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1 Escola e trajetórias individuais de leitura Juvenal Zanchetta Júnior UNESP FCL Assis RESUMO: Objetiva-se, neste capítulo, apresentar reflexões acerca da formação do leitor no Brasil. Para tanto, o texto convoca seu leitor a refletir sobre os conceitos de leitura, educação e alfabetização. PALAVRAS-CHAVE: Formação do leitor; Leitura literária; Educação. Este texto aborda, de maneira introdutória, aspectos da formação de leitores no Brasil. A intenção é mostrar a cultura escolar como fator decisivo no quadro da leitura literária entre crianças e jovens. Leitura é entendida aqui não apenas como exercício de decodificação de signos (neste caso, signos da linguagem escrita), mas principalmente como processo de atribuição de sentidos a tais signos, com base na experiência individual do sujeito: o domínio sobre a linguagem escrita, a educação escolar, as crenças, o convívio com variedade de textos e lembrança de outros textos lidos, a classe social, os grupos de pertencimento, a influência de terceiros, o lugar onde o texto é lido, e assim por diante. Os sentidos atribuídos a um determinado texto, portanto, não são estáticos, mas podem se modificar na medida em que o sujeito amplia sua experiência de vida. Mesmo em boa parte individuais os trajetos de formação de leitores também passam por lugares comuns, o que permite mapear parte desse percurso e explicar, até certo ponto, as razões pelas quais a leitura de textos literários, para a maioria dos brasileiros, se perdeu pelo caminho ou simplesmente não aconteceu. Para se ter ideia do tamanho do problema, basta recuperar informações obtidas a partir da edição mais recente do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) 1 . Apenas 25% dos brasileiros 1 Pesquisa realizada desde 2001 pelo Instituto Paulo Montenegro, cujo objetivo é mensurar o nível de alfabetismo entre brasileiros de 15 a 64 anos.

1º Cap - Escola e Trajetórias Individuais de Leitura - Juvenal

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1º Cap - Escola e Trajetórias Individuais de Leitura - Juvenal

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Page 1: 1º Cap - Escola e Trajetórias Individuais de Leitura - Juvenal

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Escola e trajetórias individuais de leitura

Juvenal Zanchetta Júnior

UNESP – FCL Assis

RESUMO: Objetiva-se, neste capítulo, apresentar reflexões acerca da formação do

leitor no Brasil. Para tanto, o texto convoca seu leitor a refletir sobre os conceitos de

leitura, educação e alfabetização.

PALAVRAS-CHAVE: Formação do leitor; Leitura literária; Educação.

Este texto aborda, de maneira introdutória, aspectos da formação de leitores no

Brasil. A intenção é mostrar a cultura escolar como fator decisivo no quadro da leitura

literária entre crianças e jovens. Leitura é entendida aqui não apenas como exercício de

decodificação de signos (neste caso, signos da linguagem escrita), mas principalmente

como processo de atribuição de sentidos a tais signos, com base na experiência

individual do sujeito: o domínio sobre a linguagem escrita, a educação escolar, as

crenças, o convívio com variedade de textos e lembrança de outros textos lidos, a classe

social, os grupos de pertencimento, a influência de terceiros, o lugar onde o texto é lido,

e assim por diante. Os sentidos atribuídos a um determinado texto, portanto, não são

estáticos, mas podem se modificar na medida em que o sujeito amplia sua experiência

de vida.

Mesmo em boa parte individuais os trajetos de formação de leitores também

passam por lugares comuns, o que permite mapear parte desse percurso e explicar, até

certo ponto, as razões pelas quais a leitura de textos literários, para a maioria dos

brasileiros, se perdeu pelo caminho ou simplesmente não aconteceu. Para se ter ideia do

tamanho do problema, basta recuperar informações obtidas a partir da edição mais

recente do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)1. Apenas 25% dos brasileiros

1 Pesquisa realizada desde 2001 pelo Instituto Paulo Montenegro, cujo objetivo é mensurar o nível de

alfabetismo entre brasileiros de 15 a 64 anos.

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são considerados plenamente alfabetizados, isto é, capazes de ler textos mais longos,

relacionar suas partes, comparar e interpretar informações, distinguir fato de opinião,

realizar inferências e síntese (INAF, 2009). Tais características sugerem que apenas um

quarto dos brasileiros apresenta condições para ler um romance ou mesmo uma poesia

mais elaborada.

Esse dado surpreende, pois a leitura é uma ferramenta indispensável à vida em

sociedade, uma vez que dela dependem tarefas elementares da vida cotidiana, como

pegar um ônibus, fazer compras, procurar uma rua na cidade, preparar alimentos,

telefonar em uma cabine pública, utilizar um determinado produto ou serviço.

Entretanto, em âmbito escolar, muitas vezes, ela é vista como enfadonha e sem relação

com a realidade. Os alunos não a aceitam como um instrumento de enriquecimento

pessoal capaz de propiciar o trabalho autônomo. Tanto a leitura solitária, como as

práticas documentais, enquanto instrumento que favorece a interação nas situações reais

de vida em sociedade, ou ainda enquanto um objeto de degustação e prazer

incomparável, pela manejabilidade e pela presença constante dos objetos em que ela se

faz presente, pela diversidade dos modos de acesso a ela e pela extrema economia de

sua utilização, são rejeitadas pelos educandos. Mesmo porque há, em sala de aula,

ausência de leitura do outro que, justamente, favorece a interação, ao término de

rivalidades entre os sujeitos e de atitudes desrespeitosas com relação ao próximo, e ao

professor.

O percentual de brasileiros plenamente alfabetizados permanece o mesmo desde

2001, ano em que a pesquisa INAF teve início. E o fato de se mostrarem “aptos” à

leitura literária não quer dizer que os plenamente alfabetizados são leitores de textos

literários. Os indivíduos com nível universitário são maioria nesse grupo e grande parte

dos cursos superiores no Brasil ignora solenemente a Literatura Brasileira. Isso acontece

até mesmo nos cursos de Letras.

Cerca de 50% dos brasileiros são considerados alfabetizados funcionais: “lêem

e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja

necessário realizar pequenas inferências” (INAF, 2009). Essa característica, em tese,

permite ao leitor o domínio sobre textos informativos de média complexidade,

habilitando-o também à leitura de textos literários simples, lineares e mais curtos (uma

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crônica ou um conto, por exemplo, no terreno da literatura). Os demais brasileiros

dominam apenas textos elementares (21%) ou, ainda, se mostram em estágio de

analfabetismo (7%).

O percentual de brasileiros que apresenta alfabetização básica (alfabetizados

funcionalmente) está crescendo de forma gradativa (em 2001, eram 34%), no entanto,

os números sugerem terreno ainda limitado para o florescimento da leitura literária no

país, sobretudo para a literatura de maior valor estético. Como chegamos a um cenário

como esse (em termos de leitura literária), num país em que o Ensino Fundamental de

oito anos é obrigatório desde 1971, levando em conta o fato de que a história da escola

brasileira sempre privilegiou os textos literários (haja vista o fato de serem cobrados até

hoje nos principais exames vestibulares)? Boa parte da explicação para esse quadro está

na própria escola ou na falta dela.

A escola de modelo generalista perdurou no país até o final dos anos 1960 – e a

influência desse modelo alcançou os anos 1980. Atenta às questões universais ou à

preocupação de levar adiante aspectos da cultural universal, a escola trazia a literatura

como referência mais elaborada da cultura de uma sociedade. Os textos literários eram

tomados não apenas como bastião da linguagem requintada – a ser imitada pelos jovens

–, mas também como portadores de modelos de virtude, de comportamento, de

patriotismo esmerado. Embora selecionados por uma elite intelectual e, em geral,

ajustados para finalidades pedagógicas, as obras clássicas da literatura eram decisivas na

trajetória escolar dos alunos. Histórias em quadrinhos, jornais, revistas, entre outros

suportes informativos raramente apareciam nas salas de aula, pois seus conteúdos eram

considerados fúteis e efêmeros demais para a obra formadora.

Embora centenário, esse perfil de escola foi deixado de lado a partir dos anos

1970. Considerada elitista, em meio à crescente necessidade de mão-de-obra qualificada

para a indústria e para o desenvolvimento urbano, a escola generalista deu lugar a uma

proposta mais utilitária. As orientações pedagógicas passaram a privilegiar objetos de

leitura inseridos no cotidiano imediato das pessoas. A literatura de prestígio deu lugar a

narrativas curtas, menos complexas, marcadas pela linearidade da ação e por temas

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juvenis2, pela linguagem direta e menos polissêmica (a poesia foi o gênero mais

prejudicado). Significativo documento oficial da década de 1970 indicava a mudança de

ênfase: “[o aluno deve] desenvolver a habilidade de comunicar-se mais ampla e mais

eficazmente nas diferentes situações de discurso: troca de informação; manifestação de

emoções; manifestações volitivas, etc.” (SEE-SP, 1975, p.3). Deixava-se para trás a

tradição universalista, para se responder às necessidades imediatas dos indivíduos na

sociedade.

Por que razão a escola generalista não foi capaz de assentar uma cultura da

literatura na sociedade brasileira? Um dos principais motivos foi o seu caráter

excessivamente seletivo. Reservada para os filhos das elites urbanas, mesmo sendo

obrigatória3, essa escola excluía a maior parte das crianças e jovens, por meio da

repetência ou pela falta de vagas. Mesmo em estados com maior tradição escolar, como

São Paulo, até a década de 1960, pouco mais da metade das crianças estava na escola.

Menos de 20% dos jovens concluía o então “segundo grau” (hoje, Ensino Médio). Os

números eram bem mais modestos em diversos outros estados: Alagoas e Piauí, por

exemplo, ainda enfrentam, nos anos 2000, taxas de analfabetismo na casa de 30%,

segundo o IBGE4.

O que se viu a partir dos anos 1970 foi a expansão crescente do número de vagas

nas escolas, a ponto de, nos dias de hoje, o atendimento, no Ensino Fundamental,

alcançar mais de 90% das crianças e jovens, e no Ensino Médio, mais de 50% dos

jovens (em boa parte dos estados brasileiros). Mesmo lento esse crescimento não foi

acompanhado de uma sólida e contínua política educacional, dando conta de fatores

importantes, como os seguintes (para citar apenas alguns entre aqueles que se

relacionam mais de perto com a leitura e, sobretudo, com a leitura literária):

2 A Série Vaga-Lume (Editora Ática), com cerca de uma centena de títulos publicados, é emblemática

dessa perspectiva. Mesmo em meio à rápida evolução tecnológica, que propiciou grande diversidade da

produção midiática, essa coleção (lançada em 1972) tornou-se – para várias gerações, a única referência

de leitura escolar e sobrevive até os dias de hoje. 3 Até 1971, a escolaridade obrigatória eram os quatro primeiros anos (o chamado “ensino primário”);

depois de 1971, com a lei 5.692/71, os oito primeiros anos (o então chamado “primeiro grau”) passaram a

ser obrigatórios. 4 Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=774>.

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a) A formação de professores para essa nova escola ocorreu de maneira

bastante lacunar. Apenas na década de 2000, os estados se mobilizam

sistematicamente para a exigência de nível superior aos candidatos ao

magistério, numa tarefa não concluída em termos nacionais. Grande parte dos

cursos de formação é privada; muitos cursos historicamente mostraram-se de

qualidade duvidosa, passando a ser avaliados somente a partir do final dos

anos 1990 (primeiramente com o Exame Nacional de Cursos, o “provão”, e

mais tarde com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior –

Sinaes).

b) A preparação dos professores para a leitura literária não tem um estatuto

próprio. Nos cursos de Pedagogia (preparatórios para o magistério nas

primeiras séries), essa formação se dá de maneira incidental. Nos cursos de

Letras (preparatórios para o magistério nas últimas séries do Ensino

Fundamental e no Ensino Médio), o ensino de literatura ainda é um grande

desafio. Mesmo disciplinas específicas, como aquelas ligadas à literatura

infantil e juvenil, são tratadas com reserva dentro da própria universidade.

Basta lembrar que conteúdos relacionados ao ensino de literatura ou sobre a

produção literária para crianças e jovens não eram cobrados no “provão”, e

também não são avaliados no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

(Enade), que faz parte do Sinaes.

c) Essa preparação lacunar em termos de ensino de literatura mostra-se

ainda mais diluída quando se observa que boa parte dos professores formada

nas últimas três décadas é a primeira ou a segunda geração de suas famílias a

alcançar o nível superior, algo que, em muitos casos, significa o contato

limitado dessas famílias com a cultura letrada – e, portanto, com o livro.

d) O quadro agrava-se, ainda, devido ao fato de que as bibliotecas escolares,

quando existentes, com raras exceções se mostram limitadas em termos de

obras literárias. Para gerações inteiras de alunos – e professores – o único livro

disponível foi, durante décadas, o livro didático. Apenas em anos recentes,

desenvolvem-se programas sistemáticos de equipamento das escolas com

textos literários.

e) Finalmente, é preciso salientar que o traço funcionalista da escola

contemporânea dificulta sensivelmente o trabalho com a literatura. A opção

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por textos curtos, tratados em seus aspectos estruturais (como as questões

relacionadas ao gênero, por exemplo), torna os textos literários bastante

deslocados. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio), a

literatura é tratada como um código entre vários outros. A difícil redução de

suas características aos limites de gênero (à moda do que se faz com gêneros

como o ofício, o requerimento, a bula de remédio etc.) afasta ainda mais as

obras literárias, incluindo-se a poesia, das salas de aula.

Atualmente, a preparação dos professores ocorre, ainda, de maneira

fragmentada, incidental e principalmente “escolarizada”: os docentes, em boa parte, têm

contato com os livros apenas na escola e reproduzem práticas isoladas, aprendidas

circunstancialmente, na condição de alunos (da escola básica ou de cursos preparatórios

para o magistério) ou na experiência de sala de aula. Tais práticas, por seu turno, se

desenvolvem em meio a gerações de alunos também distantes dos livros, em razão da

falta de cultura letrada nas famílias; da opressiva cultura midiática calcada na imagem e

no som; da cultura utilitária que perpassa o mundo capitalista – exigente de finalidade

concreta e imediata às ações e objetos culturais. Tem-se, como consequência, um

conjunto de características bastante comuns ao contato das crianças e dos jovens com os

livros, que interferem diretamente na trajetória de leitura dos estudantes:

a) A sacralização das obras literárias: professores tomam os livros,

principalmente os clássicos, como objetos solenes e pouco acessíveis à leitura

individual. Para os alunos, as obras literárias apresentam sentidos “prontos”,

encontrados em resumos e comentários produzidos por especialistas: cabe aos

estudantes reproduzir essas opiniões, perfazendo uma vivência, quando muito,

“terceirizada” com os livros. Desse modo, O ensino de literatura que muitos

alunos de Ensino Médio conhecem, tanto da rede pública quanto da privada, é

voltado para a memorização de datas, de características de cada movimento

literário e de nomes de autores considerados mais expressivos dentro de cada

movimento. Quando se apresenta um texto por escrito, para análise em sala,

este geralmente é desconhecido dos alunos e desvinculado de sua realidade.

Por sua vez, os alunos do Ensino Fundamental concebem a leitura como algo

que “serve” para instruir, aumentar o vocabulário, escrever melhor, fazer

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exercício, preencher lacunas, testar a memória e passar a “moral”. Logo, a

leitura é concebida como meio para aprendizagem de certas habilidades, como

reforço da função da escola de ensinar a ler, escrever, contar e transmitir

valores.

b) As fichas de leitura como modo de ler: prática já tradicional na escola,

em que os estudantes buscam dados específicos nas obras literárias,

transformando os livros em baú de informações pontuais. A leitura torna-se

uma experiência estéril, mas existe a sensação de que o livro está sendo lido,

de que o dever foi cumprido pelo aluno. Cabe ao professor apenas corrigir as

respostas dos estudantes.

c) A verbalização como leitura: outro modo muito comum de verificação de

leitura é a prática da leitura em voz alta. O professor, sobretudo nas primeiras

séries, solicita que o estudante verbalize o conteúdo da obra lida. Com isso,

existe a sensação de que o aluno, efetivamente, “passou pelo conteúdo do

livro”.

d) A teatralização como leitura: o livro ou a poesia passa a ser encenada,

exposta sob a forma de jogral, desenhada, escrita sob outro gênero textual. O

texto literário serve como pretexto para outras atividades, consideradas mais

atraentes do que o texto literário em si. Uma variante dessa prática é a

assistência a filmes que reportam os livros, como forma de atrair o leitor para

o texto escrito ou mesmo para substituí-lo.

e) O texto curto como referência de leitura: limita-se a leitura literária a

textos curtos, em geral, crônicas ou poesias com sentido direto e aparente: sob

o pretexto da falta de obras e da falta de tempo para a leitura, opta-se por

excertos e por textos presentes em livros didáticos, que oferecem pouca

dificuldade de entendimento ao professor e aos alunos.

f) A leitura como responsabilidade apenas do aluno: são comuns os casos

de professores que disponibilizam tempo para os alunos irem até a biblioteca,

para lerem ou para retirarem textos para leitura pessoal. O professor não

interfere nas escolhas do aluno: uma revista informativa, uma história em

quadrinhos ou um livro de ciências, todos eles, na visão do professor, entram

na categoria “literatura”.

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g) A literatura atraente são os livros de ação e policiais: professores e alunos

tendem a partilhar a ideia de que os textos atraentes são, apenas, aqueles que

encadeiam ações, tensão, mistério e um clímax bem delimitado. É comum o

pensamento de que esses livros interessam mais aos homens, enquanto as

mulheres preferem histórias de amor. Quanto mais próximas da realidade,

maior a aceitação das histórias: literatura passa a ser sinônimo de “vida real”,

em geral com soluções também altamente previsíveis.

h) Os livros a serem lidos devem ser velhos: é comum nas bibliotecas

escolares (quando elas existem!) a prática de guardar a sete chaves os livros

novos, deixando à disposição do aluno apenas livros mais antigos, surrados.

Práticas próximas àquela são as de impedir o aluno de levar livros para casa

ou, então, autorizar apenas a saída de livros mais velhos, já gastos.

i) A leitura em sala de aula representa trabalho com o texto escrito, mais

especificamente, com exercícios de gramática. Perde-se, neste caso, conforme

Elizabeth D’Angelo Serra (1998, p.8), a oportunidade de o contato com a

língua ser provocador, crítico, original e prazeroso, potencial que a literatura,

como arte, oferece. A abordagem do texto escrito, enquanto um debruçar sobre

o objeto de análise como um fim em si mesmo, desconsidera o sujeito-leitor, o

aluno como pessoa, com sua afetividade, suas percepções, sua expressão, seus

sentimentos, sua crítica, sua criatividade.

j) “Ah, esses alunos não têm sensibilidade para a literatura! Suas famílias

são tão desestruturadas e distantes dos livros que tentar fazê-los ler é perda de

tempo!” Trata-se da ideia da carência cultural, presente no Brasil desde há

muito, sobretudo, quando o assunto são as crianças e jovens provenientes das

faixas menos favorecidas da população.

Podemos elencar outras atitudes, mas os exemplos citados são suficientes para

sugerir práticas que denotam a dificuldade, quando não o medo, de se lidar com textos

literários na sala de aula. Talvez, não seja por acaso que muitos estudantes, com

experiência de vida permeada por situações favoráveis ao contato com os livros,

tornem-se leitores à revelia da escola – que, não raramente, se mostra indiferente a essa

bagagem extracurricular.

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Embora não seja possível afirmar que todas as escolas tenham dificuldade para

lidar com a literatura, não é arriscado dizer que quando existe esse trabalho, ele se deve

mais à iniciativa individual de professores leitores do que de um projeto pedagógico das

escolas. Mas o que fazer, sendo a escola o único espaço em que gerações inteiras podem

ter contato com os textos literários?

Essa reflexão justifica-se, pois a organização do meio escolar desempenha um

papel determinante para o aprendizado da leitura enquanto poder que ele propicia ao

aluno, tanto pelo domínio do funcionamento dos grupos de que ele participa, quanto

pela condução de seu próprio processo de aprendizagem (FOUCAMBERT, 1997,

p.136).

Como ocupar com literatura o sagrado e generoso espaço da ficção e da poesia

com o qual todos os indivíduos contam e que hoje é dedicado quase integralmente a

telenovelas, filmes e séries televisivas, canções populares e aos próprios pares?

Alguns fatores podem ser desde já enumerados, para reflexão inicial, quanto ao

perfil dos mediadores de leitura que precisam:

1. ter disposição e curiosidade para ler textos literários. Não é possível

incentivar a leitura sem o vivo interesse pela leitura de obras literárias, que

abordem temas diversos. O mediador é alguém que domina certo repertório de

textos, suficiente para oferecer alternativas ao leitor iniciante, cujo gosto,

quase que invariavelmente, está nas histórias “reais”, na ação e no melodrama.

O tempo despendido com a leitura de livros é um tempo ganho e não um

tempo gasto;

2. deter certo domínio técnico acerca da literatura. Para tanto, faz-se

necessário conhecer certos procedimentos estéticos, a fim de se observar a

obra literária não apenas como história, mas também como construção de

linguagem artística, original. Reconhecer a estrutura de um texto significa, de

algum modo, antecipar-se aos jovens leitores, provocá-los em relação ao todo

e aos detalhes da obra;

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3. fomentar a inclusão da leitura literária no projeto pedagógico das escolas,

tornando a leitura uma proposta política permanente de ação. Além disso,

devem conhecer os espaços mediadores de leitura disponíveis fora da escola, a

fim de incentivar os estudantes a frequentá-los. É preciso, então, não apenas

disposição, mas também livros, espaços para a leitura, tempo para a leitura,

mecanismos para a aquisição e circulação de textos;

4. insistir em ações que desvelem a perspectiva de consumo tão inerente aos

tempos de hoje. Um jovem urbano chega a carregar (ou querer carregar) para a

escola, cotidianamente, cerca de R$ 500,00 ou ainda mais (seus tênis custam

cerca de R$ 200,00; as calças, talvez R$ 200,00; um aparelho celular custa

outros R$ 300,00; etc.). Vencidos os símbolos do consumo (algo que inclui

ainda outros equipamentos eletrônicos, bem como as músicas populares, os

astros e estrelas da moda etc.), há espaço para o trabalho com outros símbolos,

de caráter estético;

5. investir em ações que desarticulem o “espírito de corpo” dos diversos

grupos ou do grupo maior de alunos. Tal “espírito” falseia personalidades,

fazendo com que os alunos assumam para si papéis estabelecidos pelo grupo, e

amplia a resistência a qualquer diálogo que se proponha coletivo ou individual.

A comunicação só acontece por meio de palavras de ordem, por parte dos

professores e também por parte dos alunos;

6. incentivar a polifonia e a diversidade: a leitura é um gesto ativo e

indisciplinado (e não passivo e solene). Textos literários têm vida e são

barulhentos. Silenciá-los significa querer fazer passar o tempo e não permitir

que os textos falem. A troca de impressões, as diferenças de posições, as

relações estabelecidas com textos não literários são formas de consolidar um

território de leitura.

7. considerar o texto literário como indispensável, principalmente se vivido

como instrumento de libertação, Justamente, por isso, cativar seu público para

a sua leitura, pois esta propicia uma vivência interativa, na qual se toma

consciência do próprio “eu” e do outro. Enfim, assegurar que a leitura

represente de fato a posse de um saber, por meio do qual o leitor pode exercer

seu papel de cidadão, sendo capaz de se posicionar de modo crítico;

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8. partir de uma concepção democrática de que todos têm direito à literatura

e à arte, pois esta faculta atingir a humanização, ou seja, ativar, segundo

Antonio Candido:

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos

essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa

disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de

penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da

complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (1995, p.249)

Para Cyana Leahy-Dios (2000, p.27), um dos benefícios potenciais da literatura

é a ampliação do sentido das múltiplas possibilidades de vida no leitor. Ela lhe dá uma

chance de “viver” dilemas morais. Por meio do contato com o texto literário, os sujeitos

ampliam a sua visão de mundo, veem a realidade sob novos prismas, refazem o “real”.

Isto ocorre porque, segundo Diana Pessoa de Barros (1999, p.7), os discursos literários,

por serem dotados de ambivalência intertextual interna e proporcionarem a

multiplicidade de vozes e de leituras, permitem a substituição da verdade “universal”,

única, pelo diálogo de “verdades textuais”, contextuais e históricas. Assim, os leitores

reconsideram, por meio do diálogo com textos diversos de diferentes autores, a

“verdade única” que possuem, ou melhor, que lhes transmitiram.

Enfim, num país em que a leitura literária ainda é tímida, a escola continua

sendo um dos lugares fundamentais para o florescimento ou para o achatamento da

cultura literária. Pensar ou repensar os próprios textos literários e as práticas escolares e

extra-escolares ligadas a essa área são condições iniciais para a tarefa de formação de

leitores.

Ao longo deste Curso, esperamos alinhavar atividades decisivas para promover

a revisão do senso comum sobre a literatura, para romper com os preconceitos e com as

resistências em relação aos livros de poesia e de ficção. As atividades a serem

desenvolvidas oferecem instrumentos concretos para o trabalho de mediação, mas

observam, primeiramente, a condição do mediador como leitor de textos literários.

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Referências bibliográficas

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CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 3.ed. rev. e

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FOUCAMBERT, Jean. A criança, o professor e a leitura. Trad. Marleine Cohen;

Carlos Mendes Rosa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

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LEAHY-DIOS, Cyana. Educação literária como metáfora social: desvios e rumos.

Niterói: EdUFF, 2000.

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SERRA, Elizabeth D’Angelo (org.). 30 anos de literatura para crianças e jovens:

algumas leituras. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil,

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