(2) BUARQUE Sergio Construindo o desenvolvimento sustentável

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CONSTRUINDO O DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

Srgio C. Buarque

Recife, Agosto de 2001

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A idia revolucionria que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado o domnio do risco: a noo de que o futuro mais do que um capricho dos deuses e de que homens e mulheres no so passivos ante a natureza Peter L. Bernstein

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APRESENTAO De oportunidades e circunstncias , na verdade, a terceira edio revisada e ampliada do livro intitulado Metodologia de Planejamento do Desenvolvimento Local e Municipal Sustentvel (que aparece aqui como subttulo), publicado pela primeira vez em 1997, e utilizado como material didtico em vrios treinamentos e seminrios do IICAInstituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura e como referencial metodolgico em diferentes experincias de planejamento local e regional. O esgotamento da primeira e segunda edies (de 1999) e, principalmente, o enorme aprendizado resultante da aplicao prtica e da interao com um grande nmero de tcnicos e profissionais de diversas reas de conhecimento, levou necessidade e possibilidade de um novo livro que expressasse esta vivncia e enriquecimento intelectual. A reviso e complementao das edies anteriores evidencia que o planejamento e a aplicao da metodologia so tambm uma forma de criao e aprendizagem, da mesma forma que pode contribuir para a formao de sociedades locais mais inteligentes e aptas a lidar com os desafios do futuro; mas demonstra tambm que as edies vo refletindo o aprendizado do autor na experincia prtica e na interao com outros profissionais, nas capacitaes e na aplicao da metodologia. Em grande medida, desde a primeira edio estava claro o entendimento do livro como um estgio da reflexo sobre o desenvolvimento e as metodologias de planejamento, demandando e necessitando, portanto, de revises, aprimoramentos e refinamentos ao longo da sua aplicao prtica e nas diversas iniciativas concretas de planejamento municipal e local. Desde 1997, o livro vinha sendo utilizado na capacitao de tcnicos de vrias instituies governamentais e no governamentais, e orientando diversas experincias de planejamento municipal e regional. O envolvimento como consultor em outras experincias de planejamento criou novas alternativas tcnicas e ampliou a percepo sobre caminhos e procedimentos para o desenvolvimento local. Por outro lado, o debate nacional sobre desenvolvimento local sustentvel e a literatura internacional sobre o tema estimularam a reviso e o aprimoramento de alguns conceitos e a introduo de inovaes na metodologia. Em certa medida, recupera trabalhos tericos e metodolgicos e a bibliografia sobre desenvolvimento local e municipal e sobre planejamento do desenvolvimento, refletindo sobre os textos e documentos utilizados por diferentes instituies (governamentais e no governamentais) em suas experincias de planejamento local. Como toda metodologia, esta tambm processo em construo em que se aprende fazendo e aplicando suas orientaes bsicas; partindo de um referencial bsico para orientar a implementao do planejamento e ajudar na compreenso e interpretao da realidade, se reconstri como resultado da vivncia e exerccio prticos. Como proposta metodolgica pretende contribuir para futuros empreendimentos de planejamento, como uma base e referncia para o trabalho dos tcnicos e consultores comprometidos com o desenvolvimento local sustentvel. Elaborada para aplicao no desenvolvimento local, a metodologia de planejamento pode ser utilizada, em princpio, para qualquer unidade territorial de pequeno porte, com as adaptaes e simplificaes devidas para microrregies, bacias hidrogrficas, estados,

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municpios e comunidades, com diferentes escalas e nveis de complexidade. Por isso, est formulada de forma genrica e ampla, permitindo o aproveitamento e utilizao de todas as etapas, atividades e tcnicas disponveis, mais apropriadas para escala territorial de pequeno e mdio porte. Por outro lado, a metodologia deve ser analisada, tratada e, eventualmente, utilizada com flexibilidade, procurando adaptar, ajustar, simplificar e reformular de acordo com as caractersticas do objeto de planejamento. O livro est apresentado em trs grandes partes diferenciadas e complementares; na primeira parte (captulos I, II e III) tenta fazer uma reflexo terica e conceitual sobre o desenvolvimento local sustentvel, apresentando o contexto geral do planejamento contemporneo e o debate recente sobre o desenvolvimento. Em seguida, procura oferecer uma viso metodolgica geral do planejamento participativo (no captulo IV e V) e o processo de trabalho para a aprendizagem social e a construo de projetos coletivos locais. A terceira parte (captulo VI) dedicada apresentao de um cardpio de tcnicas e instrumentos de trabalho para orientar as atividades e a prtica de planejamento local; estas ferramentas representam sugestes de vrios recursos de anlise lgica e estruturada e de participao, reflexo e negociao da sociedade, que podem ser adaptados e devem ser escolhidos de acordo com as necessidades e condies. A metodologia e as tcnicas devem, portanto, ser consideradas como um roteiro de trabalho para o planejamento local, utilizando o enfoque de desenvolvimento sustentvel e apropriando-se dos avanos conceituais e tcnicos registrados na prtica de planejamento.

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SUMRIO I. DESAFIOS DO MUNDO CONTEMPORNEO II. DESENVOLVIMENTO LOCAL E GLOBALIZAO 2.1 Desenvolvimento local 2.1.1 Multiplicidade e sinergia locais 2.1.2 Ambiente de inovao e aprendizagem social 2.1.3 Cortes espaciais do local 2.2 Globalizao e oportunidades locais 2.3. Desenvolvimento local e descentralizao 2.3.1 Descentralizao e concentrao no Brasil 2.3.2 Princpios da descentralizao 2.3.3 Descentralizao e participao da sociedade III. DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL 3.1 Complexidade e auto-reproduo regulada 3.2 Conflito e rigidez estrutural das dimenses IV. PLANEJAMENTO ESTRATGICO E APRENDIZAGEM 4.1 Processo tcnico e poltico 4.2 Planejamento local 4.3 Planejamento participativo e aprendizagem social V. METODOLOGIA DE PLANEJAMENTO 5.1 Viso estratgica 5.2 Caractersticas do processo de planejamento 5.3 Etapas do processo de planejamento 5.4 Organizao para o planejamento VI. TCNICAS DE PLANEJAMENTO 6.1 Consulta sociedade e levantamento da realidade 6.2 Antecipao do Futuro 6.3 Sistematizao e Hierarquizao 6.4 Anlise de Consistncia 6.5 Definio de Prioridades 6 13 13 13 16 18 19 25 28 32 34 36 40 43 54 54 55 58 64 64 67 70 81 84 84 90 91 102 110

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BIBLIOGRAFIA ANEXO I ANEXO II

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I. DESAFIOS DO MUNDO CONTEMPORNEO Os debates e reflexes que dominam a cena poltica e tcnico-cientfica internacional sobre modelos e alternativas de desenvolvimento - capazes de enfrentar os desafios e problemas econmicos, sociais e ambientais contemporneos - esto levando formulao de novas concepes de desenvolvimento endgeno, humano, local entre os quais se destaca a proposta de desenvolvimento sustentvel. Mesmo com as imprecises e ambigidades que ainda cercam os conceitos, todos os esforos recentes de desenvolvimento tm incorporado, de alguma forma, os postulados de sustentabilidade, procurando assegurar a permanncia e a continuidade, no mdio e longo prazos, dos avanos e melhorias na qualidade de vida, na organizao econmica e na conservao do meio ambiente. Como toda formulao terica, os conceitos e concepes de desenvolvimento e planejamento tm uma base histrica e surgem para fazer face aos novos desafios e mudanas da realidade. Independente de concordarmos com os novos conceitos, o que parece indiscutvel que o mundo est mudando intensa e profundamente, tornando as velhas concepes e organizaes ultrapassadas e inadequadas s novas condies scioeconmicas, tecnolgicas, polticas e ambientais. Estas transformaes na realidade pedem e estimulam o surgimento de novas idias e conceitos para explicar a realidade e para organizar as iniciativas e aes da sociedade diante das circunstncias histricas. At a dcada de setenta, o modelo de crescimento econmico do ps-guerra definido como fordismo - tanto nos pases industrializados quanto nas naes economicamente emergentes, parecia solidamente implantado e inabalvel, fundado sobre o trip abundncia de recursos naturais (e energticos), aumento da produtividade do trabalho e presena do Estado de Bem-Estar (ou do Estado desenvolvimentista, no caso do Brasil). A economia crescia de forma extensiva e estimulada pelo consumo de massas e ganhos de escala e rentabilidade das empresas. Nos pases do ento chamado Terceiro Mundo, a competitividade e a atratividade dos investimentos de capital externo se baseavam fortemente tambm, na mo de obra barata - alm da abundncia de recursos naturais - e no limitado controle ambiental, externalizando os impactos ambientais do setor produtivo e, portanto, reduzindo o custo de produo. Estas caractersticas do paradigma fordista condicionaram a diviso internacional do trabalho com a integrao subordinada e dependente dos pases emergentes, como o Brasil, especializados na produo de matrias primas ou mesmo indstrias pesadas de baixo valor agregado. O fordismo se diferencia da fase anterior do capitalismo pela extraordinria expanso do consumo da populao, ampliando os mercados e a demanda por produtos das novas indstrias; esta sociedade de consumo s se tornou possvel porque uma parte dos excedentes gerados pelo crescente aumento da produtividade do trabalho (viabilizado pelos avanos tecnolgicos) se transformou em salrios e em poupana pblica para regulao dos ciclos econmicos. Por conta disso, o fordismo convive com um conflito entre os interesses privados das empresas - buscando baixos salrios para aumento da lucratividade e acumulao da capital - e os interesses coletivos (inclusive do prprio capital) necessitando de alguma forma de distribuio de riqueza para elevao da demanda e do consumo de massa. O dinamismo e funcionamento da economia necessita de uma grande

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massa de consumidores, com renda suficiente para absorver a crescente oferta de produtos de consumo final. Enquanto a produtividade do trabalho se ampliava, aumentava a renda e a acumulao, distribuindo os ganhos entre salrio e capital, permitindo a expanso da demanda e da acumulao reproduzida em novos investimentos, que levavam ao crescimento econmico. Na dcada de setenta, este modelo de desenvolvimento entra em declnio e sofre fortes abalos, na medida em que seus postulados centrais se esgotam, acelerado pela crise do petrleo, que levou a um aumento significativo dos preos dos combustveis fsseis, sinalizando para um esgotamento de uma das principais fontes energticas do planeta. At aquele momento, predominava a convico generalizada de que os recursos naturais eram um bem abundante e inesgotvel (infinitos). Os economistas descobrem que os estoques de recursos naturais so finitos, ao mesmo tempo em que comea uma fase de estancamento do ritmo de crescimento da produtividade do trabalho, em grande parte como conseqncia da rigidez dos sistemas de regulao, e a deteriorao financeira do Estado de Bem Estar Social. Nos pases emergentes, como o Brasil, esta deteriorao se manifesta na desorganizao e falncia do sistema centralizado e estatista de promoo da modernizao e industrializao e do modelo de substituio de importaes, com a acelerao do endividamento pblico e externo das naes de industrializao recente. No interior mesmo do fordismo em crise, surgem novos processos e inovaes que preparam a emergncia e formao de um novo paradigma de desenvolvimento com respostas diferentes aos problemas e desafios do modelo em declnio. A base das transformaes que levam a esta virada de sistemas sociais e econmicos a acelerao e aprofundamento da revoluo tecnolgica e organizacional, com seus desdobramentos polticos e sociais. Durante as duas ltimas dcadas, o mundo passa por um perodo de transio de paradigmas, combinando os problemas e contradies do fordismo em decadncia com a desorganizao decorrente da emergncia de novas relaes. Como afirma Srgio Boisier, "... nos encontramos ubicados en un rea de interface entre dos paradigmas, uno todavia dominante y otro emergente, cuyas caractersticas definitivas todava no son suficientemente claras, pero no por ello dejan de tener una importancia notable (Boisier, 1992, pg. 66). O mundo avana numa passagem instvel e acelerada da "velha ordem industrial para a futura ordem da informao" (GBN, 1995, pag. 4), na qual a nica coisa realmente constante a mudana (change as the only constant). Esta transio para um novo paradigma de desenvolvimento no s demanda novas concepes e percepes, como tornam vivel novas propostas de organizao da economia e da sociedade que, no passado recente, no passavam de utopia. As novas tecnologias promovem uma significativa economia do contedo de energia e recursos naturais no produto das economias modernas, incluindo processos de reciclagem e reprocessamento de recursos naturais, ao mesmo tempo em que elevam o peso relativo da tecnologia, das informaes e do conhecimento no valor agregado dos produtos e a importncia da qualidade dos recursos humanos e da educao na competitividade. Por outro lado, a mudana da estrutura produtiva, com a criao de novos produtos e servios, especialmente as atividades tercirias e quaternrias, permitem reduzir o impacto ambiental e as presses do processo econmico sobre os ecossistemas.

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De forma simplificada esto apresentada na Matriz 1, abaixo, as diferenas bsicas entre o fordismo e o novo paradigma emergente e carregado de incertezas, destacando as condies de competitividade. Matriz 1 MUDANA NO PARADIGMA1 DE DESENVOLVIMENTO FORDISMO Crescimento econmico extensivo com aumento do consumo de massas Economia de escala (padronizao e produo em grandes quantidades) NOVO PARADIGMA Crescimento econmico seletivo com diversificao do consumo Flexibilidade da produo e ganhos na qualidade e diversidade de produtos (economia de escopo) Competitividade baseada em tecnologia, conhecimento, informao e recursos humanos qualificados e no controle e qualidade ambiental Novas institucionalidades, reorientao do papel do Estado para a regulao e administrao por resultados (Terceiro Setor) Aumento da produtividade e da qualidade com mudana das relaes de trabalho e reduo do emprego formal e do trabalho no valor do produto Crescimento de novos segmentos e setores, especialmente tercirio, servios pblicos e quaternrio (servios ambientais)

Competitividade baseada em abundncia de recursos naturais, baixo custo da mo de obra, e limitado controle ambiental (impactos ambientais externalizados) Estado de Bem Estar e interventor com gerncia burocrtica e crescente participao no PIB e no investimento social Aumento da produtividade, dos salrios (participao na renda nacional) e do emprego

Dinamizao da base industrial e do consumo de bens industrializados de massa

Nos ltimos anos, o prprio meio ambiente vem surgindo, de forma crescente, como um negcio na economia mundial; j se fala amplamente em servios ambientais, contribuio de diferentes ecossistemas para o equilbrio e funcionamento da natureza e, portanto da economia mundial, como a formao de solo, o abastecimento de gua, os ciclos de gerao de nutrientes, o processamento de dejetos, e a polinizao, entre outros

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Paradigma social - segundo Fritjof Capra - " uma constelao de concepes, de valores, de percepes e de prtica compartilhada por uma comunidade, que d forma a uma viso particular da realidade, a qual constitui a base da maneira como a comunidade se organiza" (Capra, 1996).

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que interagem no ecossistema global2. Na mesma direo, comea a surgir tambm como um grande negcio mundial as cotas de seqestro de CO2 criado por florestas e reservas ambientais, passvel de negociao na medida em que o Protocolo de Kyoto, que trata das mudanas climticas, seja amplamente aceito na comunidade internacional. As negociaes mundiais em torno da distribuio eqitativa de direito ao meio ambiente e, portanto, emisso de gases e poluentes pode levar criao de cotas nacionais equivalentes populao. As cotas de poluio passariam a constituir um negcio mundial; algumas naes com pouca gerao de poluentes venderiam suas cotas aos grandes produtores; ou os pases com ecossistemas que digerem e processam os gases agressores do planeta, venderiam este servio para os agressores, como prmio econmico pela conservao da natureza. A revoluo tecnolgica e organizacional provoca, ao mesmo tempo, fortes mudanas nos padres de competitividade entre naes e regies e nas relaes entre a economia e a natureza. No terreno organizacional, tem lugar uma redefinio das relaes de trabalho com a flexibilizao, terceirizao, trabalho autnomo e em tempo parcial, alterao dos processos e valorizao da qualificao e a construo de novas instituies e instncias associativas e pblicas estatais ou para-estatais, que vo ocupando espaos abertos pelo Estado em crise e limitado na sua capacidade de investimento. O Estado entra em intensa e profunda reformulao, redefinindo seu papel privatizao, terceirizao e introduo da administrao gerencial - em grande parte como uma necessidade de adaptao s novas condies estruturais da economia e da sociedade. Se esto mudando a produo e as tecnologias, repercutindo na organizao da economia e da sociedade, o Estado no poderia continuar com as mesmas responsabilidades e caractersticas. Castells destaca que "a adaptao da administrao do Estado, enquanto instrumento, s tarefas complexas que impe o extraordinrio processo de mudana social e tecnolgica que estamos vivendo, condio prvia capacitao do setor pblico para atuar estrategicamente e mesmo para a implementao de qualquer reforma social. O Estado-nao herdado da era industrial no mais este instrumento" (Castells, 1998, pag. 12). Como resultado da crise e da incapacidade do Estado diante das novas demandas e aos novos desafios, tende a registrar-se, em todo mundo, uma significativa expanso do chamado Terceiro Setor, instituies de direito privado para prestao de servios pblicos, em parte contratados e financiados pelo Estado. Uma grande quantidade de organizaes no governamentais passa a atuar em mltiplas e diversificadas reas, desde a direta prestao de servios - como escolas, unidades de sade, e, principalmente, assistncia social a segmentos desprotegidos da sociedade - at as atividades tcnicas e de pesquisas e estudos, ocupando um papel crescente na sociedade contempornea. De acordo com dados apresentados por Rifkin, o chamado Terceiro Setor j apresentava, no incio da dcada de noventa, uma presena marcante na economia norte-americana, representando cerca de 5% do PIB e 9% do emprego dos EUA (Rifkin, 1995), mais do dobro do espao ocupado pelo2

Uma estimativa grosseira do valor destes servios para a vida na terra e o funcionamento do sistema econmico, poderia chegar a algo prximo de US$ 40 trilhes de dlares, segundo ambientalistas e especialistas, referido por Robert May (One World News Service)

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setor agropecurio. No Brasil, estima-se que este segmento privado de funo pblica abrange um universo de, aproximadamente, 250 mil organizaes com um movimento anual de US$ 1,5 bilhes de dlares e ocupando cerca de 1,5 milhes de pessoas ocupadas diretamente. A inovaes organizacionais se manifestam tambm no espao empresarial. Nos sistemas gerenciais da empresa est ocorrendo tambm uma revoluo, facilitada pelos mudanas tecnolgicas, levando a uma intensa flexibilizao do processo produtivo e da gesto do trabalho e a uma alterao dos sistemas hierarquizados predominantes no taylorismo e no fordismo. As inovaes ocorrem tambm na formao das grandes redes empresariais, as empresas globais, que representam complexos transnacionais flexveis e formados por vrias empresas, mas unificados e controlados por empresas-lderes que dominam a tecnologia, o marketing e o design. O melhor exemplo parece ser a Nike, maior empresa de calados de tnis do mundo que, rigorosamente, no produz (diretamente) um nico sapato, mas articula e comanda uma grande rede internacional de produtores para invadir o mercado com a sua marca e o seu padro de qualidade. Esta tambm a concepo da nova montadora da Ford em implantao na Bahia, organizando um grande consrcio de fornecedores no prprio empreendimento e buscando concentrar suas atividades futuras precisamente nos segmentos de tecnologia, o marketing e o design. A amplitude das mudanas se manifesta tambm na reorganizao do sistema econmico internacional e na formao dos grandes blocos econmico-comerciais, que ampliam a escala dos mercados e aceleram a liberalizao comercial. A globalizao dos mercados e a acelerao do sistema financeiro internacional - com grande massa de capital circulando em tempo real e em torno de uma grande diversidade de produtos financeiros ampliam a instabilidade financeira, demandando novos instrumentos de regulao. Com diferentes ritmos e velocidades, este novo paradigma de desenvolvimento tende a alterar radicalmente a base da competitividade das naes e dos diversos espaos econmicos. De uma vantagem locacional marcada pela abundncia de recursos naturais, baixos salrios e reduzidas exigncias ambientais - que caracterizou o ciclo expansivo do aps-guerra - a competitividade se desloca para as vantagens em conhecimento e informao (tecnologia e recursos humanos) e para a qualidade e excelncia do produto ou servio. Adicionalmente, a qualidade emerge como uma referncia importante de disputa competitiva, incluindo a qualidade do meio ambiente e os processos sustentveis de produo como diferencial de competitividade, refletindo os avanos tecnolgicos e o crescimento da conscincia ambiental. A propagao e penetrao do novo padro de desenvolvimento no espao mundial e as condies estruturais de cada pas ou regio na nova configurao tendem a produzir, em escala internacional e tambm nacional, uma nova diviso do trabalho. A importncia da educao e da qualificao dos recursos humanos no novo paradigma deve reforar a posio de liderana dos pases centrais e reduzindo, de forma crescente, sua dependncia dos recursos naturais. Os fluxos de capital e investimentos se reconcentram na busca das novas vantagens competitivas das naes e regies, cuja principal externalidade tende a se manifestar na qualidade dos recursos humanos. Embora os recursos humanos constituam fator de grande mobilidade no espao, a densidade de massa crtica de conhecimento e

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qualificao tcnico-profissional se distribui de forma desigual no territrio e tende a manter sua base em centros de maior atratividade. O deslocamento dos determinantes da competitividade no novo paradigma no significa que a abundncia e disponibilidade de recursos naturais no tenha mais nenhuma importncia econmica. Mas indica que, mesmo o seu aproveitamento e utilizao dever incorporar massas crescentes de conhecimento e informao, contidas nas tecnologias e nos processos, principalmente como forma de assegurar sua qualidade e sustentabilidade. Assim, a revoluo cientfica e tecnolgica tanto pode permitir que pases ou regies carentes de recursos naturais ocupem posio competitiva3 relevante com base na densidade dos seus recursos humanos (caso clssico do Japo j no velho paradigma fordista), como constitui uma condio para o aproveitamento (com competitividade e conservao ambiental) dos recursos naturais em pases com riquezas significativas, como o Brasil. Por outro lado, cresce a importncia da natureza como componente de sustentabilidade e de qualidade de vida da populao, incluindo a valorizao de produtos naturais. A importncia da educao e da capacitao de recursos humanos como um diferencial da competitividade sistmica tambm evidencia a natureza das contradies internas no novo paradigma: enquanto os interesses privados do capital continuam buscando a reduo do custo da mo de obra e, principalmente, a baixa carga tributria para elevar os lucros e melhorar a rentabilidade os interesses coletivos (inclusive do capital) defendem elevados investimentos pblicos em educao, formao de recursos humanos e pesquisas, o que demanda alta carga tributria e/ou distribuio de renda. Em certa medida, como lembra a CEPAL, a competitividade das economias nacionais e regionais dependem de nveis mais elevados de equidade4 social, de qualidade de vida e de consumo, de escolaridade e de qualidade da mo de obra, constituindo atrativos para os investimentos privados. Esta competitividade s alcanada se parte importante dos excedentes gerados pela elevada produtividade for destinada para investimentos nas reas educao, qualificao do trabalho, oferta de servios sociais bsicos, e pesquisa e desenvolvimento tecnolgico; o que, via de regra, requer a atuao do Estado, incorporando, portanto, parcela importante da renda nacional5. As propostas contemporneas de desenvolvimento - como o desenvolvimento sustentvel - tendem a aumentar a importncia e necessidade do planejamento como um instrumento fundamental para orientar o futuro. O planejamento e o Estado - como agente3

A competitividade (vantagem competitiva), contudo, no pode ser considerada como um dado definitivo e inelutvel, mas como algo a ser construdo nas condies concretas de cada realidade. Por no se limitar ao tradicional conceito de vantagens comparativas clssicas, referidas a dotaes de recursos naturais e vocaes dadas, a vantagem competitiva um processo permanente de construo e reconstruo. 4 Equidade deve ser entendida como a igualdade de oportunidades de desenvolvimento humano da populao, respeitando a diversidade scio-cultural mas assegurando a qualidade de vida e a qualificao para a cidadania e o trabalho. 5 Com todo o discurso sobre a propagao e hegemonia do neo-liberalismo no mundo e apesar dos processos de privatizao e desregulamentao da economia, os dados mostram que, nos pases centrais - e mesmo na Gr-bretanha de Margareth Thatcher - a participao do Estado no PIB nacional no tem caido e, em alguns casos, tem aumentado nas ltimas dcadas (ver The Economist de setembro de 1997)

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regulador - ganham relevncia, assumem novos papis e tornam-se uma necessidade vital na medida em que a sociedade se oriente para o desenvolvimento sustentvel e para a construo de um novo estilo de desenvolvimento que busca a conservao ambiental, o crescimento econmico e a equidade social. O peso da dimenso ambiental no desenvolvimento e a importncia das externalidades positivas (especialmente qualidade de recursos humanos) para a competitividade das naes (e regies) aumentam a necessidade do planejamento e a presena do Estado na conduo da economia e da sociedade. O Estado ter que reforar sua atuao precisamente nas reas em que o mercado no eficaz como regulador expontneo da economia desde uma perspectiva de mdio e longo prazos, precisamente nas dimenses social e ambiental, e nos segmentos estratgicos de limitada e lenta rentabilidade. O mercado um importante mecanismo sinalizador da racionalidade econmica, orientando os investimentos com eficincia e rapidez de forma a assegurar a viabilidade econmica. No entanto, o mercado tem eficcia num horizonte temporal curto e estritamente econmico-empresarial, mostrando-se incapaz de lidar, especialmente com trs componentes fundamentais para o novo paradigma de desenvolvimento, que tendem a demandar prazos longos de maturao: conservao ambiental, equidade social e equilbrio espacial. Nestes aspectos, se no houver a ao reguladora do Estado - que introduz a viso de longo prazo estratgica e tica e incorpora diferentes presses sociais - a dinmica econmica tende a comprometer a sustentabilidade no longo prazo, porque costuma promover a degradao ambiental, a concentrao dos benefcios sociais e a concentrao espacial da riqueza. A complexidade que encerra as alternativas de desenvolvimento, a multiplicidade de agentes, atores e instituies que deve envolver, assim como a necessidade de democracia e participao, ressaltam a necessidade do planejamento como ferramenta para organizao da ao do Estado. O planejamento conta, atualmente, com um instrumental bastante sofisticado e recursos tcnicos diferenciados que podem sustentar as propostas de desenvolvimento local. Sem o voluntarismo utpico, como diz Carlos de Mattos, que caracterizou uma fase do planejamento na Amrica Latina, menos ainda com o pragmatismo imediatista que ainda domina a realidade nacional, o planejamento deve ressurgir como um processo tcnico e poltico de construo do futuro, como base para uma utopia realista ou um pragmatismo utpico6; capaz de dar conta da complexidade do mundo contemporneo, trabalhar com a incerteza e, sobretudo, lidar com a multiplicidade de opes no novo paradigma de desenvolvimento e na perspectiva do desenvolvimento sustentvel.

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Jogo de palavras utilizado por Cludio Marinho, Secretrio de Cincia e Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco, para expressar a postura do planejamento que aposta no futuro e na fora da sociedade em construir seu destino mas, de forma realista, compreende os limites e as possibilidades das circunstncias histricas, inclusive polticas.

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II. DESENVOLVIMENTO LOCAL E GLOBALIZAO A transio para um novo paradigma de desenvolvimento mundial est associado a um processo acelerado de globalizao com a intensa integrao econmica, a formao de blocos regionais e a emergncia de grandes redes empresariais com estratgias e atuao global. Paradoxalmente, contudo, nunca foi to forte a preocupao com o desenvolvimento local e a descentralizao econmica, social e poltica, e to visvel os movimentos localizados e endgenos de mudana e desenvolvimento. Como diz Castells, una de las muchas paradojas que nos depara nuestro interessante tiempo histrico es el relanzamiento de lo local en la era de lo global (Castells, 1998, pag. 9). O que desenvolvimento local e por que a seu fortalecimento quando o mundo est se globalizando e o espao se integrando e estreitando? E que condies e perspectivas concretas existem para o desenvolvimento local dentro do processo acelerado de transformaes e de globalizao da economia? Como cada territrio pode e deve se mover dentro de um avassalador processo de mudanas globais que penetra e influencia todos os espaos? Estas so as perguntas que inquietam os tcnicos e os atores locais, cujas respostas so fundamentais para orientar as metodologias para o desenvolvimento local. 2.1 DESENVOLVIMENTO LOCAL O desenvolvimento local pode ser conceituado como um processo endgeno de mudana, que leva ao dinamismo econmico e melhoria da qualidade de vida da populao em pequenas unidades territoriais e agrupamentos humanos. Para ser consistente e sustentvel, o desenvolvimento local deve mobilizar a explorar as potencialidades locais e contribuir para elevar as oportunidades sociais e a viabilidade e competitividade da economia local; ao mesmo tempo, deve assegurar a conservao dos recursos naturais locais, que so a base mesma das suas potencialidades e a condio para a qualidade de vida da populao local. Este empreendimento endgeno demanda, normalmente, um movimento de organizao e mobilizao da sociedade local, explorando as suas capacidades e potencialidades prprias, de modo a criar razes efetivas na matriz scioeconmica e cultural da localidade. 2.1.1 Multiplicidade e sinergia locais O desenvolvimento local o resultado de mltiplas aes convergentes e complementares, capaz de quebrar a dependncia e a inrcia do sub-desenvolvimento e do atraso em localidades perifricas e promover uma mudana social no territrio. No pode se limitar a um enfoque econmico, como normalmente associado s propostas de desenvolvimento endgeno, mas no pode minimizar a importncia do dinamismo da economia. Especialmente em regies e municpios pobres deve perseguir com rigor o aumento da renda e da riqueza local, atravs de atividades econmicas viveis e competitivas, vale dizer, com capacidade de concorrer nos mercados locais, regionais e, no limite, nos mercados globais. Apenas com economia eficiente e competitiva, gerando riqueza local sustentvel pode-se falar, efetivamente em desenvolvimento local, reduzindo a dependncia histria de transferncias de rendas geradas em outros espaos.

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Na definio de Amaral, desenvolvimento endgeno pode ser entendido como um processo de crescimento econmico implicando em uma contnua ampliao da capacidade de agregao de valor sobre a produo bem como da capacidade de absoro da regio, cujo desdobramento a reteno do excedente econmico gerado na economia local e/ou a atrao de excedentes provenientes de outras regies (Amaral, sem data, pag. 2). Entretanto, alm desta mudana econmica depender, normalmente, de fatores scioculturais, tecnolgicos e polticos, o transbordamento do dinamismo econmico local exige tambm movimentos e reoganizao nas outras dimenses da realidade. O desenvolvimento local demanda mudanas institucionais que aumentam a governabilidade e a governana7 das instituies pblicas locais, incluindo o municpio, construindo uma relativa autonomia das finanas pblicas e acumulao de excedentes para investimentos sociais e estratgicos para a localidade. Por isso, o desenvolvimento local no pode ser confundido com o movimento econmico gerado por grandes investimentos de capital externo que no internalizam e irradiam na economia local, enclaves que no se traduzem em mudanas efetivas na organizao social e econmica local, com seus desdobramentos na capacidade de investimento endgena (especialmente dos governos municipais). O municpio com grande empreendimento produtivo sem razes (enclaves econmicos) ou cuja economia se alimenta, na sua maior parte, de transferncias externas de rendas compensatrias e que tem a base da arrecadao municipal formada pelos fundos de participao est longe de um desenvolvimento local. O desenvolvimento local sustentvel resulta, desta forma, da interao e sinergia entre a qualidade de vida da populao local reduo da pobreza, gerao de riqueza e distribuio de ativos a eficincia econmica com agregao de valor na cadeia produtiva e a gesto pblica eficiente, como apresentado, de forma esquemtica no grfico 1. A interao entre eles deveria ser mediada pela governana transbordando da base econmica para as finanas e os investimentos pblicos pela organizao da sociedade orientando as polticas e os investimentos pblicos locais e pela distribuio de ativos sociais assegurando a internalizao da riqueza e os desdobramentos sociais da economia. Estes so os trs grandes pilares de um processo de desenvolvimento local, formando uma combinao de fatores que pode promover a reorganizao da economia e da sociedade locais (sem esquecer, evidentemente, a conservao ambiental). Desta forma, qualquer estratgia para promoo do desenvolvimento local deve se estruturar em, pelo menos, trs grandes pilares: organizao da sociedade, contribuindo para a formao de capital social local (entendido como capacidade de organizao e cooperao da sociedade local) combinado com a formao de espaos institucionais de negociao e gesto, agregao de valor na cadeia produtiva, com a articulao e aumento da competitividade das atividades econmicas com vantagens locais, e reestruturao e modernizao do setor pblico local, como forma de descentralizao das decises e elevao de eficincia e eficcia da gesto pblica local. Tudo isso associado com alguma forma de distribuio de ativos sociais, principalmente o ativo conhecimento7

No apenas legitimidade, expressa pela governabilidade, como tambm e, principalmente, g, capacidade efetiva de execuo e implementao de aes e investimentos.

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expresso pela escolaridade e a capacitao tecnolgica. As mudanas que decorrem destes trs processos e a sinergia gerada no conjunto do tecido social viabilizam o desenvolvimento local de forma consistente e slida. Grfico 1 GESTO PBLICA EFICIENTE

ORGANIZAO DA SOCIEDADE

GOVERNANA

QUALIDADE DE VIDA DISTRIBUIO DE ATIVOS SOCIAIS

EFICINCIA ECONMICA

De um modo geral, na Europa o desenvolvimento local est bastante associado reestruturao produtiva que leva a uma melhoria da competitividade e eficincia econmica; provavelmente pela menor densidade dos problemas sociais e da pobreza. No Brasil e, particularmente no Nordeste, as iniciativas de desenvolvimento local tendem a olhar com certa desconfiana para a base da economia e, sobretudo, para os rgos pblicos locais, numa desproporcional crtica ao economicismo; o que pode explicar grande parte da baixa efetividade dos programas de combate pobreza e desenvolvimento local e rural no pas, apresentando reduzido impacto na construo de uma base produtiva. A recusa correta do economicismo e a suspeita compreensvel das instituies pblicas locais podem levar a uma postura segmentada e parcial, reduzindo as efetivas possibilidades de desenvolvimento local sustentvel; no consegue transformar a base da economia para gerar riqueza e trabalho e no permite o fortalecimento dos governos locais e sua capacidade de investimento. O resultado o limitado efeito das iniciativas sociais e a persistncia da dependncia local pelos fundos e programas estaduais ou nacionais, todo o contrrio de qualquer expectativa de desenvolvimento local. Assim, da mesma forma que no se pode reduzir o projeto de desenvolvimento local ao dinamismo econmico, fundamental o esforo de promoo da eficincia econmica local perseguindo o

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desenvolvimento e aumento da competitividade das cadeias produtivas adequadas s condies locais. A orientao para a competitividade no pode ser confundida com uma corrida alucinada e descontrolada para a integrao no mercado internacional(de resto invivel para pases e espaos subdesenvolvidos). A busca de competitividade deve ser implementada com critrio e com seletividade, compreendendo como um sistema de relaes de produo para diferentes reas mercadolgicas e para vrios setores e produtos em que se apresente efetivas vantagens locacionais. Cada regio ou municpio deve procurar espaos de competitividade de acordo com suas condies e potencialidades, especialmente no seu entorno imediato e nos setores de maior capacidade e vantagem locacional, concentrando esforos naquelas reas em que podem vir a ser mais competitivos. O que atrai capital para investimento produtivo (vantagens locacionais) e permite uma integrao na economia nacional - sem a insustentabilidade da dependncia eterna dos subsdios - so as "externalidades" positivas de cada espao econmico, com suas potencialidades: infraestrutura econmica, recursos humanos (especialmente populao educada e preparada profissionalmente) e desenvolvimento tecnolgico. Toda regio (microrregio, municpio e localidade) pode ser competitiva em algumas reas e setores e seguramente tm vantagens competitivas a serem desenvolvidas ou exploradas, a partir das suas potencialidades, desde que sejam criadas as "externalidades" adequadas. O local no sustentvel se no encontrar espaos de competitividade e depender, de forma continuada e persistente, de subsdios e transferncia de fora da regio. Quando no tiver as condies consolidadas, dever procurar construir suas vantagens competitivas seletivas, mesmo com apoio externo. Por outro lado, o destaque para a competitividade no significa que se priorize os setores que j so competitivos mas, ao contrrio, que se criem as condies para que outras potencialidades possam se tornar competitivas (no so ainda mas podem vir a ser) nas novas condies histricas, enquanto algumas atividades tradicionais podem perder espaos e competitividade. Desta forma, mesmo os setores e atividades econmicas mais simples e, atualmente no competitivas devem ser estimuladas para alcanar produtividade e qualidade, que as tornem competitivas no mdio e longo prazos, desde que tenham efetivo potencial nas condies histricas concretas. A construo da competitividade nos espaos locais aumenta a importncia e necessidade do Estado como organizador dos investimentos que criam as externalidades, com destaque para a educao. 2.1.2 Ambiente de inovao e aprendizagem social As experincias bem sucedidas de desenvolvimento local (endgeno) decorrem, quase sempre, de um ambiente poltico e social favorvel expresso por uma mobilizao e, principalmente, convergncia importante dos atores sociais do municpio ou comunidade em torno de determinadas prioridades e orientaes bsicas de desenvolvimento. Representa, neste sentido, o resultado de uma vontade conjunta e dominante da sociedade que d sustentao e viabilidade poltica a iniciativas e aes capazes de organizar as energias e promover a dinamizao e transformao da realidade (Castells; e Borja, 1996).

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Por isso, o desenvolvimento local depende da capacidade dos atores e da sociedade locais se estruturarem e se mobilizarem, com base nas suas potencialidades e sua matriz cultural, para definir e explorar suas prioridades e especificidades. Desta forma, o desenvolvimento de uma localidade municpio, microrregio, bacia, ou mesmo espao urbano deve ter um claro componente endgeno, principalmente no que se refere ao papel dos atores sociais, mas tambm em relao s potencialidades locais (Boisier, 1998). O desenvolvimento local est associado, normalmente, a iniciativas inovadoras e mobilizadoras da coletividade, articulando as potencialidades locais nas condies dadas pelo contexto externo. Como diz Arto Haveri, as comunidades procuram utilizar suas caractersticas especficas e suas qualidades superiores e se especializar nos campos em que tm uma vantagem comparativa com relao s outras regies (Haveri, 1996)8. Mesmo quando decises externas - de ordem poltica ou econmica - tenham um papel decisivo na reestruturao scio-econmica do municpio ou localidade, o desenvolvimento local requer sempre alguma forma de mobilizao e iniciativas dos atores locais em torno de um projeto coletivo. Do contrrio, o mais provvel que as mudanas geradas desde o exterior no criem razes no local e no se traduzam em efetivo desenvolvimento e no sejam internalizadas na estrutura social, econmica e cultural local ou municipal, reduzindo as possibilidades de irradiao e transbordamento das oportunidades no dinamismo econmico e no aumento da qualidade de vida de forma sustentvel. No novo paradigma de desenvolvimento, o enraizamento dos processos exgenos depende, antes de tudo, da capacidade de ampliao da massa crtica de recursos humanos, domnio do conhecimento e da informao, elementos centrais da competitividade sistmica. Tudo isso levando a um processo permanente de capacitao da sociedade local na compreenso da realidade e das mudanas no contexto, ampliando sua capacidade de inovao e resposta aos desafios contemporneos. Vale dizer, criando um ambiente de inovao que favorea a busca e a implantao de alternativas e gere uma grande capacidade de adaptao s mudanas do contexto. Considerando a intensidade e velocidade das transformaes globais, o desenvolvimento local depende, portanto, da capacidade dos atores locais de compreender estes processos e responder, de forma apropriada, com suas prprias foras e talentos, num processo permanente de aprendizagem. Por conta disso, o desenvolvimento local no pode ser confundido com o isolamento da localidade e seu distanciamento dos processos globais; ao contrrio, a abertura para os processos externos um fator de propagao e estmulo inovao local. O ambiente de inovao (millieu innovateur) um conjunto territorializado e aberto para o exterior que integra conhecimentos, regras e um capital relacional. Ele ligado a um coletivo de atores, bem como de recursos humanos e materiais. Ele no constitui em nenhum caso um universo fechado, ao contrrio, ele est em permanente relao como o ambiente exterior (Amaral, sem data, pag. 11).

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O ambiente de inovao decorre de um processo que alguns autores chamam de local aprendiz (learning region) entendido como um espao social com capacidade de criao, ampliao de conhecimento e aprendizagem contnuo, inventando, testando e adaptando alternativas e caminhos que permitem o desenvolvimento (Boisier, sem data, pag. 3). Citando Richard Florida, Boisier defende que ... la nueva era del capitalismo requiere una nueva clase de regin ... de hecho learning regions, regies que adotam os princpios da criao de conhecimento e de aprendizagem contnuo (Boisier, sem data)9. O empreendimento social de busca de alternativas de desenvolvimento leva construo de um projeto coletivo, contribuindo, portanto, para a criao do ambiente de inovao e formao de sociedades locais inteligentes (smart society). At um certo limita, o processo de aprendizado tende a ser crescente com a diversidade scio-cultural do local, confrontando mltiplas e diferenciadas vises de mundo e percepes da realidade, de cuja troca e interao se forma o ambiente de inovao e conhecimento. Desta forma, a sociedade aprendiz precisa de diversidade interna, da mesma forma que a sustentabilidade da natureza depende da diversidade de espcies com sua complexa e rica interao. Entretanto, como diz Hamel e Prahalad, quase to importante como aprender e condio para tanto - ser a capacidade de esquecer de uma sociedade (os autores se referem s empresas), vale dizer, de se libertar de hbitos e da fora do passado que, muitas vezes, entravam sua viso da realidade e seu desenvolvimento. Da perspectiva do desenvolvimento local esta proposio do esquecimento10 importante devido velocidade das mudanas na realidade e no contexto externo dos municpios que obrigam, muitas vezes, a rever velhos conceitos e prioridades; as chamadas vocaes econmicas uma dessas memrias traioeiras e enganadoras do desenvolvimento local na medida em que as condies mudam e suas vantagens competitivas podem ser radicalmente alteradas, desmontando antigas vocaes e criando novas oportunidades. O fato de um municpio ter vivido, nas ltimas dcadas ou sculos, produzindo e vendendo banana, mesmo com algum sucesso, no assegura que esta vocao seja vlida para a futuro; portanto, necessrio saber tambm esquecer alguns hbitos e tradies ultrapassadas para poder aprender melhor e redefinir suas potencialidades e seus objetivos. 2.1.3 Cortes espaciais do local O conceito de desenvolvimento local pode ser aplicado para diferentes cortes territoriais e aglomerados humanos de pequena escala, desde a comunidade, at o municpio ou mesmo microrregies homogneas de porte reduzido, bacias ou ecossistemas. O desenvolvimento municipal , portanto, um caso particular de desenvolvimento local com uma amplitude espacial delimitada pelo corte poltico-administrativo do municpio. Pode ser mais amplo que a comunidade e menos abrangente que a microrregio ou aglomerado de municpios que formam um espao homogneo com afinidade e identidade scio-cultural. De um modo geral, o municpio tem uma escala territorial adequada 9

De um modo geral, os conceitos de sociedade aprendiz, formulados para pases desenvolvidos, tem uma abordagem fortemente tecnolgica, destacando a inovao tecnolgica e a importncia do sistema de inovao e no no sentido mais amplo de aumento da capacidade de conhecimento da sociedade local (smart local). 10 Ver a respeito, HAMEL, Gary; e PRAHALAD, C. K. Competindo pelo futuro: estratgias inovadoras para obter o controle do seu setor e criar os mercados de amanh Rio de Janeiro Editora Campus - 1995

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mobilizao das energias sociais e integrao de investimentos potencializadores do desenvolvimento, seja pelas reduzidas dimenses, seja pela aderncia polticoadministrativa que oferece, atravs da municipalidade e da instncia governamental. O desenvolvimento comunitrio tambm uma forma particular de desenvolvimento local delimitado pelo espao da comunidade vinculada a projetos locais; normalmente no tem uma estrutura poltico-administrativa e institucional (como a municipalidade) mas tende a apresentar uma grande homogeneidade social e econmica e capacidade de organizao e participao comunitria. Em termos de escala, pode ser menor que o espao municipal (contido em um determinado municpio) ou cortar mais de um municpio, estabelecendo relaes de parceria poltico-instititucional com diversas instncias. Tanto o municpio quanto a comunidade - pela reduzida escala territorial podem constituir espaos privilegiados de interveno concentrada e articulada de diferentes instncias poltico-administrativa - federal e estadual funcionando como ncleo catalisador das iniciativas e base para o desenvolvimento local. Entretanto, a escala dos problemas e dos projetos supera, normalmente, o tamanho do municpio e, principalmente, da comunidade, demandando nveis mais agregados de planejamento e de tratamento do desenvolvimento local. Fatores ambientais, econmicos e culturais levam formao de identidades territoriais regionais que agregam e integram conjunto de municpios com afinidades territoriais; elemento importante desta identidade scio-econmica e cultural so as cadeias produtivas dominantes em conjunto de municpios, que os integra e articula e cria uma identidade comum. No por acaso, tem havido uma grande tendncia em todo o mundo, incluindo o Brasil constituio de formas diferenciadas de articulao e coordenao das aes supra-municipais, com maior ou menor identificao com as microrregies formadas por caractersticas edafoclimticas (IBGE); associaes municipais, consrcios de municpios e bacias, agncias de desenvolvimento so formas diferenciadas de articulao municipal para lidar com problemas ou implementar projetos de escala supra-municipal. Quase todos os Estados brasileiros, com diferentes enfoques e cortes territoriais, esto criando espaos de planejamento de agregados de municpios (exemplos de Pernambuco, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, entre outros), como forma de descentralizao agregada no espao regional. 2.2 GLOBALIZAO E OPORTUNIDADES LOCAIS O desenvolvimento local constitui um movimento de forte contedo interno, dependendo principalmente das prprias capacidades dos atores locais e das suas potencialidades. Entretanto, necessrio ressaltar que o desenvolvimento local est inserido em uma realidade mais ampla e complexa com a qual interage e da qual recebe influncias e presses positivas e negativas; e, como j referido, deve trabalhar estas influncias e aproveitar os fatores dinamizadores externos. Dentro das condies contemporneas de globalizao e intenso processo de transformao, o desenvolvimento local representa tambm alguma forma de integrao econmica com o contexto regional e nacional, que gera e redefine oportunidades e ameaas, exigindo relativa especializao nos segmentos em que apresenta vantagens competitivas.

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De forma diferenciada, certo, cada vez mais o local est sendo intensamente influenciado e impactado por processos globais de mudana econmica, tecnolgica e institucional que determinam seu futuro, suas dificuldades mas tambm suas oportunidades. Entretanto, globalizao e desenvolvimento local no so alternativas opostas e excludentes. Na verdade, constituem dois plos de um mesmo processo complexo e contraditrio, exercendo foras de integrao e desagregao, dentro do intenso jogo competitivo mundial. Ao mesmo tempo em que a economia se globaliza, integrando a economia mundial, surgem novas e crescentes iniciativas no nvel local, com ou sem integrao na dinmica internacional, que viabilizam processos diferenciados de desenvolvimento no espao. A globalizao um processo acelerado de internacionalizao do capital com conotaes muito particulares que resultam de dois fatores bsicos: a natureza e intensidade da revoluo cientfica e tecnolgica - que transforma as bases da competitividade internacional, com reduo das distncias fsicas e quebra das barreiras e fronteiras territoriais - e a integrao dos mercados de bens e servios - incluindo tecnologia e informao - e de capital, com a formao de megablocos econmicocomerciais. As transformaes nos processos produtivos e na organizao econmica ocorrem numa velocidade e ritmo acelerado e inusitado que intensificam as disputas competitivas e o redesenho da economia mundial, obrigando as economias nacionais e locais a uma permanente atualizao. Deste ponto de vista, a globalizao no apenas mais uma etapa de expanso do capital a nvel internacional. Pela sua natureza, representa a implantao e difuso de um novo paradigma de desenvolvimento que altera os padres de concorrncia e competitividade e revoluciona as condies de acumulao de capital e as bases das vantagens competitivas das naes e regies. Neste novo paradigma, associado globalizao, as vantagens competitivas se deslocam da abundncia de recursos naturais, dos baixos salrios e das reduzidas exigncias ambientais - predominantes no ciclo expansivo do ps-guerra - para a liderana e domnio do conhecimento e da informao (tecnologia e recursos humanos) e para a qualidade e excelncia dos produtos e servios (Perez e Perez, 1984). Desta forma, tende a reduzir a capacidade espria de competitividade, explorando mo de obra barata (principalmente a utilizao do trabalho infantil) e os mecanismos artificiais de protecionismo e subsdio que termina aumentando os custos internos do crescimento econmico. O debate mundial sobre a globalizao, carregado de paixes polticas e de medo com relao ao futuro, tende a satanizar ou endeusar este processo inusitado de mudana na organizao da economia e sociedade; a reproduo e a intensidade das manifestaes antiglobalizao de Seattle a Gnova so uma demonstrao da controvrsia que desperta a questo. Na verdade, como todo processo histrico, a globalizao carrega problemas principalmente em um estgio de transio e desorganizao do velho paradigma mas tambm contem inovaes importantes que podem preparar grandes mudanas sociais e econmicas de uma nova civilizao. Para organizar melhor a discusso, necessrio comear fazendo uma distino entre a globalizao - como um processo social de integrao econmica do novo paradigma - e o liberalismo - proposta poltica que privilegia o mercado e refuta o papel do Estado na regulao das relaes econmicas (incluindo a

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integrao econmica mundial) e sociais e na mediao com o meio ambiente. O liberalismo apenas uma das formas de lidar com as mudanas no paradigma de desenvolvimento; e se politicamente condenvel, em princpio, pelos altos custos sociais e impactos negativos das transformaes em curso, os efetivos desdobramentos e resultados lquidos futuros da globalizao esto em aberto e dependem da forma em que os atores sociais e o Estado controlarem, programarem e regularem seu movimento. Em outras palavras, a globalizao no nem a oitava maravilha do mundo, como pensam alguns liberais, nem uma conspirao neo-liberal, danosa e danada, contra os pobres; um processo histrico dinmico e extremamente rico de transformaes que pode levar a mltiplas alternativas futuras. verdade que os resultados da globalizao, positivos e negativos, se distribuem de forma muito desigual no planeta e, embora crie problemas tambm nas naes desenvolvidas, tem acentuado a concentrao. De acordo com relatrio do PNUD, os pases j industrializados, onde se encontram 19% da populao mundial, respondem por 86% do produto mundial e do consumo, 82% das exportaes de bens e servios, 71% do comrcio mundial, 68% dos investimentos estrangeiros diretos, 74% das linhas telefnicas, 58% de toda a energia produzida, 93,3% dos usurios da Internet. Enquanto isso, os 20% das populaes mais pobres do planeta tm 1% do produto mundial, 1% das exportaes, 1% do investimento direto, 1,5% das linhas telefnicas. Tambm se acelera a concentrao do conhecimento, exatamente no momento em que se proclama o advento da civilizao do conhecimento. J em 1993, 10 pases respondiam por 84% dos gastos em pesquisa e desenvolvimento e controlavam 95% das patentes registradas nos Estados Unidos em duas dcadas, assim como 80% das patentes concedidas nos pases ditos em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, acentua-se o processo de concentrao de renda no mundo. As trs pessoas mais ricas do planeta, juntas, detm ativos superiores ao produto bruto dos 48 pases mais pobres, onde vivem 600 milhes de pessoas. Pouco mais de 200 pessoas, detentoras de ativos superiores a US$1 bilho, juntas, tm mais que a renda anual de 45% dos habitantes do planeta, cerca de 2,7 bilhes de pessoas. Essas pessoas aumentaram seus ativos em 150% no espao de apenas quatro anos. A globalizao tem um efeito contraditrio sobre a organizao do espao. De um lado, demanda e provoca um movimento de uniformizao e padronizao dos mercados e produtos, como condio mesmo para a integrao dos mercados; mas, por outro lado, com a diversificao e flexibilizao das economias e dos mercados locais, cria e reproduz diversidades, decorrentes da interao dos valores globais com os padres locais, articulando o local ao global. Como define Moneta, a globalizao provoca um movimento combinado de homogeneizao econmica e diversificao scio-cultural, que termina se refletindo tambm na economia. En nuestro entender, diz o autor, la globalizacin pone en marcha mecanismos que actan en ambas direcciones, retroalimentndose entre s. Desde los primeros contactos histricos entre distintas civilizaciones se h producido una mutua fertilizacin cultural, s bien generalmente asimtrica en cuanto a sus respectivos impactos (Moneta, 1999, pag. 5); o que muda no processo atual a escala e abrangncia dos contatos, a velocidade de propagao e a maior especializao dos circuitos de comunicao.

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A globalizao um movimento de carter seletivo em termos sociais, espaciais e setoriais que avana de forma diferenciada nos diversos segmentos, com destaque para a internacionalizao dos fluxos financeiros. Processo contraditrio que intensifica e agua a competio e a disputa dos mercados, ao mesmo tempo em que estimula e acentua a interdependncia das economias e dos conglomerados econmicos. Processo complexo e conflitivo que combina a homogeneizao dos mercados com diversificao e flexibilizao das economias e dos mercados locais, integrando e articulando o local ao global. Embora seja difusor de homogeneidade (padres de produo, de competio, de consumo, de gesto escala mundial), ao mesmo tempo e paradoxalmente, ressalta a importncia da diversidade, valorizando o diferente num contexto de homogeneizao. O global se alimenta do local, se nutre do especfico (Chesnais, 1996), de modo que a globalizao opera num universo de diversidades, desigualdades, tenses e antagonismos, simultaneamente s articulaes globais. Ela integra, subsume, e recria singularidades (Ianni,1996)11. Com efeito, a contraface da globalizao no parece ser a uniformizao e padronizao mundial dos estilos de desenvolvimento, mas, ao contrrio, a valorizao do local e da diversidade, como diferencial de qualidade e competitividade. Tanto porque a cultura um processo permanente de criao e recriao nos espaos, como pelo valor econmico que o diverso tende a ganhar no contexto de globalizao da economia mundial. Desta forma, a difuso de padres culturais e formas globais de organizao econmica e social no leva a uma pasteurizao da cultura universal, reduzindo tudo a valores, hbitos e costumes homogneos. A busca da identidade dentro da homogeneidade , portanto, o espao de valorizao das particularidades, ressaltando os atributos prprios dos locais, sua especificidade e, por ltimo, sua vantagem competitiva. Como diz Spybey, ...quando os povos recebem as influncias globais nas suas vidas, o fazem a partir de uma base de cultura local de modo que, na escala global, isto toma a forma de interpenetrao entre o fluxo de cultura global e o padro cultural local (Spybey, 199612). Na anlise da relao da cultura local com o processo de globalizao podem ser identificada duas interpretaes opostas (segundo interpretao de Albagli): a que a globalizao, ao promover a padronizao, levaria ao declnio das identidades locais; e a que acredita, ao contrrio, que .... a globalizao no significa o fim de toda identidade territorial estvel, mas que, ao contrrio, cada sociedade ou grupo social capaz de preservar e desenvolver seu prprio quadro de representaes, expressando uma identidade ao mesmo tempo espacial e comunitria em torno da localidade (Albagli, 1998, pag. 6). A autora acrescenta que paradoxalmente, a globalizao estaria provocando mais o aumento da diferenciao e da complexidade cultural que a homogeneidade e uniformidade planetria. A construo e fortalecimento da identidade cultural das comunidades locais constitui uma contraparte do processo de globalizao e uma reao das matrizes culturais locais aos fluxos de bens e produtos culturais. A propagao da reestruturao da economia mundial e do novo padro de competitividade tem tambm um impacto importante e contraditrio nas economias locais:11

Citados por Tnia Bacelar no seminrio interno do projeto IICA-INCRA realizado nos dias 5 e 6 de junho de 1997, em Recife. 12 Traduo livre do original em ingls

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tanto pode levar a uma desestruturao e desorganizao da economia e sociedade local quanto pode abrir novos espaos de desenvolvimento, recriando brechas nos mercados locais e regionais, com atividades e servios que demandam uma proximidade territorial, com ou sem integrao com produtores internacionais. Alm disso, surgem tambm novas oportunidades para produtores locais nos mercados externos, com base na sua especificidade e explorando sua diversidade. Mesmo que reduza os limites da autonomia local, o processo de globalizao no leva, necessariamente, a uma subordinao das sociedades a padres internacionalmente dominantes e homogneos. O espao de autonomia ser tanto maior quanto maiores as potencialidades locais e mais forte a organizao da sociedade em torno de um projeto coletivo que articula o local com o global. E os impactos do processo de globalizao dependem das iniciativas internas e das posturas polticas dos atores sociais no plano local. As formas novas e baratas de comunicao e transporte - com destaque para a telemtica - permitem que empresas dos pases e regies mais atrasados possam acessar mercados em larga escala e em todo o mundo, ampliando as oportunidades econmicas e comerciais. A virtualidade dos mercados criada pela telemtica permite que pequenos negcios se integrem em grandes mercados, articulados pelo sistema de informao, de modo que podem acessar compradores nos mais distantes espaos, com baixo custo e volume de capital; as tecnologias permitem a criao de escala produtiva pela associao de pequenos produtores locais dispersos em diferentes espaos. Com isso, a globalizao associa centralizao econmica com descentralizao produtiva, integrando o sistema em redes produtivas e alianas estratgicas. Ao mesmo tempo em que integra os mercados e a economia mundial, a globalizao provoca uma fragmentao do espao, gerando uma certa desterritorializao das economias. A integrao e fragmentao do espao levam a uma reduo do peso unificador dos Estados-nao, aumentando a autonomia relativa e as possibilidades dos micro-espaos interagir e articular com outras regies e localidades, para alm da sua vizinhana e entorno institucional. O local se globaliza e pode estruturar alianas estratgicas numa grande e diversificada rede de cidades e centros econmicos, multiplicando suas possibilidades. As perspectivas e alternativas de desenvolvimento do territrio, nos mais diferenciados espaos estaro, cada vez mais, dependentes das caractersticas dominantes na economia mundial, nos modelos produtivos e, principalmente, nos padres de competitividade que devem prevalecer em escala mundial e nacional; diante das quais cada comunidade e municpio responde com suas condies endgenas especficas, mediando e processando os impactos externos. A competitividade local dinmica e seletiva e tanto pode expressar a abertura de brechas nos mercados internacionais quanto a disputa por espaos nos mercados locais, no entorno imediato e regional, nos segmentos de maior capacidade e vantagem locacional. No s para exportar e se integrar mundialmente, mas para vender localmente a preos inferiores aos dos produtos externos e de forma seletiva e diferenciada, alm de atrair investimentos e capitais necessrio construir as vantagens competitivas locais e municipais, com base nas potencialidades em infra-estrutura econmica, logstica, recursos

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humanos - especialmente educao e capacitao profissional - e desenvolvimento tecnolgico. Como a globalizao convive com fragmentaes nos mercados, persistem e se renovam oportunidades nos mercados locais e regionais, com atividades e servios que demandam uma proximidade territorial, com ou sem integrao com produtores internacionais. Alm disso, surgem tambm novos espaos para produtores locais nos mercados externos, com base na sua especificidade e explorando sua diversidade. As formas novas e baratas de comunicao e transporte permite que empresas dos pases e regies mais atrasadas possam acessar mercados em larga escala e em todo o mundo, ampliando as oportunidades econmicas e comerciais para as regies e municpios. Por outro lado, a globalizao no leva, necessariamente, a um processo de concentrao empresarial, abrindo, ao contrrio, novos espaos e oportunidades para pequenos negcios integrados nos mercados e conglomerados internacionais. As inovaes tecnolgicas tendem a diminuir a importncia das economias de escala, permitindo rentabilidade alta em pequenos negcio, reduzindo as escalas econmicas em diversos setores produtivos. A revoluo da informtica e da telemtica permitem uma integrao dos mercados e uma grande flexibilidade do processo de produo e distribuio, facilitando a viabilidade das empresas de pequeno porte. Como diz Sabel (citado por Saha), ... os sistemas de produo flexivelmente especializados parecem ser mais capazes de sobreviver turbulncia econmica atual do que os sistemas de produo em massa .... (Saha, sem data). Desta forma, as possibilidades de um desenvolvimento endgeno crescem com o novo paradigma de desenvolvimento, pelas possibilidades abertas pela pequena produo flexvel. A integrao mundial atravs de rede de firmas, com base em estratgias diferenciadas, articula o pequeno empreendimento no sistema produtivo e mercado global, atravs dos consrcios de produo (articulando fornecedores), franquias (redes de distribuidoras locais) e sub-contratao de pequenas empresas locais (as redes de produo). Com isso, a globalizao associa concentrao econmica com descentralizao produtiva, integrando o sistema em redes produtivas e alianas estratgicas, de modo que os pequenos negcios se integrem em grandes mercados, acessando compradores nos mais distantes espaos, com baixo custo e volume de capital. Como afirma Michael Porter, A vantagem competitiva criada e mantida atravs de um processo altamente localizado (Porter, 1993), de modo que, a localizao das indstrias globais se difunde mundialmente, segundo as condies de cada local, aproveitando, portanto, as diversidades e particularidades de cada regio. Desta forma, o desenvolvimento local levaria a uma substituio da generalidade abstrata do global pelas particularidades concretas das mltiplas minorias sociais orgnicas (de Franco, 2000, pag. 6). Se as vantagens competitivas so criadas e construdas com investimentos e aproveitamento das potencialidades e diversidades de cada localidade, os atores sociais tm uma responsabilidade fundamental para a promoo do desenvolvimento local. E se o desenvolvimento for, efetivamente a vontade dominante entre os atores sociais, o setor

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pblico - como expresso desta vontade - tende a aumentar sua importncia no desenvolvimento local, ao contrrio do que se manifesta nas teses liberais favorveis retirada do Estado da promoo e induo econmica. Assim, para assegurar o desenvolvimento local dentro da globalizao necessrio que os atores e a sociedade locais estejam estruturados e mobilizados para definir e explorar suas prioridades e especificidades. Atuando como territrios organizados, na expresso de Srgio Boisier (Boisier, 1992), os atores sociais definem prioridades e articulam iniciativas e aes internas e externas, utilizando, para tanto, os instrumentos de regulao do Estado. 2.3 DESENVOLVIMENTO LOCAL E DESCENTRALIZAO Desenvolvimento local e descentralizao so processos distintos e relativamente independentes, embora quase sempre interligados e complementares. A descentralizao trata de um aspecto poltico-institucional que decorre de decises restritas forma de organizao da sociedade e da administrao pblica no trato das polticas e programas. No entanto, a descentralizao pode contribuir significativamente para o desenvolvimento local, resultante, normalmente de iniciativas e capacidades endgenas das populaes locais e suas instncias poltico-administrativas. Neste sentido, apesar de representar um movimento restrito e independente, a descentralizao pode representar uma base importante para estimular e facilitar o desenvolvimento local, criando as condies institucionais para organizao e mobilizao das energias sociais e decises autnomas da sociedade. Na realidade, no uma coincidncia que os dois processos se manifestem ao mesmo tempo, na medida em que ambos refletem as mudanas que decorrem da globalizao com seu impacto sobre a organizao do territrio e, consequentemente, as formas e instrumentos de gesto das polticas. A descentralizao um processo consistente com a globalizao e pode representar uma resposta adequada das sociedades fragmentao do espao que a mesma provoca. Como a globalizao diminui a fora centralizada do Estado, aumenta a necessidade de organizao e cria espaos para a organizao e interveno das instncias locais na mobilizao da sociedade e das energias locais frente aos desafios mundiais. Segundo Castells, o Estado , cada vez mais, inoperante no global e, cada vez menos, representativo no nacional, levando formao de blocos e instncias supra-nacionais, para tratar dos problemas globais, e descentralizao para a gesto local. A descentralizao tem sido utilizada, indistintamente, para expressar processos bastante diferenciados de redefinio de papis entre instncias pblicas de diversas escalas, nem sempre refletindo uma mudana relevante de responsabilidades e autonomia. De forma mais precisa e rigorosa, descentralizao concebida como a transferncia da autoridade e do poder decisrio de instncias agregadas para unidades espacialmente menores, entre as quais o municpio e as comunidades, conferindo capacidade de deciso e autonomia de gesto para as unidades territoriais de menor amplitude e escala. Representa uma efetiva mudana da escala de poder, conferindo s unidades comunitrias e municipais capacidade de escolhas e definies sobre suas prioridades e diretrizes de ao e sobre a gesto de programas e projetos.

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Neste sentido, a descentralizao um processo diferente e bem mais amplo que desconcentrao, igualmente importante e freqente que, no obstante, representa um estgio menor de transferncia de responsabilidades e poder poltico-institucional. Analisando a abrangncia e intensidade com que se transfere as funes e os espaos de poder de uma instncia superior para uma inferior na hierarquia institucional do pas, deve ser feita uma distino conceitual entre descentralizao e desconcentrao: descentralizao representa a transferncia de autonomia e efetivo poder decisrio entre instncias, independente de se dar dentro da mesma instituio - unidades locais de rgos centrais - ou entre instncias diferentes - das instncias centrais para as locais; e desconcentrao representa apenas a distribuio da responsabilidade executiva de atividades, programas e projetos sem transferncia da autoridade e autonomia decisria (ver matriz 2). Desta forma, a descentralizao expressa uma transformao mais profunda na estrutura de distribuio dos poderes no espao, contendo, mas no se limitando desconcentrao das tarefas. Normalmente, no processo recente de redefinio de responsabilidades das instituies no Brasil costuma verificar-se os dois modelos, muitas vezes contidos em um mesmo programa. Matriz 2 DESCENTRALIZAO E DESCONCENTRAO Descentralizao Desconcentrao

Mudana da escala de poder para unidades menores com repasse de autonomia e poder decisrio entre instncias pblicas e para instituies privadas

Transferncia de responsabilidades executivas para unidades menores sem repasse do poder decisrio e da autonomia de escolha (dentro do setor pblico ou do pblico para o privado)

Uma outra de analisar a redistribuio das responsabilidades de gesto prefere diferenciar descentralizao e desconcentrao segundo seu carter externo ou interno s instituies: desconcentrao definida como a distribuio das responsabilidades pela implantao das aes dos rgos centrais para suas agncias e representaes em subespaos territoriais - processo interno instncia centralizada - sem envolvimento das instncias descentralizadas autnomas (Mdici e M.P.Maciel, 1996); a descentralizao, ao contrrio, seria mais ampla e externa aos rgos centralizados, representando a transferncia de responsabilidades executivas ou decisrias das instncias centrais para as instncias estaduais e municipais, com vrias conotaes e especificidades. De acordo com esta classificao, contudo, a descentralizao pode apresentar diferentes nveis de autonomia; como apresentado no grfico acima, a descentralizao s seria autnoma quando a unidade institucional descentralizada assumisse responsabilidades com base em recursos prprios, portanto, independente da vontade da instncia

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centralizada; toda outra forma de descentralizao seria uma descentralizao dependente, associada ao repasse de recursos das instncias superiores para a unidades hierarquicamente inferior, por vontade e deciso das primeiras. Quando este repasse de recursos acompanhado apenas da distribuio das responsabilidades executivas de projetos, ocorre uma descentralizao dependente e tutelada; e quando acompanhada da delegao de algum espao de deciso para as instncias espacialmente inferiores, tem lugar uma descentralizao dependente vinculada, com alguma forma de parceria. Grfico 2 DESCONCENTRAO E DESCENTRALIZAO

DESCONCENTRAO

DESCENTRALIZAO

AUTNOMA

DEPENDENTE

TUTELADA

VINCULADA

Adotando o primeiro conceito de descentralizao - transferncia de autonomia e efetivo poder decisrio para instncias de menor escala pode-se classificar o processo em grandes blocos, segundo a natureza do agente que recebe as responsabilidades e os espaos decisrios das instncias pblicas superiores: a) descentralizao Estado-Estado responsabilidades de gesto interna ao setor pblico diferenciadas, da mais ampla para a mais reduzida e local. responsabilidades da Unio para Estados e municpios, municpios, e transferncia de responsabilidades dentro unidades descentralizadas no espao. transferncia de funes e entre instncias espacialmente Inclui a transferncia de poder e transferncia dos Estados para da mesma instncia para suas

b) descentralizao Estado-sociedade - democratizao da gesto e transferncia para a sociedade da capacidade de deciso e execuo de atividades, gesto de recursos e prestao de servios, tradicionalmente concentradas nas mos das unidades estatais e governamentais (do setor pblico para a sociedade). Normalmente no ocorre, ao mesmo tempo o repasse das decises e da execuo que, separadamente constitui apenas desconcentrao; os espaos de poder para decises efetivas tendem a se realizar atravs das diferentes formas de conselho gestor, enquanto a desconcentrao passa pela execuo

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de servios pblicos (terceirizao com diversas formas de participao e regulao pblica). A municipalizao uma forma de descentralizao administrativa das polticas e dos mecanismos de interveno pblica para o plano municipal com transferncia efetiva da capacidade decisria para o municpio como espao de poder local. Representa, portanto, um caso particular de descentralizao, correspondente a um corte espacial de menor amplitude na organizao poltico-institucional e administrativa brasileira (inferior ao mbito estadual ou micro-regional). Identificada, normalmente, como uma redistribuio de poderes no interior da administrao pblica - da Unio ou Estado para o municpio - a municipalizao pode ser apresentada tambm como o aumento de poder e responsabilidade decisria da sociedade municipal. Por outro lado, no interior do municpio pode ocorrer uma ampliao do processo de descentralizao, com o repasse da responsabilidade executiva de projetos e com autonomia nas escolhas e definio de prioridades para as comunidades e subconjuntos espaciais (sub-municipais). 2.3.1 Descentralizao e concentrao no Brasil O Brasil vem passando, nas ltimas dcadas, por um processo contraditrio que tem alternado desconcentrao econmica e descentralizao poltico-institucional, como dois plos inversos e opostos: a desconcentrao econmica implementada por um modelo poltico concentrado, e a descentralizao poltico-institucional convivendo com a reconcentrao econmica no territrio. Com efeito, durante as dcadas de crescimento acelerado da economia brasileira (de 1970 a 1985), ocorreu, no Brasil um processo combinado de desconcentrao econmica com centralizao poltica das decises em Braslia. Com o projeto de integrao nacional dos governos militares, foram feitos investimentos e implementadas polticas que promoveram uma efetiva desconcentrao territorial da economia, com crescimento diferenciado das regies de fronteira, da regio Sul e, em parte, do Nordeste. Este projeto foi uma deciso do governo federal, altamente centralizado na tomada de deciso e mesmo na execuo, com a criao de uma ampla rede de instituies federais no territrio nacional, fortemente dependentes das decises centrais. Este ciclo de desconcentrao econmica e centralizao poltica parece se inverter, a partir da segunda metade da dcada de oitenta, como resultado combinado da estagnao econmica e da crise do Estado no Brasil. A profundidade das dificuldades do Estado e as alternativas que esto se desenhando no quadro poltico brasileiro parecem apontar na direo de uma grande reforma do Estado brasileiro, com redefinio do seu papel e das suas reas de interveno, especialmente sua sada de cena como investidor. Esta reforma tende a deslocar a funo do Estado da interveno direta (incluindo investimentos em estatais) para a regulao, contemplando a privatizao da economia e dos servios pblicos, podendo concentrar sua atividade nas dimenses sociais, ambientais e regionais e nas relaes da economia brasileira com o contexto internacional, gerando as externalidades necessrias competitividade nacional.

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Por outro lado, tende a se intensificar o processo de descentralizao polticoadministrativa do Brasil, com a reduo do peso da Unio na estrutura do Estado, concentrando suas responsabilidades nos segmentos estratgicos nacionais e na regulao do espao. A Unio no tem condies polticas, administrativas e operacionais de dar conta da amplitude e crescente complexidade do Brasil contemporneo, nem da dimenso dos seus problemas e do empreendimento necessrio ao desenvolvimento nacional. Deve, portanto, crescer a importncia das administraes estaduais e, principalmente, municipais e locais para o desenvolvimento de regies e sub-regies brasileiras, cabendo Unio, um papel subsidirio de suporte e regulao das regras e dos investimentos nas externalidades bsicas e na rea social. Ao mesmo tempo, as transformaes scio-econmicas e tecnolgicas e os significativos avanos gerenciais em todo o mundo, est levando busca de alternativas inovadoras no terreno institucional, com mudanas importantes na estrutura e organizao do Estado e sua relao com a sociedade. Estaria em gestao a construo de uma nova institucionalidade compatvel com os desafios contemporneos e suas exigncias de qualidade, flexibilidade, velocidade e eficincia e eficcia. Esta nova institucionalidade se caracteriza pela emergncia de um segmento pblico no estatal que, de forma descentralizada, exerce atividades e executa aes de natureza pblica, em contrato e parceria com o Estado, mas independente e com grande flexibilidade. Este componente novo do sistema institucional surge com a propagao das organizaes no governamentais, instituies sem fins lucrativos e com misso de servio pblico que esto ganhando espao significativo no Brasil. Acompanhando uma tendncia dominante a nvel internacional, as mudanas institucionais no Brasil levam a uma reestruturao do Estado, incluindo, entre outros pontos, a criao do estatuto da Organizao Social, em que pode vir a se transformar parte das atuais instituies pblicas estatais, de forma consistente com os conceitos de flexibilidade, descentralizao, parceria e corresponsabilidade pblico-privado, participao social, e organizao em rede. Com a promulgao da Constituio de 1988, iniciou-se no Brasil um processo desorganizado de descentralizao poltico-administrativa, com distribuio de responsabilidades e poder decisrio para os Estados e municpios, reduzindo o peso da Unio. Desde ento, avana de forma irregular e desconexa, tratando de forma desequilibrada o repasse de responsabilidade e de recursos, e apresentando distores na gesto da coisa pblica, alm de estimular uma excessiva fragmentao do corte polticoadministrativo no territrio, com a criao de um grande nmero de municpios. Os passos efetivos de descentralizao das decises e dos recursos so muito insuficientes e, muitas vezes, ilusrios - mais desconcentrao que efetiva descentralizao - no permitindo a liberdade financeira necessria implantao de uma estratgica de desenvolvimento municipal. Em pouco menos de quarenta anos (de 1960 a 1998), a participao dos municpios no total da arrecadao bruta nacional passou de 6,6% para cerca de 16,6%, quase triplicando, ao mesmo tempo em que a Unio registrava uma pequena reduo e os Estados uma queda maior na sua participao relativa, de 34%, em 1960, para 27%, em 1998 (dados de Rodrigues Affonso et alli , sem data). O grfico 3 mostra o movimento da repartio da

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receita pblica brasileira entre as trs instncias, ressaltando a ampliao da parcela municipal. Este ganho significativa das instncias pblicas descentralizadas no foi, contudo, acompanhado de uma ampliao da capacidade de investimento e gesto municipal porque gerou tambm um aumento dos encargos e responsabilidades dos municpios. Por outro lado, o crescimento do bolo disponvel para os municpios foi fragmentado e dispersado por conta do aumento descontrolado e exagerado do nmero de municpios brasileiros, resultante do desmembramento das unidades administrativas locais. Com efeito, dados de Maia Gomes e MacDowell mostram que entre, 1984 e 1997, precisamente no perodo em que cresceu a participao municipal na receita, foram criados 1.405 novos municpios no Brasil, um aumento de 34,3%; e o que parece mais grave, a fragmentao municipal se concentra na formao de municpios de pequeno porte e, consequentemente, menor capacidade de gesto e autonomia. Mais de 53% dos municpios criados no perodo (1984/97) tinham menos de 5 mil habitantes, e quase 78% dos novos municpios tinham populao inferior a 10 mil pessoas, como mostra o grfico 4.

Grfico 3DISTRIBUIO DAS RECEITAS POR UNIDADE DA FEDERAO100% 90% 80% 70% 60% Percentual Unio 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1960 1980 Anos 1988 1998 Estados Munic pios

Alm disso, a maioria dos municpios brasileiros, antigos e, principalmente novos, no estava preparada para as responsabilidades da descentralizao e para gesto eficiente dos recursos adicionais. Carecem de tradio e de instrumentos de planejamento e de base tcnica para assumir as novas responsabilidades e uma posio ativa na promoo do desenvolvimento local. Mesmo considerando o crescimento dos encargos, a situao financeira dos municpios poderia estar bem mais confortvel no fossem as limitaes gerenciais, sem falar nas desconfianas de irregularidades no trato das finanas pblicas,

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tanto maiores quanto mais reduzida a unidade administrativa. O resultado uma grande dependncia das finanas pblicas municipais das transferncias, decorrente da limitada capacidade arrecadadora de grande parte dos municpios com precria base econmica, despreparo administrativo e desinteresse poltico na cobrana de impostos. Ao mesmo tempo que se processa a descentralizao econmica evidencia-se, paradoxalmente, e por outras razes, a tendncia de reconcentrao espacial da economia brasileira. (Campolina; e Crocco, 1995). Esta reconcentrao estimulada pelas condies do novo paradigma de desenvolvimento que se propaga com padres de competitividade que favorecem os grandes ncleos do Sul-Sudeste, onde esto concentradas a maior massa crtica de recursos humanos do pas, o conhecimento cientfico e tecnolgico, as melhores universidades, a tradio empresarial e gerencial, alm de outras externalidades que continuam relevantes e decisivas, como a infra-estrutura econmica. Grfico 4PERCENTUAL DE M UNICPIOS CRIADOS POR TAMANHO

4% 17%

1% 0%

52% 26%

At 5 mil habitantes de 20 a 50 mil habitantes

de 5 a 10 mil habitantes de 50 a 100 mil habitantes

de 10 a 20 mil habitantes de 100 a 500 mil habitantes

As tendncias futuras parecem apontar para uma intensificao do processo combinado e contraditrio de descentralizao poltico-administrativa - reforando as responsabilidades dos municpios - com uma reconcentrao econmica do territrio. E embora os dois processos tenham uma relativa autonomia, decorrentes de fatores diferentes, a descentralizao e municipalizao da gesto pblica pode levar a reforar e potencializar a concentrao econmica, caso seja acompanhada de uma reduo dos instrumentos de reorientao do desenvolvimento macro-espacial, de responsabilidade da Unio e seus organismos regionais (supra-municipais). A descentralizao tem ocupado posio de destaque em vrias iniciativas federal em diversas reas de atuao governamental. Especialmente no terreno das polticas e

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projetos sociais, a Unio tem procurado construir parcerias com os Estados (UFs) e com os municpios para redistribuir as responsabilidades, com distintos graus de autonomia decisria e deliberativa Entre outras reas de descentralizao, merecem destaque o SUSSistema nico de Sade, PRONAF-Programa Nacional de Agricultura Familiar, o projeto Comunidade Solidria, as iniciativas de reestruturao fundiria e de fomento pequena produo familiar, elementos fundamentais para o desenvolvimento local - ampliando as potencialidades endgenas de produo e produtividade - e que podem ser melhor operados e geridos pelas instncias locais e municipais. A ampliao das metas de assentamentos e populao assentada e a nova concepo de assentamentos como base do desenvolvimento local, por exemplo, demanda um grande esforo de parceria e de envolvimento e mobilizao das diversas instncias pblicas e da sociedade, com destaque para as unidades mais prximas dos problemas e da realidade social. 2.3.2 Princpios da descentralizao A descentralizao se baseia nos princpios de subsidiaridade, segundo os quais, tudo que puder ser feito por uma entidade espacialmente menor, como o Municpio ou instncias locais, no deve ser feito por um organismo maior, como o Estado (UF) ou a Unio. Os princpios da subsidiaridade tambm consideram que a sociedade local tambm deve assumir uma funo central de deciso e gesto, num processo de descentralizao do Estado para a comunidade: tudo que puder ser feito pela sociedade no deve ser realizado pelo Estado (setor pblico), limitado responsabilidade pelas atividades que a sociedade no possa realizar (Franco Montoro, 1995). Entretanto, para definir o que pode ser feito ou no por uma instncia descentralizada deve ser utilizado critrios de resultados gerenciais. Assim, formulando de outra forma, tudo que puder ser feito de forma mais eficiente - com economia de meios mais eficaz - assegurando a realizao das metas - e mais efetiva - gerando os resultados gerais na realidade - por uma instncia no deve ser repassado para outra, espacialmente mais agregada ou desagregada. Assim, a descentralizao s deve ser realizada quando contribua para melhorar a gesto da coisa pblica, elevando os seus resultados e reduzindo os custos, ao mesmo tempo que assegure sua contribuio para o desenvolvimento local e a democratizao da sociedade. Da perspectiva interna das instituies pblicas, a redistribuio deve obedecer a critrios diferenciadores segundo o perfil e natureza dos servios e atividades, buscando o reforo simultneo da eficincia, da eficcia e da efetividade. Com base nos princpios de subsidiaridade, os governos locais deveriam, em tese, se dedicar funo de provedores de servios individualizados, os governos regionais seriam melhor provedores de servios cuja operao transcende fronteiras locais, e o governo nacional deveria se responsabilizar pelos servios que demandam uma gerncia central. (Lobo e Medeiros, 1993). De um modo geral, as instituies pblicas reduziriam sua atuao direta como produtoras de bens e servios, para se concentrar no papel de promotoras e reguladoras das atividades pblicas no plano local. Esta abordagem corresponde a uma concepo contempornea dos servios pblicos, procurando distinguir as atividades de provedor, regulador e produtor, e a

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distribuio das mesmas entre o Estado e a sociedade. Cada vez mais o Estado deve reduzir suas responsabilidades na produo direta dos bens e servios pblicos, repassando esta tarefa para as empresas e para organizaes no governamentais, mesmo que continue assegurando o acesso da populao aos mesmos, atravs das outras duas atividades. O modelo de Estado deve basear-se ...em um sistema no qual as autoridades locais organizam, asseguram e monitoram a proviso dos servios, sem necessariamente prov-los diretamente (Ridley, citado por Midwinter, 199513). Como provedor, o Estado deve criar as condies - compra e distribuio direta dos servios, pagamento indireto ou subsdios para que a sociedade possa receber os bens e servios produzidos pela sociedade que no podem se submeter ao mercado. Finalmente, como regulador, o Estado deve controlar as relaes econmicas e sociais, de modo a assegurar o desenvolvimento sustentvel e a qualidade de vida, normalmente inconsistente com as sinalizaes do mercado. Nessa redistribuio de papis, a combinao mais favorvel para a conjuno de eficincia, eficcia e efetividade seria a transferncia da execuo para as e