se refuta esta possibilidade por meio de argumen- tos baseados na natureza do Universo presente, que não questionamos. Quando estabelecermos a possibilidade da nossa teoria, demonstrare- mos então a sua superioridade. Quanto a provar a impossibilidade da Creatio ex nihilo, os aristotélicos podem não obter qualquer apoio da natureza do Universo e, então, terão que recorrer à noção de Deus formada pela nossa mente. Suas provas incluem os três métodos ante-iormente citados por mim, baseados na noção concebida de Deus. No próximo capítulo apresentarei os pontos fracos destes argumentos e mostrarei que nada provam absolutamente.

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

C A P ÍT U L O

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REFUTAÇÃO DOS ARISTOTÉLICOS

TRÊS

ÚLTIMOS

MÉTODOS

DOS

No primeiro método criado pelos filósofos, assumese que houve uma transição da potência ao ato com a própria Deidade, caso Ela tenha produzido algo somente em um determinado tempo.6A refutação deste argumento é muito fácil. Ele se aplica somente a corpos compostos de substância, que é o elemento que contém a possibilidade (de mudança) de forma.Se um corpo deste tipo, durante um certo tempo, não agia e, em virtude de sua forma, agora age é porque indubitavelmente pos- suía algo em potência que ora se tornou corrente, e a transição somen- te foi efetuada por meio de algum agente externo. Como os corpos materiais são assim considerados, isto já foi plenamente comprovado. Mas aquil

o que é incorpóreo e imaterial não admite coisa alguma que seja simplesmente possível. Tudo o que ele contém existe sempre. Não cabe, portanto, aplicarlhe o argumento acima, nem é impossível a um ser deste tipo atuar em um momento e não atuar em outro. Isto não implica qualquer mudança para o próprio ser incorpóreo, sequer uma transição da potênao ato. O Intelecto Ativo pode ser ilustrativo

6 Veja cap. 14, Quinto método (Maeso).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

dessa questão: de acordo com Aristóteles e sua escola, o Intelecto Ati- vo, um ser inc

orpóreo, ora atua, ora não, como indicou Abu Nasr (Al Farabi) em seu tratado Sobre o Intelecto. Ele praticamente afirma o se- guinte: ªÉ um fato evidente que o IntelectoAtivo não age continua- mente, mas apenas às vezesº. E, no entanto, ele não diz que o Intelecto Ativo é mutável ou que passa do estado de potência para o de ato, embora em um momento produza algo não produzido antes. Por isso, não há, jamais, relação ou comparação e seres corpóreos e incorpóreos, nem no momento da ação nem no da abstenção. Somente por honímia que o termo ação é utilizado com referência às formas re- sidentes nos corpos e tambrefere aos Seres Puramente Espiri- tuais. A circunstância na qual um Ser Puramente Espiritual não atua em um momento e atua em outro não necessita de uma transição da potência ao ato, que é necessária no caso de forças ligadas aos corpos. Podese objetar, talvez, que nosso argumento é, até determinado pon- to, uma falácia, pois não se relaciona a nada contido no próprio Inte- lecto Ativo. Porém, na ausência de substâncias suficientement

e prepa- radas para a sua ação, ele às vezes não atua. O Intelecto Ativo age sempre que as substâncias suficientemente preparadas estão presentes e, quando a ação se interrompe, éporque faltam estas substâncias e não porque aconteceu qualquer mudança no Intelecto.Respondo que não é nossa intenção expücar a razão por que Deus criou neste ou naquele momeo, nem fazer um paralelo com o Intelecto Ativo, afir- mando que Deus atua em uma hora e não em outra, do mesmo modo intermitente que age o Intelecto Ativo, um Ser Puramente Espiritual. Não declaramos isso e, se o fizéssemos, a conclusão seria falaciosa. O que nós inferimos Ðe estamos certos em inferir Ðé que o Intelecto Ativo nem é um corpo nem uma força residente em um corpo. Atua de modo intermitente e, qualquer queseja a causa de não atuar sem- pre, não afirmaremos que o Intelecto Ativo passou da potência ao ato que permita uma possibilidade de mudança ou, ainda, que exista um agente causador da transição da potência ao ato. Deste modo refuta- mos a forte objeção levanta por aqueles que defendem a Eternidade do Universo. Desde que acreditemos que D

eus não é um corpo mate- rial nem uma força residente em um corpo, não devemos assumir que a Criação, após um período de inatividade, provoque uma mudança no próprio Criador. O segdo método empregado para provar a Eternidade do Univer- so é baseado na teoria de quetudo demanda, muda e os obstácld&s

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SO BR E A T E O R IA

DA

E T E R N ID A D E

DO

U N IV ER SO

não estão preenchidos com a essência de Deus. A nossa difícil e profunda refutação a estaoposição, é a seguinte: todo ser, dotado de livre arbítrio e que realiza determinados atos para com outro ser, necessariamente interrompe estas ações em um momento ou outro, devido a determinados obstáculos ou mudanças. Por exemplo: al- guém deseja ter uma casa, mas não a constrói por causa de alguns obstáculos, como não dispor dos materiais necessários ou, tendoos, não estar preparado caso falte os instrumentos apropriados ou, ain- da, tem o material e os instrumentos, mas não deseja mais construíla, pois não sente necessidade de um refúgio. No entanto, quando as circunstâncias se alteram, com o aumento do calor ou do frio, ele é obrigado a procurar refúgio, então passa a desejar

 construir uma casa. Está claro, pois, que as circunstâncias modificam sua vontade,e a vontade, quando encontra obstáculos, não é levada adiante. Este caso é válido somentequando as causas das ações são externas, porém, quando a ação não tem outro objetivo senãosatisfazer a vonta- de, então ela não depende da existência de circunstâncias favoráveis odesfavoráveis. Na falta total de obstáculos, o ser dotado desta vontade não precisará atuar continuamente, pois sua ação segue sim- plesmente a vontade. Assim, para ele, na ausência de obstáculos, não existe qualquer motivo que o obrigasse a atuar. Alguém pode perguntar: ªAdmitindo que isto esteja correto, que- rer a ação em um momento e não em outro não implica mudança?º Responderemos que a verdadeira essência da vontade de um ser é simplesmente a faculdade de conceber um desejo em uma hora e não concebêlo em outra. Se esta vontade pertence a um ser material, ela se dirige a um objetivo externo emuda de acordo com os obstáculos e circunstâncias. Mas a vontade de um Ser Puramente Espiritual, que independe de causas externas, é imutável, e o fato de desejar uma c

oisa em um dia e outra diferente em outro dia não implica uma mu- dança na essência deste ser, nem requer uma causa externa. Do mes- mo modo, demonstramos que o fato de um ser agir em uma hora e não agirem outra não envolve uma mudança em seu próprio ser. Está claro agora que o termo vontade é utilizado de forma homônima para a vontade humana e a vontade de Deus, porém, nunca poderia haver comparações entre a vontade de Deus e a do ser humano. Esta obje- ção está refutada e nossa teoria não foi abalada por ela. Isto era tudo o que desejávamos estabelecer.

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DOS

PERPLEXOS

O terceiro método empregado para provar a Eternidade do Universo é este: quando a Sa

bedoria de Deus decide produzir algo, é produzido, mas como a Essência desta Sabedoria é eterna, o que resulta da Sua Sabedoria também deve ser eterno. Este argumento é muito fraco. Assim como ignoramos porque a Sabedoria de Deus produziu nove esferas nem mais nem menos ou porque Ele fixou o número e a medida dos astros exatamente como são, também não podemos entender porque Sua Sabedoria, em um dado momento, levou o Universo a existir, en- quanto um pouco tempo antes ele não existia. Tudo é conforme a sua Sabedoria Eterna e Constante, mas ignoramos os caminhos e métodos destaSabedoria, desde que, segundo a nossa opinião (de que Deus não tem atributos), Sua Vontade é idêntica à Sua Sabedoria e todos os Seus Atributos são uma e a mesma coisa, ouseja, Sua Providência,7 Portan- to, esta objeção à nossa teoria cai por terra. Não há evid da teoria da Eternidade do Universo, nem do fato citado por Aristóteles acerca do consenso geral dos povos antigos, quando descreviam os Céus como a habitação dos anjo

s e de Deus, nem da aparente concordância dos textos bíblicos com esta crença. Estes fatos somente provam que os Céus nos inspiram a acreditar na existência das Inteligências Separa- das, isto é, ideais e anjos, e que estes, por sua vez, levamnos a acreditar na existência de Deus, pois Ele os coloca em movimento e os governa. Explicaremos e demonstraremos que não há melhor evidência da exis- tência de um Criador, tal como acreditamos, do que aquela fornecida pelos Céus. Mas também, segundo a opinião dos filósofos, como já mencionamos, os Céus evidenciam a existência de um Ser que os colo- ca em movimento e este Ser não é nem um corpo material nem uma força residente em um corpo. Demonstrada a nossa teoria, e que esta não é impossível como afirmam os defensores da Eternidade do Universo, mostrarei nos ca- pítulos seguintes que ela é preferível à do ponto de vista dos filósofos e exporei os absurdos concernentes à teoria de Aristóteles.

7

Veja Terceira Parte, cap. 13 e 17; item, Prim eira Parte, cap. 69. (Maeso)

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

CAPÍTULO

19

PLANO DA NATUREZA. PROVAS EM FAVOR DA C REATI O EX NIHILO. REFUTAMSE ALGUMAS FALHAS DA TEORIA ARISTOTÉLICA Do sistema de Aristóteles e de quantos professam a Eternidade do Universo, deduzse claramente que o Universo é inseparável de Deus. Ele é a c

ausa e o Universo é o efeito, e este efeito é necessário. Assim como não se explica porque ou como Deus existe de determinado modo Ðou seja, Uno e Incorpóreo Ðdo mesmo modo não há como quesdonar sobre o Universo inteiro, por que ou como ele existe de um modo particular. Para isso é necessário que o todo, causa e efeito, exis- tam de modos particulares, pois é impossível não existirem ou serem diferentes do que de fato são. Concluise que a natureza de tudo perma- nece constante, nada muda de forma alguma a sua essência e uma mu- dança deste tipo é impossível em qualquer ser existente. Também é dite o Universo não é resultado de projeto, mudança ou desejo, pois se este fosse o caso, ele não existiria antes de o projeto ser concebido. Por outro lado, segundo nossa opinião, é evidente que tudo quan- to existe é resultado de um projeto e não somente de uma necessida- de, pois Ele, que planejou tudo, pode modificálo quando muda Seu projeto. Mas nem todo projeto está sujeito a mudanças, há coisas que são impossíveis de alterar, pois sua natureza é imutável, como expli- caremos. Meu propósito neste capítulo é lhe e

lanar, por meio de

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argumentos muito próximos à demonstração, que o Universo nos dá evidências de um projeto.entanto, não cairei no erro dos M utaká- lemim. ignorar a natureza existente das coisas, admitir a existência de átomos ou a criação sucessiva de acidentes, ou, ainda, quaisquer das suas proposições que tentei explicar e que pretendiam estabelecer o princípio da Seleção Divina. Não se deve pensar que eles compreende- ram o princípio do mesmo modo que nós, mas sim que, indubitavel- mente, o objetivo era o mesmo e abordaram os temas de que vou tratar, quando refletiram sobre a Seleção Divina. No entanto, eles não distinguem entre seleção , quando se trata de uma planta ser vermelha e não branca ou doce e não amarga, e determinação , como no caso dos Céus, que lhes deu o formato geométrico peculiar e não uma forma triangular ou quadrilátera. Os Mutakálemim estabeleceram oPrincípio da Determinação mediante suas proposições, enumeradas anteriormente.8 Estabelece

rei este princípio somente quando necessário e apenas por meio de proposições filosóficasbaseadas na natureza das coisas. Mas antes de iniciar meu argumento apresentarei os seguintes fatos: a Ma- téria é comum a diferentes coisas. Então, deve haver uma causa exter- na que dote esta matéria parcialmente de uma propriedade e parcial- mente deoutra, ou deve haver tantas causas diferentes quantas são diferentes as formas damatéria comum a todas as coisas. Estes pressu- postos são aceitos por aqueles que defendem a Eternidade do Univer- so. Assentada esta proposição, seguirei com a discussão donosso tema de um ponto de vista aristotéüco, na forma de um diálogo. Nós: Você provou quetodas as coisas no mundo sublunar têm uma substância comum. Por que então as espécies das coisas variam? Por que os indivíduos dentro de cada espécie são diferentes uns dos outros? Aristotélicos. Porque a substância das coisas formadas daquela subs- tância varia. Pois a substância comum, em princípio, recebeu quatro formas, cada forma foi dotada de duas qualidades e, mediante estas quatro formas, a substância se transforma

nos elementos a partir dos quais todas as coisas são formadas. A composição dos elementos ocorre do seguinte modo: primeiro são misturados como conseqü- ência do movimento das esferas celestes e, então, se combinam. A causa da variação depende da gradação do calor, do frio, da umidade

8

Veja na Primeira Parte , cap. 73.

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SOBRE

A TEORIA

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ETERNIDADE

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UNIVERSO

e secura dos elementos que formam as partes constituintes das coi- sas. Por meio destas diferentes combinações, as coisas são dispostas de modos variados a fim de receberem diferentes formas, as quais, por sua vez, são novamente preparadas para receberem novas for- mas e, assim, sucessivamente. Cada forma genérica encontra uma grande esfera em sua substância, tanto em relação à qualidade quan- to à quantidade, e os indivs da espécie variam de acordo com esta relação. Tudo isto está plenamente explicado pelas Ciências Naturais. E certo e claro para qualquer um que conheça corretamen- te a ver

dade, e não deseja se enganar. Nós: Dado que a combinação de elementos prepara e permite às substâncias receberem diferentes formas, o que preparou a Primeira Substância para que uma parte recebesse a forma de fogo, outra a de terra, e as intermediárias entre elas recebessem as formas de água e a de ar, se há uma substância comum a todas? O que fez a substância da terra mais apropriada para a forma de terra e a do fogo para o fogo? Aristotélicos: O fator determinante é a diferença de posições, pois os diferentes lugares prepararam a mesma substância de formas diferen- tes, ou seja, a parte mais próxima da esfera circundante tornouse mais rarefeita e com movimento mais suave, aproximandose da natureza daquela esfera, e recebeu por meio desta preparaçãoa forma de fogo. Quanto mais longe a substância está da esfera circundante, em direção ao centro, mais densa, mais sólida e menos luminosa ela é, tornandose terra, o mesmo princípio serve para a formação da água e do ar. É necessariamente assim, pois seria absurdo negar que cada parte da subs- tância está em um determinado lugar ou afirmar que a

 superfície é idêntica ao centro, ou viceversa. A diferença de localização determi- nou aferentes formas, isto é, predispôs a substância a receber dife- rentes formas. Nós: A substância da esfera circundante, ou seja, os Céus, é a mes- ma daquela dos elementos? Aristotélicos: Não. A substância é diferente e as formas são diferen- tes. O termo corpo é utilo de modo homônimo para os corpos de baixo e os dos Céus, como foi demonstrado pelos filósofos modernos. Tudo isso está demonstrado. Escute agora, você, leitor deste Tratado. Aristóteles demonstrou que a diferença de formas tornase evidente pela diferença das ações. Sendo retilíneo o movimento dos elementos e circular o das esferas, inferimos que as substâncias são diferentes. Esta inferência é apoiada pelas Ciências Naturais.Quando, mais à frente,

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mostrarmos que as substâncias com movimento retilíneo diferem quan- to às suas direções, u

s se movem para cima, outras para baixo; e que as substâncias que se movem na mesma direção têm velocidades diferentes, concluiremos que suas formas são diferentes. Portanto, aprendemos que há quatro elementos. Por argumentação análoga seguese necessariamente que todas as esferas celestes cons- tam da mesma matéria, porque todas elas se movem de modo circular. Entretanto, no tocante à forma, diferem entre si, pois uma se move de Leste para Oeste e a outra, de Oeste para Leste, seus movimentos diferem também em velocidade. Podemos perguntar para Aristóteles: dado que todas as esferas têm matéria idêntica e cada qual tem uma forma particular, quem então determinou e predispôs estas esferas a receberem formas diferentes? Há por trás das esferas algum ser capaz de determinar isto, além de Deus? Devo chamar sua atenção para a profundidade e a perspicácia extraordinária de Aristóteles quando esta questão o perturbou. Ele se esforçou muito para lidar com esta objeção por meio de argumen- tos que, no entanto, não corr

oboraram os fatos. Ainda que ele não mencione explicitamente a objeção, depreendese de suas palavras o desejo de nos apresentar sistematicamente a existência das esferas, assim como mostrou a natureza das coisas do mundo terreno. Tudo é, segundo ele, resultado das leis da Natureza e não do projeto de um Ser que o idealiza como quer, ou da determinação de um Ser que decide como lhe agrada. Mas seu argumento não sesustenta nem isso é possível Ðempenhado em encontrar o motivo pelo qual a esfe- ra se move do Leste e não do Oeste. Pelo fato de algumas esferas se moverem mais rapidamente e outras mais lentamente, ele considera como causa destas diferenças suas posições distintas em relação à Esfera Circundante. Mais adiante tenta mostrar porque há esferas para cada um dos sete planetas, enquanto há uma só esfera para o número enorme de astros fixos. Esforçase para indicar as causas de tudo isso com o objetivo de nos mostrar que o todo ordenado é resultado das leis da Natureza. Ele não foi bem sucedido em seu objetivo, pois tudo quanto nos expõe com respeito ao mundo terre- no está de a

cordo com os fatos. Assim, a relação entre causa e efeito é claramente demonstrada, epodese afirmar que tudo ocorre em virtude do movimento e das influências das esferas celestes, mas, quando trata das propriedades das esferas, não demonstra claramen- te a relação causai, nem explica o fenômeno de modo sistemático

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como a hipótese das leis naturais demandaria. Portanto, em relação às esferas, observamos que uma esfera dotada de movimento mais rápido se coloca atrás de uma esfera maislenta e. em outro caso, observamos o inverso. Em um terceiro caso, há duas esferas com velocidades iguais, uma atrás da outra. Há também outros fenômenos que vão fortemente contra a hipótese de que tudo é regulado pelas leis da Natureza. Dedi- carei um capítulo especial deste Tratado a eles. Em suma, com certeza Aristóteles sabia da fraqueza de seus argu- mentos ao traçar e descrever a causa de todas estas coisas, por isso

 prefaciou suas pesquisas assim: Queremos agora investigar detidamente duas questões, que é nosso dever analisar e discutir de acordo com a nossa capacidade, sabedoria e opinião. Mas nada deverá ser atribuído à presunção e ao orgulho, mas ao nosso zelo nestudo da filosofia, pois quando examinamos questões elevadas e transcendentais nos esforçamos para oferecer uma solução apropriada. Qualquer um que ouça isto deverá se regozi- jar e ficar satisfeito. São suas palavras literais. E evidente que reconhecia a insuficiência de sua teoria, que parece ainda mais fraca quando nos lembramos que a Astronomia não estava plenamente desenvolvida e que, nos dias de Aristóteles, osmovimentos das esferas não eram tão bem conhecidos como são atualmente. Penso que o objetivo de Aristóteles, ao atribuir em sua obra Metafísica uma Inteligência Separada para cada esfera ce- leste, era o de assumir a existência de algo capaz de determinaro curso peculiar de cada esfera. Mais adiante demonstrarei que ele nada conse- gue com isto. Mas agora explicarei as palavras ªsegundo nossa capaci- dade, conheciment

o e opiniãoº, inscritas na passagem citada, pois não as vi esclarecidas por nenhum dos comentaristas. Ao dizer ªnossa opi- niãoº, ele se refere ao princípio de que tudo é resuldo das leis natu- rais ou à teoria da Eternidade do Universo. A expressão ªnosso conhe- cimentoº indica o conhecimento daquilo que é claramente e geralmente aceito, a saber,que a existência de cada uma destas coisas se deve a uma determinada causa e não a uma possibilidade. Por nossa capacidade, entendase nossa incapacidade para descobrir as causas de todas estas coisas. Ele somente quis traçar as causas para algumas delas, e assim o fez, pois dá uma excelente razão para o fato de a esfera dos astros fixos se mover lentamente, enquanto as demais esferas se movem com maior

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DOS

PERPLEXOS

velocidade, qual seja, porque o seu movimento ocorre em direção oposta (do da Esfera

 Circundante). Afirma posteriormente que, quanto mais afastada se encontra uma esfera da oitava, maior é a sua velocidade. Porém, esta regra não parece boa a nenhum dos casos, como já expli- quei. Mais grave ainda é a seguinte objeção: há esferas abaixo daitava esfera que se movem do Leste para o Oeste. De acordo com esta regra, cadaesfera de cima deveria ser mais rápida que aquela abaixo dela, mas a velocidade destas esferas seria praticamente a mesma que a da nona esfera. A Astronomia, à épocade Aristóteles, não estava tão desenvol- vida como hoje. Segundo a nossa teoria da Criaçãotudo isso é facilmente explica- do. Afirmamos que existe um Ser que determina a direçãoe a veloci- dade do movimento de cada esfera Ðainda que ignoremos o modo como a Sabedoria deste Ser deu, a cada esfera, sua propriedade pecu- liar. Se Aristóteles fosse capaz de explicar a diversidade de movimen- tos nas esferas e de mostrar que estãode acordo com suas respecti- vas posições, teria sido excelente. A variedade daqueles

movimentos seria explicada do mesmo modo que a variedade de elementos, por sua posição relativa ao centro e à superfície, mas não é este o caso, còmo já disse. Há um fenôo às esferas celestes que mostra claramente a existência de uma determinação voluntária. Ele não pode ser explica- do de outra forma a não ser assumindo que algum ser o projetou. Este fenômeno é a existência dos astros. O fato de se encontrarem as esfe- ras constantemente em movimento e os astros estarem sempre fixos demonstra que a substânciados astros é diferente da substância das esferas. Já Abu Nasr (Al Farabi), em seus comentários sobre a Física (Acroasis) de Aristóteles, afirmou que: ªEntre as esferas e os astros existe uma diferença: as esferas são transparentes, os astros são opa- cos. A razãodisto é que há uma diferença, por menor que seja, entre suas substâncias e formasº. Estassão suas palavras textuais. Eu não diria que a diferença é pequena, mas enorme, pois não o deduzo da transparência das esferas, mas sim dos seus movimentos. Estou con- vencido de que há três tipos diferentes de substâncias, com três tipos diferentes de formas, a

 saber: 1) Corpos que nunca se movem por vontade própria, como os astros; 2) Corpos que estão sempre em movimento, como as esferas; 3) Corpos ora em movimento, oraem repouso, como os elementos.

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Pergunto agora: o que juntou estas duas matérias Ðentre as quais há, na minha opinião, uma diversidade extrema ou, conforme o juízo de Abu Nasr, uma pequena diferença Ðe quem preparou estes corpos para esta união? Em suma, seria estranho que, sem a existência de um projeto, dois corpos diferentes se unissem um ao outro de modo a se fixarem em um determinado lugar, que não combinasse com um de- les. É ainda mais difícil explicar a existência de muitos astros na oitava esfera. Todos são esféricos, uns grandes, outros pequenos; há dois as- tros aparentemente a uma distância de um cúbito um do out

ro; em determinado local há um grupo de dez aglomerados, enquanto, em outro lugar, há um grande espaço vazio. O que determinou que aquela pequena parte tenha dez astros e esta outra, nenhum? E, sendo o cor- po da esfera uniforme, por que um astro em particular ocupa um lugar e não outro? É muito difícil responder a estas questões e aoutras se- melhantes, se assumirmos que tudo emana de Deus como resultado necessário de determinadas leis permanentes, como sustenta Aristóte- les. Mas se admitimos que tudo isso é resultado de um projeto, nada há de estranho ou improvável, e a única questão é esta: qual é a causa deste projeto? A resposta é que tudo foi feito com um propósitodeter- minado, que não conhecemos, mas nada foi feito em vão ou por acaso. E sabido que as veias e nervos de um cão ou de um asno não são produto do acaso, nem são suas proporções pura casualidade, tampou- co uma veia é grossa e a outra é fina por acaso, mas por um propósito determinado. Da mesma forma, um nervo se ramifica e outro não, um desceem direção reta e outro se enrola sobre si, e sabemos que tudo isto deve ser assim c

omo é. Como, portanto, uma pessoa inteligente imaginaria que as posições desses astros, suas dimensões, as quantida- des e os movimentos de suas diversas esferas carecemde objetivo e são produtos do acaso? Não há dúvida de que todas estas coisas são necessári e seguem um determinado projeto, é extremamente im- provável que sejam o resultado necessário das leis naturais. Encontro a melhor prova para o projeto do Universo nos diferen- tes movimentos das esferas celestes e na posição fixa dos astros nas esferas. Por este motivo você descobrirá que os Profetas utilizaram os astros e as esferascomo provas da existência necessária da Divindade. Assim, Abrahão refletiu sobre os astros, como é sabido.9 Isaías (40:26)

9

Segundo o Talmud , Abrahão possuía grandes conhecim entos astronômicos e todos os reis do O riente e do Ocidente o consultavam (Maeso).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

exortanos a aprender com eles sobre a existência de Deus: ªLevante ao alto vosso olhos e veja: Quem criou estas coisas?º. Jeremias [cha- ma Deus] de ªO Criador dos Céusº (Jeremias 32:17; 10:12; 51:15). Abrahão O chama de: ªDeus dos Céusº (Gênesis 24:7), e Moisés,Príncipe dos Profetas, usa a frase por nós explicada na Primeira Parte, cap. 70: ªEle que cavalga nos Céusº (Deuteronômio 33:26). A com- provação acerca dos Céus é convincente a variedade de coisas no mundo terreno, embora sua substância seja uma e a mesma, pode ser explicada como obra das influências das esferas ou como resulta- do da variedade na posição da substância em relação às esferas, como foi demonstrado por Aristóteleas quem determinou a variedade de esferas e astros, senão a Vontade de Deus? Dizer que foram as Inteligências Separadas é totalmente inútil, pois elas são incorpóreas e nãorelação direta com as esferas. Então por que uma esfera faz o movimento de atração até su

Inteligência Separada, o Leste, e ou- tra até o Oeste? Você acredita que esta Inteligência se encontra no Leste e a outra no Oeste? E por que uma se movimenta com grandevelocidade e a outra lentamente? Esta diferença não tem relação com as distâncias entre elas, como se sabe. Devemos então afirmar que a natureza e essência de cada esfera necessita ter seu movimento em determinada direção e de uma determinada maneira, como conseqü- ência do seu desejo em se aproximar de sua Inteligência. Aristóteles expressou claramente sua opinião. Assim, retornamos ao nosso ponto de partida e declaramos quetodas as esferas estão constituídas por uma só e idêntica matéria. O que faz a natureza de uma porção ser diferente da outra? Por que uma esfera tem um desejo que produz um movimento diferente da- quele produzido pelo desejo de outra esfera? Isto deve serrealizado por um agente apto a determinar estas coisas. Temos então que exa- minar duas questões: 1) E ou não necessário admitir que a variedade das coisas no Uni- verso é resultado de um Projeto e não de leis fixas da Natureza? 2) Supondo que tudo isso se

ja resultado de um Projeto, então se deve concluir que [o Universo] foi criado a partir de sua inexistência ou a Creatio ex nihilo não é a explicação adequada e foi o Ser quem determinou que tudo fosse sempre assim? Alguns que acreditam na Eternidade do Universo defendem a últi- ma consideração. Nos capítulos seguintes abordarei estas duasques- tões, expondo o procedente a esse respeito.

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

IJJ

CAPÍTULO

20

OBJECÕES À TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO Aristóteles demonstra que nada na Natureza se origina por acaso e formula sua hipótese nestes termos: o acaso não reaparece continua- mente nem freqüentemente, mas todos os produtos da Natureza rea- parecem ou co

nstantemente ou freqüentemente, Quanto aos Céus, com tudo o que encerram, permanecem constantes e são imutáveis, como já foi explicado, tanto em relação à sua essência, quant seu lugar. Mas no mundo terreno encontramos tanto coisas constantes quanto coisas que reaparecem freqüentemente (embora não constantemente). Por exemplo, o calor do fogo ou a tendência de uma pedra à queda são propriedades constantes, assim como a forma e o modo de vida dos indivíduos em cada espécie, na maioria dos casos, são os mesmos. Tudo isto está claro. Se as partes do Universo não são acidentais, como o Universo, na sua totalidade, pode ser considerado resultado do acaso? Logo, a existênciado Universo não é casual. Eis aqui a objeção que Aristóteles levanta contra um dos antigos filósofos que admiti- ram que o Universo é fruto do acaso e passou a existir por si mesmo, sem causa alguma: Alguns assumem que os Céus e todo o Universo passaram a existir espontaneamente, bem como a rotação e o m ovi- mento das esferas, que produziu a variedade de coisas e estabeleceu a organização atual. Esta opinião implica um grande

 absurdo. Eles

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

admitem que animais e plantas não surgiram nem nasceram por aca- so, mas por uma causa determinada, seja esta a Natureza, a razão ou o que for . Eles não admitem que tudo possa ter se criado ao acaso, de uma semente ou sêmen, mas de uma determinada semente da qual somente uma oliveira é produzida e de um determinado sêmen do qual somente um ser humano se desenvolve. Por outro lado, afir- mam que os Céus e os corpos celestes são, entre todos os corpos, divinos e que passaram a existir espontaneamente, sem a ação de qual- quer causa ao contrário do que acontece com as plantas e os animais. Aristóteles examinou esta teoria e, então, rejeitoua fortemente. Fica patente que Aristóteles argumenta e prova que todos estes seres não existem por mero acaso, não são acidentais, pois são essenci- ais , isto é, há uma causa que justifica esta cond, por esta causa, são exatamente como são. Esta é a opinião e a argumentação de Aris- tóte

as não penso que, segundo ele, a rejeição da origem espontâ- nea das coisas implica a admissão do Projeto e da Vontade. Como é impossível conciliar dois opostos, é também impossíveconciliar estas duas teorias: a da origem espontânea das coisas com a da Criação pelodesejo e vontade de um Criador. Pois a existência necessária, assumida por Aristóteles, deve ser compreendida no sentido de que, para tudo que não é produto do trabalho,há uma determinada causa, com pro- priedades próprias, que o produz e, ainda, para esta causa há outra causa, e para a segunda, uma terceira e assim por diante. A série de causas termina com a Primeira Causa, da qual deriva tudo o que existe, pois é impossível que a série continue até o infinito. Ele, contudo, não quer dizer que a existência do Universo é necessariamente produto de um Criador, ou seja, da Primeira Causa, do mesmo modo como a som- bra se origina do corpo, o calor, do fogo ou a luz, doSol. Somente aqueles que não compreendem suas palavras atribuem estas idéias a Aristóteles. Ele usa o termo necessário aqui com o mesmo sentido de quando afirmamos que

o inteligível necessariamente deriva do intelec- to, o qual é agente do inteligível10. Mesmo Aristóteles sustenta que a

10

ªAristóteles, ainda que considere a existência do mundo como um a coisa ne- cessária, semdúvida não acredita que, por isso, o mundo seja obra de uma fatalidade cega e que tenha surgido de uma causa que opera sem consciência de sua obra, como o corpo que origina a sombra, mas sim que, ao contrário, Deus é a causa do inteligível, o qual, enquanto isso, é necessariam ente pensado e compreendido pelo intelectoº (Munk).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Primeira Causa é o intelecto mais elevado e mais perfeito. Ele ainda afirma que aPrimeira Causa é agradecida, satisfeita e se compraz com aquilo que necessàriamentese origina dela, e é impossível que Seu desejo fosse diferente. Mas não chamaremos isso de Projeto, pois não há nada em comum com um projeto. Por exemplo: um homem está agradecido, satisfeito, tem prazer em ser dotado de olhos e mãos e é impossível que desejasse outra coisa. Apesar disso, os olhos e as mãos de um homem não são resultados de seu projeto, não é devido a sua própria determinação que ele adquiriu estas propriedades e

capaz de realizar certas ações. A noção de projeto e determinação se aplica somente às coique ainda não existem, quando há apenas a possibilidade de existirem ou não, segundo este projeto. Não sei se os modernos aristotélicos entende- ram as implicações das palavras de Aristóteles de que a existência do Universo pressupõe alguma causa, na forma de um projeto, e determina- ção, ou se, em oposição a ele, admitiram os conceitos de projeto edetermi- nação, acreditando que não entram em conflito com a teoria da Eterni- dade do Universo. A partir do exposto, abordarei as opiniões destes filósofos modernos.

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

CAPÍTULO

2

1

A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL À DA ETERNIDADE DO UNIVERSO Alguns filósofosmodernos, partidários da Eternidade do Universo, defendem a idéia de que Deus produz o Universo e que Ele, por Sua Vontade, projeta e determina sua existência e forma

. Rejeitam, no entanto, a teoria de que isto ocorreu em um momento determinado e admitem que sempre foi assim e sempre será. O motivo pelo qual não podemos imaginar um agente a não ser que exista precedente ao re- sultado de sua ação é explicado, por eles, pelo fato de que isto é exa- tamente assim em tudo o que nós produzimos, pois em todo agente, como nós, há momentos de inatividade e, em virtude disso, somos somente agentes em potência, ou seja, tornamonos agentes ao agirmos. Mas com relação a Deus nãohá momentos de inatividade ou de po- tencialidade em nenhum sentido, Ele não se coloca antes da Sua obra, Ele é sempre um agente atuante. E assim como há uma diferença abismai entre Sua essência e a nossa, do mesmo modo a relação entre Ele e Sua obra difereda existente entre nós e nossas obras. Eles apli- cam o mesmo argumento à vontade e determinação, pois não há dis- tinção entre dizer: Ele atua, quer, projeta ou determina. Adm ainda que uma mudança em Sua ação ou vontade é impossível. Fica então claro que estes filos abandonaram o termo resultado necessário, mas

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I/JA

O GUIA

DOS

PERPLEXOS

mantiveram a sua teoria. Procuraram talvez usar uma expressão me- lhor ou remover um termo questionável. Mas é a mesma coisa se dis- sermos, segundo o ponto de vista de Aristóteles, que o Universo é resultado da Primeira Causa e deve ser eterno, assim como a causa é eterna ou, segundo estes filósofos, que o Universo é resultado da ação, projeto, vontade, seleção e determinação de Deus, mas sempre foi as- sim e sempre será. Do mesmmodo como, sem dúvida alguma, o nascer do Sol produz o dia sem que necessariamente o preceda. No entanto, este não é o nosso conceito de Projeto. Por isso, queremos explicar que o Universo não é o resultado necessário da existência de Deus, assim como oefeito é o resultado necessário da causa eficiente. No último caso, o efeito não pode ser separado de sua causa, a menos que esta mude totalmente ou em parte. Entendido isto, compreenderemos facilmente quão absurdo é dizer que o Universo está para Deus a

ssim como o efeito está para a causa eficiente e considerar, ao mesmo tem- po, que o Universo é resultado da ação e determinação de Deus. Exposto o tema, discutiremos se a causa, admitida pela variedade de propriedades percebidas nos seres celestes, é somente uma causa eficiente que deve necessariamente produzir aquela variedade e seu efeito, ou se aquela variedade se deve a um agente determinante, como acreditamos, segundo a teoria de M oshé Rabênu. Antes de discutir isto, explicarei exatamente o que Aristóteles quer dizer com resultado necessá- rio

 

, em seguida lhe explanarei,por meio de argumentos filosóficos li- vres de qualquer falácia, porque eu prefiro a teoria da Creatio ex nihilo. Quando Aristóteles declara que a Primeira Inteligência resulta ne- cessariamente da existência de Deus, e a Segunda Inteligência é resul- tado daexistência da Primeira, a Terceira, da Segunda e assim por diante, e que as esferas são o resultado necessário da existência das Inteligênáas Separadas, na ordem das passagens relacionadas a isso, co- nhecida e estudada por você, a qual resumimos no capítulo

 4, fica claro que ele não pretende afirmar que uma coisa preexistiu e que dela tenha se originado a segunda como seu resultado necessário, pois ele nega que um destes seres teve um início. Por resultado necessário expressa simplesmente a relação causai, significando que a Primeira Inteligência é a causa da existência da segunda, e esta, da terceira, e assim sucessiva- mente até a última das Inteligências. O mesmo se afirma do concer- nente às esferas e à matériaprima, dado que estas coisas não antece- dem uma outras, nem existem, segundo ele, umas sem as outras. Nós dizemos, por exemplo, que o resultado necessário das qualidades

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

143

primárias são a aspereza e a maciez, a dureza e a moleza, a porosidade e a solidez,pois ninguém duvida que calor, frio, umidade e secura sejam as causas da asperezae maciez, dureza e moleza, porosidade e solidez e qualidades similares, nem queestas últimas sejam resultado necessá- rio das quatro primeiras qualidades. Também é impossível que exista um corpo que, possuindo as primeiras, careça das segundas, pois a r

elação entre os dois tipos de qualidade é o de causalidade, não o de agente e seu produto. Exatamente deste modo que o termo resultado necessário é usado por Aristóteles quando, ao se referir ao Universo como um todo, afirma que uma porção é resultado de outra e continua a série até a Primeira Causa Ðassim denominada por ele Ðou Primeiro Intelecto, se preferir este termo. Para nós, ambos significam a mesma coisa, com uma diferença: para Aristóteles, tudo além daquele Ser é resultado necessário deste, como já mencioi, enquanto que, para nós, aquele Ser criou o Universo como um todo com projeto evontade, de modo que o Universo, inexistente anteriormente, passou a existir de- vido a Sua Vontade. Nos capítulos seguintes, exporei as minhas provas a favor da supe- rioridade da nossa teoria, a da Creatio ex nihilo.

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

CAPÍTULO

22

A S DIFICULDADES DE COM PREENSÃO D A N AT U R EZA E DO M O V IM E N TO D A S ESFERAS DE A C O R D O CO M A TEO RIA DE ARISTÓ TELES D ESAPARECEM DIANTE D A IDEIA DOU N IVE R - SO C R IA D O POR DEUS

Umaproposição aceita por Aristóteles e por todos os filósofos é que uma coisa simples some

nte produz outra coisa simples, enquanto um com- posto pode produzir tantas coisas quantos forem os elementos sim- ples nele contidos. Por exemplo, o fogo contém duas qualidades calor e secura Ð , aquece mediante o calor e seca em virtude desta secu- ra. Uma coisa composta de matéria e forma produz determinadas coi- sas de acordo com a sua matéria e outras de acordo com a sua forma, se tanto matéria quanto forma consistirem de vários elementos. Se- gundo este axioma, Aristóteles sustenta que a emanaçãodireta de Deus deve ser uma Inteligência Simples, não mais do que isso. Segunda proposição : Uma coisa não é produzida aleatoriamente por outras coisas, há alguma relação dea e efeito. Portanto, acidentes não são produzidos aleatoriamente por acidentes, qualidade não é ca- paz de originar quantidade ou viceversa. Uma forma não se origina da matéria nem viceversa. Terceira proposição : Um agente único que age com projeto e vontade, e não somente por força das leis da Natureza, é capaz de produzir diferentes objetos.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Q uarta proposição, Um todo, integrado por vários elementos justa- postos, é mais um comp

osto do que um objeto cujos diferentes elemen- tos estão inteiramente combinados. Exemplo: ossos, carne, veias e nervos são mais simples que a mão ou o pé, que são uma combinação de ossos, carne, veias e nervos. Tudo isto está claro e não precisa de maior explicação. A partir da apresentação destas proposições, faço a seguinte ques- tão: Aristótele que a Primeira Inteligência é a causa da Se- gunda e esta, da terceira, e assim por diante, até milhares de graus, se admitirmos uma série desse tipo. Agora, o PrimeiroIntelecto é, sem dúvida alguma, simples. Como uma forma composta de coisas exis- tentes viria de um Intelecto deste tipo segundo as leis fixas da Natu- reza, como sustenta Aristóteles? Concordamos com ele quando afir- ma que, quanto mais as Inteligências se afastam (do Prim eiro Intelecto), maior a multiplicidade do seu composto, devido ao gran- de número de objetos compreensíveis pelas Inteligências. Mas, ainda que se admita isto, permanece a questão: por meio de qual lei da Natureza as esferas cel

estes emanaram das Inteligências? Que rela- ção existe entre seres materiais e imateriais? Ainda supondo que acei- temos que cada esfera tenha emanado de uma Inteligência na forma enunciada, que a Inteligência, do modo como se compreende Ðera composta de dois elementos Ðproduz a próxima Inteligência por meio de um elemento e uma esfera pormeio do outro, então como um elemento simples produziria a esfera, que contém duas substân- cias e duas formas Ð quais sejam, a substância e a forma da esfera e ainda a substância e a forma do astro fixo naquela esfera Ðse, de acordo com as leis da Natureza, um composto somente deriva de um composto? Deve haver, portanto, um elemento, do qual deriva o cor- po da esfera e outro elemento, do qual deriva o corpo do astro. Isto seria necessário mesmo que a substância de todos os astros fosse a mesma,mas é possível que os astros luminosos não tenham a mesma substância que os astros nãoluminosos. Além disso, é sabido que todo corpo tem sua própria matéria e sua própria forma. Fica, pois, paten- te que esta emanação não pode ocorrer por força das leis da Nature- za,

mo defende Aristóteles. Nem a diferença de movimento das esferas segue a ordem destas posições e, portanto, não podemos afir- mar que esta diferença é resultado de determinad leis da Natureza. Já mencionamos isto (cap. 19).

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Há, nas propriedades das esferas celestes, outra circunstância oposta às leis da Natureza. Se a substância de todas as esferas é a mesma, por que razão a forma desta esfera não combina com a substância de outra, como ocorre com as coisas na Terra? Simples- mente porque suas substâncias são aptas a tais mudanças? Se a subs- tância de todas as esferas é a mesma, se não se admite que cada uma delas tem a sua substância peculiar e se, contrariando todos os prin- cípios, o movimento peculiar de cada esfera não é devido ao caráter especial de sua substância, por que então uma determinada forma permaneceriaconstantemente unida a uma determinada substância? Novamente, se todos os astros têm a mesma substância, o que os distingue uns dos outros? As formas? Ou os acidentes

? Qualquer que seja o caso, as formas e os acidentes trocariam de lugar, de modo a se unir sucessivamente a cada um dos astros, desde que sua subs- tância (sendo amesma) admita essas combinações (com qualquer uma das formas ou acidentes). Isto mostra que o termo substância , quando usado para as esferas ou para os astros, não tem o mesmo significado que ao ser usado para as coisas terrestres, mas é aplicado para os dois casos como homôni- mos. Isto indica também que qualquer um dos corpos das esferas tem sua forma peculiar de existência, diferente de todos os demais seres. Por que, então, o movimento circular é comum a todas as esferas e por que a posição fixados astros em suas respectivas esferas é comum a todos os astros? Se admitirmos oprojeto e determinação de um Criador, segundo Sua Sabedoria incompreensível, todas estas dificul- dades desaparecem. Elas surgem quando consideramos todo o Uni- verso não como resultado do Livre Arbítrio, mas como resultado das leis fixas da Natureza. Essa é uma teoria que, por um lado, não está em harmonia com a ordem existente das coisa

s e não oferece, para isto, razão ou argumento suficiente; e, por outro lado, implica muitas e grandes improbabilidades, pois, segundo ela, Deus, cuja perfeição em todos os níveis é reconhecida por toda pessoa inteligente, está em tal relação com o Universoque nada pode mudar. Assim, se Ele dese- jasse aumentar a asa de uma mosca ou reduzir o número de pernas de um verme, não poderia. Segundo Aristóteles, Ele nem pode tentar fazer isto e é totalmente impossível, para Ele, desejar qualquer mu- dança na ordemexistente das coisas. Caso Ele pudesse, isto não au- mentaria Sua perfeição, ao contrário, segundo alguns pontos de vista, poderia até diminuíla.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Ainda que certos críticos parciais me reprovem, considerando mi- nha opinião acerca da

 teoria de Aristóteles conseqüência de uma com- preensão insuficiente ou oposição intencio não deixarei, por isso, de expor os resultados das minhas pesquisas, por mais pobres que sejam as minhas capacidades. Sustento que a teoria de Aristóteles é absolutamente correta com respeito às coisas que existem entre a esfe- ra lunar e o centro da Terra. Somente um ignorante rejeita isso Ðou uma pessoa com opiniões preconcebidas, que deseja mantêlas ou defendêlas, o que a leva a ignorar fatos claros. Mas o que Aristóteles expõe da esfera lunar para cima é, com algumas exceções, simples ima- ginaçãinião, em um nível mais extenso no que se refere à ordem das Inteligências, assim como em algumas das suas teorias metafísicas Ðestas incluem enormes improbabilidades, promovem idéias que to- das as nações consideram como evidentemente corrompidas e causa a propagação de pontos de vista que não podem ser comprovados. Talvez me perguntem porqueenumerei todas as dúvidas que pos- sam existir contra a teoria de Aristóteles. E possíve

l refutar uma teo- ria por meio de dúvidas ou estabelecer uma teoria contrária a ela?Certamente não, mas nossa atitude diante deste filósofo é aquela que seus seguidores nos induzem a adotar. Com efeito, Alexandre deixou bem claro que, quando uma coisa não é suscetível de demonstração, devem ser propostas as duas hipóteses mais opostas, am de ressal- tar as dúvidas Inerentes a cada uma delas e aceitar a mais verossímil. Alexandre acrescenta que esta regra se aplica a todas aquelas opi- niões de Aristótelesna M etafísica que não são demonstráveis, pois todos quantos seguiram Aristóteles acreditaram que suas opiniões eram, de longe, as menos sujeitas a dúvida. É o que fazemos, con-vencidos de que a questão Ðse os Céus são eternos ou não Ðnão pode ser demonstrada, nem aftivamente nem negativamente. Enumeramos as objeções levantadas contra cada ponto devista e mostramos como a teoria da Eternidade do Universo é sujeita a for- tes objeções, sendo mais apta a corromper as noções a respeito de Deus (do que outras). Acrescentamos que a teoria da Criação foi de- fendida por A.vraham A vinu e M oshé Rabênu. Ao menci

onar o método de teste das duas teorias por meio das objeções erguidas contra elas, considero necessário esclarecer algo sobre o tema.

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

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UNIVERSO

CAPÍTULO

23

A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL ÀQUELA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO Ao comparar as dúvidas levantadas contra uma opinião àquelas con- trárias à sua, para decidir a favoda menos questionável, não se deve considerar o número de objeções, mas o nível de improbalidade e de desvio dos fatos reais (apontados pelas objeções), pois uma só objeção pode ter mais peso do que mil outras. A comparação somente será proveitosa para quem conceda

paridade às duas hipóteses opostas. Se você está predisposto a aceitar uma delas, seja devido a sua educação ou a um interesse qualquer, está cego demais para enxergar a verdade. Pois aquilo que pode ser demonstrado não deve ser rejeitado, não im- porta o quanto esteja inclinado a fazêlo. No entanto, nas questões semelhantes às consideradas, você estará apto a debater (devido à sua inclinação). Em certas ocasiões, será capaz de dec a questão se esti- ver livre de paixões, ignorar costumes e seguir somente a sua razão. Mas, para isso, determinados requisitos devem ser preenchidos: Primeiro : Levar em conta a sua capacidade mental e seus talentos naturais, os quais você obterá por meio do estudo da Matemática e da familiarização com a Lógica. Segundo: Adquirir um bom conhecimento de Ciências Naturais, para estar apto a entender a Natureza e suas objeções. Terceiro: Ser moralmente bom. Se uma pessoa é voluptuosa ou pas- sional e, ao perder as rédeas, permite que a sua raiva passe dos limites,

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não importa se esta atitude faz parte de sua natureza ou é um hábito, ela resvalará, tropeçará pelo caminho e seguirá a teoria que estiver de acordo com as suas inclinações. Chamolhe a atenção para que não se deixe seduzir; porque é pos- sível que qualquer dia alguémr meio de objeções levantadas, balan- ce sua crença na teoria da Criação e facilmente lhesoriente. Você então adotaria a teoria [da Eternidade do Universo], contrária aos prin-cípios fundamentais da nossa religião, e daria seu assentimento a here- sias acerca de Deus. Sempre suspeite da própria razão e aceite a teoria ensinada pelos dois Profetas [Abrahão e Moisés] que são o pilar da ordem existente nas relações sociais e religiosas da Humanidade. So- mente uma prova demonstrativa seria capaz de fazer você abandonar a teoria da Criação, mas esta prova não existe na Natureza. Não se admire porque eu apresento, nesta discussão, uma questão histórica como apoio à teoria da Criação, pois o mai

 dos filósofos, Aristóteles, empregou, em seus principais trabalhos, recursos históri- cos para defender sua teoria da Eternidade do Universo. A respeito disso podemosmuito bem afirmar: Será que a nossa Lei Perfeita não é tão boa quanto os mexericos deles}1 1 Se ele sustenta o seu ponto de vista citan- do lendas do Povo de Sabá,12 por que não apoiaríamos nossos pontos de vista naquilo que Moisés e Abrahão declararam e naquilo que se segue de suas palavras? Prometi anteriormente descrever, em um capítulo àparte,1 3 as for- tes objeções que ocorrem àquele que pensa que a sabedoria humana entende totalmente a natureza das esferas celestes e seus movimentos, e que estes estão sujeitos a leis fixas e podem ser compreendidos quan- do sua ordem e interrelações são observadas. Explicarei isso agora.

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Veja no Talmud da Babilônia, Baba Batra, 115b. (Friedlander, citado por M aeso). Sabá ou Shéba: nome bíblico de um a região do sul da A rábia, que corresponde hoje, em parte, à região do Iêmen. Seus habitantes são denominados sabeanos. Segundo algumas passagens do Gênesis e das Primeiras Crônicas, Sheba, tataraneto de Noé, era o ancestral do Povo de Sabá. Segundo outras passagens, todavia, era descendente de Abrahão. Sheba colonizou a E tiópia há aproxima- damente três mil anos. N aquele tempo, a Rainha de Sabá fez sua famosa visita ao Rei Salomão. Situada ao longo da rota comercial entre a ín d ia e a África, Sheba era conhecida como uma região muito próspera. Foi conquistada pela Etiópia em 525. Em 572 tornouse um a província persa e, com o surgimento de M aomé,caiu sob controle islâmico e perdeu a sua identidade (fonte: site http://www.newadvent.org/cathen/13285c.htm , em 12/11/2002). Veja cap. 19 (Maeso).

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CAPÍTULO

2 4

AS DIFICULDADES DE COMPREENSÃO DA NATUREZA E DO MOVIMENTO DAS ESFERAS DE ACORDO COM A TEORIA DE ARISTÓTELES DESAPARECEM DIANTE DA IDEIA DO UNIVER- SO CRIADO POR DEUSVocê já conhece, em Astronomia, o que estudou e aprendeu, sob a. minha orientação, no Alm agesto^ mas não houve tempo para lhe ini- ciar em ponderações ulteriores.1 5

14 A lm agesto : Mais conhecido como Sjntaxis, A lm agesto (S êfer háM aguestê , em he-braico) é o título da tradução árabe (ano 827) do livro de Astronom ia de Ptolom eu (séculII E.C.) astrólogo, astrônomo, m atem ático e geógrafo, que viveu em Alexandria. E m A lmagesto, Ptolom eu expõe o sistem a geocêntrico que leva o seu nome, e supõe a Terra como o centro ao redor do qual giram os demais corpos celestes. Esta hipótese perdurou por toda a Idade M édia e foi substituída pelo sistema heliocêntrico de Copérnico(14731543) (Maeso). Neste capítulo, M aimônides se dirige particularm ente ao seu discípulo, Rav Y ossef ibn Aknin. Sabemos que este em igrou do M agreb (região de aproxima- damente 4 mil km 2, situada no noroeste do continente africano. Atualm ente compreende a Argélia, a Tunísia e o M arrocos, países localizados no extremo oeste do mundo árabe. E lim itada pelo M ar M editerrâneo, ao N orte; Deserto do Saara, ao Sul; Oceano Atlântico, a Oeste; e Deserto da Líbia, ao Leste). Estabeleceuse depois

na cidade de Alepo (localizada na atual Síria), esteve com M aimônides e residiu naantiga cidade do Cairo, por algum tempo, dedi- candose a estudos astronômicos (NT).

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A teoria de que as esferas celestes se movem regularmente e que os cursos reconh

ecidos dos astros estão em harmonia com a observação, dependem, como você sabe, de duashipóteses: aceitarmos os epiciclos, ou as esferas excêntricas, ou uma combinação de ambos. Mas agora vou lhe mostrar que ambas as hipóteses são irregulares e total- mente contrárias aos resultados das Ciências Naturais. Levaremos em conta, primeiro, um epiciclo, tal como se admite nas esferas da Lua e dos Cinco Planetas: rodando sobre certa esfera, mas não ao redor do centro da esfera que o carrega. Este arranjo produziria necessaria- mente um movimento de rotação, ou seja, o epiciclo giraria e mudaria completamente de lugar. No entanto, Aristóteles considera impossí- vel que qualquercoisa nas esferas mude de lugar. Por isso, Abu Bakr ibn AlSa'ig, em seu Tratado sobre Astronomia, rejeitou a existência de epiciclos. Ao lado desta impossibilidade, ele menciona outras, demons- trando que a teoria dos epiciclos implica diversasnoções absurdas. Explicálasei aqui: 1) E absurdo admitir que a revolução de um ciclo não

enha o Universo como centro, pois há um princípio fundamental quanto à ordem do Universo de que os movimentos são somente três: a p a r - tir do centro,p a ra o centro e ao redor do centro. Mas um epiciclo não se move a partir do centro, nem em direção ao centro e nem ao redor dele. 2) Segundo aquilo que Aristóteles explica nas Ciências Naturais, é absolutamente necessário algo fixo ao redor do qual se efetue o movi- mento.Esta é a razão pela qual a Terra permanece estacionária. Mas o epiciclo se moveria aoredor de um centro nãoestacionário. Soube que Abu Bakr descobriu um sistema em quenão há epici- clos, mas não se excluíam as esferas excêntricas. Não soube disso pelos seusilos, mas, mesmo que fosse verdade, ele não ganharia muito com isso, pois a excentricidade é completamente contrária aos princípios assinalados por Aristóteles. Pareceme que uma esfera ex- cêntrica não se move em torno do centro do Universo, mas ao redorde um ponto imaginário distante do centro e, portanto, em torno de um ponto que não éfixo. Um ignorante em Astronomia pensaria que o movimento das esferas excêntricas

poderia, ainda assim, ocorrer ao redor de algo fixo, pois seus centros estão aparentemente dentro da esfera lunar. Mesmo que a esfera estivesse situada na região do fogo ou do ar, as esferas não se moveriam ao redor de um ponto

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estável. Mas devo lhe mostrar que os módulos das excentricidades foram descritos, de alguma forma, no Almagesto. Os estudiosos mo- dernos calcularam a quantidade exata de excentricidade em relação ao semidiâmetro da Terra e comprovaram os resultados. A mesma medida foi utilizada, na Astronomia, para descrever todas as distân- cias e magnitudes. Conseqüentemente, ficou claro que o ponto ao redor do qual o Sol se move está, sem dúvida alguma, fora da esfera lunar e abaixo da superfície da esfera de Mercúrio. O centro para o circuito de Marte Ðquero dizer, o centro da esfera excêntricade Marte Ð está fora da esfera de Mercúrio e dentro da esfera de Vênus. O centro de Júpiter se encontra eqüidistante, a saber, entre as esferas de Vênus e Mercúrio, enquanto o

centro de Saturno localizase entre as esferas de Marte e Júpiter. Considere, contudo, como tudo isso parece im - provável segundo as leis das Ciências Naturais. Você compreenderá isto quando considerar as distâncias e magnitudes conhecidas de cada esfera e de cada astro, expressos em relação ao semidiâmetro terres- tre. Há uma medida uniforme para todos, e a excentricidade de cada esfera não está determinada por unidades proporcionais às suas pró- prias magnitudes. E ainda mais improvável e questionável assumirque há duas esfe- ras, uma dentro da outra, e que elas estão interligadas por todos os lados, mas seus centros são diferentes, de tal forma que a menor se move, enquanto a maior está parada. No entanto, quando a maior se move, a menor não pode ficar parada e deve se mover, junto com a maior, na mesma proporção em que esta última gira ao redor de qual- quer outro eixo, além daquele que passa pelos dois centros. Assim, temos esta proposição que pode ser comprovada, a teoria estabeleci- da de que não há vácuo,em como a teoria da excentricidade das esferas. Seguese necessariamente que, em

 ambas as esferas, o movi- mento da esfera maior fará com que a menor se mova do mesmo jeito e ao redor do mesmo centro. Todavia, não é o que acontece. As esfe- ras externa e interna não se movem do mesmo modo, nem ao redor do mesmo centro ou do mesmoeixo, cada uma tem seu movimento peculiar. Daí a necessidade de se admitir que, entre cada duas esferas, há substâncias diferentes daquelas que compõem estas esferas. Se este for o caso, é uma afirmativa muito duvidosa, pois onde se localizariam os centros destas substâncias intermediárias? Seus movimentos se- riam também peculiares? Thabit ibn Kurra16 expôs isto em um tratado,

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demonstrando que devemos admitir uma substância de uma forma esférica intermediária en

tre uma esfera e outra. Não lhe expliquei tudo isso quando você acompanhou minhas aulas, porque não queria des- viálo do meu objetivo principal, o de lhe ensinar. Quanto à inclinação e obliqüidade relativas às latitudes de Vênus e Mercúrio, já lhe expliquei d voz que é impossível imaginar seres materiais sob estas condi- ções. Você deve ter notadoue Ptolomeu já apontara esta dificuldade, quando disse literalmente: Ninguém acredita que estes princípios e outros semelhantes sejam improváveis. Se alguém considera o que expusemos aqui do mesmo modo como considera coisas produzidas com ponderações artificiais e sutilezas rebuscadas, considerará improvável. Porém, não é certo comparar coisas humanas a coisas divinas. Já lhe indiquei as passagens nas quais pode comprovartudo o que lhe disse, à exceção do exposto sobre a posição dos centros das esferas excêntras, pois nunca soube que alguém tivesse se interessado por esta questão. Mas você compreenderá isso quando conhecer a medida do diâmetro de cada esfera e a extensão de sua

excentricidade em rela- ção ao semidiâmetro da Terra, segundo os fatos que Alchabitius17 esta- beleceu em seu tratado sobre distâncias. Quando examinálas, confir- mará minhas palavras.

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Thabit ibn Kurra (826901 E.C.) nasceu na Mesopotâmia (atual Turquia) e faleceu em Bagdá (no atual Iraque). Era membro da seita dos Sabianos, que idolatravam os astros e produziram muitos bons astrônomos e matemáticos. Thabit era fluente em grego,devido à influência da cultura grega, e também em árabe e siríaco, dialeto aramaico ocidental falado na Mesopotâmia. Após ter abandonado Harrán, acusado de heresia devido às suas filosofias liberais, tornouse o astrônomo da corte de Bagdá, sob a proteção do CalifaAlMutadid. Foi tradutor e revisor de traduções de muitas obras gregas para o árabe. A

lém disso, foi um brilhante pesquisador e fez muitas descobertas importan- tes no campo da Matemática. Na Astronomia, foi um dos reformadores do sistema ptolomaico eum dos descobridores do conceito de Estática (NT, a partir de pesquisa em http://wwwgap.dcs.stand.ac.uk/~history/Mathematicians/Thabit.html, em 22/11/2002). 17Abdilazi Alchabitius: astrólogo e astrônomo árabe medieval, cuja Introductiorium adsáentiamjudirialem astronomia foi publicada somente em 1473 E.C. (NT).

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Previnase, pois, das grandes dificuldades que advêm de tudo isso. Se o que Aristóteles afirma nas Ciências Naturais é certo, não há epici- clos nem esferas excêntricas e tudgira ao redor da Terra! Mas, neste caso, como são explicados os diversos cursos dos astros? Como é pos- sível assumir uma rotação uniforme perfeita e que responda aos fenô-os visíveis, senão admitindo uma das duas hipóteses, ou ambas? A dificuldade fica mais explícita quando vemos que, ao acatar o que Ptolomeu explica com respeito ao epiciclo da Lua e a sua inclinação até um ponto exterior, tanto do centro do Universo quan

to do seu pró- prio centro, os cálculos realizados segundo estas hipóteses estão per- feitente corretos, e a sua veracidade é comprovada pelo mais apu- rado cálculo do tempo, duração e extensão dos eclipses, sempre baseados nestas hipóteses. Além disso, sem admitira existência dos epiciclos, como podemos conciliar a aparente retroação de um astro com seus outros movimentos? Como a rotação, ou movimento, ocorre ao redor de um pontoque não seja fixo? Estas são as grandes dificuldades. Já lhe expliquei de viva voz que estas dificuldades não cabem ao astrônomo, pois não é sua função ilustrarnos a respeitoproprieda- de das esferas, mas sim sugerir se uma teoria, em que se preconiza que o movimento dos astros seja circular e uniforme, está certa ou não e, ainda, se estáde acordo com a nossa consideração ou adequada ao que é perceptível pela visão, quer a realidade seja ou não assim. Você sabe que Abu Bakr ibn Al Sa'ig, falando da Física, questiona se Aristóteles teve conhecimento da excentricidade do Sol e se calou sobre isso, preocupandose unicamente com a resultante da inclinação, pois viu que o efeito d

a excentricidade era idêntico ao da inclinação. O certo é que [Aristóteles] a ignorava e jamais ouvira falar dela, pois a ciência não era perfeita naquela época. Se soubesse de sua existência, se oporia forte- mente a ela e, se estivesse convencido de sua correção, ficaria cons- trangido quanto a tudo o que discorreu sobre o tema. Repetirei o mencionado anteriormente (cap. 22): a teoria de Aristóteles, referente ao mundo terreno, está de acordo com a inferência lógica Ðem que conhecemos a relação causai entre umnômeno e outro, percebemos como a ciência pode investigála e a ordenação da Natureza é cla e inteligível. Com respeito ao mundo celeste, o Homem tudo ignora, salvo algunscálculos matemáticos. Direi em termos poéticos: ªOs Céus são Céus para YHVH, e a Terra deua os seres humanosº (Salmo 115:16), ou seja, somente Deus conhece a verdadeira natureza dos Céus,

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sua essência, forma, movimentos e causas. Entretanto, Ele deu ao Homem o poder de

conhecer as coisas sob os Céus, aqui é o mundo do Homem, esta é a casa que lhe pertence, na qual foi colocado e da qual ele mesmo faz parte. É por isso que os fatos deque necessitamos para provar a existência dos seres celestiais nos são inacessíveis. Os Céus estão muito longe de nós, tanto por sua localização quanto por sua natureza. As faculdades humanas são muito deficientes para com- preender até mesmo a prova geral, contida nos Céus, da existência Daquele que os coloca em movimento. É, de fato, ignorância ou uma espécie de loucura fatigar nossas mentes com questões que estão fora do nosso alcance, sem a posse dos meios para nos aproximarmos de- las. Devemos nos contentarcom aquilo que está ao nosso alcance e abandonarmos o que não pode ser alcançado pelainferência lógica, conforme aconselha aqueles dotados de grande influência divina, ex- pressa nestas palavras: ªBoca a boca falarei com eleº. (Números 12:8).1 8 isto é tudo o que posso explanar sobre este tema. Quem sabe outro encontre uma demonstração que evi

dencie a verdade do que, para mim, parece obscuro. Demonstro constrangimento nestes temas devido ao meu grande amor à verdade, e desconheço se alguma destas teorias foi estabelecida por demonstração.

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M aimônides se refere aqui aos Profetas (NT).

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CAPÍTULO 2 5

A TEORIA DA CRIAÇÃO É ADOTADA DEVIDO À SUA SUPERIO- RIDADE PRÓPRIA, MESMO QUE AS PROVAS BAADAS NA BÍ- BLIA SEJAM INCONCLUSIVAS Não rejeitamos a Eternidade do Universo porque os textos bíblicos confirmam a Criação, já que as passagens que afirmam a Criação não são maerosas do que as alusões à corporeidade de Deus, nem é difícil ou impossível encontrar para estas uma interpretação conve- niente Ðpoderíamos explicála da mesma maneira que fizemo

com respeito à Incorporeidade de Deus. Talvez fosse até muito mais fácil, e certamente muito produtivo, mostrar os textos bíblicos que visariam estabelecer a Eternidade do Universo, se a aceitássemos. Poderíamos, então, explicar os antropomorfismos da Bíblia, mas, ao invés disso, rejeitamos a idéia da corporeidade de Deus. Duas razões nos movem a proceder assim: 1) A Incorporeidade de Deus foi demonstrada. Aquelas passagens bíblicas que, em seu sentido literal, contêm premissas passíveis de se refutar por demonstração, podem e devem, todavia, ser interpretadas. Mas a Eternidade do Universo não foi demonstrada. Um simples ar- gumento a favor de uma determinada teoria não é razão suficiente para rejeitar o sentido literal de um texto bíblico e explicálo demodo figurado, quando uma teoria oposta poderia ser sustentada por um argumentoequivalente.

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2) Nossa crença na Incorporeidade de Deus não contraria nenhum princípio fundamental d

e nossa religião, nem desmente nenhum texto dos Profetas. Somente os ignorantes acreditam que isto contraria os ensinamentos bíblicos. Demonstramos que não é este o caso, ao con- trário, a Bíblia ensina a Incorporeidade de Deus. Admitir a Eternidade do Universo tal como ensina Aristóteles, ou seja, que todo no Univer- so é resultado de leis fixas, que a Natore 2 a não muda e que não existe nada sobrenatural, seria se opor necessariamente à base de nossa reli- gião, desmentir todos os milagres e sinais, rejeitar todas as esperanças e temores derivados da Bíblia, a menos que se pretenda interpretar os milagres de modo figurado. Os Batinies (os Metafóricos) muçulmanos fizeram isso e chegaram a conclusões absurdas. De todo modo, caso se admitisse a Eternidade do Universo conforme a segunda das teorias que expusemos Ða de Platão, segundo a qual os Céus também são transitórios Ð , não nos oporíamos aos princípios fundamentaissa religião, pois esta teoria não implica a rejeição de milagres, mas ad- mite a possibili

dade. Se o texto bíblico fosse explicado de acordo com esta teoria, muitas expressões seriam encontradas na Bíblia e em ou- tros escritos que a confirmariam e a sustentariam. Mas não necessita- mos deste expediente, porque esta teoria ainda não foi demonstrada. Como não há provas suficientes para nos convencer, nem ela, nem a outra precisam consideradas. Preferimos interpretar os textos bíblicos em seu sentido literal e afirmar que estes nos ensinam uma verdade que não pode ser comprovada. Os milagres são evidências da correção do nosso ponto de vista. Admitida a Criação do Universo, tos os milagres são possíveis, bem como a Profecia, e se desvanecem todas as dificuldades. Caso se pergunte: ªPor que Deus inspirou uma determinada pessoa e não ou- tra? Por que Deus revelou a Lei a uma certa pessoa e em uma época específica? Por que permitiu algumas coisas e proibiu outras? Por que mostrou por meio de um Profeta determinados milagres particulares? Qual é o propósito dessas leis? Por que Ele não fez os mandamentos e proibições como parte da nossa natureza, se era Seu objetivo que vi- vês

semos segundo estas leis?º Respondamos a todas estas questões: Ele quis assim ou Sua Sabedo- ria decidiu assim. Ele criou o Universo segundo a Sua Vontade, em um determinado momento e de uma determinada forma, e assim como nós não compreendemos porque Sua Vontade ou Sua Sabedoria decidiu esta forma e este momento peculiares, também não podemos compreender

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porque Sua Vontade ou Sabedoria determinou quaisquer das coisas men- cionadas nasquestões precedentes. Mas se admitirmos que o Universo tem a sua forma atual comoresultado de leis fixas, então surge a neces- sidade das questões acima, que somente poderiam ser respondidas de forma equivocada, implicando a negação e a rejeição dos textos bíblicos, de cuja correção nenhuma pessoa inteligente duvida. Logo, rejeitamos a teoria da Eternidade do Universo por falta de provas. É por estas várias razões que as mentes mais nobres despende- ram e ainda despenderão seus dias pesquisando sobre esta

matéria, pois se a teoria da Criação do Universo for comprovada, nem que seja tão somente segundo a hipótese de Platão, todos os argumentos dos filósofos contra nós perdem o valor. Se, por outro lado, Aristóteles tivesse uma prova para sua teoria, todo o ensinamento da Bíblia seria rejeitado, e seriamos obrigados a seguir outras opiniões. Com isso, lhe expus tudo sobre esta questão. Preste atenção nisso.

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CAPITULO

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EXAME DE UMA PASSAGEM DE PIRICE DIRAB1 ELIEZERl< ) COM RELAÇÃO À CRIAÇÃO Nos celebrados Capítulos de Rubi Elie^er, o Grande, intitulados Pirkê diRabi Elie\er, li uma passagem tão estranha como jamais lera entre os seguidores da Lei de Moisés. Refirome à seguinte passagem: De onde foram criados os Céus? Ele tomou parte da luz de Sua vesti- menta, estendeua como um manto e assim os Céus se estendem con- tinuamente, conforme

 está dito: ªEnvolvido em luz como um manto, estendendo os Céus como uma cortinaº (Salmo 104:2). De onde foi criada a Terra? Ele tomou da neve sob o seu Trono de Glória e a espa- lhou, segundo o dito: ªDisse à neve: Seja terraº Qó 37:6). Estes são os termos daassagem em questão. Eu, surpreso, per- gunto: em que acreditava este Sábio? Será que ele pensava que nada pode ser produzido do nada e que as coisas foram formadas a partir de uma substância? Será que, por esta razão, ele pergunta de onde os Céus e a Terra foram criados? O que ele obtém com a resposta? Poderíamos

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Pirkê diRabiElie^er. Capítulos de Rabi Eliézet (NT).

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lhe perguntar: De onde vem a luz que forma a Sua vestimenta? E a neve sob o seuTrono de Glória? E o próprio Trono de Glória? Se as ex- pressões /«£ da Sua vestimenta e T de Glória significam algo eterno, devem ser rejeitadas, pois implicaria admitir a Eternidade do Universo, ao menos segundo a teoria de Platão. A criação do Trono de Glória é mencionada por nossos Sábios de uma forma estranha. Eles dizem que este Trono foi forjado antes da Criação do Universo.20 A Bíblia, no entanto, não menciona a criação dorono, salvo nas palavras de David: ªY H V H nos Céus preparou Seu Tronoº (Salmo 103:19). Mas este é um texto bastante suscetível a interpretação metafórica. No entanto, a Eter-idade do Trono é descrita expressamente: ªTu, Y H V H , para sempre sentarás em Teu Tr

ono, de geração em geraçãoº (Lamentações 5:19). Agora, se Rabi Eliézer admitisse que o Tro eterno, então a pala- vra trono expressaria um atributo de Deus e não algo criado. Como algo seria criado de um simples atributo? Mais estranho ainda é sua expressão dalu% da Sua vestimenta. Em suma, esta passagem confunde sobremaneira as noções de qual- quer pessoa inteligente e religiosa. Sou incapaz de explicála a conten- to e tão somente a recordei para que você não seja induzido a erro por isso. Uma coisa importante que Rabi Eliézer nos ensinou aqui é que a substância dos Céus é diferente daquela da Terra. Há duas substâncias diferentes: uma é descrita, pela sua posição superior, como pertencen- te a Deus: a lu ^ da Sua vestimenta, e a outra, distante do Seu esplendor eluz Ða substância terrestre, portanto Ðé descrita como a neve sob o seu Trono de Glória, o queo me levou a interpretar as palavras ªE sob Seus pés como obra de construção de safira (...)º (Êxodo 24:10) no sentido de que os nobres do Povo de Israel compreenderam, em visão Profé- tica, a natureza da matériaprima terrestre, pois, segundo Onkelos,21 o

 pronome da frase Seus p és referese ao Trono, como já lhe expliquei. Isto indica que a brancura sob o trono significa a substância terrestre. Rabi Eliézer reproduziuisto e esclareceu que existem duas matérias, uma superior e outra inferior, e quenão há substância comum entre elas. Este é um tema importante e não devemos menosprezar aopinião dos maiores Sábios de Israel a respeito, dado que se trata de um ponto

20 21

ªOs antigos rabinos enumeram sete coisas criadas antes da Criação do Mundo, entre as quais figura o Trono de Glória .º (Munk). Onkelos: tradutor e intérprete da Bíblia, do hebraico para o aramaico (NT).

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SOBRE A TEORIA

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importante na explicação da existência do Universo e um dos segredos da Lei. No Bereshit Rabá (cap. 12) se lê: ªRabi Eliézer afirma: as coisas dos Céus foram criadas nos Céus.coisas da Terra, na Terraº. Ob- serve como o Sábio concluiu, de forma engenhosa, quetodas as coisas da Terra têm uma substância comum e os Céus, e tudo o que ele con- tém, têoutra matéria, diferente daquela. Além dessas coisas prece- dentes, ele ainda explica, em seus Capítulos, a superioridade da substân- cia celeste e sua proximidade de Deuse, por outro lado, a inferioridade da substância terrestre e sua posição. Preste atenção nisso.

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A TEORIA

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CAPÍTULO 2 7

A TEORIA DE UMA FUTURA DESTRUIÇÃO DO UNIVERSO NÃO FAZ PARTE DA CRENÇA RELIGIOSA ENSINADA NA BÍBLIA Já lhe expus que a crença na Criação do Universo é, necessariamente, o fundamen de toda religião, No entanto, não consideramos, como um princípio de nossa fé, que o Universo será novamente reduzido a nada. Assumimos que o Universo continuará a existir para sempre. Talvez você pergunte: Não fo i demonstrado que tudo quanto nasce éperecíve

l e, portanto, se fo i gerado, perecerá? Este axioma, segundo o nosso ponto de vista, não se aplica neste caso. Não defendemos que o Universo pas- sou a existir do mesmo modo que as demais coisas da Natureza, como resultado das leis naturais, poistudo o que deve sua existência à ação das leis naturais é, segundo estas mesmas leis, perecível. A lei que cau- sou a existência de um ser a partir da inexistência é também a causaa sua existência transitória, assim como a inexistência anterior prova que a naturezade uma coisa não necessita de uma existência permanente. Segundo nossa teoria, ensinada na Bíblia, a existência ou inexistência das coisas depende tão somente da vontade de Deus e não das leis fixas. Todavia, disso não se deduz que Deus deve destruir o Universo após têlo criado do nada. Depende da Sua vontade. Dependerá da Sua vontade ou do decreto da Sua Sabedoria destruílo ou conserválo. Portanto, é possível que o conserve perpetuamente e lhe outorgue uma

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permanência semelhante à Dele. Você sabe que os Sábios nunca disse- ram que o Trono da Glóa perecerá, todavia admitem que é algo criado. Nenhum Profeta nem Sábio disse que o Trono da Glória será destruído ou aniquilado, ao contrário, as passagens bíblicas falam da sua perpetuidade. Acreditamos que as almas dos piedosos, que foram criadas, são imortais.22 Conforme as teorias daqueles que se prendem ao senti- do literal dos Midrashím , seus corpos gozarão também de eterna felici- dade. Esta noção é semelhante à conherença de determinadas pessoas, de que há prazeres físicos no Paraíso. Em suma, a razão nos leva à conclusão de que a destruição do Universo não é uma certeza. Esta questão deve serminada à luz das palavras dos Profetas e dos Sábios, com o intuito de verificar se eles afirmam que o mundo chegará, com certeza, ao fim ou não. O povo, em geral, acredita que este ensinamento foi dado e que todo o Mundo será destruído. Demonstrarei o

contrário. Muitas passagens na Bíblia falam da existência permanente do Universo. Aquelas passagens que, no sentido literal, indicariam a sua destruição sem dúvida alguma de- vem ser entendidas no sentido figurado, como será demonstrado. Se, no entanto, os seguidores do sentido literal da Bíblia rejeitam nosso ponto de vista e assumem que a destruição final do Universo é parte de sua fé, eles têm liberdade para assim pensar. Mas nós devemos lhes explicar que a crença na destruição não está necessariamente relacioda à crença na Criação. Nisso eles acreditarão, pois confiam no E s- critor que usou a eressão figurada, cujas palavras eles tomaram lite- ralmente. Sua fé, no final das contas, não será prejudicada por isso.

22

ªJá se tem visto, em outro lugar, que nosso autor atribui a im ortalidade som en- te às

almas dos justos, ou seja, aos que nesta vida chegaram ao grau de intelecto adquirido, enquanto as almas dos ímpios, ou daqueles que não buscaram neste mundo a perfeição pela virtude ou pela ciência, estão condenadas à destrui- ção.º (Munk). Alusão a Pro (ªA Glória de Deus é encobrir as coi- sas, e a honra do rei, esquadrinhálasº), que os angos rabinos aplicam aos segredos contidos no primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).

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CAPÍTULO

28

O ENSINAMENTO BÍBLICO ESTÁ A FAVOR DA INDESTRUTIBILIDADE DO UNIVERSO. A DOUTRINA DESALOMÃO LIVROS SAPIENCIAIS A ELE ATRIBUÍDOS COM RELAÇÃO À ETERNI- DADE DO UNIVERSO E S PERMANÊNCIA Muitos de nossos correligionários pensaram que o Rei Salomão acre- ditava n

a Eternidade do Universo. Isto é muito estranho. Como pode- mos supor que qualquer um que adote a Lei de M osbé Rabênu aceitaria aquela teoria? Se alguém suspeitasse queSalomão, neste ponto, tivesse se desviado das Leis de Moisés (Deus nos livre!), porque a maioria dos Profetas e Sábios aceitaria isso? E como não haveria oposição ou recriminação por ele sustentar esta opinião, assim como foi reprimido por se casar com mulheres estrangeiras e por outras coisas? O que me induziu a refletir sobre isto foram as afirmações dos Sábios: Eles quise- ram suprimir o livro de Kobélel (Eclesiastes), pois suas palavras podem levar ao ceticismo. Assim é, sem dúvida. Quero dizer que neste livro, se tomado literalmente, há conceitos estranhos aos ditados pela Lei, que reque- rem interpretação. Mas, no tocante à Eternidade do Universo, não há versículo algue a afirme, nem se encontra absolutamente qual- quer passagem que leve explicitamente a esta teoria. No entanto, apa- recem algumas passagens que implicam a indestrutibilidade do Uni- verso, uma doutrina verdadeira, e, pelo fato de ser ensinada n

este livro,

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algumas pessoas inferiram erroneamente que o autor acreditava na Eternidade do U

niverso, O texto referente à indestrutibilidade do Universo declara: ªGeração vem, geraçãoai e a Terra para sempre (leOlám ) permaneceº. (Eclesiastes 1:4), Aqueles que discordam de mim com respeito à distinção acima (entre a indestrutibilidade e a Eterni- dadedo Universo) são induzidos a explicar o termo lêOlám como o tempo fixado para a existência da Terra. Do mesmo modo esclarecem que as palavras de Deus, ª(...) em todos os dias da Terraº (Gênesis 8:22), significam que seus dias estão fixados. Mas eu queriasaber o que se entende por estas palavras de David: ªEstabeleceu a Terra sobre suas fundações, para que não se movesse para todo o sempre ( lêOlám vaêa) º (Salmo 104:5). Pe se a expressão Olám vaêd não significasse, tam- pouco, a perpetuidade, concluiriam que também Deus teria perm a- nência limitada, dado o que a Bíblia afirma acerca de sua perpetuida- de: ªYHVH reinará para todo o sempre (lêOlám vaêd)º (Êxodo 15:18 e Salmo 10:16). D ter em mente que Olám somente significa sempre quando combinado com ad. Não faz dif

erença se vem em se- guida, como em Olám váêd , ou na frente, como em ád Olám. As pala- vrSalomão, que somente contêm o termo lêOlám , têm menos força que as palavras de David, quusa o termo Olám vaêd. David também expôs em outras passagens a incorruptibilidade dos Céus, a perpetuidade e a imutabilidade de suas leis e de todos os seres celes- tes. Ele afirmou: ªLouva a YHVH desde os Céus (...) porque Ele orde- nou e foram criados. Eos ergueu para todo o sempre, deulhes um estatuto e não passarẠ(Salmo 148:16), o que significa que as leis ditadas por Ele jamais se alterarão, ou as fontes das propriedades dos Céus e da Terra, mencionadas pelo Salmista anteriormente, pois ele ensina: Ele ordenou eforam criados. [O Profeta] jerem ias expressase desta forma: ªAssim falou Deus: Dei o Sol para a luz dos seus dias; as Leis; a Lua e os astros para a luz da noite (.,.). Se deixarem de reger estas Leis diante de Mim, oráculo de YHVH, também a descendência de Israel cessará de ser uma nação diante de Mim por todos os dias.º (Jeremias 31:3435), Ele declara, portanto, que estes decretos nunca s

erão removidos, embora possuam um início. Prosseguindo a investigação, estas afirmações seconfirmadas em outros textos, além dos de Salomão. Ele também afirmou que estas obrasde Deus, a saber, o Universo e o que ele encerra, perdurarão com suas propriedades para sempre, apesar de terem sido criadas: ªTudo

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UNIVERSO

quanto faz Deus é para sempre, a isto nada a acrescentar, e disso nada a piorarº (Eclesiastes 3:14). Declara neste versículo que o mundo é obra de Deus e é permanente. Quando afirma ªa isto nada a acrescen- tar, e disso nada a piorarº, está incluindo a razão da perpetuidade. É como dizer que as coisas mudam para suprir aquilo que se esperaou para se livrar daquilo que é supérfluo. As obras de Deus, sendo perfei- tas, sem possibilidade de adição ou subtração, permanecem necessari- amente tais como são para sempreimpossível que qualquer coisa que existe pudesse modificálas. Ao final deste versícul

o, Salomão, como se quisesse descrever o propósito das exceções nas leis da Natureza oujustificar suas mudanças, declara: E D eusfempara que o vejam defrente. Sua vontade era afirmar: ªQue se renovem as maravilhasº. Em seguida, suas palavras são ªO que será j e o que foi, será. E Deus requisitou o que é seguidoº (Eclesiastes 3:15). Elas significam que Ele deseja a perpetuidade do Universo e que cada pequena parte está encadeada a outra pequena parte. O fato de que as obras de Deus são perfeitas e não admitem adição nem subtração já foi mencionado por Moisés, o maior dos Sábios: ªA Rocha:23 Perfsão Suas obrasº (Deuteronômio 32:4), ou seja, que todas as suas obras, a saber, as suas criaturas, são absolutamente perfei- tas, e qualquer acréscimo seria supérfluo ou desnecessário. Tudo quan- to Deus decreta para e por aquelas criaturas é inteiramente justo e conforme o ditame de Sua Sabedoria, como se explanará em alguns capítulos do presente Tratado.

23

A Rocba\ a palavra hebraica Tsúr, que significa rocha, é uma das form as utiliza- dasna Bíblia para se referir a Deus (NT).

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CAPÍTULO

29

EXPLICAÇÃO DAS FRASES BÍBLICAS QUE IMPLICAM A DES- TRUIÇÃO DOS CÉUS E DA TERRA Quando ouviuma pessoa falando uma língua incompreensível para nós, sabemos sem dúvida que ela fala, mas não sabemos o que suas palavras significam. Todavia, mais grave é perceber, nes

ta fala, vocábu- los que no idioma do falante têm determinado sentido e, em nossa lín- gua, significam exatamente o contrário. Além disso, se interpretarmos as palavras no sentido que assumem em nossa língua, imaginamos que o falante as utilizou no sentido por nós conhecido. Como um homem árabe que, ouvindo um homem hebreu falar: Atvá,24 pensa que o hebreu recusa alguma coisa, enquanto, na verdade, ele diz que está agradecido e satisfeito. Exatamente o mesmo acontece com o leitor leigo dos Profe- tas, que não entende algumas palavras em absoluto, como disse um dos Profetas: ªE será para vocês toda a Profecia como palavras de um livro seladoº (Tsaías 29:11). Em outras passagens entende o oposto ou o inverso daquilo que o Profeta quis dizer, conforme disse outro Profe- ta: ªE inverteram as palavras do Deus Vivoº (Jeremias 23:36). Leve em consideração que cada Profeta emprega sua linguagem peculiar, como

24 Avá\ se escrita com as letras hebraicas Alef, V ête Hê, significa ªdesejoº (NT).

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se fosse sua própria língua, ao par que sua revelação Profética particular lhe faz expressar assim a quem a entende. A partir desta introdução, você deve entender a linguagem metafó- rica freqüentemente utilizada por Isaías (a paz esteja com ele) e, em menor grau, por outros Profetas. Quando se refere à queda de um povo ou à destruição de uma grandenação, servese de expressões tais como: os astros caíram, os Céus se moveram , o S ol obscureceu, a Terra ficou devastada e treme, e metáforas similares. Entre os árabes sediz: Os Céus viraram sobre sua Terra, a propósito daquele que foi vítima de uma gran- de desgraça.. Quando descrevem a prosperidade de uma nação afir- mam que A. lu%do S ol e da Tua aumentou, Um novo Céu e uma nova Terra foram criados, e outras afirmações semelh

antes. Assim também os Pro- fetas, referindose à ruína de uma pessoa, nação ou estado, atbuem a Deus estados de cólera e de extrema indignação contra eles e quanto à prosperidade de uma nação, atribuemna à satisfação e ao prazer de Deus. Em relação a um estado de cóontra eles, usam as palavras: saiu, baixou, 7  ugiu, trovejou, fe^ retum bara sua vo% etc., como também: man- dou, disse, operou, fe%, e outras que exporei. Algumasvezes os Profetas usam o termo Humanidade, em vez de um povo de um. determinadolugar, cuja destruição prevêem. Por exemplo, Isaías, ao falar da destruição de Israel, afia: ªE afastou YHVH o Homemº (Isaías 6:12), O Profeta Sofonias2^ afirmou no mesmo sentido: ªExterminarei o Homem da face da Terra (...) e empunharei minha mão sobre YehudẠ(Sofonias 1:34). Saiba bem disso! Depois de falar sobre a linguagem dos Profetasem geral, demons- trarei sua exatidão e comprovação, Quando Isaías (A paz esteja sobre ele!) recebeu a missão divina de profetizar a destruição do Império Babilônico e as mortes de Senaqueribe26 e de Nabucodonosor2, (que surgiu depois da queda de Senaqueribe),

 ele descreveu do seguinte modo a queda e o fim dos seus domínios, suas derrotas e todo o mal que atinge a quem, derrotado, vai ruindo pela espada do vencedor: ªPois os astros dos Céus e seus luzeiros não darão suas luzes; escure- cerá o Sol ao nascer ea Lua não fará brilhar sua luzº (Isaías 13:10). E novamente: ªAos Céus estremecerei, e trerá a Terra desde o seu

25 26 27

Sofonias: em hebraico, Tsefánia. (NT). Senaqueribe: em hebraico, Sancheriv. (NT).Nabucodonosor :em hebraico, N evuchadnétsar. (NT).

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lugar diante da indignação de YHVH dos Exércitos, e no dia do furor de sua iraº (Isaías13:13). Não acredito que exista alguém tão estúpido, cego e preso ao sentido literal das metáforas e expressões retóricas a ponto de achar que, com a queda do Império da Babilônia, haveria uma mudança na natureza dos astros dos Céus ou na luz do Sol e da Lua, ou, ainda, que a Terra sairia do seu centro. Pois tudo isso é a descrição de uma nação que f

oi derrotada, seus habitantes sem dúvida alguma consideraram toda luz escurecida e todo doce, amargo. Toda a terra lhes pareceu por demais estreita e os Céus viraramse sobre eles. Do mesmo modo, ao começar sua descrição sobre a situação extre- ma de proração e servidão a que Israel ficaria reduzido no tempo do malvado Senaqueribe, quando este se apoderaria ªde todas as cidades fortificadas d eju d Ạ(Isaías 36:1) e o povoficaria cativo e derrotado, acumulandose sobre este todos os desastres por obra de Senaqueribe, e toda a Terra de Israel pereceria sob sua mão, Isaías expressaseassim:Medo e cova, e rede sobre ti, habitante de Israel! E será daquele que ouvir da voz do medo que cairá na cova e aquele que subir do meio da cova se enredará na rede, porque cachoeiras se abrirão do alto e tre- merão os fundamentos de Israel! Pior, piorará Israel, em migalhas se esmigalhará a terra, desmoronará Israel; cambaleante, cambaleará a terra como um bêbado (...)2S (Isaías 24:1720).

Ao final desta passagem, quando Isaías descreve como Deus puni- rá Senaqueribe, a destruição de seu domínio orgulhoso sobre Jerusa- lém e sua redução à desgraça, anuncia metafoe: ªE se rubori- zará a Lua e se envergonhará o Sol, porque reinará YHVH dos Exércitos (.. Yonatán ben U ^ iêl (A paz esteja sobre ele!) interpretou estas pala- vras acertadamente: quando ocorrer a Senaqueribe o que lhe está re- servado em Jerusalém, saberão os idólatras dos astros que é obra de Deus, ficando atônitos e confusos. ªOs adoradores da Luaº Ðafirma Ð

28

Notese nesta passagem bíblica, além do conteúdo do texto, sua forma na utilização de palavras com sonoridade próxim a, possivelm ente para reforçar a intensidade do que é dito e que buscouse reproduzir em parte na tradução: ª P á ch a d

 

vzpácbat vafách alêicha,hêv háArets! Vêhaiá hánás m ikól háp á ch a d ipól el h ápáchat, vêháolê mitóch hábót mimaróm niftachú, vairashú mosdêi Arets! Roa hitroaá háArets, p ó r hitporerá érets,ietã Arets, nôa tanúa érets kashikór (...)º (NT).

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ªse enrubescerào; os que se prostram diante do Sol se verão humilha- dos, porque o reino de Deus se revelará Em seguida, quando Isaías descreve a tranqüilidade que Israel des-frutará a partir da morte de Senaqueribe, a fertilidade e o cultivo de suas terras, a prosperidade do reino sob Ezequias, afirma por metáfo- ras que a luz do Sol e da Lua ficarão mais fortes, porque assim como, para o vencido, a luz desapareceria,substituída pela escuridão, da mes- ma forma ela aumentaria para o vencedor. Sempre que sobrevem, a alguma pessoa, uma grande desgraça, seus olhos se obscurecem e de- saparece o brilho de sua vista, porque o espírito da visão, devido à abun- dância de vapores, ao mesmo tempo perturbase, debilitase e se reduz , pela grande angústia e tristeza da alma. Ao contrário, na alegria, ao dilatarse a alma, o espírito tornase mais claro, o homem parece sentir a luz mais luminosa do que antes. Depois de expli

car ªPorque o povo em Sion, morador dejerusalém , chorar não chorará (...)º (Isaías 30:19)acrescenta ao final da passagem: ªE será a luz da Lua como a luz do Sol; e a luz doSol será sétupla como a luz de sete dias, no dia em que fechará Y H V H a ferida de seu povo e curará a chaga de seus açoitesº (Isaías 30:1926). A sua intenção é afirmar que ltará o povo de sua prostração, causada pelo malvado Senaqueribe. Quanto à expressão como a lu ^ de sete dias, os comentaristas explicaram que significa a abun- dância, porque, entre os hebreus, o número sete denota multiplicidade. Na minha opinião, ele faz referência aos sete dias da dedicação ao Templo, realizada nos tempos de Salomão, pois nunca o país desfru- tou de tanta prosperidade e júbilo geral como naqueles dias. Por isso se diz que o auge e a felicidade de Israel serão como naqueles dias. Quando descreve a ruína do maldoso Edom, declara: ªSeus mortos ficarão abandonados, seus cadáveres exalarão um odor fétido; e derre- terão montanhas pelo sangue deles; e se dissolverão todas as milícias dos Céus; e os Céus serão enrolados como um livro; e todo o seu exército ca

irá como caem as folhas da videira e como as folhas da figueira. Porque se encharcou nos Céus a Minha espada, eis que desce- rá sobre Edom (...)º (Isaías 34:35). Aqueles que têm olhos para ver devem reparar se há, nesses tex- tos, algo obscuro ou que induza a pensar que esteja descrevendo al- gum fenômeno que realmente acontecerá nos Céus, algo que não seja metáfora destinada a fazer entender que seu reino será aniquilado, quelhes será retirada a proteção divina e que a sua boa sorte e a dignidade de seus maiorais se desvanecerão com presteza e rapidez. É como se

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comparasse as pessoas aos astros que, por serem fixos, altos e afasta- dos das mudanças, cairão rapidamente, como cai a folha da videira, etc. Está muitíssimo claro e nem precisa se mencionar e muito menos se estender a respeito disso em um Tratado como este. Mas a necessidade nos compeliu a isso, porque o povo e até pessoas tão reputadas quanto eminentes explicam este versículo sem refletir sobre o que o antece- de, sobre o que se segue a ele e nem sobre o seu contexto Ðcomo se fosse um relato por meio do qual a Bíblia quisesse nos anunciar os últimos dias dos Céus, assim como

 nos relatou as suas origens. Deste modo, ao prenunciar Isaías a Israel a destruição de Senaqueri- be, dos povos e reis que com ele se relacionavam, como é sabido, e a vitória com o auxílio de Deus e de ninguém mais, declara metaforica- mente: ªVeja como estes Céus se desvanecem e morrem aqueles que o habitam, mas vocês recebem ajudaº. E como se dissesse que aqueles que se espalharam por toda a Terra e que, hiperbolicamente, eram fir- mes como os Céus, perecerão rapidamente, diluirseão como a fumaça e seus monumentos visíveis, tão fkmes quanto o solo, desaparecerão do mesmo modo que uma roupagasta. No início desta passagem afir- mou: ªPorque se compadecerá YHVH de Sion, se compadecerá de to- das as suas ruínas (...)º; ªPrestem atenção em Mim, meu povo (...)º; ªPróximjustiça se aproxima, saiu Minha salvação (...)º; ªLe- vantem aos Céus vossos olhos e olhema a terra embaixo! Porque os Céus se dissiparão como fumaça, a terra se consumirá como uma roupa gasta e seus habitantes como as moscas morrerão Ðe Minha salvação para todo o sempre será e Minha justiça não terá fim.º (Isaías 51:36). Quando relata a restauração do

de Israel, sua estabilidade e permanência, afirma que Deus renovará Céus e Terra porque, em sua linguagem, referese sempre ao reino de um monarca, como se fosse um mundo especialmente dele, ou seja, Céus e Terra. E ao iniciar as conso- lações declarando: ªEu, Eu sou o Vosso Consoladorº (Isaías 51:12), em seguida expressase assim: ªEu colocarei Minhas palavras em toa boca e à sombra de minha mão te esconderei, ao estender os Céus e fundar a Terra, e dizer a Sion: Tu és Meu povo!º (Isaías 51:16). Para fixar a perma- nência da realeza de Israel e seu afastamento dos famosos potentados, afirma: ªQue os montes sejam retiradosº (Isaías 54:10). Com respeito à perpetuidade do Reino do Messias e à indestrutibilidade da monarquia de Israel, acrescenta: ªNão se porá mais o Teu Sol (...)º (Isaías 60:20). Em suma, para quem compreende o sentido destas palavras, Isaías emprega constantemente metáforas em sua linguagem. Do mesmo

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modo, ao descobrir as circunstâncias e pormenores do Exílio, bem como a restauração do p

oderio e o desaparecimento de toda dor, exprimese por metáforas: ªEu criarei outros Céus e outra Terra; os amais cairão em. esquecimento e sua memória será apagadaº. Depoisexplica, ao longo de sua fala: ªEntendo por `Eu criarei' a instauração, para vocês, de umta- do de gozo e de alegria constantes, no lugar desta dor e aflição, e não se recordarãomais dos pesares anterioresº. Ao abordar esta passagem, note a ordenação das idéias e compre- enda os versículos correspondentes: ªDa misericórdia de YHVH lem- brarei, os louvores de YHVH (...)º (Isaías 63:7). Em seguida, primeiro descreve as bondades de Deus (Exaltado SejaS) para conosco, nestes termos: ªE os resgatou e os apoiou por todos os dias da Antiguidade (..,)º (Isaías 63:9), e depois relata nossa rebelião: ªMas eles se rebela- ram e entristeceram seu Santo Espírito (.,.)º (Isaías 63:10). Mais adian- te, conta como o inimigo nos subjugou: ª...nossos inimigos têm humi- lhado Teu Santuário (...)º (Isaías 63:18). A partir disto, intercede por nós pedindo: ªNão te irrites, YHVH, demais

(...)º (Isaías 64:8), Lem- brase logo como merecemos o acúmulo de males sobrevindos por não darmos ouvidos à verdade: ªDeixeime consultar pelos que não me interrogavam (...)º (Isaías 65:1) e, em seguida, Deus promete o perdão e misericórdia nestes termos: ªAssim disse YHVH: Como quando há sumo em um cacho (...)º (Isaías 65:8). A seguir, ameaça com ocastigo àqueles que não foram oprimidos: ªEis aqui o que meus servos comerão, e vós tereis fome (...)º (Isaías 65:13). Acrescenta, finalmente, que as crenças desta nação se retifica- rão. Ela será objeto de bênção sobre a Terra e escapará das vicissitudes passadas: ªE pus servos será chamado por outro nome: Todo aquele que abençoar na Terra, será abençoado por Deus ÐAmen;29 e o que jurar na Terra deverá jurar por Deus Amen; pois serão esque- cidas as primeiras angústias, estas sumirão dos meus olhos; porque aqui vou criarnovos Céus e uma nova Terra, e já não recordará o passado nem virá mais ao coração, senãoregozijará ern gozo e alegria eterna do que Eu vou criar, porque é aqui que vou criar, para Jerusalém, alegria e para meu povo, gozo. E será Jerusalém minha alegria (...

)º (Isaías 65:1519).

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A mem em tradução literal, significa ªacreditareiº. Também é considerado um acrônimo da exsão hebraica JElM élech tieem á n Ð E m Deus A creditaremos (NT).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Aqui você tem a elucidação de toda esta matéria, porque, logo em seguida, ele afirma: ªE aqui que vou criar novos Céus e uma nova Terra; e esclarece imediatamente: Porque é aqui que vou criar, para Jerusalém, alegria e para meu povo, gozoº. Após este preâmbulo,acrescenta: as- sim como estas circunstâncias da fé e da alegria inerente, que prometi que se difundirão sobre a terra, subsistirão para sempre porque a fé em Deus e a alegria que disto advém são duas circunstâncias que jamais cessam ou se alteram naqueles que a conseguiram Ð também a sua des- cendência e seu nome perdurarão. A determinação é a

nte: ªPor- que assim como os Céus novos e a Terra nova que Eu criarei permane- cerão diante de Mim Ðdisse YHVH Ð assim permanecerão suas sementes e seus nomesº (Isaías 66:22). Porque ocorre, às vezes, que a estirpe continua, mas o nome se extingue. Assim, você encontra numerosos povos que indubitavelmente descendem da semente da Pérsia ou da Grécia e, todavia, não são conhecidos por um nome especial, pois foram absorvidos por outra nação. A meu ver, há aí uma alusão à perpetuida- de da Lei, graças à qual nós temos umcial. Como estas metáforas são freqüentes em Isaías, tive que examinar todas, porém, elasocorrem do mesmo modo nos textos de outros Profetas: Jeremias, ao descrever a destruição de Jerusalém, por causa das pre- varicações de nossos antepassados, afirma: ªVi ara, e eis que era vazio e confusão (.,.)º (Jeremias 4:23). E^equiel, narrando a ruínado reino do Egito e a queda do Faraó por obra de Nabucodonosor, declara: ªAo apagartua luz, velarei os Céus e obscurecerei seus astros. Cobriremos o Sol com nuvens e a Lua não resplandecerá; todos os astros que brilham nos Céus, irei vestilos de luto

 por ti, e cobrirei de trevas tua terra, disse o Senhor, YH VH º (Ezequiel 32:78). Joel, filho de Petuel

 

 referindose à praga de gafanhotos que sobreveio em seu tempo, assim se expressa: ªDiante deles tremerá a terra, trovejarão os Céus. O Sol e a Lua se obscurecerão, e os astros extinguirão seu brilho!º (Joel 2:10). A mós, em seu relato da destruição de Samária, afirma: ªTrarei o Sol ao MeioDia, Escurecerei a Terra em pleno dia e Inverterei suas solenidades (...)º (Amós 8:910). Miquéias, a propósito da destruição de Samária, recorre às conheci- das expressões retóricas: `Tois eis que YHVH sairálugar, descerá e caminhará sobre os cumes da Terra, e se fundirão os montes (...)º (Miquéias 1:34).

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PERPLEXOS

A geu declara, a respeito do aniquilamento do reino dos Persas e dos Medos: ªFarei tremer os Céus e a terra e o mar e o seco, e estremecerei todas as nações (...)º (Ageu2:67). Os Salmos de David descrevem a expedição de Joáb contra Arám, a debilidade anterior e o rebaixamento desta nação, e, ainda, como os israelitas foram derrotados e postos em fuga. Para que agora saiam vitoriosos, ora nestes termos: ªFizeste estremecer a terra e a fendeste; restaura esta brecha antes que desmoroneº (Salmos 60:4). Analo- gamente, para nos avisar que não devemos temer quando os povos são destruídos atésua aniquilação, posto que nosso apoio está em Sua ajuda (Exaltado seja!), e não em nossa luta e em nossa força, afirma: ªPovo salvo por YHVHº (Deuteronômio 33:29) e proclama: ªP

or isso nós temos que temer [a Deus], ainda que trema a terra, ainda que se movamos montes na enseada do marº (Salmo 46:3). Na referência à submersão dos egípcios, encontramos: ªAsa águas Te perceberam,, ó Deus, elas Te viram e tremeram. Até os abismos fremiram (...) Propagouse o som do Teu trovão, relâmpagos ilum i- naram o mundo, abalousee estremeceu a terraº (Salmos 77:1719); ªAcaso, YHVH, acendese Tua ira contra os rios?º (Habacuc 3:8); ªde Suas narinas subiu uma fumaça (...)º (Salmos 18:9). Igualmenteno cântico de Débora há a referência: ªA terra tremeu (...)º (Juizes 5:4). Como estas, háas passagens. Compare aquelas de que não me lembrei com estas que recordei. Com respeito às palavras de Joel: ªE farei prodígios nos Céus e na Terra: sangue e fogo e colunas de fumaça! E o Sol se converterá em trevas e a Lua em sangue, antes que venha ogrande e terrível dia de YHVH. E todo aquele que invocar o nome de YHVH será salvo;por- que no monte de Sion e em jerusalém será a Salvação (...)º (Joel 3:35), eu estaria ilinado a acreditar que se referem ao desastre de Sena- queribe diante de Jerusalém o

u, se isto não lhe agrada, talvez à des- crição de G og 1 0 diante de Jerusalém , nos diaso Rei M essias, ainda que

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Gog. nome de um suposto reino, ao lado de outro ÐM agog Ð mencionado muitas vezes nos capítulos 38 e 39 do Livro de Ezequiel. Segundo alguns escri- tores, Gog é uma designação geral utilizada por Ezequiel para designar os po- vos inim igos de Israel. Outros acreditam que Gog teria sido o rei de Lídia, chamado de Gig pelos gregos ou de Gugu em inscrições assírias (fonte: site http://www.newadvent.org/cathen/06628a.htm ,em 13/11/2002).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

esta passagem cite unicamente a grande mortandade, a devastação do fogo e o eclipsede todos os astros. Talvez você questione por que se chama o dia do desastre de Senaqueribe de o grande e terrível dia de YHVH, segundo nossa explicação? Você sabe que qualquer dia em que aconte- ça uma vitória ou uma grande calamidade é chamado de o grandee terrível dia de YHVH. Assim, Joel, referindose ao dia em que os gafa- nhotos sobrevieram contra eles, declarou: ªGrande é o dia de YHVH, sobremaneira terrível; quem poderá suportálo?º (Joel 2:11). O nosso objetivo está claro. A destruição deste mundo ou a

dança do seu estado amai, ou de qualquer outro,, carece de fundamen- to nos textos proféticos ou dos Sábios, pois ainda que estes afirmem que o mundo durará seis mil anos e que será devastado durante um milênio, isso não significa que todo ser existente retornará ao nada, já que as palavras e durante um milênio ficará devastado indicam, por si mes- mas, que o tempo perdura. Além disso, tratase de uma opinião individu- al e umamaneira pessoal de ver as coisas. O que você encontrará, constantemente, como o princípio básico de que todos os Sábios da M ishnát do Talmud deduzem seus argumentos, é que a expressão: ªNão se faz nada de novo sob o Solº (Eclesiastes 1:9) significa que não será pduzida renovação alguma, de qualquer tipo que seja, nem por causa alguma . Neste extremo, até quem tome as palavras Céus novos e Terra nova no sentido erroneamente admitido, reconhece, não obstante, que mesmo os Céus e a Terra que serão criados nofuturo, j á estão lá e subsistem , pois está dito: subsistem diante de Mim. Não subsistirão , masim subsistem , e assim se deduz o argumento destas palavras: Não se fa% nada de no

vo sob o Sol. Não pense que isto contradiz o que expliquei. Ao contrário, pois é possível que se queira sugerir que o estado físico necessário para produzir as circunstâncias prometidas é subjacente aos Seis Dias da Criação, o que é verdade. Se eu lhe disse quenada alterará sua natureza de maneira que per- dure neste estado, foi unicamente como precaução com relação aos milagres, pois ainda que a vara tenha se transformado em serpente, a água em sangue e a mão pura e honrada em esbranquiçada, sem inter- venção de causnatural, estes fenômenos e outros semelhantes não foram duradouros, nem implicaram outra natureza, mas sim que, como afirmam os Sábios (Benditas sejam suas memórias!):0 Mundo anda como de costume. Esta é minha opinião e o que entendo como aquilo em que se deve acreditar. Certamente os Sábios exprimiramse, no tocante aos milagres,em termos surpreendentes, em uma passagem que você

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

poderá ler no Bereshit Rabá e no Midrásh Kohélet?x A idéia é de que os milagres se fundame

am, de certo modo, na natureza, pois afirmam que, quando Deus (Exaltado Seja!) criou este mundo e pôs nele estas disposições físicas, nelas imprimiu também a possibilidade de todos os milagres que ocorrerão no momento certo. A marca do Profeta con- siste, pois, em antecipar o que Deus lhe revelou quanto ao momento dos milagres, marcado em sua natureza desde as suas origens,. Sendo assim, isso realmente demonstra a grandeza de visão do au- tor desta passagem, que achava difícil a possibilidade de se transfor- mar uma natureza física a partir da obra da Criação ou de advir outra aspiração, depois de estabelecida a natureza, com sua chancela particu- lar. Dirseia que considerava, por exemplo, que na natureza da água se fundamentava a sua continuidade e fluidez, sempre de cima para bai- xo, exceto quando os egípcios foram submersos. Somente neste caso, então, a água deveria se dividir. Já lhe adverti a respeito doverdadeiro sentido desta passagem, e que tudo isso é para evitar a necessidade de

admitir a inovação de qualquer coisa. A passagem tem o seguinte teor: Rabi Yonatán disse: 0 Santíssimo, bendito seja, impôs condições ao m ar para que se rendesse diante dosisraelitas, conforme está escrito: ªao despontar o dia, o mar recobrou seu estado ordi- nário.º (Exodo 14:27). Rabi Jeremias, filho de Eleazar, afirmou: O Santíssimo fixoucondições, não somente ao mar, mas sim a tudo o que foi criado nos Seis Dias da Criação, segundo se indica: ªMinhas mãos estenderam os Céus, e Eu mando em todo o seu exército (Isaías 45:12)º. Eu ordenei ao mar para se dividir; ao fogo para não causar danos a Ananias, Misael e Azarias; aos leões para não machucarem Daniel; ao peixe para vomitar Jonasº. E analogamente nos demais casos. O assunto, pois, fica esclarecido e a doutrina elucidada, ou seja, con- cordamos parcialmente com a teoria de Aristóteles, admitindo que o Universo é eterno e que perdurará com a natureza que Ele (Exaltado Seja!) queira, e nada se modificará de forma alguma, salvo em detalhes ou talvez por um milagre, ainda que Ele (Exaltado Seja!) tenha o poder de transformar totalmente

 o Universo, reduzilo a nada ou, ainda, de

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M idrásh Kohélet. Comentário de Eclesiastes (NT).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

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eliminar algumas destas disposições naturais. No entanto, o universo teve um início enada existia no Início, senão Deus. Sua Sabedoria exigiu que desse existência à Criação noomento de sua realização e que aquilo que foi criado não fosse aniquilado, nem sua natureza modifica- da, exceto nestes detalhes que a Ele cabe mudar, porém, outros porme-nores nos são desconhecidos e pertencem ao futuro. Esta é a nossa consideração e o princíp

io fundamental da nossa Lei. Aristóteles, por outro lado, estima que, assim como é permanente e imperecível, o Uni- verso é também eterno e não foi criado. Pois bem, já disses que isso somente pode ser classificado segundo a h e i da Necessidade e a necessi- dade implica uma heresia com relação a Deus, conforme expusemos. Neste ponto de nossa consideração, inseriremos um capítulo com diversas observações atinentes aos textos do M aassê Bereshít (0 Relato da Criação), já que o primeiro objetivo do presente Tratado era esclare- cer o que fosse possível sobre o Relato da Criação e o Relato da Carruagem Divina. Mas anteciparemos duas proposições gerais. Uma delas é a seguinte: tudo quanto élembrado no Relato da Criação, na Torá, não deve ser interpretado em seu sentido literal, como o povo imagina, posto que, neste caso, os homens de ciência não seriam tão reservados a respeito, nem os Sábios teriam recomendado tanto sigilo e circunspeção diante do povo, já que estes textos, ao pé da letra, induzem a uma grande confusão de idéias e acarretam opiniões ruins sobre a Lei de Deus ou a clara negação e heresia acerca dos

fundamen- tos da Lei. O certo é evitar examinálos através da simples imaginação, vazia deiência, e proceder como estes pobres predicadores e comen- taristas que pensam que a ciência consiste no conhecimento semântico das palavras, convencidos de que a perfeição se baseia na verbosidade e prolixidade da expressão. O certo é meditar com determinada inteli- gência, depois de se impor o estudo das ciências demonstrativas e a investigação dos mistérios proféticos. Não obstante, ninguém que te- nha alcançado esta matériaulgála, como expus reiteradamente em meu Comentário àM ishná. Proclamase expressamente: ªDesde o princípio do livro (Gênesis) até aqui, a honra de Deus encobrirá a coisd'?2 Foiito isso (no Midrásh) ao final do relato do Sexto Dia.

32 Alusão a Provérbios 25:2: ªA Glória de Deus é encobrir as coisas, e a honra do

rei, esquadrinhálasº, que os antigos rabinos aplicam aos mistérios contidos no primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Fica, pois, esclarecido o que dissemos. Todavia, como o preceito divino obriga,

necessariamente, àquele que tenha logrado alguma per- feição, a difundila entre os demais, como explanaremos nos capítulos referentes à Profecia, todo Sábio um tanto conhecedor destes mistéri- os, seja por sua própria especulação, seja pela doutrinação de algum me, deverá dizer algo a respeito. Mas, como está proibido de ser explícito, deve se limitar a meras alusões. Estas, assim como algumas observações e indicações, encontramse nas ponderações de nossos Mestres (Benditas sejam suas memórias!), embora mescladas com as palavras de outros e com temas diferentes. Por este motivo, você per- ceberá que, em se tratando destes mistérios, sempre me limito ao que constitui o fundo básico da questão, reservando o resto àqueles que sejam dignos do que lhes seja ensinado. A segunda proposição é: os Profetas, conforme temos indicado, ser- vemse, em suas locuções, deermos com múltiplos significados e vocábulos que não correspondem, em sua intenção, a seusentido pri- mário, mas são empregados por alguma relação semântica. Assim, por exemplo, a

xpressão M akêlShakêd (bastão de amêndoa/perseverante) dever ser interpretada com o sentido de perseverante, como se pode deduzir pela sua semelhança com Shokéd aní (sou perseverante) (...), conforme explicarei, nos capítulos referentes à Profecia, no Relato da Carruagem Divina, o termo Chashmál33 (Ezequiel 1:4); Reguei E gu el (pata de bezerro) (Ezequiel 1:7); a declaração de Zacarias (6:1): ªOs montes eram de cobreº, e outras expressões similares. Com base nessas duas proposições, segue o capítulo prometido.

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Chashmál. em hebraico moderno, significa eletricidade (NT).

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SOBRE

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ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

CAPÍTULO

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INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DE GÊNESIS 14 Você deve considerar a diferença existente entre otermos Techilá (o princípio) e Bereshít (No.início). A expressão o início é empregada parsignar sua função no ser ao qual se refere o conjuntamente com ele, ainda que não lhe

preceda no tempo. Assim, por exemplo, afirmase que o coração é o início do animal Ðo elemento é o iníáo daquilo que é a base. O termo o princípio também se aplica, às vezes, nestapção, em outras designa simplesmente a anterioridade no tempo, sem que se pressuponha que seja a causa do que vem depois. Dizemos, por exem- plo, que Fulano foi em princípio quem habitou tal casa e, depois, Cicrano, mas não se diz que Fulano é a causade Cicrano habitar a casa. O termo que, em hebraico, indica o princípio é Techilá, como em: ªEm princípio (Techilái) fala de YHVH a Oséiasº (Oséias 1:2); e o que desig- na o in, derivado de Rósh (cabeça), que é o iníáo do animal, por sua posição. Pois bem, o Universfoi criado por algo que o precedesse no tempo, dado que o tempo pertence ao conjunto das coisas criadas, por isso se afirmou: BeReshít (Gênesis 1:1), em que a partícula Be tem o sentido de no. A verdadeira tradução deste versículo é, portan- to: No inícioriou Deus os Superiores (Céus) e os Inferiores (Terra) cujo significado está de acordo com a Criação do Mundo. Quanto ao que

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

você encontrará escrito, por certos Sábios, com relação à existência do tempo antes da Cri

Universo, verá que é extremamente obscu- ro, Esta seria, conforme já lhe expus, a opiniãode Aristóteles, o qual pensa que não cabe conceber um início para o tempo, o que é incon-gruente. Sem dúvida, o que os induziu a professar essa teoria foi en- contrar, no texto bíblico, os termos Dia Primeiro (Gênesis 1:5) e Dia Segundo (Gênesis 1:8). Considerar dessa forma é aterse ao sentido lite- ral, desprezando o fato de que, se aindanão existia esfera que girasse, nem Sol, com o que se poderia medir o Primeiro Dia ? A Bíblia usa o termo Primeiro Dia , concluise então, diz Rabi Yehudá ben Shimón, que a divisão do tempo já existia anteriormente. Rabi Abahu deduz que Deus, HáKadósh BarúchHú (O Santíssimo, bendito seja) havia criado e destruído mundos.34 Esta segunda opinião é, todavia, mais inaceitável do que a primeira. Você compreenderá que o difícil é conceber a exis- tência do tempo antes da existência do Sol, mas já lhe será esclarecida a solução dlo que, para eles, era nebuloso, a menos que (por Deus!) quisessem sustentar que

 a divisão do tempo existiu antes da criação do Sol. Mas isso eqüivaleria a admitir a Eternidade do Universo, coisa a que todo aquele que respeita a Lei deve ser contra. Esta passagem é, na minha opinião, semelhante à de Rabi Eliezer: De onde foram criados os Céus (...)? Em suma, não se deve levar em conta opiniões particulares em tais referências. Já lhe ensinei que o princípio fundamental de toda a Bíblia é que Deus criou oUniverso do nada; que o tempo não preexistiu, mas foi criado, pois depende do movimento da esfera celeste; e a própria esfera também foi criada. Convém saber, deste modo, com respeito à partícula ét em é t háShamáim vêét háArets Ъ [com] os Céus e [com] a1), que os Sábios, em numerosas passagens, declaram que tem a acepção de com , significando assim que Ele criou, junto e com os Céus, tudo o que neles há e com a Terra, tudo quanto está contido nela. Você já conhece a afirmação explícita de que os Céus e a Teroram cria- dos ao mesmo tempo, conforme o texto: ªChameios, e logo aparece- ramº (Isaías48:13). Assim, pois, tudo foi criado simultaneamente e, depois, as coisas foram

se diferenciando gradualmente umas das outras.

34

Segundo alguns talmudistas (baseandose em B ereshít R abá 83), cada mundo tem uma duração de seis mil anos, seguidos de um sétimo milênio de Caos, depois do qual, criaseum novo mundo (Maeso).

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CompararamNo ao lavrador que semeou a terra ao mesmo tempo com diversas sementes, das quais umas brotaram ao cabo de um dia; outras, de dois; e ainda outras, de três, apesar de se ter realizado a sementeira ao mesmo tempo. De acordo com esta concepção, indubi- tavelmente verdadeira, desvanecese a dúvida que induziu o Rabi Yehudá ben Shimon à sua afirmação, já que lhe era difícil compreender como foram mensurados o

imeiro, o Segundo e o Terceiro Dias. Os Sá- bios formularam, no Bereshit Rabá , um juízo explícito acerca da L,u% criada no Primeiro Dia, segundo a Torá: ªOs astros foram criados no Primeiro Dia, mas não foram suspensos até o Quarto Diaº. Fica, por- tanto, explicada a intenção desta explanação. Entre outras coisas necessárias, devese saber que éretsterra) é um termo de múltiplos significados. Com sentido mais amplo, é emprega- do na forma A rets e, com sentido particular, na forma Erets. Aplicase comumente A rets Ð Terra Ða tudo o que há sob a esfera lunar, a saber: os quatro elementos, e, especialmente, o último deles, érets Ðterra. Demonstrao este texto: ªE a Terra {Arets) estavaconfusa e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, mas o espírito de Deus (...)º (Gênesis 1:2). Chamase a tudo de Terra e, em seguida, acrescentase: ªE ao seco chamou Deus terra {érets)º (Gênesis 1:10). Este, entre os segredos, é um grande segredo, pois sempre que você encontrar E Deus chamou a isto assim, o objetivo é separar determinada idéia de outra, geral, quan- do o termo é comum a ambas. Por isso interpretei o

 primeiro versículo como: No iníáo criou Deus os Superiores e os Inferiores, assim o vocábulo érets indica pela primeira vez o mundo inferior, ou seja, um dos quatro elementos. Tanto que ao afirmar: E ao seco Deus chamou terra, esta ten a é somente terra. Isso fica, portanto, claro. Daquilo que é necessário conhecer os quatro elementos afirma- mos que o termo érets é o primeiro mencionado depois dos Céus. Lem- brando:ets (terra), máim (água), rúach (sopro) e chóshech (trevas/fogo). Quanto a este último termo, designa o fogo fundamental, não se engane. Assim, depois de se declarar: ªE do meio do fogo tens ouvido suas palavrasº (Deuteronômio 4:36), acrescentase: ªQuando ouvistes sua voz em meio às trevasº (Deuteronômio 5:2023). E em outro lugar: ªToda sorte de trevas lhe está reservada, lhe devorará um fogo não aceso (pelo homem)º (Jó 20:26). A designação para fogo fundamental, utilizandose este termo, referese ao que não é luminoso, mas simplesmente transpa- rente. Se fosse luminoso, veríamos todo o ar flamejando à noite.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Sua enumeração corresponde às suas posições naturais: a terra, so- bre ela, a água; o ar,

o à água; e o fogo, por cima do ar, pois a locali- zação do ar ªsobre a superfície das águis 1:2) se dá porque as trevas, situadas sobre a fa ce do abismo (ibid .), colocamse indubitavel- mente acima do ar. Quanto à razão da expressão R úach Elohím (o So- pro/Eo de Deus), é certo se afirmar: m erachéfet (movimentase), e o movimento é sempre atribuído a Deus. Por isso: ªVeio um sopro de YH VH º (Números 11:31); ªEnviaste teu soproº (o 15:10); ªE YHVH fez dar volta ao soproº (Êxodo 10:19); além de muitas outras passagens. A primeira vez em que se emprega a palavra chóshech para indicar escuridão (Gênesis1:2) é diferente da segunda, o que se explica e se diferencia na afirmação: ªE às trevas chamou noiteº (Gênesis 1:5), conforme expusemos. Assim, isto também fica esclarecido. Convém então saber que, nas palavras ªseparando águas de águas (...)º (Gênesis 1:7), não seença na localização, seja acima ou abai- xo, e a sua natureza é a mesma. No entanto, o significado é de que elas se dissociaram umas das outras por meio de uma diferenciação físi

ca, ou seja, pela forma. Daquilo que primeiramente havia sido designado com o nome de águas, fezse uma coisa à parte, graças à forma física que a revestiu, e as outras áas foram dotadas de formas distintas, que são as águas autênticas, das quais o texto afirma: ªE à agregação das águas chamou maresº (Gênesis 1:10). Assim, fica claro que as águimeiramente designadas pela expressão ªsobre a superfície das águasº (Gênesis 1:2), não sãos mares, mas sim a parte situada sob o ar, que se distinguiu por meio de determinada forma; e as outras são cha- madas de águas simples. Logo, a passagem ªEstabeleceuseparação entre as águas que estavam debaixo do firmamento (...)º (Gênesis 1:7) é análogaa: ªE Deus separou a luz das trevasº (Gênesis 1:4), em que se estabelece a distinção de forma. O próprio firmamento foi formado de água, segundo dizem os Sábios: ªa gota (ou grupo de gotas) do meio se consolidouº. A expres- são ªChamou Deus ao firmamento Céusº(Gênesis), conforme lhe expliquei, destaca o uso associado do nome, e não se trata dos mesmos Céus anteriormente citados na frase: ªos Céus e a Terraº (Gênesis 1:1). Não é assim co

 denominamos, o que é corroborado pelas pala- vras ªsob o firmamento dos Céusº (Gênesis 1:), dando a entender que firmamento não se identifica com Céus. Por homonímia, os Céus também são chamados de firmamento, como em: ªE os colocou no fir- mamento dos Céusº (Gênesis7).

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

1

87

Está claro, portanto, a partir desse versículo, que todos os astros, o Sol e a Lua não estão sobre a superfície das esferas, como acredita o povo, mas estão fixos dentro das esferas, e não há vazio no Universo, pois foi declarado: ª no firmamento dos Céusº, e nã

obre o firma- mento dos Céus. Portanto, está manifesto que, no início, existiu uma matéria comum chamada água, que posteriormente se distinguiu em suas três formas: uma constituiu os mares, outra, ofirmamento e a terceira se colocou sobre este, totalmente fora da Terra (os Céus). Neste assunto, então, seguiuse um método diferente para indicar alguns segredos: designar pelo nome de água o situado sobre o firmamento, não sendo esta água defato, como disseram os Sábios (Benditas sejam suas memórias!): ªQuatro entraram no Paraíso (...)º. Rabi Akiva afirmou: ªQuando virem pedras de már- more puro n digam: Agua! Agua!, porque está escrito: Não habitará em minha casa o que cometa fraude' (Salmo 101:7). Reflita, pois, se você é dos que pensam, o que se pode entender desta passagem, revelando todo o seu conteúdo, se a examinou com toda a exatidão e compreen- deu todo o demonstrado (por Aristóteles) no livro Sobre Meteorologia, e preste atenção em tudo o que foi dito sobre este assunto. Você também deve saber e considerara razão pela qual não se declarou, a respeito do Segundo Dia, que estava bom. Você já co

nhece a esse respeito o afirmado pelos Sábios (Benditas sejam suas memó- rias!), segundo o método interpretativo do Derásh. O mais provável é que a cnação das águas não havia sncluída. Na minha opinião, tam- bém, a razão está perfeitamente clara: sempre que se mencia algu- ma das obras da Criação, cuja existência se prolonga, perpetuase e chega ao seu estado definitivo, afirmase ªque estava bom. Mas o firmamento e o que se colocaacima dele, denominados de águas, es- tão, como você vê, envoltos em obscuridade. Com efeito, caso se tome ao pé da letra e de um modo superficial, é coisa inexistente, posto que não há nada entre nós e os Céus inferiores senão os elementos, nem água sobre o ar. Io se aplica necessariamente a quem também imagi- na que este firmamento e o que há sobre ele estão por cima dos Céus, pois, neste caso, seria ainda mais impossível e inexeqüível. Por outro lado, o significado desta afirmação fica extremamente obscuro, caso seinterprete em seu sentido esotérico e segundo o que realmente se quis expressar, porque a intenção era de que isto fosse parte dos segre- dos selados, inacessíveis ao povo. Como, pois, poderia se afirmar so- bre isso que estava bom ? O sentido destas palavras é que o objeto em

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

questão é de utilidade óbvia e evidente para a existência e prolonga- mento deste Universo

. Mas se aquilo cujo sentido genuíno deve per- manecer encoberto e sua essência não se fazer visível tal como é, qual a utilidade de se contar aos homens? Só para poder declarar que está bom ? Devo lhe dar ainda outra explicação: como isto constitui parte importante da Criação, não é com relação à subsistência do Universo que não se diz que estavas sim por uma necessidade compulsó- ria de que a terra ficasse descoberta. Entenda isso! Preste atenção, pois, segundo a explicação formulada pelos Sábios, Deus só fez brotara terra as ervas e as árvores depois de ter feito chover sobre ela, de maneira que a frase ªE vapor aquoso que subiu da terraº (Gênesis 2:6) alude a uma circunstância anterior, que precedeu a ordem: ªFaça brotar da terra erva verdeº (Gênesis 1:11). Por estemo- tivo, a tradução de Onqelos ªE um vapor havia surgido da terraº resul- ta do contexto:toda erva do campo, antes que tivesse na terraº (Gênesis 2:5). Está, portanto, bem explícito. Você já sabe, leitor, que

 

as causas principais da geração e corrupção , depois das

vidades das esferas celestes,35 são a luz e as trevas, devido ao calor e ao frio que provocam. Em virtude do movimento da esfera celeste, os elementos se mesclame sua combinação varia por obra da luz e das trevas. A resultante disso consiste deduas exalações, a primeira é a causa geradora de todos os fenômenos superiores, entre eles a chu- va e os minerais; e a segunda gera respectivamente a composição dos vegetais, dos animais e, finalmente, do ser humano. As trevas são pro- priedade natural detodos os seres da Terra, e a luz lhes vem como um acidente, de uma causa externa. Você não percebe que, quando falta a luz, tudo fica imobilizado? O texto bíblico, no relato da Criação, segue a mesma ordem, sem se afastar um ponto. Outrossim, é preciso saber, como está escrito, que: Todas as obras da Criaçãoforam criadas em seu tamanhopróprio, foram criadas em sua inteligênáa, foram criadas em sua bele^a^ ou seja, tudoisso foi concebido em sua perfeição quantitativa, com sua forma perfeita e suas mais belas quali- dades. E o que indica o termo lêtsivionám (na beleza deles), da expres- são

: ªA mais bela de todas as terrasº (Ezequiel 20:6). Fique bastante atento também a isso, porque é uma chave importante, já explicada.

35 36

Veja cap. 10 (Maeso).

Em Talmud, Rosh Hashaná 11.

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SOBRE

A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Outra das coisas sobre as quais você deve meditar atentamente é que, após falar da Criação do Homem nos Seis Dias da Criação, afirman- do: ªe os criou Macho e Fêmeaº (Gênesis 1relato é finalizado nestes termos: ªAssim foram acabados os Céus e a Terra e todo o seu cortejoº (Gênesis 2:1). Então, abrese um novo capítulo sobre como Eva foi formada deAdão. Mencionase a Êts Chaím (Arvore da Vida), a Êts Biná (Arvore do Conhecimento) e o episódio da serpente, apre- sentando tudo isso como acontecimentos posteriores à presençade Adão no Jardim do Éden. Todos os Sábios concordam que estes fatos aconteceram no Se

xto Dia, e absolutamente nada mudou depois dos Seis Dias da Criação. Conseqüentementenão se pode ver nenhuma in- congruência nestas coisas, porque, como explicamos, não havia ainda uma natureza estável. Além disso, os Sábios disseram outras coisas, tomadas de diversos lugares, que tenho que lhe expor, despertando sua atenção para elas da mesma forma como eles (Benditas sejam suas memórias!) desperta- ram a nossa. Leve em conta que as palavras subseqüentes dos ditos Sábios são de suma perfeição, de interpretaçãoa seus destinatá- rios e de notável precisão. Por este motivo não me estenderei em sua exposição, nem serei prolixo em seu desenvolvimento, a fim de não descobrir um segredo?1 Para um homem como você, bastará citálas com certa ordem e rápida indicação. Assim, quan a este assunto em particular, dizem que Adão e Eva foram criados juntos, unidos ombro a ombro e, ao dividir este ser, Deus tomou a metade (Eva) e deua à outra (Adão) como companhei- ra. As palavras achátmitsalotáiv (Gênesis 2:21) significam: ªuma de suas costelasº; e o texto acrescenta: ªno outro lado da morada (...)º (Êxodo 26:20), que o

Targúnf^ traduz por ªlado do Tabernáculoº. Assim, afir- mam os Sábios, é dessa forma que sve interpretar a expressão uma de suas costelas. Veja como ficou claro que Adão e Eva eram dois em algumas coisas e, ao mesmo tempo, eram um, como foi dito: ªOsso dos meus ossos e carne de minha carneº (Gênesis 2:23), confirmando deste modo sua união ao designálos com um só nome: ªMulher (Isbk), porque do Homem (Isb) foi tomadaº (Ibid.)e, para reforçar ainda mais sua união, foi declarado: ªE se juntará à sua mulher, e virãoser os

37 38

Referência a Provérbios 11:13: ªVem o mentiroso e descobre o segredo (...)º(NT).

Targúm tradução para o aramaico (NT).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

dois uma só carneº (Gênesis 2:2425). Quanta é a ignorância daqueles que não compreendem q

, necessariamente, em tudo isto há uma idéia determinada! Aí você tem explicado. Outra questão que você deve conhecer, e que foi esclarecida no Midrásh. a serpente, do tamanho de um camelo, era montada pelo ca- valeiro que seduziu Eva, cujo nome era Samael,39 nome aplicado a Satã. Você dirá que, em muitas passagens, afirmam que Satã pretendia tentar o Patriarca Abrahão para que não consentisse em sacrificar Isaac e, da mesma forma, a Isaac, para que não obedecesse a seu pai. Neste assunto, o Sacrifício de Isaac (Akedá ), asseguram que Samael se dirigiu ao Patriarca Abrahão e lhe disse: ªO quê! Vovô, está louco ? (...)º.40 Não há dúvida, pois, que Samael é Satã. Este nome, assim com Nachásh (Serpente), tem um sentido. Ao contar como foi a sedução de Eva, afirmase: ªOcavaleiro ia sobre a serpente, e Deus Ðo Santíssimo, bendito seja Ð divertiase com ocamelo e seu cavaleiroº. Você deve notar, deste modo, que a serpente não teve nenhumarela- ção com Adão, nem falou com ele. Ela conversou e tratou unicamente com Eva e, por

intermédio desta, sobreveio o dano a Adão, e a serpente o levou à perdição. A enorme inimizade surgiu tão somente entre a ser- pente e Eva e entre a descendência de uma e de outra Ðque é, sem dúvida, também a descendência do Homem. Todavia, mais surpreenden- te é aentre a serpente e Eva Ðo destino de uma está na outra: são a cabeça e o calcanhar,41 de forma que Eva a domina pela cabeça e a serpente, por sua vez, domina Eva pelo calcanhar. Isto também está claro. Outra das passagens surpreendentes, cujo sentido literal se torna ex- tremamente absurdo, mas cuja sábia metáfora e congruência com a reali- dade você irá admirar quando se aprofundar perfeitamente nos capítulos do presente Tratado, é a seguinte: Ao se aproximar a Serpente de Eva Ð dizem Ðcontaminoua. Ao comparecer o Povo de Israel ao Monte Sinai, a contaminação terminou; mas, às nações que estavam ausentes do Mon- te Sinai Ða contaminação permaneceu.42 Reflita também sobre isso.

39 40 41 42

Em Capítulos de Rabi E lie\er (Maimônides). Em B ereshit R abá (Maimônides). Em Gênesis 3:15 (Maimônides). O sentido desta passagem parece ser o seguinte: a faculdade imaginativa, ao despertar as paixões, prejudica o Homem; os israelitas, ao receberem uma Lei m oral que dominou suas paixões, ficaram protegidos; os povos que não têm um a lei moral continuariam sujeitos ao domínio das paixões (Munk).

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SOBRE

A TEORIA

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ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

Outra passagem que você deve entender é a seguinte: ^4 Á rvore da Vida alcança quinhentos anos de idade, e todas as águas da Criação se derramam sobre ela ,43 Esta idade, esclareceram, referese à grossura de seu tronco e não à extensão de suas folhagens. 0 objeto destas afirmações Ðexplicam Ð não é sua folhagem, mas sim seu tronco, de quinhentos anode idade. Por esse termo, entendese seu madeiramento ereto, e esta expressão comple- mentar foi acrescentada para valorizar o sentido da explicação e lhe dar maior clareza. Fica, pois, totalmente explicitado. Esta é outra questão, cujas explicações você dev

e conhecer: ªQuanto à Arvore do Conhecimento, o Santíssimo não a revelou a ninguém, nem arevelará jamaisº, 44 o que é verdade, pois a natureza do existente assim o requer. Não menos digna de se conhecer é a seguinte passagem: ªE YHVH Deus tomou o homemº Ðou seja, elevouo Ъe o colocou no jardim do Édenº (Gênesis 2:15), ou seja, deulhe descanso. Não sentende, por este texto, que Ele lhe tomou de um lugar e situouo em outro, mas sim que elevou a qualidade de seu ser, entre os seres que nascem e perecem, e situouo em determinado estado. Mais um ponto em que você deve refletir é o acerto comque foram designados Caim e A bel , porque foi Caim quem matou Abel no campo (Gênesis 4:8). Ambos pereceram, embora o agressor tenha sido trata- do com piedade, e somente a Set se outorgou uma existência longeva: ªDeume YHVH outro descendenteº (Gênesis 4:25). Tudo isto já ficou claramente demonstrado.4 5 Outrossim, a seguinte passagem merece sua atenção: ªE chamou o Homem nomes (...)º (Gênesis 2:20), o que nos ensina que as línguas são convencionadas, e não naturais, como se pensava. Finalmente, você deve

meditar sobre os quatro termos empregados para a relação entre Deus e os Céus, a saber: Bará (criar); A ssá (fazer);

43 44 45

Em B ereshit Rabá. Em Bereshit Rabá. ªVeja nota explicativa de Munk, aqui resumida: Oautor se lim ita a propor à meditação do discípulo o sentido dos nomes de Caim, A bel eSet, e as alegori- as encerradas no texto bíblico. O silêncio que o autor guarda sobre seu verda- deiro pensamento tem dado lugar a diversas explicações: os comentaristas con- cordam geralm ente em ver, nos três filhos de Adão nomeados no texto bíblico, os símbolos de diferentes faculdades da alma racional. Caim representa a fa- culdade das artes práticas ; Abel, a reflexão e Set, a inteligência , único entre os m en- cionados filhos de Adão que se assemelhava ao pai, ªcriado à imagem de D eusº, como adverte o autorna Primeira Parte, cap. 7". (Maeso).

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DOS

PERPLEXOS

Kaná (possuir)46 e ÊL (Deus). Foi dito, por exemplo: ªDeus criou os Céus e a Terraº (Gênes

 1:1); ª(...) Ao tempo de fazer YHVH Deus a Terra e os Céusº (Gênesis 2:4); ª(...) Possuidor de Céus e Terraº (Gê- nesis 14:19 e 22); ªDeus do Universoº (Gênesis 21:33); ªDeus doseus da Terraº (Gênesis 24:3). Quanto às expressões: ªA Lua e os astros que Tu estabelecestesº (Salmo 8:4); ªMinha destra estendeu os Céusº (Isaías 48:13); ªEstendas os Céusº (Salmo), estão todas incluídas no verbo A ssá (fazer). Quanto ao verbo Yatsár (formar),47 não se apresenta esta acepção, por isso acredito que se aplica à estruturação e à configuração,utros acidentes, dado que estes também são acidentes. Por isso se afirmou: ªEle queform ou a l u porque esta é um acidente. ªEle que formou os montesº (Amós 4:13) significa que for- ma sua figura, o mesmo em ªModelou YHVH Deus (...)º (Gênesis 2:79). Mas, referindose a estas entidades que abarcam o conjunto do Uni- verso, a saber, os Céus e aTerra, empregase o verbo Bará (criar) que, na nossa opinião, significa produzir donada. Também se usa A ssá (fazer) aplicado às formas específicas que lhe foram dadas, ou

 seja, a seus caracteres físicos. Caso os designe com o verbo Kaná (possuir), Ele (Exaltado Seja!) os domina, assim como o dono a seus servos. Por este motivo Lhe chamam de ªO Dono de toda a Terraº (Josué 3:1113) ou, simplesmente, HáAdón, O Senhor (Êxo 23:17; 34:23), Pois bem, dado que não há senhor sem que exista possessão , o que implicaria uma matéria preexistente, empregamse os verbos Bará e Assá. Quando se afirma:Deus dos Céus e Senhor do Universo, é em relação à Sua perfeição (Exaltado seja!) e à destmentos. Ele é Elohím (Deus), ou seja, o que governa, e eles Ðos Céus Ð os governados; nãosão no sentido de domínio, pois esta é a significação de Konê (possuidor). Elohím se referSua qualidade (Exaltado Seja!), em seu ser e em relação a eles, posto que Ele é Deus,e os Céus não o são. Entenda bem isso. Estas lições, juntamente com o que já foi dito e oe se dirá sobre o tema, bastam para o propósito do presente Tratado e para quem se interessar por ele.

46

47

Bará: criar, Assá:fa%er, Kaná: adquirir. Os verbos em hebraico, citados no texto, correspondem às suas raízes. No infinitivo, os verbos são, respectivamente,

 

Livro: criar; Laassóí:fa^ere. Liknót. possuir (NT). Yatsár. formar. O verbo em hebraico citado no texto corresponde à sua raiz. No infinitivo é L/daisér (NT).

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SOBRE A TEORIA

DA

ETERNIDADE

DO

UNIVERSO

CAPÍTULO

31

A INSTITUIÇÃO DO SHABÁT SERVE PARA ENSINAR A TEORIA DA CRIAÇÃO E PARA PROMOVER O BEMESTAR DO HOMEM

Talvez você já conheça a razão por que a Lei do Shabát 48 é tão severa, a ponto de sua traessão ser punida com a morte por apedrejamento até o Profeta dos Profetas (Moisés) mat

ou por ela. A Lei do Shabát ocupa o terceiro lugar em importância, depois da existência de Deus e da negação do dualismo, pois a proibição à idolatria vem depois de assentada a Unicidade. Você já sabe, por minhas palavras, que as idéias não se fixam se não são acomphadas de ações que as sustentem, divulguem e perpetuem, entre a multidão, para sempre. Por isto a Lei nos apresenta a exaltação desse dia, a fim de que o princípio da Criação do Mundo seja estabelecido e universalizado, com o descanso de todos os homens no mesmo dia; e se perguntassem a causa, a resposta seria: ªPorque em seis dias fezDeus (...)º (Êxodo 20:11).

48

Shabát ÐSábado: segundo a tradição judaica, o Sétimo Dia da Criação, dia em que Deus descaa obra que realizou. Deriva do verbo hebraico LashévetÐ sentar ou descansar. A Lei d

o Shabát referese às normas contidas no Talmúd

quanto ao modo como se deve guardar este feriado semanal (NT).

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O GUIA

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Mas são dadas a esta M itsvám duas causas distintas,50 com duas con- seqüências diferentes. No primeiro Decálogo (Êxodo 20), assim se justifica a glorificação do Shabát (Sábado): ªue em seis dias fez Deus (...)º, enquanto que no M ishnêT ora'1 (Deuteronômio 5:15) adver- tese: ªRecordate de que escravo foste na Terra do Egito (...) e por isso YHVH Teu Deus te manda guardar o Shabátº. Isto é verdade! A conseqüência resultante do primeiroversículo é a honra e a exaltação deste dia, como está escrito: ªPois abençoou YHVH o diahabát e o santificouº (Exodo 20:11); e a causa para isso é ªporque em seis dias (...)º (Exodo 20:11). Mas, a imposição da Lei do Shabát, ordenandonos que a observemos, é conseqüêna de outra causa Ða de quefom os escra- vos no Egito, onde não trabalhávamos por nossa vontade, nem na hora em que quiséssemos e nem podíamos descansar. E nos foi ordenadoo descanso e o repouso para unir ambas as coisas: primeiro, a crença em um conheci

mento verdadeiro, qual seja, a Criação do Mundo, que, de imediato e pela mais elevada reflexão, ensinanos sobre a existência de Deus; e segundo, recordarnos de Sua benignidade, outorgandonos o descanso ªdo sofrimento do Egi- toº (Exodo 6:67). De certo modo, é um favor que serve tanto para confirmar uma consideração especulativa, quanto para recuperar52 o bemestar físico.

49 50 51

52

M itsvá: segundo a tradição judaica, preceito ou ordem divina, para ser cum pri- da pelas pessoas (NT). A prim eira versão do D ecálogo encontrase no livro do Exodo e a segunda, no Livro de Deuteronômio (NT). M ishnê Torá: o Deuteronômio, quinto livro da Torá (

Pentateuco) é conhecido também como a Segunda Torá ou a Outra Torá, por ser uma espécie de rememoraçâo de todo o relato bíblico. O termo também é utilizado, como homônimo, para deninar o Talmud , e também é o nome de uma das principais obras de Maimônides, cujo propósito é justamente a organizar, de forma sistemática, o conteúdo do Talniúd (NT). Recuperar: tradução contextualizada para a palavra T ik unÐconserto (NT).

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Sobre a Profecia

CAPÍTULO

32

TRÊS TEORIAS A RESPEITO DA PROFECIA

As opiniões das pessoas sobre a Profecia se assemelham às considera- ções sobre a Eternidade ou a Criação do Universo. Quero dizer com isto que, assim como entre aqueles queacreditam firmemente na exis- tência de Deus há três teorias sobre a origem e a criação doniverso, como explicamos, do mesmo modo as opiniões que circulam com respeito à Profecia são três. Não me ocuparei da teoria de Epicuro,1 porque se não crê na existência de Ds, menos crédito ainda dará à Profecia. Meu propósito é somente me referir às posições sobro- fecia daqueles que acreditam em Deus. Primeira Opinião: É pertinente àquelas pessoas pagãs que admitem a Profecia, o que coincide com a de certos setores dentro do povo de nossa religião. Deus (Exaltado Seja!), dizem, elege a quem lhe agrada entreos homens, faz dele Profeta e lhe confere uma missão. Não há

1Epicuro (341270 A .E.C.): filósofo grego nascido em Samos, favorável ao atomismo, doutrina desenvolvida originalm ente por Leucipo e Demócrito. O de- sejo precisa sercontrolado, para que a serenidade nos ajude a suportar a dor. A vida se torna agradável com o sábio raciocínio, que investiga a causa. Por ser um defensor do prazer,quiseram fazer de Epicuro e dos Epicuristas de- fensores da volúpia, mas o próprio sedeclara contra isso ao afirm ar que o prazer não é sensual (fonte: http://www.consciencia.org/antiga/epicuro.shtml, 14 de novembro de 2002).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

diferença, segundo eles, se este é sábio ou ignorante, velho ou jovem. Todavia, é condição

ue seja homem de bem e de bons costumes, pois ninguém até agora afirmou, que Deus tenha outorgado o dom proféti- co a um homem perverso, a menos que, antes, o tenha transformado em um homem bom. Segunda Opinião: E a dos filósofos.2 A Profecia implica certa perfei- ção na natureza da pessoa, mas nenhum homem pode alcançála senão por meio dostudo, transformando em ato o que está em potência ,3 salvo apareça um obstáculo proveniente do temperamento ou de alguma causa exterior Ðcomo ocorre em toda perfeição possível em determi- nada espécie, mas não de maneira uniforme para todos os indivíduos desta espécie, até sua conclusão e último grau. E se para que esta per- feição se realize é necesso que só pode ser produzido por um agente, logo este agente deve existir. De acordo com esta concepção, é impossível que um ignorante chegue a Profeta ou que um homem durma sem ser Profeta e acorde Profeta, como alguém que descobris- se algo. A realidade, então, é que se um homem íntegro, perfeito em suas qualidades racionais e proprietário

 de faculdade imaginativa em seu grau mais perfeito se preparar na forma que selhe dirá, necessari- amente chegará a Profeta, por se tratar de uma perfeição que possuí-naturalmente. Segundo esta perspectiva, é impossível que um indi- víduo apto e devidamente preparado para a Profecia não consiga ser Profeta, assim como é impossível que um homem de temperamento saudável e nutrido de excelente alimento não gere um ser de sangue bom e características compatíveis com essas. Terceira Opinião: Pertence à Nossa Leie é fundamento de nossa reli- gião. É idêntica à opinião filosófica, exceto em um ponto: ni- tamos que o indivíduo, ainda que seja apto e tenha se preparado para a Profecia,pode, todavia, não chegar a ser Profeta, pois isso depende da Vontade Divina. No meu parecer, é exatamente igual ao que acontece

2

ªNeste caso, o autor se refere aos filósofos aristotélicos árabes, que conside- ram o domde Profecia como o mais alto grau do desenvolvimento das facul- dades racionais emorais da alma, aonde o homem chega tanto pelo estudo como pela purificação espiritual, desligandose completamente das coisas des- te mundo e preparandose, assim, para a união mais íntima com o Intelecto Ativo, que faz passar ao ato as faculdades que nossa alma possui em potência.º (Munk, in Maeso). 3 Veja Primeira Parte, cap. 14, Segunda Causa (Maeso).

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em todos os milagres, e no mesmo grau. É natural que qualquer ho- mem apto e preparado, por sua educação e estudo, possa ser Profeta, se lhe for recusado, está, nesse caso, impossibilitado de mover sua mão, como ocorreu ao Rei Jeroboão (I Reis 13:4), ouao exército do rei de Aram (Síria), em busca de Eliseu (II Reis 6:18), Quanto ao nosso princípio fundamental Ðé preciso se preparar e se aperfeiçoar nas qualidades morais e racionais , ele é expresso (pe- los Sábios) nestas palavras: ªA Profecia somente se dáno homem sá- bio, corajoso e ricoº. Já explanamos, em nossa obra Comentário à M ish- ná eso grande compêndio M ishnê Torá, que os discípulos dos Profetas se ocupavam constantemente dessa preparação. Não obstan- te, pode ocorrer, a quem se preparou, não chegar a Profeta devido a algum impedimento, como pode ser comprovado no caso de Baruch ben Neria, seguidor de Jeremias, o qual lhe ensinou e preparou, contu- do, seu desejo de

 ser Profeta não lhe foi satisfeito, conforme ele mes- mo confessa: ªCansome de gemer e não tenho repousoº (Jeremias 45:3). Então lhe foi respondido por intermédio daquele: ªAssim lhe dirás: Isto disse YHVH (...) Tu pedes para ti grandes coisas. Não as solicitesº (Jeremias 45:45). Certamente é possível se afirmar que a intenção foi declarar, comisto, que a Profecia era demasiada grandeza para Baruch, assim como na passagem: ªE tampouco seus Profetas recebem visão de YHVHº (Lamentações 2:9), poderia ser entendido que a razão para isso era o fato de se encontrar no Exílio, como expli- caremos. Mascitamos muitos textos, tanto bíblicos quanto dos Sábios, em que unanimemente se insiste neste princípio fundamental: Deus faz Profeta a quem e quando quer, contanto que seja um homem deci- didamente íntegro e sábio. Aos ignorantes, parece uma coisa tão im- possível que Deus constitua algum deles Profeta quanto seria para um asno ou para uma rã. Este é o nosso princípio: o treinamento e o aperfeiçoamento são indispensáveis, eomente aí se fundamenta a p o s- sibilidade, desde que venha unida à Vontade Divina, Q

ue o seguinte texto não lhe induza a erro: ªAntes que te formas- se no ventre te conheci, antes que tu saísses do seio materno te con- sagreiº (Jeremias 1:5), pois este é o caso de todo Profeta: o que o estimula é a necessidade advinda de uma predisposição natural, como será exposto. Quanto às palavras ªEu sou um jovem (náar)º (Jeremias 1:6), vocêabe que José, o Tsadík (o Justo), que tinha trinta anos, é qualificado assim no textohebraico. E o mesmo foi dito, inclusive, de Josué, beirando os sessenta anos por ocasião do Bezerro de Ouro :

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

ªOjovem \náai\ Josué, filho de Nun (Yehoshúa ben Nún ) não se afastava da tendaº (Êxodo 33

Moisés tinha, na época, oitenta e um anos e chegou aos cento e vinte. Deduzse, portanto, que a idade de Josué era então, ao menos, de cinqüenta e sete anos e, apesar disso, era chamado de Náarí Tampouco você irá se deixar ofuscar pelo dito nas promessas divi- nas, por exemplo: ªDerramarei meu espírito sobre toda carne, e profe- tizarão vossos filhos e vossas filhasº (Joel 2:28), pois isto se explica ao se revelar o caráter da Profecia, nestes termos: ªVossos anciãos terão sonhos, e vossos moços verão visõesº (Ibid .om efeito, todo aquele que prediz algo secreto, ora através da magia ou da adivinhação, ora por um pensamento justo, é chamado de Profeta, por este motivo eram chamados assim ªos Profetas de Baálº e ªos Profetas de Asheráº. Você não vê como Deus (Exaltado Ssse: ªSe alçará no meio de ti um Profeta ou um sonhadorº (Deuteronômio 13:2)? Quanto à cendo Monte Sinai, ainda que todos contemplaram, por meio de milagre, o Grande Fogo e ouviram os estrondos terríveis e re- tumbantes, não chegaram, todavia, à categoria de

 Profetas, senão aqueles que estavam em condições para isso e, mesmo assim, em graus dife- rentes. Isso já pode ser constatado na seguinte passagem: ªSobe a YHVH tu e Aarão,Nadáv e Avíhu, com setenta dos anciãos de Israelº (Êxodo 24:1). Ele (Moisés, a Paz estejam ele!) ocupa o grau supremo, con- forme o declarado: ªSomente Moisés se aproximará de YHVH, mas eles não se aproximarãoº (Êxodo 24:2). Aarão segue abaixo dele; Na- dáv e Avíhu,deste; os setenta anciãos, abaixo deles e, em grau inferior a estes, os demais, conforme o seu nível de perfeição. Um texto dos Sábios afirma: ªMoisés Ðuma parte em si mese Aarão outra parte em si mesmoº. Já que ocasionalmente falamos da cena do Monte Sinai, daremos, em capítulo à parte, os esclarecimentos que os textos bíblicos Ðbem examinados Ðe a exposição dos Sábios nos oferecem a respeito.

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CAPÍTULO

33

A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS ISRAELITAS COM RESPEITO À REVELAÇÃO NO MONTE SINAI

Para mim está claro que, na cena do Monte Sinai, nem tudo o que valia para Moisés valia para todo [o povo de] Israel, pois a Palavra se dirigiu unicamente a este. Por isso se emprega a segunda pessoa do singular no Decálogo, e ele (A Paz esteja com ele!) desceu ao pé da montanha para comunicar às pessoas o que havia ouvido. O texto da Torá diz: ªEu estava então entre YFIVH e vocês, para trazerlhes a palavra de YHVHº (Deuteronômio 5:5). E deste modo: ªMoisés falava, e YHVH lhe respondia através do trovãodo 19:19). Na M echiltá 4 se afir- ma expressamente que ele lhes repetiu cada manda

mento tal como havia ouvido. Outra passagem da Torá esclarece: ªPara que o povo veja que Eu falo contigo (...)º (Êxodo 19:9), o que demonstra que a locução se dirigia a ele, e as pessoas perceberam aquela voz, sem dis- tinguir as palavras. Dela se disse: ªQuando ouvistes sua vozº (Deute- ronômio 5:2023), e também: ªE ouvistes bem uma voz delavras, mas não vistes figura alguma, mas sim somente uma vozº (Deuteronô- mio 4:12), mas não se disse: ªvocês ouviram as palavrasº. Portanto,

4

Mechiltá de Êxodo: texto talmúdico (NT).

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O GUIA DOS PERPLEXOS

sempre que há referência a palavras ouvidas, entendese ^4 Vo%, e quem as ouvia e transmitia era Moisés. Este é o sentido do texto bíblico e de muitas afirmações dos Sábios.davia, há outra afirmativa formulada em numerosos lugares nas M idrashót e também no T

almud , a saber: ªEU [Deus]º e ªNão será para vocêº, ªouviram da boca da Onipotênciaº, queinter- pretar que as palavras chegaram a eles da mesma forma como a M oshé Rabênu (A Paz esteja sobre ele!), e não foi este quem as transmitiu ao povo. Estes dois princípios Ðrefirome à existência de Deus e Sua unicidade Ðsão exeqüíveis à especulação humana egnoscível por demonstração o é do mesmo modo ao Profeta ou a quem quer que seja, sem nenhuma preferência. Portanto, estes dois princí- pios não são conhecidos unicamente por meio da Profecia, de acor- do com o seguinte texto da Torá: ªA ti se te fizeram ver para que conhecesses(...)º (Deuteronômio 4:35). Quanto aos mandamentos restantes, pertencem à categoria das opiniões prováveis e admitidas por tradição, não das inteligíveis ,5 Sejmo for, os textos bíblicos e as afirmações dos Sábios deixam entrever como inadmissível que todo Israel tenha ouvido aquela cena a não ser apenas como uma 1

 

/o% uma ve^ eesta é a Vo^ que atingiu Moi- sés e todo Israel: ªEU (Deus)º e ªNão será para vocêº, repet

isés ao povo, em sua própria linguagem, pronunciando distinta- mente as palavras que escutaram. Os Sábios (Bendita seja sua memó- ria!) se basearam, ao afirmar isto, nas palavras: ªUma vez falou Deus e duas lições escuteiº (Salmo 62:12) e no princípio do Midráshha^ita em que se destaca que aqueles não ouviram outra fala emanada Dele (Exaltado Seja!), como afirmado, do mesmo modo, na Torá: ªCom fala forte, e não acrescentou maisº (Deuteronômio 5:19 ou 22). Logo após ter ouvido a primeira fala, ocorreram, como se conta, o terror, o pânico e as suas exclamações: ªE me dissestes: YHVH, Nosso Deus nosfez ver (...) Por que, pois, morrer? (...) Aproximate e escuta (...)º

5

ªOs oito mandamentos restantes são concernentes a coisas que não são do domínio da inteligcia, e não poderiam ser objeto de um silogismo demonstra- tivo. Referese às virtudes

e aos vícios, o Bem e o Mal, que se encontram entre as opiniões prováveis e são, inclusive, coisas puramente tradicionais, como é, p. ex. o Quarto Mandamento, relativo ao Shabát [Sábado]º (Munk). ªNotese que o Quarto Mandamento do Decálogo hebreubíblico corrponde ao Terceiro Mandamento cristão (Maeso).

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A

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(Deuteronômio 5:2124 e 2427). Então o mais ilustre dos mortais avançou pela segundavez, recebeu os mandamentos restantes um a um, desceu ao pé da montanha e lhes retransmitiu, em meio àquele espetáculo grandioso. Eles contemplavam o fogo e ouviam as pala- vras, quero dizer, as denominadas fa la s e relâmpagos (Êxodo 19:16), que soavam como o trovão e o toque imponente da trombeta. E sempre que se faz referência às várias fa la s que se ouviam, por exemplo em Êxodo 20:15, tratase do som da trombeta,do raio, etc. Mas a palavra do Eterno Ðquero dizer, a Fala C iiada6, através da qual foi comunica- da a Palavra Divina Ðsomente foi percebida uma vez, como afirma textualmente a Torá e a exposição dos Sábios nos lugares que lhe indi- quei. A partir dela, Exalaram sua alma ao ouvila e, por sua mediação, entenderam os dois primeiros Mandamentos. Observe que o grau de percepção de Israel a respeito não era igual ao de M oshé Rabên

u (A Paz esteja sobre ele!). Devo insistir com você sobre este segredo e lhe rei- terar que isto é tradicionalmente admitido em nossa nação e conheci- do de seus Sábios. Assim, em todas as passagens em que se encontra: ªE YHVH Falou a Moisés dizendoº, Onqelostraduz (literalmente): YHJ^H Falou, e do mesmo modo: ªE YHVH pronunciou todas estas palavrasº (Êxodo 20:1). Por outro lado, as dirigidas pelos israelitas a Moisés: ªE que não nos fale Deusº (Êxodo 20:1619), ele as traduz assim: ªNão se nos fale da parte de Deusº. Assim Onqelos (A Paz esteja sobre ele!) marcou a distinção que indicamos. Você já sabe que ele, como é dito expressamente, aprendeu todas estas coisas maravi- lhosas e notáveis da boca de Rabi Eliezer e Rabi Josué, Sábios de Israel por excelência. Que todos saibam e lembremse! Porque é impossível se aprofun- dar na cena do M onte Sinai Ðum dos fundamentos da Bíblia Ðmais a fundo do que o exposto por eles. Esta percepção e suas circunstânci- as são reais, porque nem houve antes nem haverá no futuro nada comparável. Saibam!

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Veja Primeira Parte, cap. 46 (Maeso).

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2.0 

3

CAPÍTULO

34

E X P L IC A Ç Ã O DE ÊXODO 2 3 :2 0

O sentido do texto da Torá, ªEis que Eu mandarei um anjo diante de d (...)º (Êxodo 23:20), é explicado no MishnêTorá [Deuteronômio] 23:18 quando Deus falou a Moisés na cena do Monte Sinai, ªUm Profeta levan- tarei para eles (...)º. Prova disso é o que se disse deste anjo: ªAcatalhe e ouça sua voz (...)º (Êxodo 23:21), ordem dirigida indubitavelmente àmultidão. Porém, o anjo não se fez visível a esta, nem lhe fez alguma prescrição ou proibi

reta, para que não se sentisse repreendida, de maneira a não se rebelar contra ele.Por conseguinte, o sentido deste texio é que Deus (Exaltado Seja!) preveniu ao povo de Israel que have- ria, entre eles, um Profeta, a quem um anjo se manifestariae lhe falaria, comunicandolhe ordens e interdições. Assim, Deus nos proíbe de desobedecer a este anjo, cuja palavra nos transmitirá o Profeta, como se afirma em Deuteronômio 18:15: ªA ele ouvirásº; e também: ªA quem não escutar as palavras que ele dirá em Me (...)º (Deute- ronômio 18:19), e se explica o motivo: ªporque ele leva Meu Nomeº (Êxodo:21).T udo isso foi so m ente p ara lh es ch am ar a aten ção : este esp etáculo g ran d io so que tem sido co ntem plado , a saber, a cena do M on te S in a i não é algo quep erd u rará en tre vocês. N ão h averá n ad a sem elh an te no

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2.04

°

GUIA

d o s

p e r p l e x o s

futuro, nem fogo ou nuvem permanentes, como há agora sobre o Tabernáculo Eterno. Umanjo que Eu enviarei aos seus Profetas conquistará por vocês as suas cidades, tornarádisponível a sua terra natal e lhes indicará o que é preciso empreender ou evitar. Aí está também o princípio fundamental que insisto em lhe expli- car, a saber: a qualquer Profeta, exceto M oshé Rabênu, chegavalhe a Profecia pelas mãos de um anjo. Saibam!

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A PROFECIA

2.05

CAPÍTULO 3 5

A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS PROFETAS COM RESPEITO AOS MILAGRES PERPETRADOSPOR ELES

Já esclareci a todas as pessoas as quatro diferenças entre a Profecia de Moisés e a dos demais Profetas, transmiti minha consideração e desco- bertas a respeito disso no Comentário à M ishná e no M ishnéTorá. Não há necessidade de se voltar ao assunto nem intereao propósito deste Tratado. Devo esclarecer que todo quanto tenho dito acerca da Profecia nos capítulos deste Tratado se refere unicamente à qualidade Profética de todos os Profetas anteriores e posteriores a Moisés. Quanto à Profecia de M oshé Rabênu, não direi uma só palavra, nem explicitamente nem por alusão. O motivo: para mim, o termoProfeta somente se refere a Moisés e aos outros por homonímia, o que se aplica também às

 suas maravilhas e às maravilhas dos outros, pois suas demonstrações não são da mesma categoria que as dos demais Profetas. A prova, tomada da Lei, de que sua Profecia era diferente da de todos os seus predecessores, aparece nas seguintes palavras: ªEu me mostrei a Abrahão (...) e meu nome YHVH não fiz conhecido para elesº (Exodo 6:3).Essa passagem nos ensina que a percepção de Moi- sés não foi como a dos Patriarcas, mas sim maior. Ele superou a todos os que vieram antes. Com respeito à diferença entre sua Profecia e a de

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O GUIA

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seus sucessores, está dito por parte àa.A.gadá.1 ªNão há possibilidade de surgir, em Israe Profeta semelhante a Moisés, que conheceu YHVH face a faceº (Deuteronômio 34:10). Fica, portanto, patente que sua percepção diferia das de quantos haveriam de sucedêlo em Israel, ªReino de Sacerdotes e Nação Santaº (Êxodo 19:6 e Números 16:3), ªentre eles YHVHos 16:3) e com maior motivo entre as de- mais nações. Quanto à diferença entre seus milagres e os de todos os Profetas em geral, perceba que todas as maravilhas realizadas por eles, ou para eles, eram contadas para uns poucos entre as pessoas, como as demonstrações dos Profetas Elias e Eliseu. Observe como o Rei de Israel inquire arespeito e solicita informação de Guiezi (Guecha^i, em hebraico) nestes termos: ªAndae contame todas estas grandes coisas que Eliseu reaüzou; e enquanto estava contando (...)º e Guiezi disse: ªMeu Senhor Rei! Esta é a mulher e este é seu filho, que Elise

u ressus- citouº (II Reis 8:45). E assim são os prodígios dos demais Profetas, à exceçãooshé Rabênu, de quem a Bíblia declara que jamais surgirá um Profeta que realize maravilhas publicamente, diante de admirado- res ou desconfiados, como as maravilhas quefez Moisés: ªNão há possibilidade de surgir Ðfoi dito ÐProfeta (...) nem quanto às maravi-e portentos (...) aos olhos de todo Israelº (Deuteronômio 34:1012). Aqui se unem asduas coisas: que não aparecerá jamais quem al- cance a mesma percepção que ele, nem quem realize o mesmo que ele. Em seguida acrescentamse os prodígios efetuados diante de seus ini- migos Ъo Faraó, seus servidores e seu paísº (Deuteronômio 34:1012) Ðcomo tambésença de todo o povo de Israel, seus adep- tos: ªaos olhos de todo o Povo de Israelº, coisa que nunca havia ocorrido a qualquer Profeta anterior a ele. E então se confirma a história verda- deira, de que não haverá outro comparável a ele. Não se equivoque quan ao que foi dito para Josué a propósito da luz do Sol mantida naquelas horas: ªE disse aos olhos de Israelº (Josué 10:12), posto que não diz ªa todo Israelº, como no caso de Mo

isés. Veja também que o milagre de Elias no Monte Carmel foi testemunha- do por poucas pessoas. Quando afirmei, anteriormente, que o sol se

7 Agadá  . forma de interpretação que compõe o Talmud e tem como foco o texto bíblico. Busca extrair da Bíblia, de forma criativa e menos rigorosa que as regras da Halachá, uma história de moral, um consolo, uma lenda, uma fábula ou um provérbio que sirvam ao momento, ao contexto (NT).

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mantinha naquelas horas, explico a expressão keióm tamím (um dia intei- ro), em Josué 10:13, como: ªo dia mais longo possívelº, dado que tamím quer dizer ªcompletoº, e é como se dsse que aquele dia em Guivón fora tão longo quanto são os dias de verão naquela região. Epreciso compreender a distinção das Profecias e milagres de Moisés e entender que a grandeza de sua percepção Profética era idên- tica à sua capacidade de produzir milagres. Seocê então acreditar que somos incapazes de compreender totalmente a natureza de suagran- deza, entenderá que quando eu falo, nos capítulos seguintes, sobre Pro- fecia e os diferentes níveis de Profecia, refirome aos Profetas que não atingiram o nível máximo, somente atingido por Moisés. Este era o propósito do presente capítulo.

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CAPÍTULO 3 6

SOBRE AS FACULDADES MENTAIS, FÍSICAS E MORAIS DOS PROFETAS

Saiba que, na realidade, a Profecia é uma emanação de Deus (Exaltado Seja!) através do Intelecto Ativo, de início sobre a faculdade racional e daí para a faculdade imaginativa. Ela se constitui no mais alto grau do homem e o ápice da percepção exeqüível à sua ese, e este estado é a culminação da faculdade imaginativa, ao alcance de qualquer homem. Contudo, não é acessível pelo mero aperfeiçoamento na filosofia nem pela melhora na conduta, por mais perfeitas e belas que possam ser, sem que a elas se junte a máxima perfeição possível da faculdade ima- ginativa em sua formação inicial. Você já sabe que a

cia destas faculdades corporais Ðentre as quais figura a faculdade imaginativa Ð depende da melhor compleição possível do órgão em que se funda- menta esta faculdade, da exceia de sua proporção e maior pureza de sua matéria. É algo cuja perda tornase irreparávele seu defeito é insubstituível mediante um regime. Com efeito, o órgão cuja complei- ção énalmente defeituosa poderá, no máximo, ser conservado em um certo grau de sanidade pelo regime adequado, ainda que sem poder lhe reduzir à máxima constituição factível. Mas se esta deficiência pro- vém de sua desproporção, posição ou substância, quero dizer, da ma que é formado, não existe remédio viável. Você conhece tudo isso perfeitamente e não há pue insistir em explicações.

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2.10

O GUIA

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PERPLEXOS

Assim, saiba que as operações da faculdade imaginativa são as de conservar a lembrança das coisas sensíveis e combinálas, conforme a característica específica de sua natureza: reproduzir. E sua mais alta e nobre atividade se realiza quando os sentidos cessam suas funções: então sobrevêm uma espécie de inspiração , conforme a sua disposição, qua dos sonhos verdadeiros e da Profecia Ðentre os quais não há diferença específica, mas de intensidade somente, para mais ou para menos. Você conhece o que os Sábios afirmaram inúmeras vezes: ªO sonho é 1/60 partes da Profeciaº ( T alm udBerachót 57). Sem dúvi- dacabe proporção entre duas coisas especificamente distintas, nem seria correto dizer, por exemplo, que a perfeição do homem é tantas ou quantas vezes a do cavalo. A mesmaidéia foi sublinhada no BereshitRabá, nestes termos: O sonho é ofru to imaturo da Profecia, compa- ração excelente, dado que se trata do mesmo fruto, mas que caiu precoceme

nte, antes de sua maturação. Do mesmo modo, a atividade da faculdade imaginativa durante o sono é idêntica à atividade no mo- mento da Profecia, exceto pela sua insuficiência e por não alcançar sua perfeição. Mas por que ensinálo com as palavras dos Sábios (Bendis sejam suas memórias!), deixando de lado os textos da Torá? Por exem- plo: ª(...) Se houver profeta entre vós, Eu, o Eterno, em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com eleº (Números 12:6). Aqui Deus nos conta qual é a verdadeira essência da Profecia: uma perfeição ad- quirida em um Sonho ou através de uma Visão. A faculdade imaginativa adquire uma tal eficiência em sua atividade que vê a coisa como se tivesse vindo de fora e a apreende como se fosse através dos órgãos dos sentidos físicos. Estas são as duas partes Ða saber, Visão e Sonho Ð de todos os graus de Profecia, como será explicado.8 Sabese que aqui- lo do que o Homem se ocupa em estado de vigília, servindose de seussentidos, e ao que tende o seu desejo, é o objeto da imaginação durante o sonho, quando o Intelecto Ativo se derrama sobre ela, de conformi- dade com sua preparação. Seria

supérfluo acrescentar exemplos e in- sistir, dado que é Coisa notória, conhecida de todos, contra a qual nin- guém objeta, como no caso da percepção dos sentidos. A partir destes preâmbulos, devese recordar que se trata aqui de um indivíduo humano, cuja substância cerebral, principalmente a ori- gem dela Ðpela pureza da sua matéria e da compleição particular de

8

Veja na Segunda Parte, cap. 41 (Maeso).

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cada uma de suas partes, em quantidade e posição Ðfoi feita de forma sumamente bem proporcional, sem desajustes em sua compleição por obra de outro órgão. Por outro lado, este indivíduo teria adquirido conhecimento e sabedoria para passar da potência ao atoe estaria de posse de uma inteligência humana perfeita e cabal, assim como os costumes humanos puros e equânimes, e todas as suas inclinações ten- deriam ao conhecimentodeste mundo e aprofundamento de seus mis- térios e causas. Precisaria, então, que seupensamento se orientasse sempre para as coisas nobres, ocupado somente do conhecimento de Deus, da contemplação de Suas obras e do que se deve acreditar a esse respeito, e que seu pensamento e desejo estivessem desembaraçados de tudo o que é animal, a saber: a busca dos prazeres inerentes à comi- da, bebida, coabitação, em suma, o sentido do tato, do qual Aristóteles afirmou expressamente na Etica Ðe com muita razão Ðque

 este senti- do é uma desgraça para o Homem, dado que o possuímos unicamente em razão de nossa animalidade, assim como os irracionais, sem que haja nele nada de especificamente humano. Quanto aos demais praze- res sensuais Ðcomo o olfato, a audição, a visão Ðada que corporais, não deixa de haver neles, às vezes, um deleite para o ser humano como tal, segundo o mesmo Aristóteles expõe. Temos nos estendido com certa proüxidade à margem de nosso tema, mas era necessário, dado que, com freqüência, os Sábios se ocupam dos prazeres de um deter- minado sentido, logo se surpreendendo por não alcançarem o grau de Profetas, convencidos de que a Profecia é algo inerente à condição humana. Seria preciso, deste modo, que o pensamento e o desejo deste indivíduo estivessem desligados de ambições vãs Ðquero dizer, o de- sejo de Eternidade, do engrandecimento dele pelo povo e de ser hon- rado continuamente por ele e suas obras, sem outra finalidade. Mas veria as pessoas de acordo com seus respectivos interesses: uns certa- mente semelhantes às bestas do campo, outros, às feras, as quais o homem íntegro e retraído não pr

esta atenção, qual não seja para se preservar de seu possível dano, se tiver algo a vercom elas, ou para obter eventuais proveitos que possam lhe conceder. Por conseguinte, se a um indivíduo, tal como descrito Ðcom a imaginação em alto grau e em plena atividade, e derramandose sobre ela o Intelecto Ativo, conforme a perfeição especulativa deste sujeito Ðfosse dado perceber coisas divinas, maravilhosas, não veria mais do que Deus e Seus anjos, e a ciência que lhe seria exeqüível somente se polarizaria em opiniões verdadeiras e normas de conduta, voltadas à melhora dos seres huma- nos nasrelações uns com os outros.

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Descrevemos três tipos de perfeição: perfeição da faculdade racional por meio do estudo, da faculdade imaginativa em sua constituição natural e da faculdade moral derivada do banimento, no pensamento, de todos os prazeres corporais e do apaziguamento dodesejo de grandezas vãs e ruins. Os homens sábios possuem estas qualidades, como sesabe, em diferentes níveis, e os níveis da faculdade Profética variam de acor- do com essas diferenças. Você bem sabe que toda faculdade corpórea se enfraquece, debili- tase ou se deteriora em um dado momento, ou se fortalece em outro; e a faculdade imaginativa é sem dúvida uma faculdade corpórea. Por este motivo, perceberá que os Profetas,em momentos de tristeza, có- lera ou de outras paixões semelhantes, não conseguem profetizar. Des- te modo, entendese o que os Sábios afirmam: ªA Profecia não advém durante a tristeza e a depressãoº, assim como o Patriarca Jacob se viu privado de Profecia duran

te seu luto, porque sua mente estava absorvi- da pela perda de seu filho José. O mesmo ocorreu a Moisés (A Paz esteja sobre ele) a quem a Profecia não veio como antes,depois do episódio dos espiões,9 até que morreu toda a Geração do Deserfo,10 por- que se eontrava envolvida pela enormidade de seus crimes. Ainda que, em seu caso, a faculdade imaginativa em nada interferia em sua Profecia, já que o Intelecto Ativo sederramava sobre ele sem interven- ção daquela, pois, como temos dito reiteradamente, Moisés não profe- tizava através de metáforas, ao modo dos demais Profetas Ðconforme se exp dado que este capítulo não é o lugar próprio para isso. Do mesmo modo você observará quertos Profetas, após profe- tizarem durante algum tempo, perderam esta capacidade devido a al- gum acontecimento e não puderam continuar. Esta foi, sem dúvida, a

9

10

Quando o povo de Israel, após ter sido libertado por Moisés da escravidão no Egito, seguiu em sua caminhada pelo deserto, espiões Ð príncipes representan- tes das tribos queformavam o povo Ð foram enviados para verificar como era a Terra Prometida por Deus a Israel. Voltaram com uma boa notícia: que da- quela terra ªemanava o leite e o melº, mas também com uma notícia ruim: acovardaramse perante os povos que lá viviam e atemorizaram o restante do povo (NT). Geração do Deserto: referese aos integrantes do Povo de Israel que foram escra- vos no Egito. Segundo a Tradição, somente entraram em Israel aqueles nasci- dos no deserto, pois não carregavam a cultura e o medo adquiridos durante os anos de escravidão (NT).

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SOBRE

A

PROFECIA

XV,

causa essencial e imediata do por quê cessou a Profecia no tempo do Exílio, posto que não há motivo maior de abatimento ou tristeza do que ser um servo comprado, escravizado por ignorantes pervertidos que misturam a fala verdadeira e corajosa a toda a devassidão das bes- tas, e nada poderfa^ er contra isso. Esta ameaça pesa sobre nós, e é o que se quer dizer com: ªNavegarão pedindo a palavra de YHVH e não encon- trarãoº (A12); como também: ªSeu rei e seus ministros estão entre as nações; não há Lei, e seus Prof não recebem visão de YH VH º (Lamentações 2:9). Isto é certo e manifesta é a causa, porquinstrumento da Profecia foi suspenso. E este é também o motivo da volta da Profeciapara nós, segundo o costume: ªVinda do Messias Ð rapidamente se revelará!º Ðcomo nos foi pmetido (Joel 3:1).

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O GUIA

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PERPLEXOS

faculdade imaginativa, sem intervenção da racional, seja por razão de sua formação inicial

 ou por falta de estudo, teremos a casta dos gover- nantes, legisladores, adivinhos, agoureiros e donos de sonhos verda- deiros. Também os milagreiros, por meio de artifícios estranhos e ar- tes ocultas, todos incultos, pertencem a esta terceira casta. Você deve verificar, assim, que alguns desta terceira casta, inclusive em estado de vigília, têm visões maravilhosas, sonhos e agitações se- melhantes às aparições Proféextremo de acreditarem que são Profetas, regozijandose muito de tais visões quiméricas, convencidos de que adquiriram conhecimento sem estudo, introduzindo grandes confusões em assuntos de ampla transcendência dentro da especula- ção, embaralhando de um modo surpreendente o verdadeiro com o ilusório. Tudo isso acontece devido ao predomínio da faculdade ima- ginativa, junto com o enfraquecimento da racional, carente de tudo, a qual, em outras palavras, não passou ao ato. E notório que nestas três castas há numerosas gradações. Cada uma das duas primeiras se subdivide em duas partes, quai

s sejam: a daqueles que recebem a Influência apenas na medida da necessidade parao seu próprio aperfeiçoamento, e a daqueles que recebem a Influência em tal medida que é suficiente para o seu próprio aperfeiçoamento e para o de outros. Com respeito à primeira casta, a dos Sábios, há duas situações: aquilo que se derrama sobre a faculdade racional do sujeito é suficiente para fazer dele um homem estudioso e intelectual, dotado de conheci- mentos e critérios, porém, sem propensão a instruir aos demais nem a compor obras, carente de gosto e capacidade para isso; ou pode ser influenciado obastante para se sentir estimulado, de modo positivo, a elaborar obras e ensinar. O mesmo ocorre com a segunda casta: é pos- sível que recebam da Profecia o que aperfeiçoe os Profetas e é possível que venha, daquela, algo que os obrigue a se interessar pelas pessoas, instruindoos e emanando sobre eles sua própria perfeição. É evidente que, sem esta perfeição a mais, os livros não seriam escritos, nem os Profetas teriam imbuído os homens do conhecimen- to da verdade. Porque o sábio não escreve nada para si me

smo com a finalidade de se doutrinar no que já sabe, mas sim porque, na natureza de seu intelecto, existe o ato de emanar continuamente e irradiar suces- sivamenteesta emanação de um indivíduo a outro, até encontrar aque- le que pode se aperfeiçoar atradesta   Emanação, sem, no entanto, ser capaz de transmitila a outros, conforme explicamos em alguns capítu- los do presente Tratado (cap. 11).

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A natureza dessa matéria obriga, a quem recebeu esta emanação a mais, a comunicála necessariamente aos homens, aceitem estes ou não, inclusive com o risco de ser feridopor eles. Por isso, encontramos Profetas que pregaram aos homens até morrer, movid

os por esta ins- piração divina que não lhes deixava descansar nem repousar, e até pas- sam por grandes males. E esse o motivo de Jeremias (A paz esteja sobre ele) proclamar que, como conseqüência do menosprezo por par- te dos rebeldes e incrédulos de seu tempo, sentiase tentado a inter- romper sua missão Profética e não chamálos à verdade, porles re- chaçada, mas isto se mostrava impossível. E disse assim: ªE todo o dia a palavra de YH VH é áspera e motivo de zombaria para mim. E eu disse: `Não me recordarei Dele, não voltarei a falar em Seu nome, é dentro de mim como fogo abrasador, encerrado dentro de meus os- sos, e me cansei de suportálo Ðmas não posso'º (Jeremias 20:89). O mesmontido encerra outro texto profético: ª O Senhor, YH VH , fa- lou Ðquem não profetizará?º (:8). Conheça isso!

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SOBRE

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1IÇ

CAPÍTULO 3 8

A CORAGEM E A INTUIÇÃO ATINGEM O GRAU MAIS ALTO DA PERFEIÇÃO NOS PROFETAS

É preciso saber que todo homem possui necessariamente a faculdade da coragem, sema qual não se sentiria impulsionado mentalmente a evitar o que lhe possa prejudicar, e semelhante faculdade é, entre as forças da alma, o que a faculdade repulsiva é entre as forças naturais. A faculda- de da coragem varia em intensidade ou debilidade, assim como ocorre nas demais faculdades. Isso pode ser comprovado pelo fato deque há quem se lança contra um leão, enquanto outro foge de um rato; há quem irrompa contra um exército para lhe combater, ao passo que outro teme e treme quando uma mulh

er grita com ele. E necessário que, desde a formação inicial, exista certa predisposição na complei- ção, e que essa faculdade seja estimulada, segundo determinado crité- rio, de maneira que a força aflore; e diminuirá devido ao exercício escasso, caso siga um critério diferente. Lembramos da nossa própria juventude, que há diferentes níveis de energia entre os jovens. Analogamente, a faculdade intuitiva se dá em todos os homens, mas varia para mais ou para menos, especialmente nas coisas às quais se dispende maior atenção e reflexão. Assim, você observará que Fulano falou e agiu de determinada maneira com respeito a Cicrano, numa dada situação. E encontrará, entre as pessoas, aquela em quem a imaginação e

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a intuição são muito fortes e certas, de forma que é até possível que imagine algo como re e isto ocorra conforme imaginou, ou perto disso. Suas causas são muitas, pois é produto de uma série de numero- sas circunstâncias: anteriores, posteriores e amais. Mas, em virtude desta faculdade de intuição, o intelecto recorre a todas estas circunstâncias e deduz as conclusões em tempo tão curto que parecem instantâneas. Por isso, certos homens prognosticam eventos futuros importantes. Ambos os dotes Ðcoragem e intuição Ðdevem ser, necessariamen- te, muito fortes e, quando o intelecto ativo se derrama sobre eles, al- cançam uma pujança extraordinária, até aquele grau que você já co- nhece :um homem é capaz de se apresentar de forma corajosa, somente com seu cajado, diante de um grande rei, para libertar uma nação da escravidão por ele imposta, sem medo nem temor, somente por que se lhe havia dito: ªPorque Estarei contigoº (Exodo 3:12),

Este estado é variável entre esses homens, mas indispensável. Como se dis- se a Jeremias: ªNão temas diante deles (...) eis que aqui te ponho, desde hoje, como cidade fortificada (...)º (Jeremias 1:8,1718). E deste modo a Ezequiel: ªNão os temas nem tenhasmedo de suas palavrasº (Eze- quiel 2:6). Assim, vêse a todos (A paz esteja com eles!) dotados de grande coragem. Igualmente, em virtude do extraordinário desenvol- vimento de suas faculdades intuitivas, predizem sem demora o futuro, ainda que, tambémnisto, existam diferentes graus entre eles, como você sabe. E preciso saber que os Profetas Autênticos concebem idéias que re- sultam de premissas que a razão humana, por si só, não poderia com- preender, como quando contam coisas que o homem, somente através da razão ou da simples imaginação, não é capaz de contar. Esta mesma inspiração Ðque se sobre a imaginação e a aperfeiçoa até o ponto em que sua ação chega a predizer o futuropercebêlo como se fosse resultado dos sentidos, exeqüível à imaginação por intermédio desquilata também a operação da faculdade racional, até chegar, por meio desta, a conhecer

a realidade das coisas e lograr sua percep- ção, como se a houvesse alcançado através de proposições especulati- vas. Esta verdade deve ser admitida por todo aquele que aspiraa um juízo imparcial, pois também as coisas atestam e provam umas às ou- tras. Isto se aplica forçosamente à faculdade racional, dado que, de fato, o Intelecto A tivo derramase verdadeiramente sobre ela e a conver- te em ato. Assim, pela faculdade racional a emanação advém à faculda- de imaginativa. Como, então, a faculdade imaginativa se apfeiçoa até

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o ponto de representar coisas não percebidas anteriormente pelos sen- tidos, se o me

smo nível de perfeição é atingido pelo intelecto e este não pode compreender as coisas a n ser pelo modo convencional, ou seja, através de premissas, conclusão e inferência? Esta é a verda- deira característica da Profecia e das disciplinas às quais a Profecia deve estar totalmente voltada. Se dissertei a respeito dos Profetas A utênticos foi para diferenciálos das pessoas da terceira casta, que não possuem pensamento claro nem sabedoria, mas somente imaginação e pensamentos desconexos. Tal- vez o que atinja estas pessoas sejam vestígios de pensamentos que se tornaram quimeras, juntamente com todo o que há em sua imaginação. E à medida que esqueceram essas coisas imaginadas eesses sonhos, os vestígios de pensamentos desconexos que restaram lhes parecem umnovo pensamento e algo vindo de fora. Eu as compararia a um ho- mem que, havendo tido em sua casa mil animais e tendo sido todos retirados, exceto um somente, aquele homem, em companhia apenas deste animal, acredita que acaba de entrar em cas

a com este animal Ð o que não é verdade! Ao contrário, este é aquele que não saiu. Este é,re todos, o terreno mais perigoso, e quantos aqui morre- ram, entre aqueles que se consideravam sábios! Por esse motivo, en- contramse pessoas cujos pensamentos conceberam em seus sonhos, mas acredita que a visão acontecida durante o sono nada mais é do que a consideração que fizeram ou que ouviram no estado de vigília. Por isso, não se deve outorgar crédito àqueles que não tenham uma facul- dade racional perfeita ou quenão tenham alcançado alto nível especu- lativo, pois somente quem a logrou é capaz de extrair conhecimentos ulteriores quando o Intelecto Divino se infunde sobre ele, e este é o Pro- feta autêntico. O que expressa o texto: ªE venhamos1 1 a ter um cora- ção sábmo 90:12), é que o verdadeiro Profeta é aquele que tem um coração sábio. Também isto vocêisa e deve saber.

11

ªE venhamosº: curiosamente, é utilizada a mesma palavra para este verbo que, em hebraico, é usada para se referir a ªProfetaº ÐN a ví (NT).

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2.2.%

CAPÍTULO

39

M O ISÉ S FOI O P R O FE T A M A IS A P R O P R IA D O P A R A R E C E B E R E P R O M U L G A R A LEI IM U T Á V E L . OS P R O FE T A S Q U E O SU C ED E - R A M AP E N A S A E N S IN A R A M E E X P L IC A R A M

Após explicarmos o bastante sobre Profecia, conhecermos a sua ver- dade e demonstrarmos em que a Profecia de M oshé Kabênu se distin- gue da dos demais, afirmamos que esta percepção, por si só, obriganos ã leitura da Bíblia. Não houve, desde Adão até Moisés (Aeja sobre ele!), algo semelhante em nenhum Profeta conhecido. Dessa forma, é princípio fundamental de nossa Lei que jamais haverá outro. Por isso, é nossa crença que nunc

a houve nem haverá alguma outra Lei senão a de Moisés. Eis aqui a explicação, conforme expresso nos Livros dos Profetas e transmitido pela Kabalá (Tradição).12 E um fato que, entre todos os Profetas que precederam a M oshé JLabênu, como os patriarcas Sem, Éver,Noé, Matusalém e Enoque, jamais al- gum disse a um grupo de homens: ªDeus me enviou a vocês e orde- nou que lhes dissessem isso ou aquilo, proíbeos de fazer tal ou qual coisa e os prescreve esta outraº. Isto é coisa que não se encontrará em

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Kabalá, aqui, no sentido estrito de tradição passada de geração em geração, e não no conhsentido esotérico (NT).

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2 .2 .4

°

GUIA

d o s

p e r p l e x o s

qualquer escrito da Torá e não haverá sobre isso qualquer história ver- dadeira, ainda que, como explicamos, estes patriarcas receberam a Pro- fecia divina. E quem recebeuuma emanação maior, como Abrahão, reunia os homens e os dirigia pelo caminho do estudo e na direção reta à verdade por ele recebida. Assim, Abrahão ensinava as pessoas, demonstrandolhes, por meio de provas especulativas, que no mundo há somente um Deus eEle criou tudo quanto existe fora dele; portanto, não se deve idolatrar as formascelestes, nem coisa alguma criada. Inculcava isto nos homens, atraindoos com belas palavras e benevolên- cia, mas jamais lhes disse: ªDeus me enviou até vocês e me mandou ou proibiu (isto ou aquilo)º. Quando lhe foi ordenada a circuncisão Ða ele, a seus f

ilhos e servos Ðcircuncidouos, mas não conclamou ou- tros, por meio de um apelo profético, a fazerem o mesmo. Fixese no texto bíblico: ªPorque o conheci (...)º (Gênesis 18:19). Está claro que somente se cumpria uma mitsvá (mandamento): Isaac, Jacob, Levi, Kehát e Amram fazem um apelo semelhante aos homens. Do mesmo modo, notase que os Sábios, com relação aos Profetas anteriores a Moisés, referemse a: ªo tribunal de Everº, ªo [ibunal] de Matusalémº, ªa Academia de Matusalémº, porque todos eram Profetas que instruíams pessoas por meio de comentaristas, professores e guias, mas nunca se afirmava: ªDisseme YHVH: Fala aos descendentes de Fulanoº. Assim foi antes de Moisés. Quanto a este, já se sabe o que foi dito dele e o que o povo disse dele ª(...) Neste dia vimos que Deus fala com o homem (...)º (Deuteronômio 5:21). Com respeito a todos os Profe- tas posteriores a Moisés, já se sabe como se expressam em todas as suas relações com os homens: apresentamse como predicadores, con- vidandoos a observar a Lei de Moisés, ameaçando aqueles que se mostram rebeldes e formulando promessas aos que se esf

orcem em seguila. Acreditamos que sempre será assim, conforme o afirmado: ªNão está nos Céus (...)º (Deuteronômio 30:12); ª(...) a nós e a nossos filhos, para sempre (...)º (Deuronômio 29:28). E assim deve ser, por- que quando uma coisa se apresenta como a mais perfeita de sua espé- cie, qualquer outra da mesma espécie pode, quando muito, resultar inferior em perfeição Ðora por excesso, ora por falta. Se uma mesma medida implicaa máxima igualdade possível de uma espécie, qualquer outro ser dessa espécie que se desviasse dessa medida pecaria por ex- cesso ou por falta. O mesmo ocorre com esta Lei, declarada igual (eqüitativa, justa), ao se dizer: ªestatutos e mandamentos justosº (Deutero- nômio 4:8), pois, como sabe, Tsadikim (Justos) significa iguais ou eqüitativos.

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SOBRE

A

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São práticas (espirituais) em que não há carência nem excesso, como ocorre na prática dos

mitões nas montanhas, que se privam da carne e do vinho e de diversas necessidades do corpo, bem como do movi- mento prático. Também não há vício que conduza à voracidade oviandade, que minam a perfeição do homem em sua conduta e nos estudos, como é o caso das prescrições dos povos andgos. Quando nos referimos, neste Tratado, aos motivos passíveis de se alegar para as M itsvót (Mandamentos), a sua igualdade e sabedoria tornarseão totalmente claras para você, por isso: ªA Lei de YHVH é perfeitaº (Salmos 19:8). Porém, quem acredita que esta imponha car- gas grandes e pesadas, causadoras de angústias, incorre em um erro de julgamento. Eu demonstrarei que, para as pessoas íntegras, seus man- damentos são fáceis, na verdade. Daí a declaração: ªQual é a coisa que pedeteu Deus, de ti? (...)º (Deuteronômio 10:12); e também: ªPorventura sou Eu para Israelum deserto? (...)º (Jeremias 2:31). Tudo isto se refere aos íntegros. Pois bem, quanto aos ímpios, violentos e despóticos, para estes, o mais difícil e nocivo é considerar

que haja um juiz que evite o despotismo, assim como, para os dominados por pai- xões não nobres, o pior é a repressão à sua conduta de entrega desen- freada à lascívia, pois,ndo assim, atraem para si o castigo da Lei. Assim, todo homem vicioso considerauma carga pesada a restrição ao mal com que se compraz, como conseqüência de sua depravaçãmo- ral. Não se deve medir, portanto, a facilidade ou dificuldade da Lei com base na paixão do homem malvado, vil e de costumes corrompi- dos, mas devese, sim, avaliála conforme a conduta do homem ínte- gro, pois a finalidade da Lei é de que todos sejamcomo este. Denomi- nemos somente a esta Lei de L ei Divina. Todo o resto, externoa ela Ð como os governantes nacionais, as leis dos gregos e as loucuras dos Sabianos e seus semelhantes Ðé obra de políticos, não de Profetas, como já expliquei diversas vezes.

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SOBRE A

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Q_±J

CAPÍTULO 4 0

O TESTE DA PROFECIA VERDADEIRA

Proclamase claramente que o ser humano é político1 3 por natureza, e esta condição lheimpõe viver em comunidade; não é como os demais animais, cuja reunião em comunidade não representa uma necessida- de. Devido à complexidade da nossa espécie Ðpois, como você sabe,a última Ðseus indivíduos apresentam diferenças tão pronunciadas que não se encontrarão dooncordantes em um costume qualquer, como tampouco se vêem rostos iguais. A causa se fundamenta na exis- tência de diferentes seres complexos que origina uma distinção nas matérias, como também nos acidentes anexos à forma, pois cada uma das formas naturais tem seus acidentes peculiares que a acompanham, à parte da matéria. Uma variação tão grande entre indivíduos não ocorre em qualquer outra espécie animal Ðao contrário, a diferença

ndividual em cada uma delas é pouco definida, enquanto , na humana, é possível se encontrar duas pessoas tão distintas em qualidades morais que se diria que pertencem a espécies diferentes. Assim, poderia ocorrer o caso de um indivíduo tão impiedoso quedegolasse seu filhinho no

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Político: em hebraico, mediní. Nas versões respectivamente em língua inglesa e espanhola, foi traduzido como ser social (NT).

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22.8

O

GUIA

DOS

PERPLEXOS

auge da cólera, enquanto outro, por sua sensibilidade delicada, se im- pressionariadiante da idéia de matar um mosquito ou um réptil, o mesmo se aplica à maioria das eventuais características. Portanto, posto que a natureza humana implica esta variedade de indivíduos e a natureza política lhe é inerente, por sua própria índole, seguese que é absolutamente impossível que a sociedade seja perfeita sem um guia que coordeneos esforços individuais, suprindo o escasso e moderando o excessivo E que ele possa prescrever ações e normas éticas obrigatórias a todos, conforme um mesmo modelo, de modo que a variedade natural fique atenuada mediante uma grande harmonia convencionada e a sociedade se mantenha em ordem. Por isso insisto que a Lei, ainda que não

 seja natural , não é total- mente estranha à questão natural. Ela vem da Sabedoria Divina que, para conservar a nossa espécie, cuja existência préordenou, fez com que seus indivíduos tivessem uma faculdade de governar. Alguns foram inspirados com teorias de legislação, como os Profetas e os legisla- dores; outros possuem o poder de impor ocumprimento da lei pres- crita por eles, tornandoa realidade: são os reis que adotam as leis dos legisladores e legisladores cujo desejo é ser Profetas e aceitam total ou parcialmente os ensinamentos dos Profetas. Quando acei- tam uma parte e deixam a outra é porque lhes é mais conveniente, ou porque, por ambição, buscam convencer as pessoas de que recebe- ram estas coisas por meio de Revelação e não porque as tomaram de outro. Pois há pessoas que, aficcionadas por determinada perfeição que lhes pareça excelente, sentem prazer e se empenham para que as pessoas as imaginem dotadas da mesma, ainda que conscientes de que carecem totalmente dela Ð como quando se observa alguém se pavoneando com um poema alheio, cuja autoria atribui a si próprio; o que

 igualmente ocorre com algumas obras de sábios e obras de conhecimentos diversos,quando este indivíduo invejoso e preguiço- so, que arrebata algo inventado por outro,alega ser o autor de tais obras. O mesmo acontece com esta perfeição Profética: encontra- mos sujeitos pretensamente Profetas, que proclamaram haver rece- bido uma Profecia e declararam coisas que jamais foram profetiza- das, como é o caso de Tsidkiá.ben Keneána (I Reis 22:1124). E há pessoas que presunçosamente se atribuíram a capacidade da Profecia e anunciaram coisas que, sem dúvida, foram ditas por Deus, ou seja, fruto de Inspiração D ivina , mas não a eles, como é o caso de Chananía ben Azur (Jeremias 28:15).

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SOBRE A

PROFECIA

22Ç)

Eu lhe explicarei tudo isso, ainda que seja manifesto e bastante cla- ro, para que

 nada fique na penumbra, e que você tenha um critério para distinguir entre os regimes de leis convencionadas, os da Lei Divina e os emanados dos homens que usurpam as palavras dos Profetas, apro- priandose delas com petulância. Quanto às leis cujos autores declara- ram expressamente como produtos de sua reflexão, não há necessidade de argumentação alguma, pois, se são resultados de reflexão, não neces- sitam de prova. Quersomente lhe informar acerca dos regimes alega- dos como proféticos, pois há os verdadeiramente proféticos, ou seja, divinos, há os parcialmente legislativos e parcialmente plagiados. Conseqüentemente, caso ocorra o caso de um governo cuja única finalidade e propósito do autor que calculou seus efeitos não seja outra senão ordenar o Estado e seus assuntos, evitar a injustiça e a violência sem insistir para nada em coisas teóricas, nem parar para pensar raci- onalmente, nem se preocupar com opiniões, sejam sãs ou mórbidas senão que, pelo contrário, seu único objetivo seja quanto às relações do

ns entre si e a conseqüência de certa felicidade presumível, de acordo com o legislador Ðsegundo este pressuposto, digo, você saberá que este governo é puramente legislativo, e seu autor pertence, como fica dito, à terceira casta, ou seja, à daqueles que têm somente a perfeição da faculdade imaginativa. Caso se trate de um governo cujas disposições todas apontam para a melhora dos interesses materiais acima mencionados, assim como também da fé, ao dirigir suas intenções no sentido de inculcar princípi- os verdadeos acerca da Divindade e dos Anjos, com o propósito de fazer o homem sábio, inteligente e cordial, para que conheça toda a realidade em sua condição autêntica, então você sabque este é um governo que emana de Deus e que esta Lei é divina. Ainda lhe faltará verificar se quem a proclama é um homem ínte- gro, a quem a verdade lhe foi revelada porProfecia, ou um sujeito que se vangloria destas revelações e roubouas de outros. Como compro- vação se impõe um exame da sua integridade: pesquisar e conhecer suas atividades e observar sua conduta. O melhor critério será sua re- pulsa e desprezo aos prazer

es físicos: é a primeira atitude nos homens de ciência, quanto mais dos Profetas! Particularmente com relação àqueles prazeres dos sentidos que, como lembrou Aristóteles, consti- tuemse em vergonha para nós. Isso tudo Deus transmitiu através da Profecia, para esclarecer a verdade aos que a buscam: que não se desviem

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SOBRE A

PROFECIA

CAPÍTULO

41

O QUE SE ENTENDE POR VISÁO PROFÉTICA: OS QUATRO MO- DOS BÍBLICOS

Desnecessário explicar o que é o Sonho. Quanto à Visão, como em Números 12:6: ªEu me revel a ele em Visãoº, conhecida sob a deno- minação de M arêN eviá (Visão Profética), também cBíblia de Yad YHVH (Mão de Deus) e M acha^ê 15 (Drama, Cena), a Visão é um estado de agitae terror que se apodera do Profeta, como se afirma de Daniel nestas palavras: ªE vi esta grande Visão. Minhas forças me deixaram, a cor do meu rosto fugiu, fiquei desmaiado e sem vigor.º E prossegue: ªCaí com o rosto em terra, adormecido.º (Daniel 10:89). Depois, quando o anjo lhe fala e lhe faz levantar, é no estado de Visão Profética,em que os sentidos se paralisam e a emanação se derrama sobre a faculdade racional,e dela para a imaginativa, de tal maneira que esta se aperfeiçoa e entra em ativid

ade. As vezes, a Profecia se inicia com uma visão Profética: há uma agitação e emoção inte, devido a toda a atividade da faculdade imaginativa, e, depois disso, a Profecia segue adiante, como ocorreu a Abrão16 antes da Profecia:

15 Veja II Reis 3:15; Ezequiel 1:3 e 3:22; 37:1 e 40:1. 16 Referese a Abrão, e nãoAbrahão, pois foi antes de ter se selado o pacto entre ele e Deus, quando foi acrescentada uma letra Hê ao seu nome, transliterada como hã (NT).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

ª(...) manifestouse a palavra de YHVH a Abrão na visão (...) (Gênesis 15:1) e no final: ª(...) um sono pesado caiu sobre Abrão (...)º (Gênesis 15:12) e: ªE disse a Abrão (...)ºis 15:13). Saiba que, quando os Profetas falam do fato de terem recebido uma Profecia, dizem que receberamna de um anjo ou que Deus se comunicou com eles, embora tenha sido através de um anjo, sem dú- vida. Os Sábios também escreveram sobre isso nestes termos: ªC E disselhe YHVH (...)' (Gênesis 25:23) através de um anjo {(Talmud Ð Bereshit Rabá).º Perceba que todas as vezes que a Bíblia relata que Deus ou um anjo falou com uma pessoa, isto ocorreu em um Sonho ou em uma Visão Profética. O relato sobre amissão que cabe aos Profetas, de acordo com o que é contado nos Livros dos Profetas, é feito de quatro modos: Primeiro Modo: Quando o Profeta afirma taxativamente que a pala- vra veio de um anjo em Sonho ou em Visão. Segundo Modo: Quando o Profeta na

rra as palavras do anjo, sem escla- recer se foi um Sonho ou Visão, pois ele confiano que já é conhecido Ðsó há Profecia por uma destas duas maneiras: ªEm Visão Eu me revelaa ele, e por Sonho Lhe falarei.º (Números 12:6). Terceiro Modo: Sem se referir de modo algum a um anjo, o Profeta atribui a palavra a Deus (Exaltado Seja!) que teria se dirigido a ele em Pessoa, mas menciona que esta palavra veio a ele em Visão ou Sonho. Q uarto Modo: Quando o Profeta assegura simplesmente que Deus lhe falou ou lhe ordenou: Faça isto ou Diga isto, sem esclarecer se foi por mediação de um anjo ou de um sonho, fiandose no conhecido e esta- belecido: que nenhuma Profecia nem Revelação ocorre senão em So- nho ou Visão e por intermédio de um anjo. Como exemplo do Pmeiro Modo, mencionamos: ªE disseme um anjo de Deus no sonho (...)º (Gênesis 31:11); ªE falou Deus a Israel em visões da noite (...)º (Gênesis 46:2); ª E veio Deus a Bilám (...)(Números 22:912). Com respeito ao Segundo Modo, cabe citar os se- guintes exemplos: ªE disse Deus a Jacob: `Levantate, sobe a BetEl (...)º (Gênesis 35:1); ªE disselhe Deu

s: Teu nome é Jacob (...).º (Gê- nesis 35:10); ªE chamouo Y H V H um anjo dos Céus e diss(...)º (Gênesis 22:11); ªE chamou Y H V H um anjo dos Céus a Abrahão, pela segunda vez (...)º (Gênesis 22:15); ªE falou Deus a Noé (...)º (Gênesis 8:15). Temos, como exemplo do Teriro Modo, a seguinte passagem: ª(...) manifestouse a palavra de Y H V H a Abrão, na visão (...)º (Gênesis 15:1). Para o Ouarto Modo, encontramos as seguintes:

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SOBRE A

PROFECIA

ªE disse YH VH a Abrão (...)º (Gênesis 12:1); ªE disse YH VH a Jacob: Volta à terra de teupais (...)º (Gênesis 31:3); ªE disse YH VH a Josuéº (Josué 3:7); ªE disse YHVH a Gideão (G(Juizes 7:2). E assim geralmente se expressam os Profetas: ªDisseme YH VH º (Isaías 8

:1); ªFoime dirigida a palavra de Y H VH , dizendoº (Ezequiel 24:1); ªA palavra de YH VH chegaraº (II Samuel 24:11 e I Reis 18:1); ªE lhe dirigiu YH VH a sua palavraº (I Reis 19:9); ªFoi palavra de Y H V H º (Ezequiel 1:3); ªComeçou o falar YH VH a Oséiasº (Osé1:2); ªFoi sobre mim a Mão de Y H V H º (Ezequiel 37:1 e 40:1). Há muitos exemplos deste teor. Tudo o que se apresenta em cada um destes quatro modos é Profe- cia, e quem a emite é um Profeta. Pois bem, quando se diz: ªDeus veio a Fulano em sonho noturnoº, neste caso não há Profecia em absoluto, nem esta pessoa é um Profeta; somente se indica que lhe chegou um aviso da parte de Deus, e nos adverte seguidamente que aconteceu por meio de um sonho. Com efeito, assim como Deus põe em movimento uma determinada pessoa para salvar a outra ou para destruíla, do mesmo modo suscita, no sonho noturno, certas coisas que deseja rea- lizar. Não duvidamos que Labão ÇLaván), o Arameu, era um malvado completo, adorador de práticas gentias, e sobre Abiméleq (Avimêlech ),

 apesar de ser um homem bom para o seu povo, o Patriarca Abrahão afirmou de sua cidade e seu reino: ª(...) talvez não haja temor de Deus neste lugar (...)º (Gênesis 20:11). Contudo, de um e de outro, Labão e Abiméleq, se disse, respectivamente: ªE veio (apalavra de) Deus a Abiméleq, no sonho da noite (...)º (Gênesis 20:3), e igualmente com respeito a Labão: ªE veio Deus a Labão, o Arameu, no sonho da noite (...)º (Gênesis 31:24). Veja isso! Reflita sobre a diferença entre ªVeio Deusº e ªFalou Deusº, assim como entre as palavras ªem um sonho noturnoº e ªem visão noturnaº, pois se afirma de Jacob: ªE faloueus a Israel em visões da noite (...)º (Gênesis 46:2), e para Labão e Abiméleq: ªDeus veio...) em sonho da noite (...)º (Gênesis 20:3). Por isso, Onkelos traduz: ªE veio palavra da parte de YH VH , e não falou para estes dois: E Deus se revelouº. Também se afirmou: ªYHVH falou a Fulanoº. Este fulano não re- cebeu qualquer visão que não fosse por inteediação de um Profeta, como nesta passagem: ª(...) E foi consultar a YHVH (...)º (Gênesis25:22), e se esclarece: ªna Academia de Everº. E Deus lhe respondeu, conforme está esc

rito: ªE disselhe YHVH (...)º (Gênesis 25:23). Con- sidere, portanto, estas possibilidades: caso seja verdade que Ever é o

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g u ia

d o s

p e rp le x o s

malách {anjo ou mensageiro ), chamado tantas vezes de anjo pelo Profeta, como será explicado; se indica o anjo que veio a Éver naquela Profecia; ou talvez o objetivoseja esclarecer que, em qualquer lugar onde haja uma mensagem atribuída simplesmente a Deus, entendase através de um anjo , aplicável a todos os Profetas, como explicamos.

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SOBRE A

PROFECIA

CAPÍTULO 4 2

PROFETAS RECEBERAM COMUNICAÇÃO DIRETA APENAS EM SONHOS OU VISÕES Como já explicamos, sem

pre que se menciona a aparição de um anjo e uma mensagem sua, tratase de uma Visão ou de um Sonho Profético, tenhase ou não declarado isto expressamente. Pouco importase al- guém afirmou que notou que era um anjo imediatamente ou que este lhe pareceuprimeiramente um ser humano e depois comprovouse que se tratava de um anjo. Sempre, que, ao final, você averiguar que quem foi visto e falou era um anjo, acreditará por certo que, desde o princípio, era uma Visão ou Sonho. Em ambos os casos, ora o Profeta percebe Deus falando com ele, como veremos, e ora é um anjo, ou melhor: ele ouve sem ver quem lhe fala ou contempla um ser humano que lhe dirige a palavra, e depois verifica que este era um anjo. Este é um princípio sumamente importante, professado pelos Sá- bios. O maior dos maiores, Rav Chiá HáGadol (Rabi Chiá, O Grande),ao interpretar a seguinte passagem da Torá: ª E apareceulhe YHVH junto a Elonê [planícies de] Mamrê (...)º (Gênesis 18:1), afirma que,inicialmente, informase de maneira suc

inta que Deus apareceu a Abrão e então passase a explicar em qual forma Ele surgiu, esclare- cendo que Abrão primeiramente viu três pessoas, e correu. Eles lhe falaram e ele lhes respondeu. O autor desta interpretação assegura que

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as palavras de Abrão: ª (...) Meu Senhor, se tenho achado graça em teus olhos, rogote que não passes longe de teu servoº (Gênesis 18:3) guardam uma referência ao que Abrão, em Visão Profética, disse a um dos homens, como pode se constatar na frase: ªFalou ao maior entre elesº1

 

. E preciso compreender e se aprofundar nisto, porque é o se- gredo entre os segredos. Ocorreme, também que, na história de Jacob, quando se diz: ª(...) e lutou um homem com ele (...)º (Gênesis 32:35), tratase igualmente de uma Profecia, posto que, ao final (Gênesis 32:29 e ss.), afirmase claramente que era um anjo.O mesmo ocorre na história de Abrahão, em que se declara no princípio, resumidamente,que ªDeus lhe apare- ceu (...)º e, em seguida, explicase como isto sucedeu. Do mesmomodo, com respeito ajacob, afirmase: ª(...) e encontraramno anjos de Deusº (Gênesis32:2), e narrase o ocorrido desde então até que se encontra- ram,, contase que envio

u mensageiros a Esaú e, depois de fazer isto e aquilo, ªE ficou Jacob só (...)º (Gênesis 32:25), porque aí se trata des- tes mesmos anjos de Deus, de quem se disse em princípio: ªsaíramlhe ao encontro anjos de Deusº. Esta luta e o diálogo se desenvolvem em Visão Profética. Analogamente, todo o ocorrido com Bilám no caminho (Números 22:22 e ss.), juntamente com o dito pela jumenta, foi em Visão Profética , posto que, ao final, afirmase taxativamente (Números 22:32) que ªE disselhe o anjo de Y H V H (...)º. Igualmente, a propósito da visão de Josué: ªAlçou os olhos e viu que estava um homem diante deleºosué 5:13), acredito que se trata de Visão Profética, dada a conti- nuação claramente espeficada: ªSou um ministro do exército de Y H V H º (Josué 5:1415). Pois bem, com respeito a Juizes 2:14; ªSubiu um anjo de Y H V H do Guilgál (...) e quando o anjo de Y HV H disse estas palavras a todos os filhos de Israel (...)º (Juizes 2:14), os Sábios afir- mam que o anjo de Deus em questão é Pinchas, nestes termos: ªE Pinchas quem, aodescer sobre ele a Divina Majestade, assemelhavase a um anjo de Deusº. Já esclarece

mos que o termo malách, como anjo, é polivalente, e que o Profeta também é chamado de anjo, como nos textos seguin- tes: ª(...) e enviou um anjo e nos tirou do Egitoº (Números20:16); ªEntão Ageu, o anjo /enviado de Y H V H , falou a mando de Y H V H º (Ageu 1:13); ªMas eles fizeram escárnio dos anjos/ mensageiros de

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Talmud, Gênesis R abá 128.

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Deusº (II Crônicas 36:16). Assim como quando Daniel disse: ªE aquele homem, Gabriel, a

 quem antes vi na visão voando rapidamen- te, chegou a mim como a hora das orações vespertinasº (Daniel 9:21). Deste modo, tudo isso sucede em Visão Profética, segundo se depre- ende de Números 12:6: ª(...) em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele Das referências citadas, separe o que permanece do que não foi mencionado. Do declarado anteriormente acerca da necessidade de preparação para a Profecia18 e sobre o uso multifacetado do termo malách, tenha claro que Hagár, a Egípcia, não era profetisa, nem Manué (Manôach) e sua mulher eram Profetas (Juizes 13:2 e ss.),19 pois a palavraque perce- beram ou que chegou a seu conhecimento era algo parecido com a Bát K ó l (Eco), de que falam os Sábios com freqüência, e designa uma situa- ção externa à pessoa. O qnduz a erro a respeito disso é o múltiplo uso do termo, mas é precisamente esta multiplicidade de significados que resolve a maioria das dificuldades atinentes à Torá. Perceba que o texto: ªE achoua o anjo de YHVH sobre a fonte (...)º (Gênesis 16:7) é simil

ar àquele sobre José, em que se afirma: ªE encontrouo um homem, e eis que [José] estava perdido no campo (...)º (Gênesis 37:15). Segundo todas as Midrashót, tratase de um anjo.

18 19

Veja supra, cap. 32, 3a opinião (Maeso). Veja Gênesis 17:7 e s. e 21:17. Idem, Juizes 12:311 (Maeso).

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SOBRE A

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CAPÍTULO 4 3

SOBRE AS PARÁBOLAS DOS PROFETAS

Já expusemos, em obras anteriores [em M isbnê Torá\, que os Profetas às vezes se expressam por parábolas, e a razão para isso é que há ocasiões em que o Profeta percebe uma coisa nesta forma, seguida da explicação desta mesma visão. E como alguém que tem um sonho, nele imagina que está acordado e relata um sonho a outro, o qual lhe explica o sentido Ðmas foi todo um sonho. E o que se denomina ªum sonho interpretado dentro de umsonhoº. Em outros casos aprendemos o significado do sonho depois de acordarmos domes- mo. De modo semelhante, algumas parábolas Proféticas se esclare- cem na própria Visãorofética, como aparece claramente em Zacarias, após a apresentação de algumas parábolas: ªanjo que falava comi- go veio e me despertou como a um homem que desperta de seu sonho, e me disse: O que vês? (...)º (Zacarias 4:12). Então a parábola é explicada (Zacarias 4:6 e ss.). O mesmo se encontra no livro de Daniel, quando ªDaniel teve um sonh

o e viu visões de sua cabeça enquanto estava em sua camaº (Da- niel 7:1) e, após o relatode todas as parábolas e seu incômodo por ignorar o significado das mesmas, perguntaao anjo, que lhe revela o sentido nesta mesma visão: ªAproximeime de um dos assistentes e lhe pedi que me dissesse a verdade acerca de todo isso. Ele me falou e

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me declarou a interpretaçãoº (Daniel 7:16). Depois de afirmar que havia sido um sonho, chamou a este de Visão porque, conforme ele assegurou, um anjo lhe explicou em sonho profético. Por isso acres- centa: ªEu, Daniel, tive uma Visão, depois daquela tida anteriormenteº (Daniel 8:1). Isto está claro, porque Cha^ón deriva da raiz verbal Cha^á,como M arê de ªRaẠ(ver), de modo que não existe diferença entre Mará, Macha^ê e Cha^ón.um terceiro caminho, mas so- mente os dois caminhos indicados pela Torá: ª(...) em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com eleº (Números 12:6); embora haja graus,como será explicado. Não obstante, nas parábolas Proféti- cas há muitas cujo sentido não splica na visão Profética, se bem que o Profeta reconheça a intenção ao despertar, como é oaso dos cajados que Zacarias tomou em Visão Profética (Zacarias 11:7 e ss.). Devese saber que, assim como os Profetas vêem coisas que, para exemplificar certas idéias,

 aparecemlhes como parábolas Ðcomo as luminárias (Zacarias 4:2), os cavalos e as montanhas de Zacarias (Zacarias 6:17); a M eguihr 0 de Ezequiel (Ezequiel 2:9); o muro construído no nível, visto por Amós (Amós 7:7); os animais observados por Daniel (Daniel 7 e 8); a panela fervendo vista por Jeremias (1:13) e outras pará- bolas semelhantes Ð , do mesmo modo eles vêem coisas que tendem a explicar por uma palavra que lembra, por sua etimologia ou pelo uso polivalente do nome, a designação do objeto percebido, de modo que a ação da faculdade imaginativa consiste, até certo ponto, em apresen- tar uma coisa designada por um termo polivalente, em que uma das acepções leva a outra, o que é uma das características da parábola. Assim, quando Jeremias afirma ver M aquêl Shakêd, uma ªvara de amên- doaº, sua intenção é uma dedução do uso múltiplo do tee acrescenta: ªpois eu persistirei (shokêd) (...)º (Jeremias 1:1112). Não se trata, portanto, de vara nem de amêndoa. Do mesmo modo, quando Amós vê Klúv Káits, um ªcesto (de frus) de verãoº, é para deduzir a medida do tempo, porquanto afirma: ªe veio o fim (k êts )º

mós 8:2). Todavia, é mais surpreendente quando se presta atenção a um determinado termocujas letras correspondem a outro, se a ordem das mesmas for alterada, ainda que não exista entre ambos nenhuma relação etimológica ou semântica em comum, como nas parábos de

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Meguilá (hebraico): livro formado por folhas de pergaminho, enroladas em vol- ta deum cilindro de madeira, que guarda um relato específico (NT).

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Z4 I

Zacarias, quando, em uma Visão Profética, ao empunhar os dois caja- dos para pastorear

 o gado, dando a um o nome de N ôam (Graça ou Favor) e a outro o de Chovlím (Destruidores). Nesta parábola insinuase que a nação, no início, tinha a graça de Deus e era Ele quem a guiava e dirigia, e ela se regozijava e tinha prazer em Obedecêlo. Deus a propiciava e a amava, segundo se declara: ªA YH VH glorificaste hoje (...)º (Deuteronômio 26:17) ªE YHVH te separou hoje para ser para Ele um povo amado (...)º (Deuteronômio 26:18), quando a nação era conduzida e regida por Moisés e os Profetas que o sucederam.Porém, depois ela mudou de atitude, até sentir aversão pela obediência a Deus, de tal modo que Ele também experimentou o mesmo com respeito a ela e trocou seus chefes para destruidores, tais como Jeroboão e Menashê. Este é o sentido etimológico, porque Chovlím se relaciona com M echablím Kramím (Destruidores de Vinhas) (Cânticos 2:15). Depois se deduz, igualmente, com respeito a Chovlím, que eram renitentes à Lei e a Deus. Mas este sentido não pode ser derivado de Chovlím senão mediante a transposição das letras (d

a raiz da palavra) Chêt (Ch), Vêit (V) e Lámed (L), e, conseqüentemente, relacionase à ida de aversão e de abominação que encerra a parábola: ªEntão tomei aversão ao rebanho, e tauas almas se enfastiaram (

 

b a ch a lá )2 1 de mimº (Zacarias 11:8). Com este método descobremse coisas muito estranhas Ðque tam- bém são segredos Ðempregadas na M erk aváf1 c as palavras Nechóshet (cobre), kelál (geral), réguel (pé ou pata), éguel (bezerro) e chashmál (eletricidade).23 Graças a esta advertência, de acordo com essa perspec- tiva, outras palavras de diversas passagens lhe parecerão cristalinas , se as examinar bem em cada lugar.

21 Em b a ch alá , a letra Bêt (B) é a mesma que a denominada 1 Vêt (V), com o acréscimo,na primeira, de um ponto no meio da letra (NT). 22 Merkavá: Maimônides se refere aoRelato da Carruagem , de característica esotéri- ca (NT). 23 Em Ezequiel 1.

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CAPÍTULO 4 4

SOBRE OS DIFERENTES MODOS ATRAVÉS DOS QUAIS OS PRO- FETAS RECEBEM MENSAGENS DIVINASA Profecia somente será por Visão ou Sonho , como já explicamos mui- tas vezes e nunca deixaremos de insistir. Diremos agora que, quando se sente inspirado, o Profeta percebe às vezes uma parábola, conforme explanado reiteradamente. Em certas ocasiões, ele acredita contemplar a Deus (Exaltado Seja!), como quando disse Isaías: ªE ouvi avoz do Eterno, que dizia: A quem enviarei e quem irá de nossa parte?º (Isaías 6: 8). Outras vezes ouve um anjo lhe falar, caso muito comum, como nas seguintes passagens: ªE disseme um anjo de Deus (...)º (Gênesis 31:11); ªE então me respondeu: Não sabes oue é isso? E o anjo que me falava contestou (...)º (Zacarias 4:5); ªEntão ouvi falar a u

m dos justosº (Daniel 8:13). Isto é tão freqüente que sobram exemplos. Há ocasiões em queProfeta dirigese a um ser humano que lhe fala, como em Ezequiel: ªE um homem de aspecto como de cobre (...) disseme aquele homem: Homem! (..,)º (Ezequiel 40:34), depois de, no início, dizer: ªEsteve sobre mim a mão de YFIVHº (Ezequiel 40:1). Há tambémertos casos em que o Profeta não nota em sua Visão Profética figura alguma, mas somente ouve palavras, em Visão Profética , dirigidas a ele, como disse Daniel (Daniel 8:13): ªOuvi uma voz de homem que me gritava no meio de Ulaiº, Elifaz: ªE no silêncio ouvi

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p e r p l e x o s

uma vozº (Jó 4:16) e também Ezequiel: ªE escutei o que me falavaº (Ezequiel 2:2), pois nãoe trata de haver alcançado a Visão Profética [diretamente] por aquele que lhe falou, mas de haver testemunhado, segundo afirma, o estranho fenômeno, e iniciado sua Profecia da seguinte forma: ªE escutei a quem me falavaº. Além da precedente exposição sobre a divisão, justificada pelos textos, demonstrarei que as palavras, ouvidas pelo Profeta em Visão Profética , são, ocasionalmente, por sua imaginação, apresentadas a ele em termos enérgicos, como aquele que sonha ter ouvido um forte trovão ou visto um terremoto ou um raio, pois se têm estes sonhos muitas vezes. Há ocasiões em que as palavrasapreendidas na Visão Profética se assemelham à fala corrente e familiar, de maneira qu

e nada estranho se faz ostensivo. É possível comprovar isso claramente na história doProfeta Samuel, que, ao ser chamado por Deus (Exaltado Seja!) em um momento de Inspiração Profética, acreditou que quem o chamara por três vezes consecutivas fora E liH áC ohên (o Sacerdote Eli). Depois, a Bíblia explica, e se esclarece a razão disso baseavase no fato de que o Profeta Samuel ignorava que a palavra de Deus se manifestava aos Profetas desta forma, já que este segredo, todavia, não lhe fora revela- do.Assim é explicado: ªSamuel não conhecia, todavia, a Y H V H , pois ainda não se lhe havia sido revelada a palavra de Y H V H º (I Samuel 3:7). A intenção é indicar o desconhecimento do Profeta, pois não lhe fora revelado, do modo como se manifestava a palavra de Deus. Quan- do se afirma que não conhecia a Y H V H , significa que não tivera ante- riormente alguma inspiração Profética, posto que se diz de quem pro- fetiza: ª(...) emisão, a ele Me faço conhecer (...)º (Números 12:6). A interpretação deste versículo, atend ao sentido, é do seguinte teor: Samuel não havia profetizado anteriormente e também não

 sabia que assim era a Profecia. Conheça isso!

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CAPÍTULO 4 5

OS DIVERSOS TIPOS DE PROFETAS: ONZE GRAUS DE PROFECIA OU DE PERCEPÇÃO PROFÉTICA; SEU ESTUDO EM TRÊS GRUPOS

Esclarecido anteriormente o verdadeiro conceito da Profecia, con- forme a especulaçãoexigida e o exposto em nossa Lei, procede enu- merar seus graus, em consonância comestes dois princípios. Ainda que eu os denomine graus da Proferia , isto não implica que quem ocupe um grau qualquer já seja um Profeta. Ao contrário, os dois primeiros não são mais do que passos até ela, e quem alcançou um não figura, por isso, entre os Profetas anteriormente mencionados. Se em certas ocasi- ões se lhe intitula Profeta, é so

mente devido à generalização e por se colocar muito próximo dos Profetas. Não se engane apropósito destes graus. Caso você leia nos Livros dos Profetas que um Profeta recebeu inspiração conforme um dos graus citados, e depois se declara, com referência a ele, que lhe ocorreu uma revelação sob a forma de outro grau, é possível que este Profeta, após uma inspiração configurada segundo alguns dos graus que vou enumerar, tenha logo,em outro momento, uma inspiração distinta, de grau inferior ao da primeira. Com efeito, assim como o Profeta não exerce seu ministério durante toda a vida, sem interrupção Ðao con- trário, após profetizar em determinado momento, a inspiração Proféti- ca o abandonaoutros Ðtambém pode ocorrer que o faça em deter- minada circunstância conforme um grau superior e depois, em outra,

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PERPLEXOS

de acordo com um grau inferior ao primeiro. É possível também que não alcance tal grau e

minente mais do que uma única vez na sua vida e depois seja privado dele, como também pode se conservar em um grau inferior até cessar por completo sua inspiração, postoque o sopro profético necessariamente abandona todos os Profetas mais ou menos antes de sua morte. Como se disse de Jeremias, da seguinte forma: ªQuando a palavra de YHVH foi cessada na boca de Jeremias (...)º (Esdras 1:1), e com respeito a David: ªEstas são as últimas palavras de Davidº (II Samuel 23:1). Conclusão idêntica é aplicávedos. Após estas palavras iniciais, passo aos graus nestes termos: Vrimeiro Grau: O passo inicial para a Profecia é quando uma ajuda divina acompanha o indivíduo, incitandoo e animandoo para uma ação boa, grande e relevante, por exemplo, libertar asociedade dos malvados, salvar um grande homem virtuoso ou derramar o bem so- breuma multidão de pessoas, de tal maneira que o sujeito sinta, dentro de si mesmo, algo que o impulsione e lhe convide a amar. È o que se chama ªo Espírito de YHVHº e se di

z, daquele que fica neste estado, que ªo Espírito de YHVH tenha se apossado deleº, ªo Espírito de YHVH o tenha revestidoº, ªo Espírito de YHVH descansa sobre eleº ou que ªYHVH esom eleº, e outras expressões análogas. Este foi o grau alcançado por todos os Juizes deIsrael, dos quais se afirmou, em termos gerais: ªQuando YHVH lhe suscitava um juiz, estava com ele e o livrava da opressãoº (Juizes 2:18), e assim foi com todos os Meshicbê Jsraêl (Grandes Líderes de Israel). Particularmente, é constatado em alguns Juizes e Reis: ªO espírito de YHVH foi sobre Jefté (Juizes 11:29). De Sansão se disse: ªApoderouse dele o espírito de YHVHº (Juizes 14:19). E ainda: ªE apoderouse o Espírito de YHVH de Saul quando este ouviulhe as palavrasº (I Samuel 11:6). Igualmente de Amassá,movido pelo Santíssimo para ajudar David: ªEntão Amassá, que era o chefe dos trinta oficiais, se revestiu do Espírito de YHVH e exclamou: A ti David e a teu povo, filho de Ishái, shalom (aqui estamos)!(...)º (I Crô- nicas 12:18). Considere que este tipo de força jamais faltou a M oshé Kabênu, desde que alcançou a maturidade. Por isso se sentiu

impulsio- nado a matar o egípcio e a rechaçar os dois adversários24, sem razão aparente. E essa força era tão pujante nele que mesmo quando fugiu,

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Provavelmente os dois escravos hebreus que discutiam entre si quando Moisés se aproximou (NT).

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presa do temor, ao chegar a Midián, estrangeiro e amedrontado, teste- munhou uma injustiça, não pôde reprimir seu ímpeto, nem se sentiu capaz de sufocálo, conforme se afirmou: ª(...) e levantouse Moisés, salvouas (...)º (Exodo 2:17). Igualmente, uma força semelhante se ra- dicava em David depois que f o i tintado com o óleo da unção , como está escrito: ªE desde aquele momento, daí em diante, veio sobre David o Espírito de Y H V H º(I Samuel 16:13), por isso se arrojou com valentia contra o Leão, o Urso e o Filisteu. O mesmo Espírito de Y H V H jamais inspirou a alguma dessas pessoas, mencionadas acima, a falar sobre determinado assunto, mas tão somente encorajava a pessoaque o pos- suía a agir. Não o encorajava a fazer tudo, mas sim a socorrer o oprimi- do Ðquer fosse uma pessoa, uma comunidade ou alguém a ele condu- zido. Assim como nem todos aqueles que tiveram um sonho verdadeiro são, por isso, Profetas, tampouco poder

seia afirmar de qualquer um, assistido pelo auxílio divino para alcançar algum objetivo (como enri- quecer ou lograr um propósito pessoal), que o Espirito de YHVH o acompanha, que YHVH esteja com de ou que tenha conseguido seu in- tento em virtude da Presença Divina. Dizse isso somente de quem realizou um bem enorme, ou o objetivo que se esperava dele, como o atingido por José na casa do egípcio,23 origem dos importantes suces- sos acontecidos em seguida, como é notório. Segundo Grau : E aqueleem que um indivíduo sente como se algo houvesse se infiltrado nele e houvesse umaforça nova, que o impulsi- ona a falar de tal maneira que profira palavras de sabedoria, louvores divinos, conselhos edificantes ou discursos relativos ao regime político ou a questões divinas. Tudo isso em estado de vigília, quando os senti- dos funcionam como de costume. Dizse, de tal homem, que fa la pelo Espírito do Santíssimo. Por obra deste, David compôs os Salmos e Salo- mão, os Provérbios, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Do mes- mo modo foram escritos os livros de Daniel, Jó, Crônicas e os re

stan- tes Chetuvím (Escritos ou Hagiógrafos), pela virtude do Espírito de Deus, razão pela qual são denominados Chetuvím , significando que são ªEs- critos pelo Espírito do SantíssAfirmase expressamente: 0 Eivro de E ster fo i ditado pelo Espírito do Santíssimo,e, referindose a este, disse

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Referese ao episódio de josé na casa de Potifar Ðim portante oficial na corte do Faraóe chefe dos tabachim (responsáveis pela cozinha) Ðquando passou de escravo a ministro da corte egípcia (NT).

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David: ªO Espírito de YHVH fala por mim, e suas palavras estão sobre a minha línguaº (II Samuel 23:2), o que significa que foi Ele quem o fez proferir estas palavras. Assim, o que aconteceu aos S etenta A nciãos é pertinente à mesma categoria. Deles se afirma: ªE quando sobre eles pousou o Espírito [de YHVH], puseramse a profetizar e não cessa- vamº (Números 11:25), e o mesmo de Eldál e Medád (Números 11:26). Igualmente, todo So Sacerdote consultado mediante os Urím e Tumíffr6 pertence a este grau, ou seja, como afirmam os Sábios: ªA Divina Majestade descansa sobre Ele, e Ele fala pelo Espírito do San- tíssimoº. Também aqui se inscreve Jahziel, filho de Zacarias, do qual se dissenas Crônicas: ªSobre ele veio o Espírito de YHVH no meio da Assembléia, e disse: Ouvi, Todo Judá, e vós, os moradores de Jerusa- lém, e tu, Josafát: Assim disse YHVH (...)º (II Ccas 20:1415), assim como Zacarias, filho de Choiadá, o Sacerdote, pois dele se di

sse: ªO Espírito de YHVH desceu sobre Zacarias, filho do sacerdote Choiadá que, apresentandose ante o povo, disse: Assim fala YH VH (...)º (II Crônicas 24:20). Além deste, Azarias, filho de Oded, do qual se conta: ªFoi o Espírito de YH VH sobre Azarias, filho de Oded, e se apresen- tou diante de Gaza (...)º (II Crônicas 15:12). E assim, analogamente, de quantos se assinale. Quanto a Bilám, enquanto era bom, pertencia a esta categoria; é o indicam estas palavras: ªE pôs YHVH a palavra na boca de Bilám (...)º (Números 23:5), equivalentes afalava pelo Espírito de YHVH, e neste sentido ele proclama de si mesmo: ªOráculo daquele que ouve os ditos de YHVH (...)º (Números 24:4). E importante adver- tir que David, Salomão e Daniel pertencem a esta classe e não alcan- çama de Isaías, Jeremias, o Profeta Natán, Ahias o Silonita (A chiá háShiloni) e seus amigos, pois aqueles Ð refirome aos primeiros Ðsomente falavam e proferiam seus ditos por obra do Espírito de YHVH. Quanto às palavras de David, ªter falado o Deus de Jacob,a Rocha de Israel me tem ditoº (II Samuel 23:3), devese entender no sentido de qu

e Ele lhe fizera promessas por mediação de um Profeta, seja Natán ou outro, assim como nesta passagem: ªE disselhe YHVH (...)º (Gênesis 25: 23), ou nesta outra: ªE YHVH disse a Salomão: Pois que assim tens amado e fizeste rota Minha Aliançaº (I Reis 11:11), que indubitavel- mente encerra uma ameaça dirigida por Ele, por mediação de Ahías o Silonita ou outro Profeta. Analogamente, quando se disse de Salomão:

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Urím e Tumírn, jogo de pedras oracular (NT).

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se lhe apareceu em Guivón durante a noite, em sonhos, e lhe disse (...)º (I Reis 3:5

), não é Profecia perfeita, não como: ª(...) mani- festouse a palavra de YH VH a Abrão, nvisão, dizendo (...)º (Gênesis 15:1) ou: ªDeus falou a Israel em Visão noturnaº (I Reis 46), nem como nas Profecias de Isaías e Jeremias, porque ainda que, a cada um deles, a revelação acontecera por meio de um sonho, nela mesma ha- via a indicação de que se tratava de uma Profecia e de que lhes ocorre- ra uma revelação. Por outro lado, no relato concernente a Salomão, verificase ao final: ªDespertou Salomão de seu sonhoº (I Reis 3:15) e, no segundo relato, assim se disse: ªApareceu YHVH pela segunda vez a Salomão, como se lhe havia aparecido em Guivón º (I Reis 9:2), quan- do ficara claro de que se tratava de um sonho. E um grau inferior àquele designado por: ª(...) no sonho falo com eleº (Números 12:6), porque aqueles que têm uma inspiração Profética em um Sonho, jams o chamam de Sonho depois que a Profecia chegou a eles desta forma. Na verdade, eles não têm dúvidas de que se trata de uma Profecia, como expressou o Patriarca Jaco

b, que, ao despertar de seu sonho profético, não disse que foi um sonho, mas sim afirmou claramente: ªCertamen- te YH VH está neste lugar (...)º (Gênesis 28:16). E disse Jacob a José: ªDeus TodoPoderoso apareceume em Luz, na terra de Canaã (...)º (Gênesis 48:3), declarando que se tratava de uma Profecia, enquanto que, a respeito de Salomão, a descrição é: ªDespertou Salomão e era um sonhoº. De modo semelhante, observase Daniel exicar que ti- vera sonhos e, apesar de neles haver visto um anjo Ðcujas palavras ouviu Ðchamouos de sonhos, mesmo depois de receber as instruções que lhe foram confiadas: ªEntão o mistério foi revelado a Daniel em Visão noturnaº (Daniel 2: 19). Depois se declara: ªEm seguida escre- veu o sonho (...) Eu olhava durante a minha Visão noturna (...)º(Da- niel 7:12); ªE as visões de minha mente me perturbaramº (Daniel 7:15); e desta forma se manifesta: ªEstava assombrado pela visão, e não entendi nadaº (Daniel 8:17). Indubitavelmente se trata de um grau inferior àqueles dos quais se afirmou: ª(...) no sonho falo com eleº (Números 12:6). Por esse motivo, concordouse, em nosso credo, in- cl

uir o Livro de Daniel entre os Escritos e não entre os Profetas. Por isso devo advertir que, mesmo nesta espécie de visão Profética de Daniel e Salomão, embora tenham visto um anjo no sonho, eles não a consideraram como Profecia de fato, mas um sonho que permitiria conhecer a verdade de certas coisas, o qual se inscreve na categoria dos que falam pelo Espírito de YHVH, e constitui o segundo grau. Assim,ªYHVH

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na classificação dos Chetuvím não se estabelece diferença entre Provér- bios, Eclesiastes,iel, Salmos e os livros de Ruth e de Ester, todos eles escritos pc r mediação do Espírito do Santíssimo e incluídos na deno- minação genérica de Profetas. Terceiro Grair. É o due logo proclamam: Foime dirigida a palavra de YHVH ou se servem de expressões similares. É também quando o Profeta percebe uma parábola em sonho, com todas as condições jditas para a autêntica Profecia e, neste mesmo sonho profético, é lhe explicado o sentido encerrado na parábola, como ocorre na maioria das Profeci- as de Zacarias.2 7 Quarto Grau: Nesta categoria são classificados os sonhos proféticos em que se percebem palavras claras e distintas, sem ver quem as profere, como sucedeu a Samuel em sua primeira Profecia, conforme especifi- camente explicado acima, neste Tratado. Quinto Grau : Neste caso, uma pessoa lhe fala em sonho, segundo se afirma em um

a das Profecias de Ezequiel: ªDisseme aquele homem: Homem (...)º (Ezequiel 40:4). Sexto Grair. E quando um anjo lhe fala em sonho, caso mais freqüente nos Profetas,segundo se afirma: ªE disseme um anjo de Deus no sonho (...)º (Gênesis 31:11). Sétimo Grau : Nesta categoria, está o sonho profético, em que parece, àquele que sonha, que Deus lhe fala, como em Isaías: ªVi Y H V H (...)º que dizia: ªA quem enviarei? (...)º (Isaía6:18), e no texto de Mi- quéias, filho de Imla (Micháiu ben Imlá): ªVi Y H V H º (I Reis:19; II Crônicas 18:18). Oitavo Grau : Neste caso, há uma revelação em visão Profética e spercebem parábolas. E o que acontece, por exemplo, com Abrahão na visão entre os animais destroçados (Gênesis 15), porque estas parábolas fo- ram Visões diurnas, conforme se explicou. Nono Grair. Quando se ouvem as palavras em Visão, como relatado com respeito a Abrahão: ªE eis que foi a palavra de Y H V H a ele, dizen- do: Este não será teu herdeiro (...)ºº (Gênesis 15:4). Décimo Grau : Acontece quando é vista, na Visão Profética, umssoa que lhe fala, como ocorreu a Abrahão na planície de Mamré e a Josué, em Jericó.

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Veja supra , cap. 43 (Maeso).

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Décimo Primeiro Grau : Quando, em Visão Profética, percebese um anjo lhe falando, conforme aconteceu a Abrahão no momento do sa- crifício de Isaac. Julgo que este é o grau mais eminente alcançado pelos Profetas, segundo testemunho dos Livros Sagrados, desde que se desconte a perfeição das qualidades mentais do sujeito, conforme o estabelecido, e façase a devida exceção a M oshé Kabênu (A Paz esteja sobre ele!). Quanto à possilidade de que, na Visão Profética, o Profeta escute a palavra de Deus , pareceme inverossímil, pois a potencialidade da faculdade imaginativa não alcança este ponto; nãotemos visto nada semelhante nos demais Profetas. Por isso a Torá esclarece: ª(...) em Visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com eleº (Números 12:6). Portanto, a palavra situase exclusivamente em Sonho e na Visão, a ação e a emanação do intelecto, o que se expressa por eláv etvadá (a ele Me faço conhecer) que é a forma reflexiva da raiz do

 verbo Yadá (conhecer), mas a expressão não indica que, na Visão, ouçase a pala- vra de Ds. Quando encontrei escritos proféticos a respeito disso e ficou claro que se referiam à Visão, indiquei, em uma nota, que provavelmente se tratava daquilo que fora ouvido em Sonho que, diferente da Visão, faz com que o Profeta imagine que é Deus mesmo quem lhe fala, em um sentido literal. Não obstante, poderseia admitir que toda visão que se refere a palavras ouvidas não seria, efetivamente, uma Visão, pois depois passa a um torpor, transformandose em um sonho, como expusemos a propósito dotexto: ª(...) um sono pesado caiu sobre Abrão (...)º (Gênesis 15:12), o qual, asseguramos Sábios, é o torpor da Profecia. Portanto, sempre que se ouviam palavras, quaisquer que fos- sem elas, tratavase de um sonho, como na referência tão reiterada de Números 12:6, enquanto que, na Visão Profética, somente se percebi- am parábolas ou comunicaçõesordem intelectual, com mensagens de coisas específicas, semelhantes às obtidas através da especulação, segundo expusemos. E é isto que o texto citado sugere. Assim, de aco

rdo com esta interpretação, os graus de Profecia seriam oito. O supremo e mais perfeito grau, em termos gerais, é aquele em que o Profeta é inspirado por uma Visão, ainda que seja somente uma pessoa quem lhe fala, como esclarecemos. Talvez você levante a seguinte objeção: ªVocê conta, entre os graus da Profecia, aquele em que o Profeta pode ouvir palavras dirigidas a ele por Deus, como é o caso de Isaías e Miquéias. Porém, como pode ser assim, se admitimos, em princípio, que todo Profeta somente ouve

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a palavra de Deus através de um anjo, à exceção de Moshé Rabênu (Que a Pa? esteja sobre el), do qual está escrito: `Boca a boca Falei com Ele (...)' (Números 12:8)?º É preciso sabeque efetivamente é assim, pois, neste caso, o que atuacomo intermediário é a faculdade imaginativa, posto que somente em sonho profético o Profeta ouve a pa- lavra de Deus que lhe fala, enquanto M oshé Rabênu a escutava sem a mediação da faculdade imaginativa, sobre a Kapóret (propiciatório),28 ªentre os dois Querubinsº (Exodo 25:22). Já explicamos em minha obra M ishnê Torá as diferenças desta Profecia, pontuando o sentido das expressões ªboca a bocaº, ª(...) como fala um homem com seu com- panheiro (...)º (Exodo 33:1 e outras. Entenda isso! E não é necessá- rio repetir o que já foi dito.

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Propiciatório: Lâmina de ouro com que os hebreus cobriam a Arca da Aliança.

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CAPÍTULO

46

A S P A R Á B O L A S DOS PPvOFETAS F A Z E M P A R T E D A S V ISÕ E S P R O F É T IC A S

A partir de um único indivíduo é possível se ter uma idéia completa de toda uma espécie enhecer as propriedades de cada indivíduo desta espécie. Com isto quero dizer que, apartir de uma só propriedade dos relatos dos Profetas, podese ter uma visão de todos os relatos do mesmo tipo. A partir desta informação prévia, você entenderá que uma pesso

a pode sonhar algumas vezes que viajou a tal país, casouse e residiu lá, nasceulhe um filho, ao qual colocou tal nome e se encontrava em determinada situação ou circunstâncias. Do mesmo modo, nas pará- bolas Proféticas são vistos certos objetos, ações sãoadas Ðse o estilo da parábola pede isso Ðcoisas são feitas pelo Profeta e nos inter- valos entre uma ação e outra determinadas viagens são feitas de um lugar a outro. Mas todas estas coisas fazem parte apenas do processo de uma Visão Profética , não são reais aossentidos físicos. Algumas des- tas parábolas simplesmente relatam coisas (sem noção de que fazem parte de uma visão), como se sabe que ocorre nas Visões Proféticas, e é desnecessário repetir toda vez isso. Assim, o Profeta declara: ªE YHVH me disseº, sem necessidade de mencionar que fora um sonho. No entanto, o povo pensa que tais ações, viagens, perguntas e respostas, tudo isso aconteceu através dos sentidos e não em Visão Profética.

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p e rp le x o s

Lembrolhe de um exemplo, sobre o qual não há equívoco, e acres- centarei outros da mesma espécie, dos quais você poderá deduzir ou- tros mais, não mencionados. Está claro e forae todo erro possível o que disse Ezequiel: ªEstava em minha casa, e estavam diante de mim os anciãos de Judá (...) O Espírito me levantou entre a terra e os Céus, e me levou a Jerusalém em Visões Divinasº (Ezequiel 8:13). Do mes- mo modo, quando afirmou: ªLevanteime e saí a campoº (Ezequiel 3:23), tratase pura e simplesmente das Visões Divinas, como aconteceu a Abrão: ª(...) e fêlo sair (...)º (Gênesis 15:5), e foi em Visão. Na pasgem: ªE descansei no meio da planícieº (Ezequiel 37:1), também foi uma Visão Divina. E Ezequiel lembrouse da Visão pela qual foi intro- duzido em Jerusalém, expressandose ass

im: ªE olhando, vi um bura- co no muro, e me disse: Homem, perfure o muro. Perfureio e apare- ceu uma portaº (Ezequiel 8:78). Assim como compreendeu, nas VisÕesDivinas, que se lhe ordenava perfurar o muro, a fim de penetrar por ele e con- templar o que ah se operava e, em seguida, Ðcomo ele próprio men- ciona nestas mesmas Visões Divinas Ðentrou pelo buraco e viu o que viu, tudo isso em Visão Profética , do mesmo modo, quando Deus lhe disse: ªToma uma barra de argila (...) fechese depois sobre teu costa- do esquerdo (...) toma também trigo, cevada (...)º (Ezequiel 4:1.4.9), e também quando se lhe ordena: ªE utilizea como navalha de barbeiro para fazerte cabelos e barbaº (Ezequiel 5:1), todo isso em Visão Profé- tica, parecialhe que realizava atos que lhe foram ordenados. Nada mais distante de Deus do que fazer, dos Profetas, objeto de riso para os tolos, motivo de escárnio ou de serem acusados de realizar atos insa- nos. Até porque isso implicaria uma ordem de desobediência da Lei, pois, sendo sacerdote, se tornaria transgressor duplamente, por cada lado da barba e do cab

elo. Mas todo isso se passou em Visão Profética. Do mesmo modo, quando se afirma: ªComo andava Isaías, meu servo, desnudo e descalçoº (Isaías 20:3), tratase de Visões Profétic. Somente os que têm uma mente débil acreditam que em todas estas passagens em que o Profeta conta que fora intimado a fazer tal coisa, ele real- mente a executara, se fosse assim, ele relataria que, apesar de se encon- trar na Babilônia, foralhe ordenado perfurar o muro, localizado no Monte do Templo, e acrescentaria que fizera efetivamente a perfuração, segundo consta. Na verdade, isso corrobora claramente a tese de que tudo se passou em Visões Divinas. O mesmo ocorre com Abrahão, nes- tes termos: ª (...) manifestouse a palavra de YHVH a Abrão, na visão, dizendo (...)º (Gênesis 15:1), e na mesma visão Profética se imprime:

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SOBRE

A

PROFECIA

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ªE fêlo sair e disse: Olha para os Céus, e conta as estrelas (...)º (Gêne- sis 15:5), E edente que na Visão Profética sentiase transportado para fora donde se encontrava, até ver o céu, e então se lhe dizia: conta as estrelas. Este é o relato, como pode perceber. O mesmo digo da intima- ção a Jeremias, a de esconder o ªcinturãoº no Eufrates. Escondo e, ao cabo de muito tempo, foi buscálo e o encontrou putrefato e desfei- to. Tudo isro são parábolas em Visão Profética , posto que Jeremias não saiu da Terra de Israel àabilônia, nem vira o Eufrates. De forma análoga, o rexro de Oséias: ªToma por mulher uma prostituta e engen- dra filhos da prostituiçãoº (Oséias 1:2), e todo o relato do nascimento dos filhos e os nomes Este e Este, que lhes foram impostos, tudo isso sucedeem Visão Profética e, uma vez constatado que são simples pará- bolas, não há razão para peue qualquer detalhe se concretizou em realidade, a não ser que se nos aplique o se

guinte: ªE toda Revela- ção é para vós como palavras de livro seladoº (Isaías 29:11). Outr pareceme que, no caso de Gideão, o relato do novelo de lã e outros foram em Visão Profética , seguramente. Contudo, eu não o cha- maria, de um modo absoluto, de Visão Profética, pelo fato de que, não havendo alcançado Gideão a categoria de Profeta, como poderia fazer milagres? Seu maior mérito foi figurar entre os juizes de Israel, mas situado entre os personagens de categoria inferior, como já expuse- mos, Tudo isso ocorreu em sonho, semelhante aos de Labão e de Abimeieque, citados anteriormente. Desta forma, o que disse Zacarias: ªFizme, pois, pastor do rebanho da matança, certamente dos mais pobres, e tomei dois cajadosº (Zacarias 11:7), e o que se segue, a saber: o salário reclamado com suavidade, a aceitação deste, o dinheiro con- tado, arrojadono tesouro (Zacarias 11:1213); mdo isso lhe aparecia em Visão Profética, intimandolhe a fazêlo, e assim o fez, mas em Sonho Profético. Isto é algo indubitável, que ninguém pode ignorar, salvo quem confunda o possível com o impossível. Do que deixo exposto

, você poderá considerar algo não menciona- do: tudo pertence à mesma espécie e método, éofética. Conse- qüentemente, sempre que se afirma que, em tal Visão, ficou, olhou, saiu, entrou ou disse, foilhe dito, levantouse, sentouse, subiu, baixou, viajou, pergun- tou, foi interrogado, tudo Isso se sucede em Visão Profética. Inclusive no caso de ações descritas como de longa duração e que se refiram a determinadas épocas, certos indivíduos e lugares específicos. Se averi- guar que tal ação encaixa em uma parábola, podestar certo de que esta se realizou em Visão Profética.

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S OI S R E A

PROFECIA

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CAPÍTULO 4 7

SOBRE O ESTILO METAFÓRICO DOS ESCRITOS PROFÉTICOS

Fica patente e manifesto, sem sombra de dúvida, que a maioria dos Profetas se expressa por meio de parábolas, porque o instrumento para isto é a faculdade imaginativa. Deste modo, importa saber algo sobre as metáforas, hipérboles e alguns exageros, dado que às vezes elas apa- recem nos Livros dos Profetas. Se as tomasse literalmente, sem se dar conta de que se trata de uma hipérbole ou um exagero, ou se compre- endidas no sentido superficial das palavras, segundo sua acepção origi- nal, sem repararque se trata de uma metáfora, isto daria lugar a absur- dos. Os Sábios já advertiram: ^4 Torá fa la uma linguagem aproximada , ou seja, utiliza a hipérbole, e, para demonstrar, eles destacam acertadamente estas expressões: ª(...) as cidades são grandes e for

tificadas até os Céus (...)º (Deuteronômio 1:28). Na hipérbole se inscreve esta lo- cução:o pássaro dos Céus leva a notíciaº (Eclesiastes 10:20). Igualmente se diz: ª(...) cuja altura se iguala à dos cedros (...)º (Amós 2:9). Estilo semelhante se encontra com freqüência na linguagem de todos os Profetas, com expressões hiperbólicas e exageradas, em vez de contidas e exatas. Sem dúvida, não pertence a este grupo o que a Torá afirma sobre Og: ª(...) Eis que seu leito, um leito de ferro (...)º (Deuteronômio 3:11), porque o leito é a cama, assim como em Cântico dos Cânticos 1:16:

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

ªNossa cama está cheia de vitalidadeº. Pois bem, não há cama que corresponda à medida de q

lquer pessoa Ðporque não é uma roupa que a veste Ðmas a cama será sempre do tamanho do indivíduo que nela dorme: o costume conhecido é normalmente um terço a mais que a medidada sua altura. Por conseguinte, se o comprimento de uma cama é de nove codos,29 aestatura de quem se deita sobre ela, segundo a proporção habitual, será de uns seis codos ou pouco mais. A expres- são Os codos de um homem considera a medida cubital corrente Ðentre o comum dos mortais, e não segundo a de Og Ðjá que normalmente todo indivíduo tem os membros proporcionais. Diziase que a estatura de Og era o dobro de umapessoa normal e mais um pouco, o que, de qualquer forma, não deixa de ser absurdo. Quanto ao que está escrito na Bíblia referente à idade de certas pessoas, afirmo quenenhum ser viveu tantos dias, a não ser a pessoa citada, enquanto as demais viveram a quantidade normal de dias natu- rais. Esta estranha característica de determinado indivíduo tinha moti- vos diversos: sua dieta ou seus hábitos, ou talvez fosse um mi

lagre que guiou sua conduta. Não cabe outra explicação. Igualmente se impõe uma grande atenção com respeito à metáfora. Algmas são claras e patentes, sem dificuldade de interpretação, por exemplo: ªMontanhas e planícies irromperão em gritos de júbilo ante vós, e todasvores do campo baterão palmasº (Isaías 55:12), metá- fora evidente, como em: ªAté os cipre se alegraram de ti (...)º (Isaías 14:18), interpretado da seguinte forma por Yonatánben Uziel: A té os governantes se regozijaram p o r ti, os opulentos, expresso naforma de metáfo- ra, como também a expressão ªmanteiga das vacas e leite de ovelhasº (Deutonômio 32:14). Estas metáforas são extremamente numerosas nos Livros dos Profetas: umas são óbvias até para o povo, mas outras não. Assim, nada colocará em dúvida que estas palras: ªAbrirá YHVH para ti Seu bom tesouro, os Céus, para dar a chuva á tua terra (...)º (Deuteronômio 28:12) encerram uma metáfora, dado que Deus não tem um tesouro que contenha a chuva. O mesmo se aplica para as seguintes: ªAbriu as portas dos Céus, e choveusobre eles o ManẠ(Salmos 78:2324), ninguém imaginará que haja portões e portas nos Céus

mas sim que a expressão é usada por meio de associação, sob o critério de semelhança, umas modalidades da metáfora. Do mesmo

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Codo: unidade de medida baseada em meio braço, da mão ao cotovelo (NT).

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SOBRE A

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2$g

modo devem ser entendidos os seguintes textos: ªAbriramse os Céusº (Ezequiel 1:1); ª (.

..) e se não, riscame, rogo, do Teu livro, que escreveste!º (Êxodo 32:32); ª(...) riscáloei do Meu livroº (Êxodo 32:33); ªSejam apagados do Livro da Vidaº (Salmo 69:29). Tudoisso deve ser entendido pela aproximação por semelhança e não como se Deus ti- vesse um livro em que escrevesse e apagasse, como se cogita popular- mente, sem se notar queaí existe uma metáfora. Tudo isso pertence à mesma categoria. Quanto ao que não foi cita-do, classifique conforme o descrito neste capítulo, separe e distinga detalhadamente as coisas, e compreenderá o que está relatado por pa- rábola, por metáfora, por hipérbo ou, ainda, aquilo que se deve in- terpretar exatamente segundo o teor da acepção literal. Assim, todas as Profecias se lhe mostrarão claras e patentes, suas crenças lheparecerão razoáveis, bem ordenadas e gratas a Deus, pois somente a verdade é prazerosa a Ele (Exaltado Seja!), assim como a mentira Lhe é odiosa. Não se confundam idéias epensamentos de maneira que admita opini- ões inaceitáveis, afastadas da verdade, que v

ocê tome por Lei. Os pre- ceitos da Lei são verdade cabal, se devidamente entendidos,conforme está dito: ªSuas idéias são verdadeiras para sempreº (Salmo 119:144), e também: ªou YHVH, que falo a Verdadeº (Isaías 45:19). Por meio destas considerações, você descartaro conceito de algumas pessoas, de que Deus não criou, e certas idéias corrompidas, algumas das quais impelem à irreligião, a admitir em Deus uma deficiência, como são as circunstâncias de corporeidade, atributos e paixões, conforme explica- mos, ou então a considerar os discursos dos Profetas como mentira; pois a causa deste mal está justamente na ignorância do que explica- mos. Estas coisas pertencem, assim, aos mistérios da Lei e, embora tenhamos tratado disso de modo geral, será fácil conhecer seus por- menores depois do que já foi dito.

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SOBRE

A

PROFECIA

CAPÍTULO 4 8

A BÍBLIA CO N FERE A D EUS, C O M O P R IM E IR A C A U S A DE T O - D A S A S C O IS A S , OS FEN Ô M EN O S D IR E T A M E N T E O R IG IN A D O S DE C A U S A S NA T U R A IS

E absolutamente evidente que toda coisa criada tem necessariamente uma causa próxima que a tenha provocado. Esta, por sua vez, tem outra, até chegar à Primeira Causade todas as coisas, ou seja, a von- tade e escolha de Deus. Por esta razão, às vezes os Profetas omitem, em seus discursos, todas as causas intermediárias, atribuindo a força pessoal criadora a Deus, afirmando que Ele (Exaltado Seja!) a reali- zou. Tudo isto se sabe, pois já falamos sobre isto Ðassim como ou- tros entre os que buscam averdade Ðe esta é a opinião de todos os nossos teólogos. A partir dessa observação prelimi

r, ouça o que explanarei no pre- sente capítulo e perceba bem, além da atenção geral que sdeve pres- tar aos capítulos deste Tratado. O assunto que abordarei é o seguinte: Saiba que todas as causas próximas que originam o fato, sejam elas naturais, por acaso, por escolha Ðentendendose por escolha a causa que se renova: a escolha do Homem, ou até mesmo se a causa é pro- vocada pela vontade de um animal qualquer, todas estas causas são atribuídas a Deus nos Livros dos Profetas E, em seu estilo, afirmase,deste fato, que a atividade de Deus o realizou, ordenou ou disseo.

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1Ô2.

O GUIA

DOS

PERPLEXOS

Para todas estas coisas são empregados os verbos di^er, falar, ordenar, chamar, enviar Ðe este é o ponto sobre o qual quis chamar sua atenção no presente capítulo. Com efeito, segundo o estabelecido, dado que foi Deus quem moveu o desejo de um determinado animal irracional, assim como foi Ele quem fez com que o animal racional fosse dotado de instinto, vontade e escolha, é obrigatório que se diga, de acordo com isso, o que provocou estas causas: a ordem de Deus de que assim fosse ou porque Ele disse que seria assim. Citarei exemplos, a partir dos quais você assimilará aquilo que não foi explicitado. Falando de coisas naturais que constantemente seguem seu curso, como a neve, que se derrete quando o ar está quente, e as águas dos mares,agitadas quando o vento sopra, está escrito: ªManda Tua palavra e as derretaº (Salmos147:18); ªEle mandou surgir um furacão e encrespou as ondasº (Salmos 107:25); e da chu

va que cai: ªE ainda mandarei às nuvens que não chovam sobre ela (...)º (Isaías 5:6).So- b aquilo cuja causa se encontra nas escolhas do Homem Ðcomo a guerra que um povo promove contra outro ou um indivíduo que se dispõe a prejudicar outro, inclusive injuriandoo Ðcitemos o declarado sobre o governo do maldoso Nabucodonosor e seus exércitos: ªEu ordenei o Meu exército consagrado, e também chamei os meus valen- tes para a Minha iraº (Isaías 13:3), e disse: ªA uma nação impiedosa os enviareiº (Isaías 10:6). No epise Shimí ben Guerá, lêse: ªPois YHVH lhe falou: Amaldiçoe Davidº (II Samuel 16:10). SobreJosé, o justo, libertado da prisão, declarase: ªMandou o rei que o soltassemº (Salmos 105:20). Dos governos da Pérsia e dos Medos sobre os Caldeus, afirmase: ªE mandareicontra Babel estrangeiros que se espa- lhem por lẠ(Jeremias 51:2). Na história do Profeta Elias, quando Deus aconselha uma mulher para que o alimente, diz a ele: ªJá ordenei a uma mulher viúva para que o mantenhaº (I Reis 17:9). José, o justo, esclarece aseus irmãos: ª(...) vós não me enviastes aqui, senão Deusº (Gênesis 45:8). A propósito do

ria a causa da vontade dos animais e a moti- vação das suas necessidades, lemos: ªFalouYHVH ao peixeº (Jonas 2:11). Significa que foi Deus quem nele provocou a vontade,não que fez, do peixe, Profeta ou lhe enviou a faculdade da Profecia. No episó- dio dos gafanhotos30 que apareceram nos dias de Joel (Yoêl ben Petuêl),

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Arbk gafanhotos. Traduzido nas versões inglesa e espanhola por ªlagostasº (NT).

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SOBRE

A

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afirmase também: ªPois é forte o executor de suas palavrasº (Joel 2:11). Outrossim, emrelação às feras que penetraram na Terra de Edom, quando esta foi devastada por Senaqueribe: ªe Ele lhes lançou o desti- no, e a sua mão repartiu a terra com uma cordaº (Isaías4:17). Ainda que não se tenha empregado nenhum dos termos di^er, ordenar, enviar,o sentido é totalmente idêntico e claro. E quanto aos fatos casuais, de total acaso, mencionemos o caso de Rebeca: ª (...) e seja a mulher do filho de teu senhor como falou Y H V H º (Gênesis 24:51). Na história de David e Jônatas (Yonatán) foi dito: ªVai,orque Y H V H lhe enviouº (I Samuel 20:22); e na de José: ªE mandoume Deus adiante de vós (...)º (Gênesis 45:7). En- tão, que fique bem claro: de acordo com o relatado sobre a circuns- tância das causas Ðindependente de como estas ocorreram, sejam causas reais, acidentais ou por vontade Ð todas se eqüivalem por meio das cinco expressões seguinte

s: ordenar ; di^er,falar, enviar e chamar. Com base nesse conhecimento, apliqueo em todos os pontos do seu inte- resse e serão eliminados muitos absurdos. Assim, a verdade dos fatos aqui descritos, e dos quais se poderia crer que estivessem longe da verdade, serlheá esclarecida. E esta é a conclusão do que pretendi abordar sobre a Profecia, suas parábolas e formas de expressão. Tudo o que concerne a este assunto deverá lhe ser transmitido neste Tratado. E passaremos para outros assuntos,com a ajuda de Deus.3 1

31

Com isso M aimônides dá por encerrada a Parte 2 de O Guia dos Perplexos e anuncia, ao que tudo indica, o início de novas reflexões sobre outros assuntos, na terceira e última parte deste livro. Sabese também que M aimônides havia iniciado outra obra vol

tada para o tema da Profecia o S efer háN evuá (O Livro da Profecia). Para M unk, ele estava se referindo a esta obra no final da Segunda Parte. Pareceme, no entanto, que ele aqui somente indica o encerram ento das reflexões acerca da Profecia e da Criação do Universo em contraposição ao conceito aristotélico de Eternidade do Universo e do Tempo Ðcom o objetivo de dar início a um a nova discussão na Parte 3 (NT).

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O GUIA

DOS

PERPLEXOS

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Pela prim eira vez o público leitor de línguaportuguesa tem acesso à tradução, do hebraico, de 0 Guia dos Perplexos (P arte 2 ) deM aim ônides, um dos pilares do pensamento judaico em todos os tem - pos. T ratasede um a tradução ªao mesmo tempo precisa e a p aix o n ad aº, que in a u g u ra o projeto de publicação in teg ral das três partes desta que é considerada um a das obras m edievais que mais influenciaram o pensam ento m undial, com parada em im p o rtân c ia à Suma T eológica de São Tomás de Aquino e à D ivina Comédia de Dante, cada um a em seu g

o. E scrita originalm ente em árabe, a transposição para o hebraico por Shmuêl ibn Tibon, autorizada pelo próprio Maimônides e considerada um calco do original, foi a basep ara a trad u ção , integral e inédita, de 0 Guia dos Perplexos (P arte 2 ), para o português. N esta p a rte , M aim ônides teve p o r m eta esta- belecer um a relação inteligível en tre a sabedoria judaica e a filosofia clássica grega através de um a espécie de diálogo entre os discursos dos Sábios de Israel, por um lado, e os de Aristóteles e dos Peripatéticos, por outro. E sta tradução tra z um a in tro d u ção , u m breve relato da vida e obra de M aim ônides e um a ap re- sentação da obra, o que certam ente contribui para enriquecer a leitura desse grande clássico.

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M A I M Ô N I D E S (1135120 4 ),tam bém conhecido como R am bám , nasceu na Espanha, viveu boa parte de sua vida noEgito e foi sepultado em Israel. Filósofo, teólogo, m édico, escritor e líder da com unidade judaica no Egito Ð em todas estas atividades foi um verdadeiro mestre. Tal é oreconhecim ento da sua im portância para o pensam ento judaico em todos os tempos, que sobre ele costum ase dizer: ªDe Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisésº. Embora o M ishnè Torá tenha sido a sua obra de m aior fôlego, Maimônides é mais conhecido po

r seu 0 Guia dos Perplexos , obra que, há 800 anos, vem influenciando gerações após geraçõ de teólogos, filósofos e pessoas interessadas na compreensão do papel do ser hum anoe de Deus no mundo.

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muitos o maior e mais influente filósofo que ojudaísmo já produziu, viveu na Espanha e no Egito há oito séculos. Desde a Idade Média até a atualidade, gerações após geraçõesjamam de citar O Guia dos Perplexos. Â razão é simples: a obra, além de trazer mensagens de relevância atual, quando se refere aos Profetas, á ética e á integridade do homem, pode inspirar um modelo depostura social que sirva de exemplo para os nossos dias. E um clássico que não envelhece. Como os discursos dosprofetas, fala direto ao coração do homem. Como a fala de Moisés, é íntegro, denso e envolvente. E confirma o antigo dito

: de Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisés.\ \

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