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2 Conhecimento e condição humana

CONHECIMENTO E CONDIÇÃO HUMANA

4 Conhecimento e condição humana

Imagens da capa: https://pixabay.com/pt/cabe%C3%A7a-cabe%C3%A7a-humana-meia-perfil-196541/

Ademir Menin José Francisco de Assis Dias

Leomar Antonio Montagna (Organizadores)

AUTORES: Djonh Denys Souza dos Reis

Fernando Ferreira

CONHECIMENTO E CONDIÇÃO HUMANA

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Toledo – PR

2016

6 Conhecimento e condição humana

Copyright 2016 by

Ademir Menin / José Francisco de Assis Dias / Leomar Antonio Montagna

EDITORA: Daniela Valentini

CONSELHO EDITORIAL: Prof. José Aparecido Pereira - PUCPR

Prof. José Beluci Caporalini - UEM Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma

REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof. Antonio Eduardo Gabriel

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território na-cional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!

Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596

http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Conhecimento e condição humana. / organizadores

C749 Ademir Menin, José Francisco de Assis Dias,

Leomar Antonio Montagna;

autores, Djonh Denys Souza dos Reis,

Fernando Ferreira. – 1. ed. e-book – Toledo,

PR: Vivens, 2016.

198 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-18-4

1. Antropologia. 2. Conhecimento humano. 3.

Filosofia e religião. 4. Pascal, Blaise (1623-

1662). I. Título.

CDD 22. ed. 100

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...........................................................

PARTE I: A RELIGIÃO CRISTÃ COMO FUNDAMENTO

ANTROPOLÓGICO EM BLAISE PASCAL (1623-1662)

INTRODUÇÃO DA PARTE I........................................... I = A EFERVESCÊNCIA DO

SÉCULO XVII NA FRANÇA................................. 1.1 JANSENISMO E SEU DESEJO................................... 1.2 DO NASCIMENTO À

CONVERSÃO DE PASCAL................................. 1.3 A NOITE DO MEMORIAL............................................. 1.4 PASCAL E AS PROVINCIAIS.................................. 1.5 A MORTE DE BLAISE PASCAL............................... II = A EXISTÊNCIA HUMANA ENTRE

A MISÉRIA E A GRANDEZA.................................. 2.1 O HOMEM DENTRO DO INFINITO............................ 2.2 A INSIGNIFICÂNCIA DO HOMEM........................... 2.3 A CONSCIÊNCIA DA FINITUDE.............................. 2.4 O PENSAMENTO EM DESCARTES E PASCAL.......... 2.5 O PODER DA IMAGINAÇÃO.................................... 2.6 O HÁBITO E A NATUREZA HUMANA...................... III = A ALIENAÇÃO DO DIVERTIMENTO.......................... 3.1 O DIVERTIMENTO COMO FUGA DE SI.................. 3.2 O DESEJO PELO REPOUSO

NA DIMENSÃO DO DIVERTIMENTO................. 3.3 A APARÊNCIA COMO ILUSÃO.................................

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8 Conhecimento e condição humana

3.4 O DIVERTIMENTO E A

IMPOSSIBILIDADE DA AUTONOMIA..................... IV = A RELIGIÃO CRISTÃ COMO FUNDAMENTO

ANTROPOLÓGICO DO HOMEM......................... 4.1 A NECESSIDADE DA RELIGIÃO.............................. 4.2 O MITO DO PECADO ORIGINAL................................. 4.3 A INCOMPREENSIBILIDADE COMO

POSSIBILIDADE DA APOSTA............................... 4.4 A QUESTÃO DA APOSTA......................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE I...................... REFERÊNCIAS DA PARTE I........................................

PARTE II: A RELIGIÃO CRISTÃ COMO SOLUÇÃO

PARA A MISÉRIA HUMANA NO PENSAMENTO DE BLAISE PASCAL

(1623-1662) INTRODUÇÃO DA PARTE II......................................... I = UM CONVERTIDO QUE

ASPIRA CONVERTER....................................... 1.1 O SÉCULO XVII E O NOVO ESPÍRITO

CIENTÍFICO ALICERÇADO NA TEOLOGIA......... 1.2 DA CRIANÇA PRODÍGIO AO JOVEM LIBERTINO........................................... 1.3 CONVERSÃO.......................................................... 1.4 APOLOGÉTICA......................................................... 1.5 DEPOIS DA MORTE,

SURGE O RECONHECIMENTO.......................

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A necessidade da religião cristã 9

II = MISÉRIA E FINITUDE:

A VISÃO PASCALIANA DE HOMEM.................... 2.1 O HOMEM, O CANIÇO PENSANTE........................ 2.2 A IMAGINAÇÃO COMO

FORÇA ENGANADORA................................... 2.3 O COSTUME: QUE SÃO NOSSOS

PRINCÍPIOS NATURAIS, SENÃO PRINCÍPIOS DE HÁBITOS?....................

2.4 O DIVERTIMENTO COMO TENTATIVA DE PREENCHER O “VAZIO” EXISTENTE NO HOMEM..................................

III = A NECESSIDADE DA RELIGIÃO CRISTÃ............ 3.1 A QUEDA E O PECADO ORIGINAL...................... 3.2 A APOSTA NA RELIGIÃO CRISTÃ........................ CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE II................... REFERÊNCIAS DA PARTE II.....................................

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APRESENTAÇÃO

Com alegria indizível, apresentamos aos amantes

da antropologia filosófica e da epistemologia, esta obra coletânea que põe em harmonia os trabalhos dos professores Fernando Ferreira, autor da primeira parte, e Djonh Denys Souza dos Reis, autor da segunda parte.

Na primeira parte, intitulada “A religião cristã como fundamento antropológico em Blaise Pascal (1623-1662), o Autor pensa o homem e suas contradições como sendo um problema que acompanhou toda a história da filosofia. Desse modo, a finalidade da sua pesquisa é apresentar a concepção de homem concebida por Blaise Pascal, a qual consiste na compreensão de que este é um ser contraditório.

Pascal foi um filósofo que discutiu a questão da condição humana, tentando destacar a falta de sentido no que tange à existência do homem. Ele descreve o ser humano de maneira trágica, colocando-o como um ser insignificante e miserável no interior de um universo infinito, constantemente iludido pela imaginação e pelo divertimento. No entanto, sua antropologia Pascal tem por preocupação encontrar um referencial para o homem. Referencial proveniente da religião cristã, a partir da ideia do pecado original.

Desse modo, o Autor conclui que somente a religião cristã é capaz de conferir algum sentido existencial ao homem. As verdades da fé e questões relacionadas à existência de Deus sendo incompreensíveis acabam por ser o objeto de uma aposta, que colocam o homem como aquele que deve empenhar a sua vida para obter um ganho infinito.

Na segunda parte, intitulada “A religião cristã como solução para a miséria humana no pensamento de

12 Conhecimento e condição humana

Blaise Pascal (1623-1662)”, o Autor aborda, inicialmente, os dados biográficos e o contexto histórico de Pascal.

Depois, o Autor faz uma análise da visão pascaliana de homem, aonde aborda, de maneira aprofundada, o problema da miséria e da finitude humana. Dentro desse âmbito, aborda o tema das forças enganadoras como a imaginação, o costume e o divertimento.

A ideia básica é a do homem como “caniço”, mas um caniço que pensa e é digno, pois tem consciência da sua própria miséria. A partir do princípio do Pecado Original, o Autor mostra o que levou o homem a tal estado, tendo em vista que, embora Deus o tenha criado justo e santo, a sua natureza é vazia e sem sentido.

No capítulo final, o Autor aborda a necessidade da religião cristã e da aposta em Deus para preencher o vazio existencial que se manifesta na esfera antropológica.

Boa leitura!

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PARTE I:

A RELIGIÃO CRISTÃ COMO FUNDAMENTO ANTROPOLÓGICO EM BLAISE PASCAL (1623-1662)

Fernando Ferreira

14 Conhecimento e condição humana

“Há entre vós aqueles que procuram os faladores, por medo da solidão. A quietude da solidão revela-lhes seu Eu desnudo, e eles preferem escapar-lhe. E há aqueles que falam e, sem saber ou prever, traem em verdade que eles próprios não compreendem”.

GIBRAN, Kahili. 1972, p. 57.

“Que é o homem dentro da natureza, afinal?”

Pascal. Pensamentos, Br. 72.

INTRODUÇÃO DA PARTE I

A presente pesquisa tem por finalidade abordar a

visão antropológica de Blaise Pascal, mostrando que os problemas inerentes ao homem não foram uma peculiaridade do século XVII, mas, estão muito atuais em pleno século XXI. Desse modo, voltar o olhar para o homem é mais que uma necessidade, é um dever. Pois somente por uma análise do ser humano, poderemos entender os comportamentos e todo o movimento dispersivo que este vive atualmente.

Para entender as conclusões de Pascal no respeitante ao homem e compreender a atualidade de suas palavras, faz-se necessário percorrer um itinerário que se dará da seguinte maneira:

No primeiro capítulo, esta pesquisa se aterá aos traços biográficos do autor tal como ao seu contexto histórico. Na intenção de mostrar o papel fundamental de algumas influências em seu pensamento, tal como seu contexto familiar, seu papel frente ao jansenismo e o peso do cristianismo em seu pensamento.

Partindo deste conhecimento e tendo como base a obra “Pensamentos” de Pascal, o segundo capítulo desta pesquisa tem o intuito de mostrar o ser paradoxal que é o homem; apresentar-se-á um homem que se encontra entre dois abismos de infinitude, ao mesmo tempo marcado pela miséria física e psicológica dentro deste universo. Por outro lado, capaz de um movimento de grandeza, grande por seu pensamento e por se reconhecer como miserável.

Por ser um autor considerado trágico, Pascal ainda nos mostra que este mesmo homem sofre com as forças enganadoras da Imaginação e do Hábito, levando-o a um mútuo engano, pois tais forças enganam a humanidade como um todo e levam o indivíduo a uma espécie de autoengano. Do mesmo modo o homem também cria por

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meio da imaginação um falso eu, um eu que não corresponde à sua verdadeira condição.

Ainda há uma terceira força enganadora agindo sobre o ser humano. Assim, foi necessário abrir um terceiro capítulo para expor a mais terrível das forças enganadoras: o Divertimento. Esta é a pior das misérias experimentada por nós, porque o Divertimento desvia-nos da constatação da ausência de significado em nossa existência, levando-nos a ocupações e distrações vazias de sentido. Nesse sentido, o Divertimento se configurará numa escravidão para o homem, visto que nunca o saciará completamente, e logo que essa paixão se vai, o homem se entedia, devendo buscar novamente outros meios que gerem a mesma sensação.

Por fim, no quarto capítulo demonstraremos a necessidade da religião cristã para o homem. Por meio do mito do pecado original, a religião cristã conseguiu interpretar a baixeza e a miséria do homem, assim como a sua grandeza. Mesmo que o mito do pecado original seja uma narração mítica e, assim, a religião não nos oferece nenhuma certeza, devemos adotar esse princípio explicativo quando se tratar de compreender o ser humano em sua totalidade e complexidade.

Segundo Pascal, o homem está infinitamente afastado de Deus, pois ele não tem nenhuma certeza racional da existência do ser supremo, mas para aqueles que ainda não creem pela fé, existe ainda uma possibilidade, crer por aquilo que parece ser mais razoável: apostando. É pelo argumento da Aposta, que Pascal demonstrará que a aposta na existência de Deus é o caminho mais vantajoso. Somente apostando na existência de Deus, é que nossa existência pode adquirir algum sentido.

Pensando na melhor forma de ajudar o leitor, a pesquisa foi desenvolvida mediante algumas citações diretas de Pascal. Para isso, às abreviações que estão contidas nas notas de rodapé, obedecerão às duas

Introdução da parte II 17

traduções utilizadas na presente pesquisa, uma pela tradução da Brunschvicg (com abreviações de Br.), e a outra, pela tradução de Louis Lafuma (com abreviação de Lf.). A primeira abreviação que vir citada na nota de rodapé, corresponde à versão de onde foi extraída a citação, a segunda, fica como auxílio para consultas posteriores.

18 Conhecimento e condição humana

= I =

A EFERVESCÊNCIA DO SÉCULO XVII NA FRANÇA

Para entender o pensamento pascaliano, se faz

necessário, perceber a Europa no século XVII e toda sua configuração vigente na França. Determinados episódios foram decisivos para seu desenvolvimento e aprofundamento teórico. Período em que saem de cena os pensadores medievais e entram Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz com pensamentos filosóficos e traços religiosos ao mesmo tempo. É possível notar os avanços, que começam já no período do Renascimento com a tentativa de voltar aos moldes de Grécia e de Roma, atrás do ideal de “homem do mundo, secular que cultiva sua pessoa, principalmente nas dimensões da arte e da literatura”1. Por sua vez, na Idade Moderna,

o intelectual dessa época é o homem do método (Ortega). Não faz outra coisa senão buscar métodos [...]. É o homem que, com um imperativo essencial de racionalidade, vai constituindo sua ciência.2

Alguns historiadores, entre eles Christoph

Helferich, caracterizam esse período de dois séculos como a “época mais interessante e produtiva da história da filosofia”3. Tal produtividade somente foi possível devido a muitos fatores, entre eles, o Renascimento e a Reforma Protestante. Para melhor esclarecer o que se desenvolve neste século, faremos um breve percurso passando por

1 MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,

2004. p. 302 2 Ibid., p. 302. 3 HELFERICH, Christoph. História da Filosofia. São Paulo: Martins

Fontes, 2006. p. 155.

20 Conhecimento e condição humana

alguns dos principais movimentos e acontecimentos deste período, sendo eles: 1) a Revolução Científica, 2) a busca por um método seguro e aplicável, 3) a concepção racionalista e cartesiana predominante na época.

Em primeiro lugar, é necessário salientar que o período Renascentista foi fundamental para acelerar a Revolução Científica do século XVII, ela derrubou o pensamento cosmológico da Idade Média transmitida por Aristóteles e a concepção de um universo qualitativo4. Deixar-se-á a compreensão defendida por Aristóteles e Ptolomeu de um sistema Geocêntrico (Terra no centro do Universo). As obras descobertas de Arquimedes e Galeno proporcionaram novas investigações acerca do Universo e a atual compreensão do mesmo. Os pensadores modernos assumem a postura Heliocêntrica, que consiste em se considerar o sol o centro do Universo.

Como já foi dito acima, o Renascimento acelerou o processo da Revolução Científica, ideias oriundas de Platão e Pitágoras enalteceram o papel da matemática como princípio de entendimento do Universo, como um conjunto em harmonia que se pode conhecer pela mente. Assim, um novo modelo de Universo se estabelece. Concluímos que, a Revolução Científica não mudou somente a concepção de mundo que os homens possuíam, mas mudou a própria concepção do homem no mundo. A contribuição da mesma proporcionou o desenvolvimento de um “espírito crítico e racional” segundo Marvin Perry; ajudou a quebrar mitos e superstições deixadas pela Idade Média:

[...] eles consideraram a magia, os encantamentos, os demônios, a feitiçaria, a alquimia e astrologia como superstições vulgares. Argumentavam que os

4 “Para a mente medieval, o cosmos era uma gigantesca escada, uma ordem qualitativa, que ascendia aos céus. Deus situava-se no topo desse universo hierárquico, enquanto a Terra, inferior e vil, ficava na base, logo acima do inferno.” PERRY, Marvin. Civilização Ocidental:

uma história concisa. 3ª ed. São Paulo: Marins Fontes, 2002. p. 282

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fenômenos atribuídos a forças ocultas podiam ser explicados recorrendo-se às forças naturais.5

Tal confiança passou a ser depositada na mente

humana, assim ele prossegue: [...] a Revolução Científica fortaleceu a confiança nas capacidades humanas expressas pelos humanistas e renascentistas. Acreditava-se que, com o tempo, o método científico revelaria todos os segredos da natureza, e a humanidade, adquirindo ainda mais conhecimento e controle sobre a natureza, avançaria rapidamente.6

Em segundo lugar, a confiança nas capacidades

humanas, em especial, na razão, passa a significar que o século XVII foi o “século do Grande Racionalismo”, segundo o filósofo Maurice Merleau-Ponty7 (1908-1916). Tal tendência está inteiramente ligada com as ciências da época e seus descobrimentos, tais como a física, a mecânica, a astronomia e a matemática. É a capacidade de o próprio homem produzir conhecimento. É o uso de suas próprias faculdades para conhecer e compreender a realidade de fenômenos estabelecidos não mais se apoiando em noções obscuras, deixados pela tradição. Foram consideráveis os resultados com a tendência racionalista: “revolucionando o mundo prático, social, econômico, depois de ter revolucionado silenciosamente o mundo cultural”.8

Por último, e em terceiro lugar, a busca por um método encontra na matemática o grande modelo desse racionalismo. Um método científico poderá ser capaz de

5 PERRY, op.cit., p. 294. 6 Ibid., p. 295. 7 PASCAL. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os

Pensadores) p.12. 8 PADOVANI, Umberto. CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia.

16ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1994. p. 288.

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responder indagações acerca da natureza, seguindo o padrão de certeza existente na matemática, como, por exemplo, a clareza e a distinção. A razão pode fiar-se em si mesma, basta criar um método confiável e seguro, que possa ser aplicável em termos científicos. Ter um método com regras de investigação é ter em mãos um conjunto de razões que certifiquem a validade do conhecimento.

Nesta busca por um método de investigação, se destacará o francês René Descartes que apresenta seu método na obra “Discurso do Método” e nas “Meditações”. Conforme dito, linhas acima, o modelo que utilizará para conceber o método científico será a matemática. Assim sendo, terá como referência as estruturas da matemática. No entanto, devemos lembrar sempre que esse método se propõe a que dele se consiga fazer aplicações em outras áreas do saber, ou seja, uma aplicação universal; não é um método estritamente matemático, mas apenas baseado nessa ciência.

Segundo Descartes, seguindo as regras de seu método, será impossível depois de uma análise extremamente cuidadosa, gerar algum erro. Pois, para ele o método não somente conduzirá o homem ao conhecimento das ciências naturais, como também de outras áreas, tais como ética, metafísica e antropologia. Seu Discurso do Método apresentará algumas regras para chegar ao autêntico conhecimento, são elas: a primeira é a regra da intuição que consiste na captação do problema; a segunda é a divisão do problema e, por terceiro, a síntese do problema, partindo do mais simples para o mais complexo, é a revisão de que nada ficou omitido na investigação.

Segundo Perry, o método cartesiano, usando aplicações matemáticas no âmbito filosófico, poderia, nesse sentido, chegar à mesma precisão e nitidez da geometria. René Descartes, por sua renovação do método científico, se destacará como o precursor da Filosofia Moderna. Sua influência é notável na França, em

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pensadores como Nicolas Malebranche e outras grandes figuras fora da França, como Espinosa e Leibniz.

Outro ponto importante para entendermos a França do século XVII é conhecer a doutrina jansenista, pois esta foi a religião professada por Pascal em parte de sua vida. Veremos que o movimento iniciado por Cornélio Jansênio trouxe enormes mudanças para a sociedade francesa. É notório saber que este movimento mexeu com as bases da Igreja Católica e confrontou-se com os jesuítas, especialmente no campo da moral. Foram atividades e escritos intensos até 8 de setembro de 1713 quando é condenada toda a doutrina jansenista pela bula papal Unigenitus Dei Filius.

1.1 JANSENISMO E SEU DESEJO

Antes de entender em que consiste o jansenismo,

precisamos entender que a abadia de Port-Royal foi sumamente importante para a formação do pensamento de Pascal. O movimento liderado pelo bispo de Ypres, Cornélio Jansênio (1585-1638) chamado jansenismo, não só afetou a França como também mexeu nas estruturas da Igreja do século XVII. A união de Jansênio, que era doutor em teologia na universidade de Louvain, e Jean Duvergier, futuro abade Saint-Cyran (1581-1643), foi o que plantou as sementes do jansenismo. Ambos descontentes com o racionalismo, pregado por teólogos escolásticos, e desejosos em voltar à moral religiosa do início do cristianismo, buscaram, nas obras de Santo Agostinho (354-430), elementos para fundamentar seus desejos.

Pouco depois da morte de Jansênio, a união feita com o abade Saint-Cyran proporcionou que o movimento se expandisse pela França, unindo-se a ele religiosos e monjas cistercienses da abadia de Port-Royal. O movimento ganha mais força quando surge a obra Augustinus, de Jansênio em 1640-1641, que declarava a razão filosófica como “a mãe de todas as heresias”. A obra

24 Conhecimento e condição humana

de Jansênio fez muito sucesso ao ser publicada em três volumes. O primeiro volume é composto de oito livros, em que Jansênio, usando da doutrina de Agostinho, vai destruir a heresia de Pelágio, a qual defende que o pecado original não teria enfraquecido o homem de fazer o bem. No segundo e no terceiro volumes, Jansênio vai expor os limites da razão e doutrinas relativas à graça, à liberdade e à predestinação.

Três volumes onde tudo parece ser atacado: [...] a Igreja, que já não é necessária; os confessores, que estão errados em mostrar-se conciliadores demais; os protestantes que não entenderam nada; os libertinos, que acreditam na felicidade; os cientistas, que acreditam numa graça incognoscível, que é preciso estar pronto para agarrar quando se tem a sorte de receber.9

Como ao tratar da graça, Jansênio fundamentando-

se em Agostinho assegura que o pecado original corrompeu o homem, toda a ação humana seria um pecado. Tudo isso gerou escândalos em toda a Europa, o cardeal Richelieu, temendo que as teses de Jansênio afastassem os fiéis da Igreja, faz o pedido junto à Santa Sé que proibisse qualquer comentário “sobre a graça, seja a favor ou contra: é a estratégia da asfixia pelo silêncio”.10

Seus escritos contidos em Augustinus foram tão intensos para a época que, no ano de sua publicação, ele foi condenado pela Sagrada Congregação do Index e pela Inquisição em 1641. Urbano VII proibiu que se escrevesse ou comentasse sobre as cinco proposições contidas na obra.11 A proibição chegou até ao papa Inocêncio X que,

9 ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. São Paulo:

Editora Edusc, 2003. p. 76. 10 Ibid., p. 77. 11 “Essas cinco proposições, tão famosas e discutidas, são as seguintes: 1) alguns preceitos de Deus são impossíveis para os justos, mesmo que os queiram e se esforcem com todas as forças que têm na presente natureza, porque lhes falta a graça que os torna possíveis; 2)

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juntamente com uma comissão, avaliou as defesas dos jansenistas e antijansenistas. Lança o veredicto final. Em 31 de maio de 1653, por meio da bula papal chega a condenação das cinco proposições da obra Augustinus.

O livro de Jansênio pode ter sido censurado pela Santa Sé e abominado pelos jesuítas, mas logo o jansenismo se torna doutrina. Nem tanto pelo livro Augustinus, mas

[...] devido aos panfletos e sermões, discursos que inspira. É porque sua mensagem é clara e simples: o homem não pode salvar-se sozinho. Para salvar-se, não deve contentar-se com a confissão, mas procurar conhecer-se, analisar-se, ir ao fundo de sua objeção para ficar em situação de esperar a graça, se ela vier.12

A doutrina jansenista atrai muitas pessoas, pois

“todos querem livrar-se do ‘homem velho’ que há em si. Querem purificar-se. Toda vida social está profundamente abalada”.13 Todas as camadas são atraídas pela doutrina jansenista, são “bispos, padres, burgueses, nobres, médicos, juristas e filósofos” que desejam purificação. Concordes de que, para salvarem sua alma, devem retirar-se do mundo e viver uma obediência passiva e não se enganar. Princípios estes, que vão chegar até a família de Pascal e posteriormente influenciar o pensamento do autor francês.

não se resiste nunca à graça interior, no estado de natureza decaída; 3) para granjear mérito ou demérito, não se requer a liberdade da necessidade interior, mas somente a liberdade de coação exterior; 4) os semipelagianos admitem para cada ato, mesmo no início da fé, a necessidade da graça proveniente e eram heréticos ao concederem à vontade humana o poder de resistir ou obedecer à graça; 5) é um erro semipelagiano afirmar que Cristo morreu por todos.” REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. Vol. II.

São Paulo: Paulinas. 1990. p. 594. 12 ATTALI, op.cit., p. 78. 13 ATTALI, op.cit., p. 79.

26 Conhecimento e condição humana

O jansenismo sente-se totalmente aniquilado na

França quando, em 29 de outubro de 1709, o rei ordena a destruição do convento de Port-Royal, aquele que era o “coração” do jansenismo. Como dito acima, em 1713 é condenada toda a doutrina jansenista pela bula papal. Tais fatos não só marcaram o século XVII, como toda Europa, França e principalmente a vida de Blaise Pascal e seus pensamentos. Como veremos a seguir.

1.2 DO NASCIMENTO À CONVERSÃO DE PASCAL

No dia 19 de junho, do ano de 1623, na Rua des

Gras, em Clermont, nasce Blaise Pascal, oriundo de uma família típica de elite provinciana humilde, se não fosse sua genialidade e o empenho de seu pai Étienne Pascal, certamente ele teria vivido para servir o Estado, assim como seu pai, seu avô e seu bisavô. A oportunidade que teve Étienne de estudar, faz dele uma “amostra” do que seria Pascal futuramente. Em 1616, com vinte e oito anos, casa-se com Antoinette Begon, ambos vão morar em Clemort-em-Auvergne, ali nasce a primeira filha Antonia que morre, pouco tempo depois. Em 1620, nasce Gilberte, e em 19 de junho de 1623, nasce Blaise Pascal. A terceira é Jacqueline, que nasce em cinco de outubro de 1625.

A vida da família Pascal se complica quando Antoinette morre, em meados de 1626; Étienne aos seus trinta e oito anos, encontra-se sozinho e incumbido de criar os três filhos pequenos, contando somente com a ajuda de uma governanta, Louise Delfaut. Os filhos de Étienne nunca frequentaram a escola, mas nem por isso, eram inferiores aos que frequentavam, pelo contrário, seu pai cuidou pessoalmente para que os filhos tivessem uma boa educação longe da escola.

Com métodos pedagógicos baseado em Rabelais e Montaigne, consegue ensinar a leitura e a gramática, nada é imposto, mas busca cultivar a vontade de entender, de encontrarem respostas por si mesmos. Aos sete anos,

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Blaise começa a aprender latim (antes de dominar o francês), história e geografia eram assuntos preferidos durante as refeições. Com o tempo, logo se nota as aptidões de cada filho. Ao contrário de Gilberte, Blaise se destaca por sua curiosidade e Jacqueline por sua aptidão pela literatura e leitura de raros exemplares.

Em 1631, Étienne muda-se de Clermont para Paris, Blaise se encontra com oito anos, muito frágil e apegado ao pai e à irmã mais nova (Jacqueline). A busca por um posto em sua província é um fracasso, Étienne se sente decepcionado consigo mesmo, Blaise sobre isso dirá:

A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas exatamente nisso se encontra a maior marca de sua excelência; pois por mais posses que tenha sobre a Terra, por maior saúde e comodidade essencial que possua, não se sente satisfeito se não se encontra na estima dos homens.14

Assim, viverá ele o resto de sua vida, se dedicando

em cuidar da educação dos filhos e encontrar um posto social dentro dos círculos científicos da capital. Esses círculos ou academias reúnem cientistas amadores, que discutem ideias ou resultados científicos e depois publicam em diferentes cidades. A mais importante e ativa é a “Academia parisiensis”, aquela que mais atrai Étienne.

A vida de Étienne e de sua família começa a sofrer mudanças quando este passa pela Nueve-Saint-Lambert, nesta rua conhece Roberval que se tornará seu amigo, Roberval apresenta Étienne ao círculo de Mersenne que logo é aprovado pelos componentes, pois é um excelente matemático do qual a academia necessita. Este ano também é marcado pelo avanço que Blaise dá com suas capacidades intelectuais, pois aos onze anos realiza sua primeira experiência científica. Esta se dá ao perceber que objetos como copo e prato produzem certos sons ao

14 PASCAL. Pensamentos, Br. 404; Lf. 470.

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chocá-los com uma faca. Curioso como ele, busca investigar a origem e a propagação desses sons, que mais tarde será o “Tratado dos sons”, escrito do qual, infelizmente, não restam vestígios.

Tanta dedicação e estudo fazem de Blaise um garoto franzino e quase solitário, se não fosse a companhia do pai e das duas irmãs, tem a amizade apenas de Arthus, aquele que futuramente será o duque de Roannez. Jacqueline e Gilberte pelo contrário, falam de teatro e literatura, Jaqueline ao ver a peça de saltimbancos não hesita em mostrar sua emoção pelo teatro que, partindo daí, começa a escrever versos.

Étienne vive de uma pensão que é paga aos portadores de títulos da dívida pública, porém, é forçado a fugir de Paris para Auvergne, devido a participação em uma manifestação onde o chanceler Séguier havia cancelado este pagamento. Logo depois é preso pelas autoridades. A situação da família fica mais crítica, quando Jacqueline contrai varíola, doença quase mortal para uma garota de sua idade. Neste tempo, Jacqueline se destaca com seus versos, busca por meio de Mme. De Morangis chegar até a Corte e conseguir anistia para seu pai, porém a rainha Ana da Áustria está entusiasmada com sua gravidez recém-descoberta, e pouca atenção oferta à menina. Frustrada com a tentativa de conseguir anistia de seu pai junto a Corte, busca por meio de um ator (Mondory) que iria se apresentar para o cardeal Richelieu que interceda por ela. A apresentação é um sucesso em abril de 1639, a mocinha deixa o cardeal estupefato, assim ele concorda em ceder anistia ao mesmo, desde que volte a encontrá-la com sua família. Assim, Étienne volta a Paris em maio de 1639.

O jovem Blaise tem a permissão de acompanhar o pai na academia Mersenne, e é por ela que ele é convidado a apresentar seu “Ensaio sobre cônicas” em setembro de 1639. Ele consegue arrancar aplausos e admiração dos demais. A vida começa a melhorar, Étienne

A efervescência... 29

aceita a proposta de trabalho como adjunto do intendente do rei para Normandia, assim, passa a ser uma alta personalidade da província. A estabilidade da família sente-se ameaçada quando Richelieu morre, em oito de dezembro de 1642; Étienne agora terá que trabalhar muito mais e se mostrar mais profissional, para que assim, ganhe a confiança do novo senhor (Mazarino). Éttiene, com cinquenta e seis anos, já se sente cansado, a ajuda de Blaise não é suficiente para suprir as exigências do ofício, surge aqui um desafio para Blaise: automatizar o cálculo dos impostos.

Sua máquina de calcular começa com o estudo da estrutura dos relógios, faz perguntas aos relojoeiros da cidade, discute ideias com seu pai, pois projeta automatizar a soma e a multiplicação de seis e depois oito algarismos. A primeira e segunda tentativa é fracassada, somente na terceira, ele tem a ideia de usar molas para passar os algarismos de uma coluna para outra. Entre 1642 e 1644, pede para fabricar cinquenta modelos de sua máquina de diferentes materiais. A aprovação do público é rápida.

Assim como ele próprio expõe:

Já tenho satisfação de ver minha pequena obra não só autorizada pela aprovação de alguns dos principais nomes dessa verdadeira ciência [...], mas também honrado com sua estima e sua recomendação.15

A descoberta do jansenismo na vida de Blaise é

possibilitada por uma discussão acerca da graça divina que volta a remexer com a forma de conduta das pessoas. Isso não ocorre por acaso. Seu pai, depois de fraturar uma perna, necessita do auxílio de alguns médicos, são eles: Des Landes e La Bouteillerie, esses também recomendam algumas leituras, dos quais trazem ideais propagadas pela doutrina jansenista à família de Blaise, nas obras

15 ATTALI, op.cit., p. 68.

30 Conhecimento e condição humana

encontram um universo maravilhoso. Jaqueline fica muito impressionada com as obras, que até mesmo fala de uma possibilidade em entrar em uma ordem religiosa, mas Blaise não aceita perder a irmã para outro homem (visto que era seu segundo pedido de casamento) nem para um convento. Jacqueline chega à conclusão que deve ficar com o irmão e o pai, por enquanto.

A academia Mersenne, em Paris, vibra novamente com a experiência que Blaise faz sobre o cálculo do vácuo, demonstrando que ele existe. Sua fama chama a atenção do maior filósofo da época, René Descartes, que ao passar por Paris pede que Pascal vá visitá-lo, porém, é primavera de 1647, Blaise se encontra muito enfermo, sofre com dores insuportáveis no estômago e de enxaquecas. Não podendo estar no local marcado, Descartes resolve ir até Pascal, impulsionado pela curiosidade de conhecer este jovem cientista e matemático de vinte e quatro anos, dono da máquina de calcular e do cálculo do vácuo. Não se sabe muito deste encontro, sabe-se que Descartes voltou na manhã seguinte, antes de partir para seu destino e que deixou alguns conselhos para o jovem Blaise. O resultado de sua experiência será conhecido em outubro de 1647, como “Novas experiências sobre o vácuo”.

Novamente Jacqueline é desejosa por entrar em um convento, desta vez, a abadia é “Port-Royal Du Saint-Sacremeant”, mas Blaise acha isso uma loucura, avisa ao pai que logo parte para Paris, em 16 de maio. As chantagens contra Jacqueline são dramáticas, diz de sua condição de velho e doente e se, assim deseja, que pelo menos espere sua morte para realizar tal vontade. Jacqueline prudentemente atende ao pedido do pai.

As vidas de Blaise, Jacqueline e do pai são três vidas que vivem isoladas: Blaise escreve e estuda, Étienne está entediado, pois está sem emprego e sabe que a filha espera sua morte para entrar no convento, enquanto Jacqueline vive a rezar pela casa. A família vê suas condições financeiras em deficiência, mudam-se para uma

A efervescência... 31

casa mais econômica. Éttiene, preocupado com a mudança, permite que Jacqueline faça um retiro na abadia (algo que insistira há tempos), pois quem sabe conheça realmente como é, e mude de ideia. A vida dos irmãos parece ganhar novos traços com a morte do pai, em 24 de setembro de 1651. Com a morte de Étienne, Jacqueline está livre da promessa feita ao pai, parte para Saint-Jacques a fim de resolver sobre seu ingresso ao convento. Logo é aceita pela madre Agnès, justificada por sua sabedoria, pode lecionar na escola. Blaise fica estonteado quando descobre a partida da irmã, isso gera nele convulsões, dores, paralisia, porém, Jacqueline nada faz (já conhece a chantagem do irmão). Porém, não desiste de encontrar o irmão, escreve-lhe pela primeira vez em sete de março de 1652, sem obter resposta; a segunda, em nove de maio de 1652.

A chantagem de Blaise começa ameaçando Jacqueline de não receber sua parte, caso faça os votos no convento, pois Jaqueline depende do dote que será entregue ao convento para continuar como postulada e fazer os votos. Mas o tempo fez mudar a opinião de Blaise acerca da vontade da irmã, por causa de uma enfermidade de Jacqueline ele aceita pagar a parte dela e as demais despesas necessárias. Jacqueline faz seus votos em cinco de junho, aos quais Blaise assiste chorando e silencioso atrás das grades.

A vida de Blaise está preste a tomar nova direção. As horas em que passou pelo êxtase religioso marcaram o nascimento espiritual de Blaise. A pequena anotação que carregava no forro de sua roupa nos dá um sinal da experiência mística que viveu e, posteriormente, também dará ao seu pensamento. No próximo tópico (A noite do memorial), será exposta uma breve trajetória de Pascal desde que foi atingido por uma “luz estranha”, luz que rompeu com seus costumes e levou-o a se afastar do mundo até mudar-se para Port-Royal.

32 Conhecimento e condição humana

1.3 A NOITE DO MEMORIAL

Desde quando Jacqueline entrou para o convento,

Blaise não consegue esquecê-la; ao final do ano 1653, Blaise rompe com todos os seus hábitos e vive de cama; o mundo e seus atrativos lhe causam nojo; cai em si e nota o vazio de sua vida, isso o leva a fazer a seguinte constatação, mais tarde, em sua obra “Pensamentos”:

Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. No mesmo instante virá do fundo de sua alma o tédio, a escuridão, a melancolia, a pena, o despeito, o desespero.16

Nada mais o atrai, nem a pintura e nem mesmo as

festas com os poucos amigos, chega à conclusão que suas investigações científicas não passam de vaidade. No entanto, isso não quer dizer que ele rejeita o mundo, pelo contrário, ele continua trabalhando.17 Sua ânsia por encontrar Jacqueline, faz com que no verão de 1654 ele vá até Port-Royal vê-la, onde começa uma nova fase na vida de ambos. Blaise passa a aceitar a vontade da irmã, muda-se próximo a Port-Royal, sua rotina calca-se sobre a oração diária e leitura da bíblia. Sua irmã Jacqueline sabe que o irmão está pronto para avançar mais uma etapa. A vida de Blaise mudará depois do encontro com seu confessor Singlin que, mediante seus conselhos, se tranca em sua casa, sem sair, sem comer, nem dormir, longe dos criados e de sua governanta Delfaut, vive na leitura bíblica, meditação e oração. Dois dias se passam.

São meia-noite e meia do dia 23 de novembro de 1654, arrebatado por um fogo que lhe dá a sensação de

16 PASCAL. Pensamentos, Br. 131; Lf. 622. 17 Trabalha cuidando de seu patrimônio e de uma loja Halle au Blé, que

alugou por 360 libras.

A efervescência... 33

voar, desmaia e desperta somente ao alvorecer. Tem certeza que era Deus presente naquele momento. No mesmo instante, em uma folha de papel e escrita firme, ele diz:

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios. Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo. Deum meum et deum vestrum. Teu Deus será meu Deus. Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus. Ele só se encontra pelas vias ensinadas no Evangelho. Grandeza da alma humana. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci. Alegria, alegria, alegria, prantos de alegria.18

Esta mensagem só será descoberta após a sua

morte, no forro de sua roupa. Aquela noite de novembro lhe deixa esgotado, entende que aquilo foi um sinal para que “assuma um compromisso de renúncia total e suave”.19 No dia seguinte, busca por meio de Jacqueline um diretor de consciência que lhe indica Singlin, que lhe escuta em 20 de dezembro. Pascal recusa o convite para fazer um retiro em Port-Royal, no entanto é o duque Roannez que o convence de buscar algo novo e diferente. Pascal só será aceito no dia 7 de dezembro de 1655, onde se instala em uma das celas de Port-Royal. Pascal já sente melhoras em seu corpo, começa a escrever textos magníficos.20 Deixa a abadia três semanas depois, no entanto, mesmo depois que a deixou fez vários outros retiros.

A estadia de Pascal em Port-Royal não foi em vão. Logo veremos que Pascal tomou partida da briga contra os jesuítas. O motivo: as cinco proposições. A solução:

18 PASCAL. Pensamentos, Lf. 913. 19 ATTALI, op.cit., p. 159. 20 Escreve Mistérios de Jesus, Escrito sobre a conversão do pecador, Resumo da vida de Jesus Cristo (publicado em 1844), sobre a aposta e Comparação dos cristãos dos primeiros tempos com os de hoje

(publicada em 1779).

34 Conhecimento e condição humana

estariam em quatro ou cinco cartas escritas a fim de atingir a Igreja da França. Acusações que posteriormente se estenderam contra os casuístas, jesuítas, até contra o papa. Foi o “primeiro exemplo de intelectual a insurgir-se contra a censura, o totalitarismo e a mentira. Pela verdade, contra a calúnia”.21

1.4 PASCAL E AS PROVINCIAIS

A briga do jansenista Arnauld com o padre Annat,

confessor do rei, tem consequências profundas em Pascal, pois é Pascal que vai digladiar com Annat e a sua acusação de que a obra de Jansênio possui cinco proposições censuradas pelo papa Inocêncio X. A união secreta de Pascal e Arnauld é a junção perfeita para combater a ameaça de expulsão da Universidade de Sorbonne e a cassação de seus títulos universitários, caso não se retrate. O objetivo de Pascal e Arnauld é atingir a Igreja da França e impressionar os membros da Sorbonne, antes que votem em sua cassação.

Às escondidas, de Port-Royal, as cinco primeiras cartas são editadas em anonimato para um provincial, visto que é arriscado remetê-las a Pascal. Nelas Pascal busca mostrar que não há heresia na doutrina jansenista. Contudo, ao chegar às mãos do chanceler Séguier, é aberta uma investigação para encontrar seu autor, nesse período a Segunda Carta já causa sucesso estrondoso em Paris. Arnauld perde seu título de doutor em teologia, no entanto, dia 9 de fevereiro, prepara-se a Terceira Carta, em 25 de fevereiro é lançada a Quarta Carta acusando os casuístas. E a última opõe a teologia da graça dos jesuítas à tradição agostiniana. Pascal está convicto do que escreverá: “Se minhas Cartas são condenadas em Roma, o que nelas condeno é condenado no céu”.22

21 ATTALI, op.cit., p. 187. 22 PASCAL, Pensamentos, Br. 920; Lf. 916.

A efervescência... 35

Se, por um lado, os jesuítas são acusados de

hereges, um fato acontecido com Marguerite, sobrinha de Pascal e filha caçula de Gilberte, irá fazer repensar tal postura. Em 1654, os pais matriculam Marguerite em Port-Royal, com dez anos, ela sofre de um mal no olho esquerdo que lhe causa fortes enxaquecas. Em 24 de março de 1656, Port-Royal recebe um relicário contendo o espinho da coroa de Cristo. Quando exposto para o público, Marguerite encosta o olho infectado na relíquia, que logo pela noite dará sinais de melhora. O mal está curado. Assim, a menina pede a paz para Port-Royal e arquivamento do processo contra Arnauld. Em 22 de outubro do mesmo ano é reconhecido e autenticado o milagre do Santo Espinho.

Os jesuítas se encontram em defensiva por causa da quinta provincial e do milagre com Marguerite. Entre 10 de abril de 1656 e abril de 1657, são publicadas outras treze provinciais, que ganham proporções gigantescas, facilitando a edição e publicação das demais. A exaustão causada pelas provinciais faz de Pascal um homem cansado nos seus trinta e quatro ou trinta e cinco anos. Pascal não é o mesmo, a morte de sua irmã Jacqueline em quatro de outubro lhe causará grande tristeza.

Com a morte de Jacqueline, Pascal tem direito à restituição do dote feito por Port-Royal, com o dinheiro do dote, Pascal juntamente com alguns amigos ricos, criam os transportes coletivos, a primeira linha é inaugurada em 18 de março de 1662. A segunda linha é oferecida em 1º de abril de 1662, o lucro que Pascal obtém é destinado aos pobres.

A tentativa de Pascal sempre foi escrever uma apologia em defesa da religião cristã, toda a dedicação de sua irmã ao convento, a cura de Marguerite, sua conversão, o convento de Port-Royal, são sinais que o levam a defender aquilo que transformou a sua vida e influenciou seu pensamento. Ele percebeu em seu tempo que “os homens desprezam a religião; odeiam-na e temem

36 Conhecimento e condição humana

que seja verdadeira”.23 O plano de sua apologia articulava-se de maneira simétrica, a “Primeira parte: Miséria do homem sem Deus. Segunda parte: Felicidade do homem com Deus”.24

Para chegar a estas duas certezas, ele precisava mostrar como o pecado de Adão havia influenciado e enfraquecido todos os homens e, por ele, todos sofreriam as consequências neste mundo. A segunda parte consiste em mostrar que foi Jesus Cristo o mediador, pois somente ele conseguiu mostrar as contradições em que vivia o homem mergulhado em sua miséria.

1.5 A MORTE DE BLAISE PASCAL

A caridade toma conta de Pascal, agora os pobres

são a sua obsessão. Está hospedado na casa de uma família de operários, cujo filho contraiu varíola, Gilberte implora para que Pascal abandone a família, mas essa não é a sua vontade. Gilberte é obrigada a usar de suas forças, quando em 29 de junho de 1662 o retira de lá. As dores nunca o deixaram em paz e desta vez, a dor de cabeça e as cólicas aumentam a cada novo dia. Dores intensas que faz Pascal pedir um padre em quatro de julho.

Dita seu testamento em três de agosto. Pede os sacramentos que lhe são conferidos na noite de 17 para 18 de agosto de 1662. Novamente é tomado pelas convulsões que lhe fazem sofrer vinte e quatro horas, chegando a morrer no dia 19, a uma hora da madrugada, com trinta e nove anos. Às dez da manhã, do dia 21, Pascal é enterrado na igreja Saint-Étienne-du-Mont, onde sempre desejou.

Após sua morte, os jansenistas decidem publicar suas obras; a união de seus escritos é complicada demais, visto que se encontra muita coisa em desordem e sem

23 PASCAL, Pensamentos, Br. 187; Lf. 12. 24 PASCAL, Pensamentos, Br. 60; Lf. 06.

A efervescência... 37

conexão uma com outra, o próprio Pascal já deixara manifesto:

Anotarei meus pensamentos sem ordem, não talvez em uma confusão sem objetivo: esta é a verdadeira ordem, que marcará sempre meu fim pela própria desordem. Deixaria excessiva importância a meu assunto se o tratasse com ordem, pois pretendo mostrar que é incapaz de ordem.25

Na busca por materiais desorganizados,

acumulam-se cerca de oitocentos fragmentos, entre páginas e frases encontra-se o escrito sobre O Memorial e a apologia feita ao cristianismo. A união de vários escritos forma o que hoje conhecemos como Coletânea original dos Pensamentos, que foi depositado em 1711, na biblioteca da abadia Saint-Germain-des-Prés (hoje atual Bibliothèque Nationale de France).

Os Pensamentos de Pascal foram a obra-base para nossa pesquisa, ironicamente sua desordem também aponta para a desordem do próprio homem, nela se expressa um Pascal trágico, alguém que teve certeza, ao final de sua vida, que o homem é um sujeito paradoxal tal como sua grandeza é expressa pela consciência de seus limites e de sua miséria. Em 1670 sai a primeira edição dos Pensamentos de Pascal; e, em 1769, chega a trigésima quinta edição das Provinciais, donde algumas cartas atingem tiragem de cem mil exemplares.

No próximo capítulo, buscar-se-á fezer uma análise do pensamento de Blaise Pascal acerca do homem. Passaremos por sua concepção de homem como um caniço pensante, como aquele composto de grandeza, grandeza que se estabelece ao reconhecer sua miséria. Para chegar até essa constatação o segundo capítulo também abordará os pressupostos que o levaram a tal conclusão.

25 PASCAL, Pensamentos, Br. 373; Lf. 532.

38 Conhecimento e condição humana

= II =

A EXISTÊNCIA HUMANA ENTRE A MISÉRIA E A GRANDEZA

O capítulo anterior nos ajudou a conhecer um

pouco mais da vida de Blaise Pascal, passagem necessária para entender posteriormente seu pensamento. Neste segundo capítulo, trataremos da condição do homem em Pascal, sendo que nesta primeira fase, abordaremos a miséria do homem sem Deus e, posteriormente, a felicidade do homem com Deus.

Para iniciarmos este capítulo, vamos analisar a crítica que Pascal faz às escolas filosóficas da antiguidade. Como exemplo, tomemos o estoicismo que tem como máxima principal que “podemos sempre o que podemos”1, ou seja, ele confere ao homem uma alta capacidade de conseguir tudo que almeja. Se os seres humanos ambicionarem a glória, pelo seu esforço conseguirão a glória, desde que aceitem o destino predeterminado por Deus. Desse modo, conferem ao homem apenas grandezas, sem falar de suas misérias.

Contudo, a proposta de Pascal é outra; ele propõe o desligamento dessas escolas, deseja mostrar que é perigoso apresentar o homem unicamente como animal e não mostrar sua grandeza, assim como também é perigoso fazer-lhes ver sua grandeza sem sua baixeza. O melhor é mostrar que ele não é grande demasiadamente, assim como não devemos reduzi-lo somente à sua baixeza. Assim, ele não deve agir com estupidez frente a essas duas realidades, mas deve buscar conhecê-las.

Com base nisso, Pascal mostra que o homem é um ser antagônico, composto de grandeza e miséria. Para fugir de sua condição miserável o homem busca criar uma

1 PASCAL. Pensamentos, Br. 350; Lf. 146.

40 Conhecimento e condição humana

autoimagem de si, uma imagem boa e elevada, obviamente. Contudo, esconder sua miséria de si próprio não basta para ele que deseja também esconder tal baixeza dos outros; e, nesse sentido, busca sempre estar camuflando sua existência e sua condição. O que ele busca é ser olhado e estimado pelos outros por sua autoimagem e que, esta boa imagem, cause nos olhos alheios uma admiração.

Para chegar à conclusão da insignificância e da baixeza do homem, Pascal começa fazendo um itinerário, que aponta para a condição humana dentro do universo. Por meio da comparação do homem com o universo, chegará à conclusão que todo o trabalho e movimento do homem em traçar uma boa imagem para si e para os outros tem uma razão, assim como veremos a seguir.

2.1 O HOMEM DENTRO DO INFINITO

Para iniciar sua discussão em torno do homem e

de sua finitude, Pascal parte da análise da infinitude do universo. Sua intenção é apontar para a impossibilidade de se encontrar um centro privilegiado dentro do universo, quando este é infinito. No fragmento 72 (ou Lf. 199) de seus pensamentos, Pascal evidencia a Terra como um ponto insignificante na imensidão do cosmos: “o mundo visível é somente uma linha imperceptível na amplidão da natureza, que a nós não é dado a conhecer nem mesmo de maneira vaga”.2

Quando nós nos voltamos para uma análise do universo como um todo, percebemos que há milhares de sóis e astros, que ultrapassam o tamanho do nosso planeta. O próprio cosmos passa a ser algo incomensurável, em termos de extensão espacial. Nesse sentido, há uma espécie de infinito de grandeza, o qual pode ser percebido quando nós nos voltamos para as maiores coisas.

2 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

A existência humana... 41

Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas.3

Por outro lado, por meio do argumento da lêndea,

o filósofo francês consegue mostrar, dentro dessa coisa pequena e frágil, outro abismo existente. Trata-se do infinito de pequenez, relacionado à divisibilidade absoluta em relação a tudo que é menor que o homem:

Eis uma lêndea que, na pequenez de seu corpo, contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias, humores nesse sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas; dividindo-se estas últimas coisas, irão se esgotar as capacidades de concepção do homem [...]. Talvez ele pense ser essa a menor coisa da natureza. Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela um novo abismo. Quero pintar-lhe não somente o universo visível, mas também a imensidade concebível da natureza dentro dessa parcela de átomo.4

Ao lado das coisas visíveis que nos ultrapassam,

há também coisas invisíveis que não podemos conceber pelo pensamento. Tal como a lêndea, o homem também se encontra no universo conhecido e no interior dos abismos que para ele são desconhecidos. O homem pode acreditar que a lêndea é a menor coisa na natureza, no entanto, ela é divisível em muitas partes. Desse modo, nos assemelhamos ao exemplo da lêndea.

Ele é muito pequeno olhando para a magnitude do universo, mas basta que nos apropriemos de uma lente que aumente a precisão e veremos que dentro de uma parcela de átomo podem existir outros planetas e outros seres infindáveis e incessantes, todos com a possibilidade

3 Id. 4 Id.

42 Conhecimento e condição humana

de um processo divisível. Serão tantas maravilhas descobertas que ele há de se espantar com sua pequenez.

Constatação semelhante se deu no estudo sobre o “Espírito geométrico”, nele, Pascal mostra que mesmo se analisarmos um espaço, que consideramos grande, este espaço pode ser divisível em várias partes, indefinidamente, desse modo, todas as “grandezas são divisíveis até o infinito, e de tal modo que todas elas ocupam o meio entre o indefinido e o nada”5.

Ou seja, não existe meio, não existe centro, tudo está indefinido. Do mesmo modo que se observa dentro do universo a possibilidade de dividi-lo em muitas partes, o homem que chegar a esta constatação também terá se conhecido, pois perceberá sua posição, ver-se-á como um ser sem referenciais, assim como a Terra. Posição evidente pelo trecho abaixo retirado do Espírito geométrico e a arte de persuadir:

Aqueles que alcançarem claramente tais verdades, poderão admirar a grandeza e o poder da natureza, nesta dupla infinitude que por todos os lados nos cerca, e aprender, mediante esta capacidade maravilhosa, a conhecerem-se a si próprios, vendo-os colocados entre uma infinitude e um nada de extensão, entre uma infinitude e um nada de número, entre uma infinitude e um nada de movimento, entre uma infinitude e um nada de tempo.6

O homem, portanto, está numa posição estranha,

entre o infinito de grandeza e o infinito de pequenez.

É exatamente a partir da descoberta do homem como ser colocado em meio a extremos desproporcionais entre si e em desproporção em relação ao meio em que

5 PASCAL, Blaise. Opúsculos. Trad. Alberto Ferreira. Lisboa:

Guimarães Editores, 1960. p. 100. 6 Ibid., p. 101.

A existência humana... 43

se encontra que Pascal faz sua descrição antropológica da desproporção.7

Ou seja, do mesmo modo que Pascal descreve a

terra e a sua incerteza no universo, assim fará com relação ao ser humano, colocando-o entre uma infinitude e o nada.

Para Pascal o homem também se encontra dentro deste universo infinito. De um universo “cujo centro se acha em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma”8. Lançados nesse duplo abismo de infinitude, o de grandeza e o de pequenez e não ocupando nenhum lugar definido, não possuímos situação ontológica. Se voltando para si, o homem deve se reconhecer sujeito desajustado que ele é dentro do universo, onde está preso dentro desse pequeno ponto insignificante do universo chamado Terra. Pois então, o “que é um homem dentro do infinito?”9

Assim Pascal escreve: Quando reflito sobre a breve duração de minha vida, absorvida na eternidade anterior e na eternidade posterior, no pequeno espaço que ocupo, e mesmo no que vejo, fundido na imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me de ver-me aqui e não em outra parte [...] o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.10

O homem será “infinitamente incapaz de

compreender os extremos”11, pois ele é um “nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e nada”12. É o meio-termo que

7 PONDÉ, Luiz Felipe. O homem insuficiente: comentários de

antropologia pascaliana. São Paulo: Edusp, 2001. p. 193. 8 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199. 9 Id. 10 PASCAL. Pensamentos, Br. 205 e 206; Lf. 68 e 201. 11 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199. 12 Id.

44 Conhecimento e condição humana

define o homem, visto que a grandeza da alma é saber manter-se no mediano, contudo, essa característica aponta para certa limitação. Limitação dos nossos sentidos, por exemplo, os quais são incapazes de sentir os extremos, “um ruído muito forte nos ensurdece, muita luz nos deslumbra, demasiada distância ou demasiada proximidade impedem-nos de ver”13, não estamos dentro da proporção, já que nadamos “sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para o outro”14. Eis a impossibilidade de um ser finito se estabelecer no infinito.

Sabendo que o homem caminha sobre o meio vasto e incerto, serão abordadas as duas visões que Pascal traz acerca deste homem paradoxal e desajustado em relação ao centro, vamos apontar em que consiste sua miséria e sua grandeza.

2.2 A INSIGNIFICÂNCIA DO HOMEM

Partindo da premissa, onde as coisas extremas

parecem não existir para o homem, assim como a simples comparação entre o homem e o infinito nos abate, pretendo, a partir daqui, mostrar em que consiste este monstro incompreensível e paradoxal que é ele. Desse modo, é apropriado mostrar que tudo no universo pode nos ensinar algo, seja em benefício de nossa grandeza ou de nossa miséria.

Após se perguntar sobre o que é o homem dentro do infinito, cabe-lhe agora perguntar “o que é o homem dentro da natureza?” Como se qualifica o homem dentro dos dois infinitos? Como encontrá-lo dentro daquilo que não tem fim? Para isso, Pascal logo expõe:

Eis o nosso verdadeiro estado de incertezas, de insegurança, de precariedades, vive-se no reino do meio-termo, sendo jogado de um lado para o outro.

13 Id. 14 Id.

A existência humana... 45

Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ele construir uma torre que se erga ao infinito; mas os alicerces desmoronam e a terra se abre até o abismo. Não procuremos, assim, segurança e firmeza [...] nada pode fixar o finito entre os dois infinitos.15

Uma vez que o homem possa entender isso, saber

que sua natureza é esta, uma natureza insignificante e sem referência, ele deve se abster de procurar a segurança e a firmeza, tanto em termos físicos, quanto em termos gnosiológicos. Pode ser que seja mais esperto que outro e veja isso mais amplamente, que sua inteligência o possibilite a ver isso com mais clareza, no entanto, diante desses infinitos, todos os homens (finitos) são iguais.

Outro ponto considerado universal em sentido antropológico é esse: além da fraqueza do próprio homem e de seu pensamento, é possível constatar que jamais “poderia uma parte conhecer o todo”, mesmo que essa parte tenha a “ambição de conhecer as partes”. Ou seja, por este fragmento, Pascal tenta mostrar que o mundo (o todo) tem muitas partes diversas, e por mais que o homem (a parte) buscasse estudá-la, ele dificilmente conseguiria compreender a totalidade em que está inscrito. Mesmo que o mundo tenha tantas partes, essas partes contêm uma relação e encadeamento umas com as outras, que seria impossível compreender uma sem alcançar as outras.16

Assim, não dá para conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem entender as partes. O homem no seu meio está em relação com tudo, isso fica evidente por suas necessidades.

Tem necessidade de espaço que o contenha, de tempo para durar, de movimentos para viver, de elementos que o constituam, de alimentos e calor que o nutram, de ar

15 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199. 16 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

46 Conhecimento e condição humana

para respirar; enxergar a luz, perceber os corpos, em resumo, tudo se alia a ele próprio17.

Desse modo, para compreender a parte (o

homem), é indispensável que também se conheça a origem daquilo que ele necessita. Deve-se investigar a origem do tempo, dos movimentos, dos alimentos, do calor e da luz, assim como do ar. O conhecimento de alguma coisa está ligado em outra, de modo que todas as coisas são “causadoras e causadas, auxiliadoras e auxiliadas, mediatas e imediatas”18, sendo assim, todas elas se ligam por um “vínculo natural e insensível”, segundo Pascal.

Pascal, como um agostiniano, traz a proposta de Agostinho de Hipona para o “voltar-se para dentro de si”. Se para Agostinho, Deus habita no interior do homem e lá revela as verdades ao homem19, a proposta de Pascal é muito semelhante, pois ele aponta a necessidade de conhecer a si mesmo.

Arriscaríamos dizer que as propostas são iguais, se igualmente fosse a finalidade. Todavia, a finalidade não está em reconhecer o “mestre interior” (Deus) como queria Agostinho. Para Pascal, a finalidade do “conhecer-se” tem outro objetivo. O homem, ao voltar-se para si, não encontrará Deus, mas deparar-se-á com a sua miséria. Terá contato com sua finitude. Isso consiste em que, somente aqueles que chegarem a compreender a grandeza da natureza, “nesta infinitude que por todos os lados nos cerca” e se perceber como um sujeito fraco terá aprendido a conhecer a si próprio. E caso “isso não servir

17 Id. 18 Id. 19 Cf. SANTO AGOSTINHO. De Magistro. Tradução, introdução e

comentários de Bento Silva Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. Cap. XI.

A existência humana... 47

para levar à verdade, serve ao menos para regular a vida”.20

É muito mal para o homem “possuir tão numerosos defeitos; mas é um mal ainda maior tê-los todos e não desejar reconhecê-los”21. A proposta para voltar-se a si mesmo não é uma alternativa para aliviar sua miserabilidade, pelo contrário, é um caminho para mostrar o “monstro incompreensível” que é o homem. Como apontaremos na próxima seção, essa tentativa consiste em fazer ver ao homem que dentro de si não existe senão um paradoxo, paradoxo que o faz grande, mas que em sua grandeza também mostra sua miséria. Faz-se necessário avaliar o peso dessa posição paradoxal, “não é necessário que o homem acredite que é igual aos animais, nem aos anjos, nem que ignore ambos, mas que os conheça”.22 Nossa grandeza interior reside em reconhecer nossa própria miséria. “Ele é, pois, miserável porque o é, mas é bem grande porque o sabe”.

A proposta de Pascal é para que o homem

[...] voltando a si, considere aquilo que é diante do que existe, que se veja como um ser desencaminhado neste ponto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde está preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor preciso a Terra, os reinos, as cidades e ele mesmo.23

Por este fragmento fica evidente a observação de

Pascal, mostrando que o homem ao se voltar para si, é capaz de perceber sua miséria, a qual atesta que ele é um ser finito e desencaminhado. Somente voltando para si, será o homem capaz de avaliar quem ele é, e notar o

20 Cf. SANTO AGOSTINHO. De Magistro. Tradução, introdução e

comentários de Bento Silva Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. Cap. XI. 21 PASCAL. Pensamentos, Br. 100; Lf. 978. 22 PASCAL. Pensamentos, Br. 418; Lf. 121. 23 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

48 Conhecimento e condição humana

sujeito incompreensível que o constitui. Fica claro que “quanto mais temos luz, mais grandeza e baixeza encontramos no homem”.24

Na próxima seção, trataremos daquilo que faz a grandeza do ser humano, ou seja, já sabemos que somos miseráveis e insignificantes diante do universo, cabe-nos agora, conhecer o que constitui nossa grandeza.

2.3 A CONSCIÊNCIA DA FINITUDE

Chegados a esta terceira seção, é necessário

saber em que consiste a sua grandeza. Veremos, a partir daqui, que reconhecer a grandeza do homem não quer dizer que ele deixe de ser miserável, pelo contrário, a conclusão a que chega Pascal é de que a grandeza do homem está na sua capacidade de reconhecer sua miséria, capacidade possibilitada por via do pensamento, assim como veremos adiante.

Pascal afirma ser possível imaginar a criatura humana sem pés ou sem mãos, mas não se pode concebê-la sem o pensamento, visto que o pensamento a diferencia dos outros animais. Conclui Pascal: “o pensamento faz a grandeza do homem”25, ou seja, sua dignidade consiste na sua capacidade racional, capacidade que o possibilita a reconhecer sua condição miserável. Por este fragmento, Pascal mostra que este atributo somente é pertencente ao homem, não a uma árvore ou a uma pedra.

“O homem não passa de um caniço pensante, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante”26. A grandeza do homem habita em sua capacidade de pensar, pois “uma gota de água basta para matá-lo”, no entanto, mesmo que isso ocorresse ainda seria mais “nobre do que quem o mata”, porque sabe que está morrendo e também

24 PASCAL. Pensamentos, Br. 443; Lf. 613. 25 PASCAL. Pensamentos, Br. 346; Lf. 756. 26 PASCAL. Pensamentos, Br. 347; Lf. 200.

A existência humana... 49

sabe que o universo possui uma vantagem muito grande sobre ele. “O homem é visivelmente feito para pensar. É toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever está em pensar direito”.27

No fragmento Br. 348, Pascal nos mostra que o homem não deve buscar sua dignidade através dos espaços temporais, nem possuindo terras ou bens materiais, até mesmo porque ele é um ponto insignificante dentro de um universo. Mas deve buscar sua dignidade usando daquela capacidade que o distingue dos demais animais: o pensamento.

Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais possuindo terras; pelo espaço, o universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco.28

É ordenando o seu pensamento que ele pode

abarcar a realidade que o abarca, em termos físicos. Eis que “a dignidade do homem reside no pensamento”, o mesmo continua:

[...] mas o que é o pensamento? Como é tolo? O pensamento é, pois, uma coisa admirável e incomparável por natureza. Seria preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezível, mas os tem tais que nada é mais ridículo. Porque é grande por sua natureza e é baixo por seus defeitos.29

A grandeza do homem é o seu pensamento.

Capacidade pela qual o distingue dos demais animais, grandeza e capacidade que o qualifica como um ser desajustado. Poderíamos pensar ser um jogo de palavras ou uma conclusão contraditória afirmar que aquilo que o engrandece também o empobrece. Todavia, sendo o

27 PASCAL. Pensamentos, Lf. 620; Br. 146. 28 PASCAL. Pensamentos, Br. 348; Lf. 113. 29 PASCAL. Pensamentos, Lf. 756; Br. 365.

50 Conhecimento e condição humana

homem grande, onde reside sua miséria? Para isso, se faz necessário apontar falhas profundas para mostrar que ele (o homem) é um ser desprezível.

É certo afirmar que a grandeza do homem se faz na sua capacidade de pensar, no entanto, há outro aspecto nessa capacidade de raciocinar que merece a nossa atenção: a insuficiência do próprio pensamento. A insuficiência é interna ao próprio pensamento. Desse modo, o pensamento não salva o homem de sua condição desajustada. Um pensamento que é insuficiente faz do homem um ser frágil no corpo e no intelecto.30 Condição clara quando Pascal expõe: “somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade e somos incapazes de certeza e de felicidade”31.

A partir daqui, é necessário fazer uma explicação do que Pascal entende por pensamento e qual a sua utilidade para o homem. Até o momento, trabalhamos na tentativa de mostrar que o homem é miserável e baixo, agora, no entanto, apresentaremos o pensamento como algo que confere ao homem uma dignidade, no entanto, essa dignidade é insuficiente para conferir uma situação ontológica ao homem dentro do universo infinito. Por meio do pensamento ele apenas reconhece sua miséria em sua natureza, o que o torna grande.

Faz-se necessário fazermos um contraponto com aquele que defendeu o pensamento como comprovação de nossa existência. Pela máxima “penso, logo existo”, Descartes conseguiu mostrar a força e a soberania do pensamento no homem. Mediante essa comparação, poderemos entender melhor o estatuto que Pascal confere ao pensamento.

30 Cf. PONDÉ, op.cit., p. 199. 31 PASCAL. Pensamentos, Lf. 401; Br. 437.

A existência humana... 51

2.4 O PENSAMENTO EM DESCARTES E PASCAL

Recorreremos a Descartes (1596-1649) na

tentativa de apontar a diferença entre o pensamento concebido por Pascal e aquele entendido por Descartes. Para isso, precisamos primeiro passar pela obra “Discurso sobre o método” (1637) e observarmos o caminho feito até chegar à soberania do pensamento.

Após ter exposto a regra da evidência racional, da análise, da síntese e do controle como regras certas e fáceis para o seu método, Descartes parece concluir ser impossível tomar o falso pelo verdadeiro. A partir de tal constatação, não se pode tomar nada por verdadeiro que não seja claro e distinto, de modo que nada resistirá à força corrosiva da dúvida.

A tentativa de Descartes é buscar uma verdade que seja única e impossível de ser refutada, duvida de tudo e acredita que tudo pode ser um sonho: o senso comum, as afirmações, os sentidos, informações da consciência, do raciocínio e do mundo exterior. A dúvida é exercida de modo tão radical que, no final da primeira meditação, ele acaba por duvidar de tudo, dizendo serem obras de um Deus enganador, o qual pode me induzir ao erro. No entanto, resta uma certeza ao homem: para enganar-me, é necessário que exista alguém para ser enganado, ou seja, eu devo existir.

A certeza de Descartes parece chegar ao seu ponto máximo quando ele constata que pode duvidar de muitas coisas, só não pode duvidar que esteja duvidando. Assim ele afirma:

[...] enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais

52 Conhecimento e condição humana

extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar.32

Por este fragmento cartesiano, nota-se a força e o

peso do pensamento no homem, ao constatar seu pensamento, constata também sua existência, enquanto ser pensante. Ou em outros termos: “o pensamento precede a existência”.

Tal como Pascal, Descartes também concebe que o ato de pensar é constitutivo do homem: “o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim”33, fazendo do homem uma coisa pensante. Desse modo, podemos perceber que possuir o pensamento é muito gratificante para o homem, pois é por ele que se conhecem as coisas, os sentidos, a imaginação as emoções são todas faculdades da alma que se “encaixam” no corpo e vivem no corpo. No entanto, essas faculdades são atribuídas à razão que está ligada à alma. É a possibilidade de pensarmos sem o corpo. É como se a salvação da vida dependesse do uso da razão. Nesta concepção, o homem comprova sua existência por um ato intuitivo, o pensamento ganha caráter edificante em Descartes.

Conclusão: para Descartes o pensamento é o meio pelo qual constatamos nossa existência e tudo que existe em nós (sentimentos, emoções, sensações, recordações), faculdades estas, possibilitadas por nossa capacidade de pensar. O homem é uma coisa que pensa. E é pelo pensamento que ele se torna “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”.34 Ou seja, Descartes eleva o homem a uma realidade pensante.

32 DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural,

1973. p. 54. 33 DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.

101 e 102. 34 DESCARTES, op.cit., p. 103.

A existência humana... 53

Também para Pascal, o homem é um caniço

pensante, todavia, veremos que a função do pensamento toma caminhos diferentes e uma nova função na antropologia pascaliana. O pensamento tem outra conotação e significado. Para Pascal, a grandeza do homem não está somente em sua disposição para pensar e nem é por ele que se confere a soberania e o estatuto ontológico ao homem. No autor jansenista, duas são as capacidades, pertencentes ao pensamento:

Primeiro: nele contém a possibilidade de termos consciência de que a grandeza do homem não vai ser revelada somente permanecendo em uma extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo, ou seja, devemos nos reconhecer como seres paradoxais. Segundo: ao falar dos dois extremos necessários para o homem, Pascal aponta que não basta o homem reconhecer-se grande porque pensa. O homem também se faz grande, fazendo uso de sua capacidade para reconhecer sua miséria.

A grandeza do homem é grande na medida em que ele se sabe miserável. Uma árvore não sabe que é miserável. É, portanto, ser miserável conhecer-se miserável; mas é ser grande saber que se é miserável. Todas essas misérias provam-lhe a grandeza. São misérias de grande senhor, misérias de rei destronado.35

Podemos ver que o homem possui sua grandeza,

grandeza que consiste tanto em reconhecer-se como um sujeito que pensa como também reconhecer-se como um ser miserável. Ao fazer a analogia do universo, comparando o homem como “uma esfera infinita cujo centro se acha em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma”36, Pascal mostra que o homem também é um ponto intermediário entre o tudo e o nada.

35 PASCAL. Pensamentos, Br. 397; Lf. 114. 36 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

54 Conhecimento e condição humana

Ou seja, um ser desajustado, sem uma posição privilegiada.

Pelo mesmo fragmento, Pascal conclui que a grandeza do homem está na sua capacidade de reconhecer sua miséria, reconhecer-se como um ser cheio de erros, que não consegue revelar sua verdade. E todas essas misérias provam-lhe a grandeza, porque só ele consegue chegar a esta conclusão, uma árvore não sabe que é miserável, conforme foi apontado no fragmento acima.

Assim sendo, para Pascal, o pensamento não é o referencial absoluto do homem como pensa Descartes, não é o pensamento que constitui a única grandeza do homem por um único motivo: ele é um ser limitado. Limitado devido às suas proporções insignificantes dentro de um universo infinito e limitado devido às forças enganadoras da imaginação e do hábito, que veremos nos tópicos seguintes.

Após constatarmos a miséria física do homem, encontremo-nos agora com a miséria psicológica. O vazio constatado no homem é preenchido pelas forças enganadoras, são três: a Imaginação, o Hábito e o Divertimento. Ambas nos impulsionam para a criação de um amor-próprio, levando a mútuo engano entre os homens.

2.5 O PODER DA IMAGINAÇÃO

Observamos, no tópico anterior, que a proposta de

Pascal é que o homem olhe para si, olhe em seu interior e note do que ele é composto, note sua existência paradoxal, veja o “monstro incompreensível” que é, olhe e perceba o “ser desencaminhado” que o constitui.

Mas sabe-se também que, desde a filosofia antiga, o homem busca a felicidade em todos os seus fins. Tudo que o homem faz tem um objetivo: ser feliz. Esse é o motivo que “leva uns a ir para guerra e outros a não ir é

A existência humana... 55

esse mesmo desejo que está em todos, [...] é esse o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão enforcar-se”.37 Por meio deste fragmento, analisaremos dois pontos fundamentais dentro da antropologia pascaliana, em especial na busca do homem pela felicidade e o amor-próprio criado por ele, ambos são motivados por dois fatores: a imaginação e o vício vinculado com a vontade egoísta. Vontade de ser feliz, vontade de esconder suas misérias dos outros e a vontade de ser bem aceito por outros homens.

Todavia, o “voltar-se para si” de Pascal não é agradável nem motivo de orgulho. Na atitude de se olhar, o homem “há de se apavorar-se de si mesmo”. De tal modo, que Pascal não consegue mostrar a beleza do homem, porque ele não conhece a verdade que o faria belo.

Depois de ter mostrado a baixeza e a grandeza do homem. Que o homem agora se estime no seu justo valor. Ame-se, pois há nele uma natureza capaz de bem; mas não ame por isso as baixezas que nele estão. Despreze-se, porque essa capacidade é vazia; mas não despreze por isso essa capacidade natural. Odeie-se, ame-se: tem em si a capacidade de conhecer a verdade e de ser feliz; mas não tem verdade, nem constante, nem satisfatória.38

Motivada pela ausência de verdade e falta de

constância, o homem para fugir dessa condição, cria uma imagem de si, uma imagem que obviamente é boa aos olhos dos outros. Pascal vai intitular como “amor-próprio”, o responsável por essa falsa imagem, sendo que “a natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amar somente a si e não considerar senão a si”.39 O homem troca o ser pelo parecer, abandona (ou pelo menos, busca

37 PASCAL. Pensamentos, Br. 425; Lf. 148. 38 PASCAL. Pensamentos, Lf. 199; Br. 423. 39 PASCAL. Pensamentos, Br. 100; Lf. 978.

56 Conhecimento e condição humana

esquecer) a sua verdadeira imagem, aquela que é cheia de erros e miserável.

Contudo, isso não aconteceria se não fosse a força da imaginação, assim como constata Pascal: “Imaginação – É essa parte enganadora no homem, essa senhora de engano e falsidade”.40 A imaginação exerce uma força e domínio sobre a razão do homem. A imaginação oferece tudo que o homem precisa para se satisfazer, cria a beleza para o homem desejar, a justiça e a felicidade para ele alcançar. E tudo que há no mundo, por meio da imaginação o homem consegue se cobrir de glória. Ao passo que o uso da razão, apresenta ao homem sua miserabilidade. Ou seja, se uma mostra a miséria, a outra apresenta a honra.

Ainda sobre a força da imaginação e sobre a razão Pascal expõe: o homem é um sujeito “cheio de erro, natural e indelével sem a graça. Nada lhe revela a verdade. Tudo o mantém iludido”.41 Tanto a razão como os sentidos se enganam mutuamente segundo Pascal, além de faltar com a honestidade uma para com o outro, ainda se falsificam. Os sentidos enganam a razão por falsas aparências, a razão acredita nessas imagens que, por sua vez, obtém como verdadeiras, mentindo e enganando sem trégua.

“Essa soberba potência inimiga da razão, que se deleita em mantê-la sob controle e domínio a fim de mostrar o quanto pode em todas as coisas”42, mantém nossas relações na maior parte do tempo iludidas, prova disso é a reputação, é a imaginação que alimenta o desejo de ser respeitado e venerado entre as pessoas.

A supremacia da imaginação sobre o pensamento está tão intrínseca ao homem, que qualquer um que deseje agir constantemente pela razão, será tido como um louco. Por isso, todo mundo acredita ser justo que devemos julgar como a maior parte julgaria, ou seja, pela

40 PASCAL. Pensamentos, Br. 82; Lf. 44. 41 PASCAL. Pensamentos, Br. 83; Lf. 45. 42 PASCAL. Pensamentos, Br. 82; Lf. 44.

A existência humana... 57

vontade da maioria. O desejo da maioria também cria em nós costumes que são “bons” aos olhos dos outros.

Mas não podemos nos limitar somente a velhas impressões dadas pela imaginação que são capazes de nos enganar. Os novos costumes não são nada mais do que falsas impressões da infância. Desse modo, não há princípios naturais, tudo que existe é herdado das falsas impressões, ou seja, é fruto da educação ou dos sentidos transmitidos de pai para filho.

A imaginação é uma força que ilude o homem, as paixões pelos prazeres geram no homem falsas impressões. Segundo Pascal, a força da imaginação consiste em aumentar os pequenos objetos até que esses objetos tenham grande relevância na existência humana, é uma ilusão desmedida o que ela provoca em nós. Do mesmo modo que a fantasia nos excita a amar ou odiar alguém, ela permeia sobre nossas relações de modo devastador.

Se ela é uma força enganadora dentro da antropologia pascaliana, que proveito se pode tirar dela? Devemos apenas aceitar? Não. Diria Pascal, mas devemos resistir, não se deixando apenas conduzir por ela, mas sendo auxiliado pela força do pensamento. Se ela estabelece sua força sobre a razão, é justamente porque o homem não tem um ponto fixo para poder julgar. Mas perceberemos como o pensamento pode conquistar esse referencial.

Na próxima seção, vamos tratar da segunda força enganadora: o hábito. Pois segundo Pascal, o hábito também é capaz de nos fornecer a crença em certos princípios, assim como a imaginação. A tese aqui em questão é: nada há em nós de princípios naturais, mas tudo pode ser fruto do hábito. Aquilo que acreditamos serem princípios naturais são apenas comportamentos condicionados pelo hábito.

58 Conhecimento e condição humana

2.6 O HÁBITO E A NATUREZA HUMANA

A segunda força enganadora que nos é

apresentada é o hábito. Nesta seção, nosso objetivo consiste em mostrar que o hábito e o costume introduzem no homem a crença de que tudo é natural. Com isso, Pascal aponta a ausência de natureza no homem, pois tudo aquilo que acreditamos ser natural é fruto do hábito.

Para isso, é necessário mostrar que o engano e a ilusão proporcionada pela imaginação se intensificam pela força da repetição, ou seja, pelos costumes e hábitos. Pelo hábito provém tudo que acreditamos ser verdadeiro, de tal modo que aquilo que nos habituamos passa a ser considerado como um princípio natural de nossos comportamentos.

Para provar que nos habituamos a tudo e passamos a acreditar ser verdadeiro, ele faz uma alusão ao rei acompanhado de seus guardas:

O hábito de ver o rei acompanhado de guardas, de tambores, de oficiais e de todas as coisas que levam o mundo ao respeito e ao terror faz com que seu rosto, nas ocasiões em que se encontra sozinho e sem acompanhantes, inspire nos súditos respeito e terror, pois o pensamento não separa sua pessoa do séquito que se vê, comumente, junto a ele. E o mundo, que não sabe que esse efeito decorre de tal ou qual costume, julga que isso advenha de uma força natural; daí estas palavras: “O caráter de Divindade está impresso em seu rosto etc.”43

Nesse caso, o hábito de ver o rei acompanhado de

toda uma comitiva e um aparato militar nos incute o respeito e o terror, mesmo no momento em que o rei está só. O hábito é uma força psicológica que atua em nossa percepção por meio da força da repetição, nos levando à crença de que o efeito produzido algumas vezes, produzir-

43 PASCAL. Pensamentos, Br. 308; Lf. 25.

A existência humana... 59

se-á sempre. Em outras palavras, a repetição gera um efeito que é dar-nos a consciência de que lá onde vemos algo repetir-se se trata de uma necessidade natural, assim como ao vermos o sol nascer todos os dias, concluímos que amanhã, provavelmente, ele nascerá.

Pela força da repetição os pais habituam as crianças em determinados ofícios; “filho de ferreiro, ferreiro será”, não é algo tão natural assim. O desejo por uma determinada profissão ocorre porque os filhos foram induzidos na prevenção de que isso é o melhor para eles. “A coisa mais importante na vida é a escolha de uma profissão [...]. O costume faz os pedreiros, soldados, empalhadores”.44

Outra característica do hábito é que ele nos leva a julgar as coisas sempre partindo da mesma perspectiva, ou seja, a repetição dos juízos que acreditamos ser verdadeiros, nos leva a julgar algo sempre partindo do mesmo ponto de vista em qualquer outra situação. Daí concluímos que a forma como julgamos também é uma necessidade natural nossa. Desse modo, é o hábito que confirma e cristaliza nossas crenças.

Nesse caso, o engano da imaginação se intensifica pelo hábito. Pelo hábito provém tudo que acreditamos ser verdadeiro e natural, ou melhor, por ele tudo se torna necessário. De tal modo que aquilo que nos habituamos passa ser considerado como um princípio natural. Dirá Pascal: “o que são nossos princípios naturais senão princípios de hábitos?”45

O homem não está em sua verdadeira natureza, o hábito age como um dissimulador, pois dá por verdadeiro os princípios da imaginação, estes são reforçados pela repetição de determinados comportamentos ilusórios. O melhor caminho para evitar a constatação de sua natureza miserável e sem sentido é criando uma imagem que não seja verdadeira, ou seja, criando uma imagem ilusória da

44 PASCAL. Pensamentos, Br. 97; Lf. 634. 45 PASCAL. Pensamentos, Br. 92; Lf. 125.

60 Conhecimento e condição humana

natureza do homem. Para isso, nossos desejos inventam um estado feliz. A fabricação desse estado é possibilitada pela imaginação.

Este estado feliz consiste em imaginar em seu estado atual coisas inexistentes, valores que acredita possuir, virtudes que o levam a agir bem, são componentes que ele acredita serem princípios naturais de sua existência, contudo, são apenas frutos da imaginação e do hábito. “O homem é, pois, fabricado com tanta felicidade que não tem nenhum princípio justo do que é verdadeiro e muito excelentes do que é falso”.46

Ora, a criação de uma imagem que não corresponde ao estado miserável e insignificante do homem, aponta para a ausência de um sentido verdadeiro para a sua existência. Desse modo, a autoimagem que cria de si faz dele um homem que

[...] deseja ser grande e se julga pequeno; quer ser feliz e se acredita miserável; pretende ser perfeito e acha-se cheio de imperfeições; quer ser objeto de amor e da estima dos homens e nota que seus defeitos não merecem deles repulsa e desprezo. Esse embaraço produz nele a mais injusta e criminosa paixão que se possa imaginar; porque cria um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e convence de seus defeitos. Seu desejo seria destruir essa verdade; não podendo destruí-la em si mesmo, a elimina quanto pode em seu conhecimento e no dos outros; isto é, coloca todo o seu zelo em encobrir os próprios defeitos a si mesmo e aos demais, e não suporta que lhe façam vê-los, nem que os vejam.47

Aqui se constata o maior erro do homem, porque

está se auto enganando criando uma imagem que não é condizente com o seu ser verdadeiro. Daí Pascal afirmar que o homem é pura ilusão, pois não suporta a si mesmo,

46 PASCAL. Pensamentos, Br. 82; Lf. 44. 47 PASCAL. Pensamentos, Br. 100; Lf. 978.

A existência humana... 61

e não consegue lidar com aquilo que realmente é, e por isso cria uma natureza ilusória. É um homem astucioso para não ser rejeitado pelos demais, busca os melhores atributos e valores para atribuir à sua imagem, enganando os outros e a si próprio. Fazendo dele um ser artificioso. Nessa perspectiva, o homem se engana, engana aos outros e é enganado pelos outros.

Se o homem fosse inteiramente feliz, ele não precisaria viver essa condição de falseamento de si mesmo, não precisaria inventar uma imagem de si para agradar aqueles que o cercam, visto que sua própria condição daria integridade e coesão a ele. Ele seria feliz por si só. “Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos”.48

Vivemos, portanto, numa perpétua ilusão. Nossos princípios considerados naturais são, no final das contas, fabricados pelo hábito e pela imaginação. Mas isso nos leva a uma constatação espantosa: seria a natureza humana totalmente fabricada pelas forças enganadoras? Pascal responde de maneira afirmativa a essa questão por meio do fragmento Br. 94: “A natureza do homem é toda natureza, omne animal. Não há nada no mundo que não se torne natural”.49

Podemos tornar natural qualquer comportamento por meio do hábito. Assim, podemos dizer que o homem efetivamente “cria” uma determinada natureza para si, através do hábito e da imaginação. No entanto, Pascal não crê na inexistência de uma natureza. Para o pensador jansenista efetivamente é possível apontar para a natureza original do homem, somente que essa natureza deve ser considerada irremediavelmente perdida. No lugar dessa natureza há uma espécie de traço vazio que o homem tenta preencher com determinados princípios ilusórios.

48 PASCAL. Pensamentos, Lf. 70; Br. 165. 49 PASCAL. Pensamentos, Br. 94; Lf. 630.

62 Conhecimento e condição humana

Para compreender melhor em que consiste essa

natureza perdida, assim como o que ocorre quando o homem se depara com a sua miserabilidade interior, é necessário passar para uma análise bem aprofundada da principal força enganadora: “O Divertimento”. O Divertimento é inventado pelo homem na tentativa de suprir esse vazio existente em sua vida, tal como um instrumento que o desvie desta constatação, por isso, ele se constituirá como a maior das misérias.

= III =

A ALIENAÇÃO DO DIVERTIMENTO O capítulo anterior nos apresentou a visão

pascaliana acerca do homem, em especial, de um homem cuja natureza é baixa e miserável. Na tentativa de fugir dessa realidade, ele constrói uma imagem que seja agradável aos demais, imagem que o faz um enganador que engana e se engana, fazendo-se escravo de si mesmo.

A necessidade de trabalhar com mais atenção o tema do Divertimento me levou a dedica-lhe um capítulo exclusivo neste trabalho. Dedicarei um capítulo a ele, porque assim como o homem ele também surge como um ser paradoxal. Ou seja, ao mesmo tempo em que ele aparece como meio alternativo para desviar o homem dessa constatação, ele também faz do homem um ser covarde, sempre dependente de algo.

O presente capítulo tenta mostrar que o Divertimento surge como instrumento que desvia o homem de uma reflexão acerca de sua condição. O Divertimento, portanto, será o único consolo de nossas misérias. Não obstante, também passarei pela construção da autoimagem que o homem faz de si. Ela, por sua vez, também tem como intuito desviar o homem dessa constatação, pois gera no homem uma busca de prestígio e sentimento de glória, fazendo com que ele não olhe para sua verdadeira natureza.

Para chegar à finalidade do Divertimento, o homem faz algumas escolhas que o faz esquecer-se de sua verdadeira condição. Com efeito, ele o leva para longe de sua inconstância e miséria. Para mostrar a força das distrações e passatempos, Pascal afirma que “nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem

64 Conhecimento e condição humana

paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividades”1, sendo assim, é notório perceber que o homem não consegue ficar sem distrações, pois sem este mecanismo que o distraia, ele é conduzido para o aborrecimento. Fica tedioso sem suas paixões e sem seus negócios.

A Prova de que o homem não consegue ficar no presente e pensar sobre seu estado de natureza porque lhe causa angústia, é a reflexão sobre o tempo. Segundo Pascal, o tempo nos afasta de nossa condição, nunca vivemos o presente; pelo contrário, estamos no presente relembrando do tempo passado ou planejando o tempo futuro. Temos a audácia e o trabalho de antecipar o futuro, pois ele chega com lentidão, do mesmo modo que recordamos do passado que passou muito rápido, somos tão presunçosos em querer acreditar estar vivendo o presente, quando na verdade é a incerteza do futuro que toma todo o nosso tempo.

A causa para o homem estar sempre ocupado, pensando seja no passado ou no futuro, tem uma resposta:

É que o presente comumente nos fere. Ocultamo-lo à vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, lamentamos vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro e pensamos em dispor das coisas que não estão a nosso alcance para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar.2

Sendo assim, fica claro que o presente não será

vivido, o homem ocupará seu tempo não pensando no presente para não mergulhar no tédio. Buscaremos o tempo presente sempre como meio, nunca como fim. Assim, não vivemos o tempo presente, mas esperamos viver nele e que nele sejamos felizes, mas é claro que

1 PASCAL. Pensamentos, Br. 131; Lf. 622. 2 PASCAL. Pensamentos, Br. 172; Lf. 47.

A alienação do divertimento 65

nunca seremos felizes porque este tempo nunca viveremos de modo efetivo.

A ociosidade para o homem será sempre evitada, pois estar no ócio traz consequências, ou seja, devido a sua condição e sem atividades que o distraiam ele se encontra com “seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio”.3

Sabendo que o repouso sem agitação causar-lhe-á o tédio, fazendo dele um homem infeliz, seus desejos inventam um outro estado para si. Um estado imaginário que é feliz, um estado em que encontramos todos os prazeres que nosso estado atual não nos oferece. Desse modo, este estado oferece tudo de bom para o homem, oferece agitação e diversão, com a finalidade de que ele não precise pensar em si, para que não entre em repouso.

Como vimos anteriormente, assim como o hábito que reforça o amor-próprio, a imaginação proporcionará a invenção de um modo de distração para o homem. O Divertimento será o meio que manterá o homem longe de sua condição miserável.

3.1 O DIVERTIMENTO COMO FUGA DE SI

Já tratamos anteriormente que o homem é feito

para pensar e é no pensamento que reside o seu mérito. Com base nisso, Pascal nos pergunta: “Ora, em que pensa o mundo?” O próprio autor vai nos dizer que nunca pensamos em uma resposta para esta pergunta, pelo contrário, ocupamos nosso tempo em “dançar, em tocar alaúde, em cantar, em compor versos, em jogar argolinhas etc. [...] em lutar, em tornar-se rei, sem pensar o que é ser rei, e o que é ser homem”.4 Em meio a tantas ocupações e agitações, Pascal constata que o Divertimento não está na finalidade, mas está no encaminhamento para

3 PASCAL. Pensamentos, Br. 131; Lf. 622. 4 PASCAL. Pensamentos, Br. 146; Lf. 620.

66 Conhecimento e condição humana

determinado fim. Assim expressado em seus pensamentos:

Nada nos agrada tanto como assistir a um combate, embora não à vitória. Apreciamos as lutas dos animais, não o vencedor encarniçado sobre o vencido. A que procuramos assistir, a não ser o fim da vitória? E, uma vez que esta acontece, entediamo-nos. Assim também no jogo, e na investigação da verdade. Gostamos de ver, nas polêmicas, o combate das opiniões; mas não gostamos, de modo algum, de contemplar a verdade encontrada.5

Este trecho aponta para o fato de que nunca

estamos satisfeitos com o fim almejado, porque o fim coloca um ponto final no Divertimento. Mas buscamos aquilo que dá mais prazer: a busca, a investigação, a caçada. Fica evidente, por este fragmento, que não é somente a captura de algo que causa prazer ao homem, mas é a emoção, a paixão da busca. Assim, não é tão somente a fome pela caça que alimenta sua caçada, mas é a emoção que a captura lhe proporciona, não é a vitória ou o lucro que satisfaz o homem nas suas investidas em direção a algo. Deste modo, no presente capítulo, tentarei mostrar, que Pascal encontra no Divertimento um “caminho” que leva o homem para longe de sua miséria, e é esse encaminhamento ou busca que constitui o Divertimento.

É importante mostrar, neste capítulo, que o Divertimento não se configura somente em uma ocupação exclusiva, não está somente no cantar, no tocar ou fazer versos. O Divertimento tratado por Pascal se configura de modo diverso: pode ser um jogo, uma aposta, uma ocupação particular, um cargo político, a vã pintura ou o próprio estudo, assim como as anotações científicas que Pascal rabiscava, o qual obrigava o filósofo a não pensar

5 PASCAL. Pensamentos, Br. 135; Lf. 773.

A alienação do divertimento 67

na irmã nem nas dores de cabeça e ventre. Para ser bem preciso, Pascal conclui que todas as ocupações devem ser incluídas no Divertimento, antes de examiná-las precisamente.

É válido mostrar que o termo Divertimento empregado por Pascal assume a conotação de desvio, de afastamento de algo. O termo fica mais claro quando empregado no francês do século XVII, onde “divertissement tinha um forte caráter militar: desviar de inimigos, manobras estratégicas”6. Ou melhor, é um desviar daquilo que é indesejável no homem.

O único bem dos homens consiste, pois, em divertir, o pensamento de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça, algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama divertimento.7

A primeira constatação de Pascal acerca do

Divertimento encontra-se no fragmento onde ele nos mostra que os homens são “incapazes de permanecer quietos em um quarto”.8 Observação não muito difícil de se notar, principalmente nos dias de hoje em que percebemos os homens numa constante busca de felicidade. Se para Pascal os homens encontravam a felicidade desde a guerra até a corte, hoje, por sua vez, os homens também encontram a felicidade no vício que mata o corpo, como por exemplo, no cigarro e no álcool. Envolvem-se em paixões e lutas ousadas visando a felicidade. Os seres humanos procuram a agitação, buscam as conversas, os passatempos, os jogos, pois não conseguem ficar em repouso em suas casas.

6 PONDÉ, op.cit., p. 7. 7 PASCAL. Pensamentos, Lf. 136; Br. 139. 8 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136.

68 Conhecimento e condição humana

Pascal deseja ir além de sua observação, pretende

saber o motivo pelo qual os homens não conseguem ficar em um quarto sem agitação. Assim ele diz:

[...] ao refletir mais de perto sobre o assunto, e, depois de ter encontrado a causa de todas as nossas infelicidades, pretendi descobrir-lhes o motivo; julguei que existe uma muito efetiva, que consiste na infelicidade natural de nossa condição fraca e mortal, e tão miserável que nada nos pode oferecer consolo quando sobre ela refletimos de perto.9

Pascal descobre que o motivo pelo qual o homem

busca a agitação e a conversação é devido a sua condição natural, sua natureza que é fraca e miserável: por sermos de uma natureza miserável nada pode nos proporcionar consolo e tranquilidade.

Assim, o Divertimento está presente em todos os homens, desde aqueles de nível mais baixo até aqueles que ocupam os cargos mais elevados. Por exemplo, imagine um rei, um homem que a todo o momento está cercado por pessoas que só pensam em diverti-lo. Pense agora neste rei sem o Divertimento. Logo sua felicidade em reinar iria se esgotar, sem pessoas que o distraiam toda a sua felicidade não iria se sustentar, pois forçosamente ele iria pensar em si e se tornaria infeliz. Consequentemente, logo viriam à mente as ameaças, as possíveis revoltas que cercam seu reino e as doenças. Resultado: tudo isso lhe traria a infelicidade; por mais rei que fosse, seria um rei infeliz, mais infeliz do que seus súditos que vivem nos prazeres do jogo e do divertimento.

Na visão pascaliana, o homem não busca os melhores cargos que são tão disputados simplesmente por causa do dinheiro que dele provém, não é neste fato que reside a verdadeira felicidade. Isso se justifica porque não é o silêncio e a tranquilidade que ele busca nesses cargos,

9 Id.

A alienação do divertimento 69

mas é o barulho que nos afaste de nossa real condição e nos diverte. Desse modo, o homem não é amante do silêncio e da calma.

Existe uma distinção muito interessante que Pascal faz acerca da natureza do homem, mostrando uma diferença que implica diretamente na busca pelo Divertimento. Essa distinção está entre aconselhar um repouso e fazê-lo entender sua natureza. Assim afirma Pascal:

Dizer a um homem que viva em repouso é o mesmo que lhe dizer viva feliz; é o mesmo que lhe aconselhar uma condição totalmente feliz e que possa ser examinada à vontade, sem que se encontre nela motivo de aflição; é aconselhar-lhe [...]. Não é, portanto, compreender a natureza.10 (Grifo nosso)

Pois bem, este é um conselho de que o homem viva

feliz no repouso sem que encontre motivo de aflição, que ele busque, portanto, o repouso para ser feliz. No entanto, sabemos que na visão pascaliana essa é uma impossibilidade antropológica. Embora possamos aconselhar alguém a ser feliz, ao assim fazermos não estaremos compreendendo a necessidade antropológica e psicológica que consiste em se distrair, com o propósito de escapar a esse vazio insuportável. Aconselhar alguém a viver em repouso é considerar que seríamos capazes de modificar nossa natureza baixa e miserável. Ora, sabemos que esse projeto está fadado ao fracasso.

Desse modo, aqueles que perceberem sua condição baixa e miserável, naturalmente vão evitar o repouso e tudo vão operar para estar na agitação. Esse não é um comportamento desarrazoado, pois o próprio filósofo, trancado em seu gabinete, se entretém com a busca da verdade. Desse modo, Pascal demonstra que o erro dos homens não consiste em buscar determinadas

10 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136.

70 Conhecimento e condição humana

distrações, esse é um comportamento geral, mas nisto consiste o erro:

[...] o mal está em que eles o buscam como se a posse das coisas que buscam devesse fazê-los verdadeiramente felizes, e é aí que se tem razão de acusar a sua busca de vaidade, de maneira que, em tudo isso, tanto aqueles que recriminam como aqueles que são recriminados não ouvem a verdadeira natureza do homem.11

Por este fragmento, percebemos que, se a tarefa

do homem fosse pensar corretamente, ele reconheceria que no fundo o que ele busca, por meio de suas ocupações, é não pensar em si, mas essa autoconsciência o homem quer evitar. Isso justifica o porquê das coisas vãs lhe fascinarem tanto. Ele vive a fuga de si mesmo, porque não conhece aquilo que o motiva, pensa estar sendo impulsionado pelo objeto que excita a sua paixão, quando na verdade é a emoção e a distração de um passatempo que o faz feliz.

Assim, o desconhecimento do homem acerca de si mesmo consiste na existência de um “instinto oculto” que desvia na direção dos divertimentos, esse “instinto oculto” é originado do ressentimento de suas misérias, ou seja, de sua natureza atual. Assim ele segue:

Acreditam buscar sinceramente o repouso, e, na verdade, só procuram a agitação. Possuem um instinto oculto que os induz a procurar divertimentos e ocupações externos, originado no ressentimento de suas misérias incessantes.12

Mediante isso, o tempo de vida do homem vai se

consumindo, acreditando buscar o repouso, quando na verdade busca o repouso apenas por intermédio da

11 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136. 12 Id.

A alienação do divertimento 71

agitação, logo este repouso tornar-se-á insuportável a ele. No próximo capítulo analisaremos a importância da ilusória ideia do repouso para a consumação do Divertimento. O importante não é dizer apenas que esse “instinto oculto” é ilusório, mas porque nasce a crença nesse sentimento.

3.2 O DESEJO PELO REPOUSO NA DIMENSÃO DO DIVERTIMENTO

Seguindo a ordem dos pensamentos de Pascal

sobre o Divertimento, é necessário retomar a discussão que o filósofo faz buscando a finalidade do Divertimento para o homem. Pascal se indaga do motivo pelo qual o homem busca as coisas vãs, sendo capaz de se divertir e se esquecer em meio a coisas tão banais, como por exemplo, um taco e uma bola que empurra.

Segundo Pascal, a finalidade de tudo isso, é para que amanhã ele possa se gabar diante dos amigos e conhecidos, de exaltar-se por ter jogado melhor do que o adversário, para mostrar aos sábios que solucionou um problema que ninguém até então resolvera ou, se hoje ele se expõe aos riscos de um desafio, amanhã poderá se vangloriar em praça pública do feito.

Ao ler o parágrafo acima, podemos concluir que o homem busca tudo isso com a finalidade de se enaltecer frente aos outros. Entretanto, é curioso perceber, que o prazer do Divertimento está além dessa finalidade. Neste capítulo, veremos que o prazer está na ação, no momento da distração e não no fim, como muitos pensam.

Sendo assim, é importante ressaltar que a busca e o prazer do Divertimento estão muito mais no meio do que na finalidade. De nada vale uma vitória sem esforço, assim, é evidente que “o prazer está no processo, e não no objeto, o que reforça a idéia do Divertimento”,13 o qual corresponde à ideia do desvio.

13 PONDÉ, op.cit., p. 240.

72 Conhecimento e condição humana

O próprio Pascal reforça a ideia quando dá este

exemplo: Dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que ele pode ganhar a cada dia, com a condição de não jogar, ele será infeliz. Dir-se-á, talvez, que é porque busca o divertimento do jogo, não o ganho. Fazei-o então jogar por nada; não se entusiasmará e se aborrecerá.14

É evidente que não é a vitória de um sobre o outro

que o homem procura, não é o fim do combate, mas é a energia e agitação que a luta proporciona. Uma diversão sem ânimo e sem paixões causar-lhe-á tédio. Certamente, o homem não aceitaria a vitória sem jogar, porque no jogo ou na caça, ele forma para si um objeto para excitar sua paixão e sua busca. Assim sendo, a conservação do homem neste estado de felicidade nos leva a uma certeza: segundo Pascal, “sem divertimento não há alegria; com o Divertimento não há tristeza”.15

Sabemos que o tempo do Divertimento é momentâneo, e veremos ao final deste trabalho, que todo o sentimento de felicidade vai se dissipar em algum momento, e quando ele se esvair, vai dar lugar à infelicidade; e, novamente, o homem precisará retomar o caminho em busca de outro Divertimento. Mas, por momento, parece ser o Divertimento a melhor alternativa para desviar o homem da infelicidade.

Por mais triste que um homem se ache, se acaso o convencermos a entrar num divertimento, será feliz durante esse período; e o homem mais feliz, se não se estiver divertindo e ocupando com alguma paixão ou com alguma distração que impeça o tédio de se propagar, logo se sentirá triste e infeliz.16

14 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136. 15 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136. 16 Id.

A alienação do divertimento 73

Este ensinamento se aplica a todos, pense

novamente em um rei, o que seria dele somente com seus tormentos de rei, somente com as preocupações que rondam seu reino? Somente a dignidade real não irá bastar, ele (o rei) não consegue contentar-se somente com isso. Bem sabe que se alegrar com coisas divertidas distrai seus pensamentos de suas preocupações e dos males que rondam seu reino.

A alusão que Pascal faz sobre o rei e seus súditos é muito significativa para mostrar como o Divertimento é sempre dependente de algo que se coloque como finalidade para sua busca. Basta observar um rei a sós e sem a companhia de ninguém que o distraia com divertimentos, isso será o suficiente para ele se deparar com o seu nada e constatar ser um homem cheio de misérias.

Eis a razão porque isso é evitado entre os grandes reis, jamais o deixai sozinho, nunca falte alguém junto dos reis, para diverti-los, eis por exemplo a função do “bobo da corte”. Em sua constatação, Pascal afirma:

[...] jamais falta, junto dos reis, grande número de indivíduos zelando para que os divertimentos sucedam aos negócios [...] são cercados de pessoas que cuidam maravilhosamente de impedir que o rei fique só e em situação de pensar em si, pois sabem que ele será miserável, apesar de rei, se tal acontecer.17

Os pensamentos de Pascal, também nos permitem

avaliar a durabilidade e a profundidade da felicidade. Desde muito cedo, somos instruídos a construir uma existência que contemple o cuidado com a honra, os bens e os amigos. Contudo, a felicidade se limita somente a isso, na preservação da saúde, da honra e da fortuna. Mas falte uma dessas coisas e veremos que a felicidade do homem também faltará, mostrando ser a felicidade

17 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136.

74 Conhecimento e condição humana

condicionada por essas coisas trabalhosas que custam ao homem. Ao olhar por este ângulo, notamos que nossa felicidade pode ser superficial, podendo se extinguir juntamente com o Divertimento.

Qual seria então a melhor solução para o homem? É fácil, diria Pascal. Bastaria tirar de seu tempo todas as preocupações que o cercam. Somente assim, eles pensariam em si, naquilo que são, de onde vieram e para onde vão. Desse modo, o homem nunca se encontrará em repouso, seja no passado, no presente ou no futuro, eles sempre estarão sobrecarregados de negócios e, quando isso parecer faltar, eles se empregarão em algum Divertimento, de modo que estarão totalmente ocupados.

Nunca será demais, assim, ocupá-los, nem jamais os distrairemos muito. E é por isso que, depois de sobrecarregá-los de negócios, caso ainda lhes sobre tempo para o descanso, nós os aconselhamos a empregá-los em divertimentos e no jogo, e a permanecer, sempre, totalmente ocupados.18

Mas como já dito anteriormente, os homens se

empregam a não pensar nisso, sempre preparando afazeres para mantê-lo ocupado. Pois está claro para Pascal, que o coração do homem é vazio e cheio de baixeza. O homem é incapaz de curar sua condição baixa e miserável, para isso, ele tem uma alternativa; e esta alternativa será o tema da próxima seção, onde abordaremos o homem na busca pela glória, busca que também é semelhante ao Divertimento, pois assim afirma Pascal: “Por ser incapazes de curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo”.19 Por isso, o homem buscará no contentamento da vaidade e do sentimento de glória, uma maneira de disfarçar a sua verdadeira condição.

18 PASCAL. Pensamentos, Br. 143; Lf. 139. 19 PASCAL. Pensamentos, Br. 168; Lf. 134.

A alienação do divertimento 75

3.3 A APARÊNCIA COMO ILUSÃO

A busca da glória é um caminho semelhante ao

Divertimento, ela surge como mecanismo para o homem não pensar em si mesmo, que o desvia de perceber sua verdadeira condição, ou melhor, ela surge para embelezar sua condição baixa e inconstante. Assim Pascal constata:

Não nos satisfazemos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: desejamos viver na idéia dos outros uma vida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir. Trabalhamos incansavelmente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro.20

Sendo assim, a vida do homem é uma busca pela

glória, o desejo de ser olhado pelos demais. Assim impelido por seu amor-próprio, o homem busca por meio da imaginação, criar um ser imaginário. Isso consiste em que, o homem sabendo de sua condição errante e miserável, que de modo algum é prazerosa para ele nem para os demais homens, cria um ser que é fruto da imaginação, que habita somente na sua imaginação.

A partir daí tudo que é bom passa a integrar e formar esse ser imaginário, valores como a generosidade, honestidade ou coragem serão pertencentes ao eu imaginário. E é assim que transcorre a vida da maior parte dos homens, entre o esforço e o trabalho para alcançar a glória, na busca de serem reconhecidos posteriormente.

Somos tão presunçosos que desejaríamos nos tornar conhecidos por toda a Terra, e até pelas pessoas que vierem quando nela não estivermos mais, e somos tão vãos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos rodeiam nos diverte e nos compraz.21

20 PASCAL. Pensamentos, Br. 147; Lf. 806. 21 PASCAL. Pensamentos, Br. 148; Lf. 120.

76 Conhecimento e condição humana

Podemos perceber isso, imitando Pascal, ou seja,

observando nossas crianças. Desde muito cedo, elas são instruídas a serem as melhores, a buscar a melhor nota, a conservar os melhores amigos, almejarem coisas grandes, e tudo aquilo que incentiva a inveja e a competição nos homens. Os pais e conhecidos reforçam sua busca pela glória quando dizem: “que graça, como é desembaraçado, como é bonzinho”22. E é fato que na maior parte das vezes, o desejo de aprender é guiado pela possibilidade de poder falar daquilo que se sabe.

Essa vaidade cresce com o homem, está enraizada em seu coração desde o mais baixo até o mais alto escalão da sociedade. Os próprios filósofos são assim. Os escritos que escrevem a favor são para deixar sua marca de que foram bons escritores, se escrevem contra é porque ambicionam a honra de ter escrito bem. Do mesmo modo, os leitores também aspiram à glória por ter lido.

E assim passa nossa vida, sempre buscando perpetuar nosso nome na história. Na infância com os primeiros modos de se comportar e associar-se, chega a fase adulta e buscamos ser o melhor na academia, nas discussões, nas descobertas. Tudo isso calcado sobre o orgulho, sobre o desejo de sermos reconhecidos pelas gerações posteriores.

A vida, nesta perspectiva, é construída sobre alicerces de glória, ou seja, a condição miserável do homem será tão natural a ele que será capaz de perdê-la com alegria, caso isso seja lembrado futuramente por outras pessoas. Pois é tão forte a busca pela glória, que seja onde pudermos encontrá-la (mesmo que seja na morte) ela será o objeto amado do homem.

Nisto também consiste a baixeza do homem, pois somente ele tem a capacidade de se admirar e desejar que os outros o admirem. Só o homem não possui a capacidade de se igualar aos demais, sempre permanecerá a competição de um sobre o outro, sempre

22 PASCAL. Pensamentos, Br. 151; Lf. 63.

A alienação do divertimento 77

uma perpétua busca pelo melhor emprego, o melhor lugar, o melhor discurso. A respeito disso, Pascal escreve:

Os animais não se admiram. Um cavalo não admira o companheiro. Não é que não haja entre eles competição na corrida, mas é sem conseqüência; porque, uma vez no estábulo, o mais pesado e mais maltratado não cede sua aveia ao outro, como os homens querem que se lhes faça. Sua virtude se satisfaz por si mesma.23

Ao contrário dos animais, o homem vive pela ideia

dos outros a seu respeito, forja o seu eu, enfeitando com coisas que são agradáveis aos outros homens. Destrói sua imagem e constrói outra inventada por sua imaginação. Caminho este, que o impede de ver e amar sua verdadeira natureza.

Para concluir essa terceira seção, mostro que isso constitui a baixeza do homem, pois é uma “fuga” de sua verdadeira natureza. Porque se torna para ele um ciclo sem fim. Sendo que nunca estará satisfeito com o que possui, pode ter muitas posses em seu poder, mas se não possuir a estima dos homens, isso de nada vale. Portanto, estar bem aos olhos dos outros é a posição mais prazerosa para eles.

Assim, o ser imaginário construído pelo homem o joga em um ciclo sem fim. Buscarei mostrar, na próxima seção, que mesmo sendo o Divertimento a única coisa que nos consola, ele não é a melhor solução para o homem, pois veremos que ele se constitui na maior miséria do homem, porque nos torna escravos de nossas paixões.

23 PASCAL. Pensamentos, Br. 401; Lf. 685.

78 Conhecimento e condição humana

3.4 O DIVERTIMENTO E A IMPOSSIBILIDADE DA AUTONOMIA

A partir daqui, pretendo esclarecer como o

Divertimento se constitui num erro para o homem, podendo ser encarado como a maior das misérias do homem. Não é ele (o Divertissement) um caminho “tranqüilizador” para o homem, pelo contrário, é a fuga de algo que já está no homem. A sua natureza vazia e miserável.

Para começar, é interessante fazer uma análise partindo do fragmento Br. 139 ou Lf. 136 de Pascal. “Essa lebre não nos livra da visão da morte e das misérias, mas a caça – que nos desvia dela – dela nos livra”. Por este fragmento, vamos constatar que o Divertimento é um caminho que nos desvia de confrontarmos a nossa verdadeira condição. Vamos constatar que o homem jamais conseguirá estar em repouso, pois, como já foi dito, não é o fim (lebre) que ele busca, mas é o meio (a caçada). É uma estratégia usada para não se deparar com a sua natureza. O que ele busca, na verdade, é o prazer que é gerado neste processo.

Sendo assim, é importante mostrar a diferença feita entre a palavra “livra” e “desvia”. A busca da agitação não é uma forma de nos livrar de nossa natureza baixa e miserável, nem é a tentativa de alterar a mesma, pelo contrário, não podemos fugir de nossa própria natureza. O máximo que o homem pode fazer é aceitá-la tal como está (ou buscar não pensar nela), desse modo, fica evidente que o Divertimento somente vai desviar o homem dessa constatação, mas não o livrar.

Não vai libertá-lo, porque sua própria natureza não é feliz, “se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos deixar de pensar para nos tornar felizes”.24 Sabendo da condição baixa e deplorável da vida humana, eles optaram pelo Divertimento. Destarte, o

24 PASCAL. Pensamentos, Br. 165; Lf. 70.

A alienação do divertimento 79

Divertimento é uma saída para o homem não pensar na sua ignorância e miséria.

Por isso, não podemos conceber o Divertimento como uma solução definitiva para o homem, nem mesmo pensar que ele o livrará de sua natureza perdida. Porque as ocupações humanas nunca trarão a felicidade e a libertação, o homem sempre terá que buscar novos entretenimentos; desse modo, ele fica escravo da própria agitação, de um motivo de distração.

O Divertimento jamais deve ser encarado como solução, porque ele é uma ilusão de que a posse das coisas exteriores nos trará a felicidade, nesse sentido sempre seremos dependentes e, portanto, sujeitos a sofrer as perturbações de mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis. Assim, sucede com os jovens segundo Pascal:

[...] tira-lhes o divertimento e os vereis consumir-se de desgosto; sentem então o seu nada, sem conhecê-los; com razão, é mesmo ser infeliz permanecer numa tristeza insuportável quando se está reduzido a uma auto-análise, sem ter diversão para seus males.25 Também podemos exemplificar aqui a busca pela

glória, a criação de um ser imaginário que os outros enalteçam, também é um fator que depende de algo externo, nesse caso, o outro. O homem se torna escravo de sua própria imagem criada pela imaginação, pois ele sempre será dependente da aprovação do outro para poder se amar. Na busca por viver na ideia do outro, forjará uma imagem que não condiz com sua natureza, assim, impedindo-o de conhecer sua natureza e amá-la.

Seja a criação de um ser imaginário ou o Divertimento, ambos nos fazem escravos de algo externo, como constata Pascal acerca do Divertimento:

25 PASCAL. Pensamentos, Br. 164; Lf. 36.

80 Conhecimento e condição humana

A única coisa que nos consola de nossas misérias é o divertimento, e, no entanto, essa é a maior das nossas misérias. É isso que nos impede, principalmente, de pensar em nós, e que insensivelmente nos perde. Sem isso, estaríamos desgostosos, e esse desgosto nos levaria a buscar um modo mais sólido de sair dele. Mas o divertimento nos contenta e nos conduz insensivelmente à morte.26

Assim, concluímos este capítulo, mostrando que o

Divertimento se torna para o homem uma saída para desviá-lo de sua verdadeira condição, mas que, no entanto, é uma escolha errada, pois essa escolha o faz escravo e dependente de algo externo. Tira a autonomia do homem. Mas haverá alguma possibilidade de autonomia na antropologia pascaliana? É o que ficará claro no próximo capítulo.

Notou-se também que o homem adentra num processo que não o pode livrar de sua natureza, mas apenas distraí-lo de sua condição miserável. Pois ele sabe que “sem divertimento não há alegria, com divertimento não há tristeza”. Desenhando-se assim, um ciclo sem fim.

O próximo capítulo desse trabalho tem como objetivo, portanto, mostrar que o homem, a partir da constatação de sua miséria que se dá por via do pensamento, talvez tenha uma saída possível, que seja capaz de dar algum sentido a essa vida tão miserável. Iremos perceber, também, que a fuga de si mesmo é aquilo que possibilita ironicamente a descoberta da religião como fundamento da antropologia. Eis porque será necessário apresentar uma religião, mas uma religião verdadeira, aquela que seja capaz de mostrar a verdadeira condição do homem.

26 PASCAL. Pensamentos, Br. 171; Lf. 414.

= IV =

A RELIGIÃO CRISTÃ COMO FUNDAMENTO ANTROPOLÓGICO DO HOMEM

No capítulo anterior, onde tratamos exclusivamente

do Divertimento, mostrarei primeiramente que o homem busca um Divertimento que se configura numa felicidade falsa e artificial para ele. Usa do Divertimento como um caminho de desvio de sua natureza baixa e miserável. O segundo passo, foi mostrar que o prazer que o homem busca por meio do Divertimento não está no objeto, mas sim no processo de busca pelo objeto, lembre-se que não é a caça, mas a paixão que é gerada na caçada. Assim como o Divertimento, a busca de glória também se apresenta como uma fuga de sua condição. Mas o homem busca evitar essa constatação por meio da criação do eu imaginário que é agradável para si e para os outros. Por último, constatamos que o divertimento é um caminho de escravidão, é um ciclo sem fim dentro da busca pela felicidade, pois nesse caso o homem sempre será dependente de algo alheio a si próprio, tirando sua própria autonomia.

Ao iniciar esta sessão, precisamos ressaltar um questionamento deixado no final do terceiro capítulo: será possível conferir alguma autonomia ou dignidade ao homem? Existe alguma coisa que pode dar sentido a essa vida miserável e baixa? Para alcançar tal resposta, o presente capítulo vai mostrar como o pensamento antropológico está fundamentado em Pascal: a segunda natureza já tratada anteriormente advém de uma primeira, e esta traz consigo todos os fundamentos que dão sustentação a antropologia defendida pelo autor.

Para entender isso, vamos passar por três temas indispensáveis nesta compreensão. Em primeiro lugar, trataremos da necessidade de uma religião que mostre

82 Conhecimento e condição humana

como é razoável o paradoxo existente no homem; em segundo lugar, mostraremos que por meio do mito do Pecado Original a religião cristã consegue interpretar a decadência existente no homem; em terceiro lugar, mostraremos que tanto o cristianismo como Deus ainda são incompreensíveis por vias racionais, sendo assim, Pascal usa o argumento da Aposta para mostrar ser este o melhor caminho para aqueles que ainda não creem com a fé, nesta situação, a razão tornar-se-á útil para estes descrentes, pois ela guiará nossa escolha nesta aposta entre a existência e a não-existência de Deus.

4.1 A NECESSIDADE DA RELIGIÃO

Já tratamos, anteriormente, que o homem busca a

felicidade e em tudo tem como finalidade este estado. Seja na corte ou na guerra, o que ele visa é a felicidade. Não obstante, é válido salientar que não se pode desejar aquilo que não se conhece ou que nunca se sentiu. Por exemplo, eu não posso amar alguém que nunca se apresentou aos meus olhos, do mesmo modo que não posso afirmar ser a laranja saborosa ou desagradável se nunca provei de uma laranja.

Essa afirmação nos leva a uma segunda conclusão: se o homem almeja pela felicidade e tudo faz para seu fim, desse modo, ele já deve ter conhecido a felicidade, já experimentou em tempo outrora este sentimento que gera prazer e alegria.

As seguintes conclusões acima não estão erradas, pois segundo a ótica de Pascal, o homem já viveu esse estado de felicidade completa. Ele expressa isso em seus pensamentos quando afirma que o homem já viveu essa felicidade que hoje é impotente nele, portanto, “[...] só lhe restam, agora a marca e o traço vazio”.1

Partindo destas duas afirmações que trata o autor, precisamos conhecer em que consistia esse primeiro

1 PASCAL. Pensamentos, Br. 425; Lf. 148.

A religião cristã... 83

estado (ou natureza) e, depois, entender o motivo pelo qual o homem perdeu esse estado de felicidade. Para solucionar essa questão, Pascal usa do mito do pecado original para explicar essa perda de natureza.

Se o homem perdeu seu estado de felicidade, ele também perdeu aquele que lhe confere a felicidade, que é Deus. Eis porque os homens buscam incansavelmente ao seu redor algo que preencha este vazio deixado por Deus. Contudo, isso jamais será preenchido, pois ele busca preencher um vazio que está somente nele e não nas coisas que o cercam. Desse modo, nada poderá tomar o lugar deixado por Deus.

Assim, os homens se enganam acreditando estar preenchendo este espaço vazio, pois “uma vez perdida a natureza verdadeira, tudo se torna sua natureza; assim, perdido o verdadeiro bem, tudo se torna seu verdadeiro bem.”2 Eis porque os homens também não encontram um repouso último que sacie sua busca, pois tudo se torna um bem para eles, mas não é o mesmo bem deixado por Deus, porque tentar preencher este vazio com coisas imperfeitas (curiosidades, diversões, ciências e outras concupiscências) não é a maneira adequada de proceder nessa busca. Com efeito, este vazio jamais poderá ser preenchido, visto que somente um ser que é cheio de perfeição como Deus poderia preencher a ausência dessa essência, mas como isso não é possível, o homem tenta se contentar com outras coisas com a esperança de que lhe trarão a felicidade.

Essa busca por um referencial que possa preencher seu vazio aponta para um homem que não sabe onde se colocar e está nitidamente perdido. Tal como foi exposto no segundo capítulo deste trabalho, o homem encontra-se num estado de incapacidade de conferir um verdadeiro sentido à sua existência, mas mesmo assim ele busca em tudo saciar sua inquietação. Diga-se de passagem: um empenho sempre sem êxito.

2 PASCAL. Pensamentos, Br. 426; Lf. 397.

84 Conhecimento e condição humana

Esta busca incansável por um ponto fixo que sacie

nossas inquietações, pois representa o único repouso, leva-nos a uma única conclusão, a necessidade da religião. Todavia, não é qualquer religião, essa deve ser uma religião verdadeira, que deve ser capaz de mostrar essa contradição existente no homem, o desejo pelo repouso e a inclinação pelo movimento. Assim Pascal expõe:

As grandezas e misérias do homem são de tal modo visíveis que é preciso, necessariamente, que a verdadeira religião nos ensine que há no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria. É preciso, pois, que ela nos explique essas contradições surpreendentes.3

Esta religião deve ter a capacidade de mostrar o

paradoxo que é o homem, mostrando a natureza baixa e miserável em que hoje se encontra o homem. Segundo Pascal, essa religião deve mostrar-nos que estamos em meio às trevas que nos impedem de conhecer Deus e de amá-lo, entretanto, ela deve mostrar que existe um Deus e que somos obrigados a amá-lo, onde nossa felicidade está somente nele e não estar próximo dele se configura um mal imenso para o homem.

Pascal se pergunta qual será a religião capaz de ensinar o bem, apontar nossos deveres, mostrar a causa e o remédio para curar nossas fraquezas? Nesta pergunta, ele aponta que a religião deve nos ensinar a ver nossos deveres para com Deus, nossas concupiscências, nossas injustiças que nos afastam dele. Igualmente deve nos mostrar as nossas oposições em relação a Deus e ao nosso bem. Que religião seria capaz de tão grande feito? Para chegar a uma resposta, Pascal orienta que analisemos todas as religiões do mundo e se existe alguma outra que preencha todos esses requisitos, além

3 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

A religião cristã... 85

da cristã. Conclusão: as outras religiões não tiveram tamanha capacidade, somente a religião cristã foi capaz de nos ensinar a ver o paradoxo incompreensível que é homem.

4.2 O MITO DO PECADO ORIGINAL

A religião cristã é a única capaz de mostrar essa

contrariedade existente no homem, ela é a única que pode nos mostrar quem realmente somos. O cristianismo, por meio do mito do pecado original, consegue interpretar e mostrar a decadência do homem. Para Pascal, os homens se encontram em miséria desde a queda adâmica, visto que antes do pecado original o homem era grande, pois possuía uma relação direta com Deus. No entanto, agora ele se encontra decaído, outrora vivia numa verdadeira felicidade, agora lhe resta somente o traço vazio dentro de si. Aquele que antes contemplava Deus, agora está sem posto, sem lugar. Está visivelmente perdido e não consegue se reencontrar. O homem não está no estado em que foi criado por Deus, visto que Deus criou um “homem santo, inocente, perfeito; (encheu-o) de luz e de inteligência”, o Senhor havia lhe comunicado sua glória e suas maravilhas. O homem contemplava a majestade de Deus, estava longe das trevas que o cegam.

Apesar disso, o homem caiu no erro, não conseguiu manter tanta glória sem cair na presunção, desejou ser Deus de si mesmo, fez de si o centro, independentemente de Deus. O homem quis encontrar a felicidade sem Deus, foi ousado desejando ser igual a ele. As consequências desse abandono foram desastrosas para o homem, pois seu desejo fez com que Deus o abandonasse para sempre, as criaturas criadas por Deus hoje se voltam contra o homem.

[...] hoje, o homem tornou-se semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim [Deus] que apenas lhe resta uma luz confusa do autor, de tal modo aniquilaram ou

86 Conhecimento e condição humana

perturbaram todos os seus conhecimentos! Os sentidos, independentes da razão e muitas vezes senhores da razão, levaram-no à busca dos prazeres.4

Por este fragmento constatamos as forças

enganadoras dos sentidos levando o homem a desejar os prazeres e ser mais do que poderia ser. Talvez estas sejam as primeiras obras da senhora imaginação, com sua força dominadora sobre a razão, levando-o a imaginar que poderia ser feliz sem Deus. Ó engano terrível em que se encontrou o homem. Foi o homem encantado por suas doçuras, dominado pela terrível vontade de querer ser senhor de si mesmo.

Este abandono de Deus faz com que o homem se encontre em uma segunda natureza, restam a ele poucas coisas, visto que estar mergulhado em suas misérias:

Eis o estado em que os homens se acham hoje. Resta-lhes algum instinto impotente de felicidade de sua primeira natureza, e estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, a qual se tornou sua segunda natureza.5 Além do estado citado acima, a própria incerteza

em que se encontra o homem se configura por si só em sua miséria, como foi dito linhas acima, ele vagueia no amplo meio-termo, empurrado de um lado para o outro. É a marca de sua queda.

O confronto dessa primeira natureza, onde contemplava as maravilhas de Deus, e sua segunda e atual natureza nos aponta que a finalidade de o homem buscar a agitação está na vontade de atingir o repouso. Sua segunda natureza, que está corrompida, o desvia para a agitação, mas ainda possuímos uma marca da primeira natureza que visa o repouso e o silêncio. Assim, se produz

4 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149. 5 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

A religião cristã... 87

no homem um projeto confuso que se esconde de seus olhos, pois o homem tende mais para buscar a agitação quando pensa estar buscando o repouso.

Mediante essa busca confusa, o homem se encontra em um estado atual que é baixo e miserável, restando ao homem um vago instinto de sua primeira natureza, que hoje é impotente. Este estado de segunda natureza nos possibilita compreender a causa de tantas contrariedades que sujeitam o homem. Contrariedade acentuada pelo orgulho, motivo este causador da queda do homem. O orgulho e a concupiscência estimularam a imaginação que, por sua vez, fez o homem acreditar poder ser Deus. O homem subverteu sua posição, tomou “Deus por objeto” para preencher seu orgulho. Ambos (orgulho e concupiscência) lhe fizeram pensar que seria semelhante à natureza divina.

Pascal nos mostra que o erro maior foi daqueles que viram a vaidade dessa pretensão e, mesmo assim, lançaram o homem num abismo ainda maior. Exemplo disso foram os filósofos que tentaram, mas não conseguiram mostrar qual era esse soberano bem. Outros, por sua vez, assemelharam a natureza do homem ao dos animais e o fizeram buscar, na concupiscência dos animais, o seu bem. Eis porque: “não vos encontrais no estado de vossa criação”.6

A distinção entre Filosofia e religião é notável em Pascal, ambas buscaram um remédio para curar os males dos homens, elas divergem no modo como efetivam essa função. A Filosofia apenas prometera a cura para os males cuja natureza desconhecia, enquanto a religião cristã vai além, pois soube apontar para o bem sem esquecer-se das fraquezas do homem que busca o bem.

Não é pelas doutrinas filosóficas que o homem pode saber quem ele é; visto que somos baixos e incapazes de saber se sua misericórdia pode nos fazer dignos dele. Sendo assim,

6 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

88 Conhecimento e condição humana

[...] tudo indica que Pascal considera que a religião cristã, da maneira como ele a concebe, é a única que pode dar conta das contradições inerentes à condição humana, não porque as justifica, mas porque as apresenta nos artigos de fé e na corroboração histórica da verdade dessa fé.7

Pascal busca mostrar a religião cristã como aquela

que soube conhecer nossa natureza de pequenez e baixeza. Do mesmo modo que Pascal sabe que o homem aspira pela verdade, mas só encontra incertezas, tal como o homem procura pela felicidade (e nunca deixará de procurá-la), mas só encontra miséria e morte.

Este é o aspecto pelo qual percebemos que a religião cristã aponta para o caminho que confere uma autonomia ao homem. Ou seja, a religião cristã possibilita ao homem conhecer sua condição baixa e miserável, confere ao homem uma perspectiva mais elevada, não é uma mera justificação empírica dos fatos, mas é por ela que o homem pode conferir sentido aos fatos e objetivos que busca; e muito mais do que isso, a sua própria história.

Sendo assim, a autonomia concedida pela religião está justamente no fato de o homem reconhecer-se como um ser pequeno e miserável dentro da infinitude criacionista de Deus. Pensando assim, o homem verá sua baixeza e se reconhecerá como tal. Percebendo-se como um homem que está longe de Deus devido a sua natureza, ele também entenderá as forças enganadoras que o conservam nesse afastamento, conferindo a ele a libertação de tais forças que o enganam, de tal modo que ele terá a consciência moral do caminho errante pelo qual caminhava.

Tal consciência, que é possibilitada pela religião, permite ao homem certa autonomia frente aos seus

7 SILVA, Franklin Leopoldo e. Pascal: condição trágica e liberdade.

Disponível em: <http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf.>. Acesso em: 10 out. 2012.

A religião cristã... 89

divertimentos, pois tendo consciência de sua natureza, ele tem a chance de não ser mais uma presa das forças enganadoras, tem à sua frente a oportunidade de não ser mais submetido pela força, pelo encantamento e pelas doçuras mais terríveis e imperiosas do divertimento.

Este é o caminho do homem que se reconhece como feito para Deus, já que só Deus poderá fazê-lo feliz. A decisão de percorrer esse caminho não pode acontecer quando sua razão está corrompida pelos costumes, desse modo, foi necessário “que a verdade aparecesse para que o homem não vivesse mais em si mesmo”.8 Ou seja, a verdade apareceu ao homem, apareceu porque o homem estava cego para suas misérias, vivia somente em si e para si, a verdade se fez presente por meio da pessoa de Jesus Cristo.

A religião cristã conseguiu mostrar, por meio de Jesus Cristo, que tudo ficou claro ao homem e que “por um homem (Adão) tudo se perdeu, rompendo-se o elo entre Deus e nós”; contudo, “por um homem esse elo se refez”.9 Para Pascal, o elo foi Jesus Cristo, que

[...] não fez senão comunicar aos homens que eles amavam a si mesmos, que eram escravos, cegos, doentes, infelizes e pecadores; que era necessário que ele os libertasse, esclarecesse, beatificasse e curasse; que para isso deveriam odiar a si mesmos e segui-lo na miséria e na morte na cruz.10

Se não fosse o elo comunicador, os homens

tenderiam a permanecer no vício e na miséria. Somente em Jesus Cristo “se acha toda a nossa virtude e toda nossa felicidade. Fora dele só há vício, miséria, erros, trevas, morte e desespero”.11 E somente por Jesus Cristo chegamos ao conhecimento de Deus.

8 PASCAL. Pensamentos, Br. 440; Lf. 600. 9 PASCAL. Pensamentos, Br. 489; Lf. 205. 10 PASCAL. Pensamentos, Br. 545; Lf. 271. 11 PASCAL. Pensamentos, Br. 546; Lf. 416.

90 Conhecimento e condição humana

Assim, o conhecimento de Deus só se dá por meio

de Jesus Cristo que mostra nossas misérias e nisto consiste a marca do criador em nós, justamente em nossa miséria. Sabemos que só encontramos miséria e baixeza, as quais estão relacionadas com o vazio deixado por Deus, contudo, também é o traço do vazio que conduz o homem a Deus, já que, com efeito, leva o homem a buscar um soberano bem que ocupe este lugar, mas o homem busca por caminhos impróprios esse preenchimento, como por exemplo, busca no Divertimento e nas paixões.

Fica evidente a necessidade de Jesus Cristo para o homem chegar ao conhecimento de Deus. Caso contrário, aqueles que tentam buscar Deus sem Jesus Cristo, caem num erro abominável pela religião cristã. Ideia expressada por Pascal no seguinte pensamento:

Aqueles que buscam Deus fora de Jesus Cristo, e que se detêm na natureza, ou não acham luzes que os iluminem, ou acabam encontrando um modo de conhecer Deus e de servi-lo sem mediador, e então caem no ateísmo ou no deísmo, que são duas coisas que a religião cristã abomina quase igualmente. Sem Jesus Cristo o mundo não sobreviveria.12

Na pessoa de Jesus Cristo, Deus se fez homem,

um homem sujeito a dores e a flagelos humanos, foi um homem que viveu a angústia no Getsêmani, experimentou a incerteza da vontade do Pai, temeu a morte, se zangou quando encontrou seus discípulos dormindo. Mas acima de tudo, soube mostrar aos outros homens o erro em que se encontravam.

Assim, Jesus Cristo tem um papel importante na antropologia pascaliana, visto que é por ele que conhecemos a Deus e a nós mesmos, sem ele não sabemos o que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos, então conclui-se que só “conhecemos

12 PASCAL. Pensamentos, Br. 556; Lf. 449.

A religião cristã... 91

Deus por Jesus Cristo. Sem esse mediador, fica extinta toda a comunicação com Deus”.13

No entanto, o mito do pecado original não pode ser considerado uma verdade de ordem racional. Aqui o pensamento se depara com certos limites, embora seja através dele que é possível “apostar” na utilidade do princípio religioso como instância explicativa em sentido antropológico. No próximo capítulo, discutiremos a questão acerca da veracidade de tal princípio e a necessidade de se apostar em Deus, em outras palavras, mostraremos o porquê de o cristianismo ser incompreensível e como se justifica a Aposta como o melhor caminho para o homem.

4.3 A INCOMPREENSIBILIDADE COMO POSSIBILIDADE DA APOSTA

Para Pascal, se Deus existe ele só é sentido pela

fé, do mesmo modo se existe uma religião não devemos nos fiar nela, no sentido racional do termo, pois ela não nos oferece nenhuma certeza de eterna felicidade. Ou melhor, ela não é garantia de verdade em termos demonstrativos. Pois, “caso se devesse apenas fazer coisas com certeza, nada deveria ser feito pela religião, uma vez que ela não oferece certeza”.14 Por exemplo, se submetêssemos a crença no cristianismo ao poder lógico da razão, tal crença nos iria parecer absurda e ridícula.

Segundo Pascal, fica evidente que o conhecimento de Deus não é possível longe da fé e da revelação, pois é algo que cada indivíduo pode sentir naturalmente. Todavia, mesmo este “sentimento natural” não é uma prova convincente de sua existência, porque assim como nos enganamos com um sonho que garantimos ser verdadeiro, pois nele estão presentes os sentidos naturais em nós, pode ocorrer que também nos enganemos com as

13 PASCAL. Pensamentos, Br. 547; Lf. 189. 14 PASCAL. Pensamentos, Br. 234; Lf. 577.

92 Conhecimento e condição humana

questões relativas a Deus, tema magistralmente trabalhado por Descartes em suas Meditações. Desse modo, não podemos tomar este “sentimento natural” que surge no homem, como uma prova decisiva para provar a existência de Deus.

Do mesmo modo que não podemos nos fiar na existência de Deus, também não podemos depositar nossas certezas na religião porque ela própria não nos oferece nenhuma certeza. O próprio mito do pecado original não se constitui em uma verdade absoluta, pois ele também é incompreensível para a razão.

Conforme foi dito anteriormente, o mito do pecado original pode ser utilizado como instrumento hermenêutico para compreendermos a natureza paradoxal do homem. Mas assim como a existência de Deus é incompreensível para a razão, também não podemos tomar o mito do pecado original como uma certeza, visto que a compreensão desse mito vem de uma narrativa mitológica e não de uma verdade demonstrada. Nesse sentido, sendo uma narração mitológica não temos plena certeza se existiu ou não no decorrer da história.

E mesmo que tenha existido nos depararíamos com outro absurdo, pois tal fato seria muita injustiça e castigo para toda a humanidade. A respeito desse absurdo, Pascal afirma:

Não há, indubitavelmente, nada que choque mais nossa razão do que afirmar que o pecado do primeiro homem tornou culpados aqueles que, mesmo afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar dela. Essa emanação não nos parece somente impossível como nos parece até muito injusta. [...] nada nos choca mais rudemente do que essa doutrina.15

Novamente fica evidente o quanto o homem é

baixo, sofre pelo erro de Adão, está envolto numa

15 PASCAL. Pensamentos, Br. 434; Lf. 131.

A religião cristã... 93

complexidade, ultrapassa a própria compreensão de si. “De modo que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível ao homem”.16 Assim, o mito do pecado original não se apresenta como uma verdade racional, mas este mistério serve para fundamentar uma perspectiva antropológica sobre o homem.

Por ele se explicam as contradições humanas, sua inclinação pelo repouso, sinal de sua primeira natureza que foi perdida, sinal de um homem que vivia junto de Deus, onde tinha a garantia de sua felicidade. Assim como também é solucionado o impulso perpétuo em direção à agitação e ao movimento, um sintoma de que ele não vive mais em seu estado original, mas vive numa natureza vazia de um autêntico significado antropológico.

Essa afirmação nos leva a duas verdades: [...] uma, que o homem, no estado da criação ou no da graça, é alcançado acima de toda a natureza, tornando como que semelhante a Deus e participante de sua divindade; outra, que no estado de corrupção e de pecado, decai de tal estado e se faz como os animais.17

Ou seja, um homem que outrora vivia com Deus,

agora, no entanto, está abandonado. Pelo mito do pecado original, o homem está em estado de corrupção, pois decaiu de um estado superior e se fez como os animais. Pascal soube utilizar desse mito, como dito anteriormente, como instrumento interpretativo do homem, mesmo que tal princípio não seja uma verdade logicamente demonstrada.

Ora, do mesmo modo que o princípio do pecado original é incompreensível, a própria questão acerca da existência ou não existência de Deus também é algo cuja razão não pode se pronunciar. É o próprio Pascal quem o diz: “É igualmente incompreensível que Deus exista e que

16 Id. 17 Id.

94 Conhecimento e condição humana

não exista (...) que haja ou não pecado original”.18 Sendo o homem incapaz de conhecer Deus pela razão, Pascal nos mostra que o caminho mais sensato é apostar na existência de Deus, por um único motivo, para que sua existência adquira sentido. Nossa última seção será dedicada a este objetivo, mostrar como apostar é um fator determinante para aqueles que ainda não escolheram entre ter algum sentido mais elevado para sua existência ou não.

4.4 A QUESTÃO DA APOSTA

Já tratamos, anteriormente, que Deus não pode ser

conhecido pela razão, assim, este capítulo tem por finalidade justificar a necessidade de apostarmos em algo; mas, antes de discutirmos sobre a aposta, é necessário mostrar por que Deus é incompreensível e por esta incompreensibilidade de Deus, perceberemos que é mais racional apostar do que não apostar, visto que ele é impossível de ser conhecido pela razão. Podemos compreender a questão da incomensurabilidade de Deus a partir do fragmento Br. 233:

Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, porque ao não ter partes nem limites, não possui nenhuma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de conhecer não só o que ele é como também se existe. Dessa maneira, quem se atreverá a resolver a questão?19 Deus não tem nenhuma proporcionalidade

conosco, pois enquanto nós somos seres finitos Deus é infinito. Assim a questão que surge é: como um ser infinito como Deus poderia deixar-se ser abarcado ou compreendido por um ser finito como o homem? E a

18 PASCAL. Pensamentos, Br. 230; Lf. 809. 19 PASCAL. Pensamentos, Br. 233; Lf. 418.

A religião cristã... 95

resposta é que Deus, não tendo extensão nem muito menos limites, impede que possamos ter alguma relação com ele, ao nível da proporcionalidade. Assim, a única forma de transpor esse abismo, verificado entre Deus e o homem, é por meio de uma aposta em sua existência.

Para trabalhar este último tópico e mostrar que a religião cristã é a única capaz de conferir alguma dignidade ao homem, precisamos recorrer ao Artigo III de Pascal sobre a necessidade da Aposta. Segundo Gérard Lebrun uma das interpretações que foram dadas sobre a “aposta de Pascal” foi escrita para orientar o abade de Villars (1671) que afirmava a impossibilidade de mostrar a existência de Deus pela razão. O abade de Villars parece estar com a razão, pois tudo nos Pensamentos indica que Pascal partilha da incompetência da razão. Mediante isso, a aposta parece ser o único procedimento pelo qual se possa fazer interessar um incrédulo pela religião.20

A esta altura já percebemos que a vida do homem é baixa e miserável. Partindo disso, “reconhecei que somos, de fato, tão baixos que somos por nós mesmos incapazes de saber se sua misericórdia pode nos fazer dignos dele”.21 Por não saber se a existência de Deus é verdadeira ou falsa, é melhor que apostemos na sua existência.

Antes de quaisquer novas objeções sobre a religião, precisamos ressaltar que a razão foi útil para a religião, visto que foi pelo exercício do pensamento que o homem chegou à constatação de sua miséria. Assim, ela (a razão) não deve ser desprezada, pelo contrário, deve ser digna de veneração, pois da mesma forma que ela possibilitou o homem se conhecer, ela também promete um verdadeiro bem ao homem.

Mediante isso, Pascal demonstrou muito sabiamente que Deus não se prova por vias racionais, pois

20 LEBRUN, Gérard. Blaise Pascal. Tradução: Luiz Roberto Salinas

Fortes. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 114. 21 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

96 Conhecimento e condição humana

é pelo coração que se sente Deus e não pela razão. De tal modo que aqueles que o “buscam de todo o coração poderão vê-lo”.22 Assim, parte-se do coração e pelo coração se chega ao conhecimento de Deus.

Nesse sentido, o argumento da aposta não está apoiado em nenhuma prova ontológica. Tais provas seriam inúteis para aquele que quer apostar. Na verdade, tal argumento está apoiado não no critério de “verdade”, mas muito mais no critério da “vantagem”: ao apostar-se em Deus poderemos viver o resto de nossa existência com o sentido íntimo que é Deus.

O primeiro passo para entendermos o argumento da Aposta pascaliana é recorrer à reflexão feita no início do segundo capítulo deste trabalho, onde mostramos que não há como encontrar um lugar central dentro de um universo infinito. Tal alusão é necessária porque Pascal nos mostra que do mesmo modo que existe uma desproporção entre o finito e o infinito, assim também há entre o homem e Deus.

Conhecemos a existência e a natureza do finito porque somos finitos e extensos como ele. Conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza, porque tem extensão, como nós, mas não limite, como nós. Não conhecemos nem a existência nem a natureza de Deus porque não tem extensão nem limites. Mas pela fé conhecemos sua existência e pela glória conheceremos a sua natureza.23

No entanto, no segundo caso, a desproporção é

maior e, portanto, o caminho que nos possibilita conhecer Deus é somente dado pela fé; por ela conhecemos sua existência e pela salvação a sua glória. Isso fica evidente quando ele afirma que por meio dessa dimensão não racional podemos conhecer tanto sua existência como sua

22 PASCAL. Pensamentos, Br. 194; Lf. 427. 23 PASCAL. Pensamentos, Br. 233; Lf. 418.

A religião cristã... 97

natureza. Desse modo, é importante ressaltar que o argumento da aposta não foi escrito pensando naqueles que já creem pela fé e pelo coração, mas foi para aqueles que são incapazes de decidir entre existência e não-existência de Deus, para aqueles que ainda estão indecisos e que necessitam de um discurso racional que os conduza.

Diante dessas duas possibilidades de existência de Deus e da não existência, não podemos utilizar a razão para fazer nossas escolhas, visto que ela é impotente para decidir a esse respeito, mas como veremos adiante, ela não se anula totalmente neste processo, mas é útil porque nos ajudará a melhor escolher.

Assim, o autor nos pergunta: “Deus existe ou não existe”. Para que lado tenderemos? A razão não o pode determinar: um caos infinito nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis? Pela razão não poderemos atingir nem uma nem outra; pela razão, não podereis defender uma ou outra.24

Por este fragmento, concluímos que é necessário

apostar, pois não é algo que depende de nós. Isso é certo, pois mesmo que escolhermos não apostar já estaremos apostando em algo, ou seja, na nossa existência sem Deus. É o mesmo que estar omitindo uma vida com sentido e optando por outra sem sentido. Mediante isso, qual é a melhor escolha?

Como o critério é a vantagem, para chegar a uma resposta, Pascal analisa por aquela que é mais vantajosa e menos coisas temos por perder. Neste jogo da aposta, o homem está sujeito a perder a verdade e o bem e comprometer duas coisas: nossa razão e nossa vontade. Do mesmo modo que nossa natureza tem que fugir do erro e da miséria. Vejamos, então, no parecer de Pascal, as

24 Id.

98 Conhecimento e condição humana

vantagens e as perdas da aposta caso optemos por Deus: “escolhendo a cruz, que é Deus [...] se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostais, pois, que ele existe, sem hesitação”.25

O homem não perderia nada apostando em Deus, porque mesmo que ele escolhesse apostar na existência de Deus e esta divindade não existisse, sua vida continuaria na mesma, ele não perderia nada, continuaria vivendo sua vida até o dia de sua morte. Todavia, aquele que não apostasse na existência de Deus, acaso este viesse a existir, perderia a felicidade e a vida eterna. Assim, não temos nada a perder apostando.

A esta altura já foi o suficiente para mostrar que no argumento da Aposta o que impera é a lei do lucro, ou seja, escolho por aquilo que é mais benéfico e que traga menos prejuízo a mim. Desse modo, a Aposta se desenvolve como um jogo matemático de vantagem entre ganho e perda, de lucro e prejuízo. Assim, devo sempre jogar com a esperança de ganhar pela probabilidade da existência de Deus.

Pascal também expõe o seguinte argumento, que é aceitável expor uma vida para ganhar futuramente duas, ou triplicá-la. Mas aqui o que jogamos é finito e o prêmio pode ser considerado infinito, logo devemos apostar todas as nossas “fichas” para ganhar a possibilidade de uma “eternidade de vida e de felicidade”.

No entanto, podemos também pensar que apostar cara ou coroa seja um jogo muito arriscado para confiar minha vida, pois não é “perturbador e mesmo injusto que todo o meu destino se jogue na base de um impulso sentimental? Todo o meu destino?”26 Pode ser absurdo concluir que nossa vida se assemelhe a uma aposta de cara ou coroa, mas ainda é justo e melhor apostar, pois o homem não tem certeza do que surgirá depois desta vida,

25 PASCAL. Pensamentos, Br. 233; Lf. 418. 26 LEBRUN, op.cit., p. 108.

A religião cristã... 99

visto que tudo é incerto, assim, o homem já é um ser que desde o início de sua existência é dado à sorte.

Assim como não sei de onde venho, não sei para onde vou: e só sei que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada, ou nas mãos de um Deus irritado, ignorando a qual dessas duas condições serei dado eternamente em quinhão.27

Assim, tanto a religião como a Aposta reinam no

campo das probabilidades, não há certezas do que realmente virá após a morte, toda aposta tem o seu risco de ganhar ou perder, compete ao homem apenas esperar o dia da realização de sua escolha. Mas o mais importante é que somente apostando na existência de Deus, poderemos conferir algum sentido à nossa existência, tal como o princípio religioso, referente ao pecado original, deve ser considerado o único princípio explicativo responsável por compreender as contradições humanas.

Enquanto isso, aqueles que ainda não estão convencidos de que devem apostar, cabe a eles apenas fazer uma escolha. E novamente se deve questionar: apostar ou não apostar na existência de Deus? Se escolher não apostar, Pascal recomenda que vivam neste mundo sob duas certezas: a primeira de que estamos aqui hoje, a segunda certeza é que não estaremos por muito tempo aqui, pois o futuro é incerto.28 Mediante isso, a aposta é muito mais do que escolha entre existência e não-existência de Deus, é antes de tudo, uma aposta em viver uma vida com sentido ou sem sentido antropológico.

Para Pascal, portanto, a única autonomia possível para o homem, em sentido moral e antropológico, se dá ao adotarmos uma religião que dê sentido à nossa existência. O cristianismo está capacitado a ser esse instrumento de libertação, pois livra o homem de sua natureza

27 PASCAL. Pensamentos, Br. 194; Lf. 427. 28 PASCAL. Pensamentos, Br. 237; Lf. 154.

100 Conhecimento e condição humana

concupiscente, conferindo-lhe dignidade e uma perspectiva mais elevada sobre a natureza e o universo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE I A discussão em torno da problemática do homem é

tão antiga quanto contemporânea. Saber quais são suas necessidades e potencialidades, fazem do homem um ser diferente de qualquer outro ser vivo. Hoje, em pleno século XXI, onde o homem consegue se comunicar com centenas de pessoas em fração de segundos, tudo está mais ágil. As máquinas, as pessoas e o próprio tempo, fazem do homem um ser de múltiplas capacidades, exigindo muito mais dele. A tecnologia está a cada dia mais avançada, o homem vai perdendo seu posto para conjuntos de codificações racionais, aquilo que os homens levavam dias para fazer, a máquina consegue executar em poucas horas. A informatização consegue levar ao homem interatividade e acessibilidade de inovações do mundo moderno. Se por um lado isso é animador, pois mostra uma ciência em progresso, por outro, deixa muitos apreensivos.

Contudo, a proposta do trabalho não foi pensar nos benefícios dos avanços tecnológicos ou científicos, mas focar em quem está por trás deste avanço, ou seja, pensar o homem, aquele que é o próprio protagonista e condutor do progresso, não “é perguntar o que o tempo nos trará. A questão vital é definir o que a humanidade irá construir”1. Pensar o homem frente aos seus sucessos, nos faz pensar em quem realmente é o homem? Porque ele busca tanto o consumismo quando parece já ter tudo? Porque tantas tecnologias quando parece que não há mais nada para ser inventado? Porque ele consegue avançar na exterioridade com tanta destreza, mas foge de seu interior? Frente a isso, o que restaria ao homem mediante tal situação?

1 ARDUINI. Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a

humanidade. São Paulo: Paulus, 2002. p. 15.

102 Conhecimento e condição humana

Por isso a necessidade de se trabalhar Blaise

Pascal, pois é um homem do século XVII que tratou de problemáticas muito contemporâneas, é observável que suas palavras se atualizam em nosso tempo, em especial, quando se trata do Divertimento como fuga do momento presente. Os homens parecem estar se esquecendo dos benefícios do silêncio e do repouso, quanto mais emoção e energia forem geradas, mais benéfico é para o indivíduo.

Desse modo, nosso objetivo foi mostrar a concepção pascaliana do homem, no intuito de mostrar que Pascal busca explorar o homem de forma que possa apresentá-lo tal como é, com suas misérias e grandezas. Mas para atingir esse objetivo, o caminho traçado nesta pesquisa, passou por três seções: a primeira deu início, tratando da insignificância física em que se encontra o homem dentro do universo infinito, mostrando assim sua miséria. Contudo, se há uma grandeza em sua natureza, essa consiste em seu pensamento, mas é uma capacidade de pensar diferente daquela concebida por Descartes. Porque tal grandeza não revela a supremacia do pensamento, mas adquire seu valor por reconhecer nossa miséria interior e exterior. Miséria que é reforçada pelas forças enganadoras que agem sobre o homem, sendo estas, a Imaginação e o Hábito. E, como consequência disso, se observará que tudo resulta na criação de um amor-próprio que tenta preencher o vazio presente na interioridade humana.

Foi possível perceber que um dos caminhos empregados pelo homem para fugir de si e da constatação de sua miséria é o Divertimento (divertissement). Esta é uma forma de desviar o olhar de si mesmo, para que assim, não depare com sua condição baixa e miserável. Será o Divertimento o caminho que impossibilitará o homem de se confrontar com suas contradições, visto que ele sempre estará ocupado com algo que o divirta e o leve para longe de seu tédio e de uma reflexão sobre si.

Considerações finais da parte I 103

Desse modo, no intuito de ocultar essa miséria de

si e do outro, o homem troca o “ser” pelo “parecer”, visto que ele forjará uma imagem de si, criando um homem composto com as qualidades e méritos que os outros aprovariam. Assim, não é realmente o seu eu verdadeiro que age, mas apenas um “eu imaginário” que foi criado para evitar seu sofrimento. Prova disso é o conflito atual configurado pelo consumismo acelerado. A felicidade e o prazer estão contidos no “ter” o que é melhor, é necessário comprar aquele carro ou daquela determinada marca. Nada melhor que isso, para se configurar uma fuga das próprias misérias, onde as pessoas não se assumem como realmente são, não possuem suas individualidades, ou melhor, querem ser únicos quando não percebem que não conseguem deixar aquilo que os liga e os iguala à maior parte dos outros homens, levando-os ao impessoal. Assim, vemos que todo este esforço gerado pelo Divertimento tem suas implicações antropológicas no pensamento de Pascal.

E, por fim, observamos na última seção que a solução apresentada por Pascal está na religião cristã, somente ela pode dar algum sentido à vida do homem e, se ainda possível, gerar alguma felicidade a ele. Por meio do mito do pecado original, a religião cristã conseguiu interpretar a condição atual do homem, não fazendo dele nem um anjo nem um animal. Do mesmo modo que soube mostrar por meio do mediador chamado Jesus Cristo as contradições em que viviam os homens.

No entanto, por meio de Pascal também comprovamos que é impossível provar a existência de Deus pela razão (visto que cremos pela fé e pelo coração), e não sabendo o que nos espera depois da morte, o melhor caminho é a Aposta. Apostar na existência de Deus é o caminho mais sensato para aqueles que ainda não se decidiram. No argumento da Aposta, só constatamos duas escolhas: uma que nos leva a uma vida plena de significado, através dos preceitos do cristianismo, e outra,

104 Conhecimento e condição humana

que nos leva à nossa existência miserável vazia e sem sentido. Qual escolher? Cara ou coroa, homem com Deus ou homem sem Deus. Para isso, Pascal nos ilumina a fazer a melhor escolha, cabe ao homem escolher.

Findamos nossa pesquisa, mostrando que a religião cristã proporciona ao homem uma autonomia, mas que autonomia é essa? Em primeiro lugar, autonomia para escolher apostar em um sentido para sua existência, por meio da aposta na existência de Deus, em segundo lugar, autonomia conquistada a partir da compreensão de sua natureza como sendo decaída e concupiscente, pois pressupõe um reconhecimento das forças enganadoras, imaginação, hábito, divertimento que agem sobre ele.

É possível, portanto, pensar a questão da liberdade em Pascal, a partir da questão da autonomia. Não a liberdade fantasiosa dos iluministas guiada pela razão e pelo espírito científico, nem aquela com que sonhavam os românticos, guiada pelo sentimento. Muito menos a liberdade existencialista que consiste no homem nascer radicalmente livre e se dispor a escolher de acordo com sua existência. A liberdade em Pascal consiste apenas num passo, um passo em direção à autoconsciência do “caniço pensante”, que consiste em perceber a sua insignificância para de modo autônomo “apostar” na verdadeira religião: o cristianismo.

REFERÊNCIAS DA PARTE I

ARDUINI. Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002. ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. São Paulo: Editora Edusc, 2003. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ______. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973. GIBRAN, Khali Gibran. O profeta. Trad. Mansour Challita. Rio de Janeiro: Editora Associação Cultural Internacional Gibran, 1972. GOUHIER, Henri. Blaise Pascal: conversão e apologética. Tradução: E. M. Itokazu – H. Santiago. São Paulo: Discurso Editorial, 2005. HELFERICH, Christoph. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LEBRUN, Gérard. Blaise Pascal. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Brasiliense, 1983. MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 16ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1994. PASCAL, Blaise. Opúsculos. Trad. Alberto Ferreira. Lisboa: Guimarães Editores, 1960.

106 Conhecimento e condição humana

______. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores) PONDÉ, Luiz Felipe. O conhecimento na desgraça: ensaio de epistemologia pascaliana. São Paulo: Edusp, 2004. ______. O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana. São Paulo: Edusp, 2001. SANTO AGOSTINHO. De Magistro. Tradução, introdução e comentários de Bento Silva Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. SILVA, Franklin Leopoldo e. Pascal: condição trágica e liberdade. Disponível em: <http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Franklin%20Leopoldo%20e%20Silva.pdf>. Acesso em: 14 de out. de 2012. PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 3ª ed. São Paulo: Marins Fontes, 2002. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. vol. II. São Paulo: Paulinas. 1990.

PARTE II:

A RELIGIÃO CRISTÃ COMO SOLUÇÃO PARA A MISÉRIA HUMANA NO PENSAMENTO DE

BLAISE PASCAL (1623-1662)

Djonh Denys Souza dos Reis

108 Conhecimento e condição humana

É graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa manter o ritmo [...]. Mas a graça das graças é não desistir. Podendo ou não podendo, caindo, embora, aos pedaços, chegar até o fim...

Dom Hélder Câmara (1977a, p. 41)

Ora, cabe-vos começar. Se pudesse, eu vos daria a fé; não o posso fazer nem, portanto, sentir a verdade do que dizeis. Mas vós podeis [...] sentir se o que digo é verdadeiro.

Pascal, Br. 240

Ao jogar fora a folha do calendário do mês que passou ainda e sempre me vi ante o mistério do tempo e da eternidade. Meu mês que se foi – fração importante de minha vida efêmera - contará diante de Deus ou terá ido também para a cesta de papéis?

Dom Hélder Câmara. (1977b, p. 106)

INTRODUÇÃO DA PARTE II A presente pesquisa busca compreender e

demonstrar a visão antropológica do pensador francês Blaise Pascal, tendo como fonte primária de discussão e embasamento teórico a sua obra “Pensamentos”. Buscamos entender porque os silêncios dos espaços infinitos apavoraram Pascal e, por consequência, o homem moderno.

Com certeza o pensamento de Pascal é muito atual e nos auxilia na compreensão do mundo em que vivemos. O filósofo é muito conhecido pelo seu pensamento um tanto quanto trágico e podemos dizer até um pouco pessimista em relação à antropologia e ao estado em que o ser humano se encontra.

O itinerário realizado pelo pensamento de Pascal inicia com uma contextualização histórica de seu pensamento, logo no primeiro capítulo, uma pequena biografia, onde mostraremos os fatos relevantes da vida do pensador. Com sua visão de homem, enquanto um ser miserável e finito.

Em seguida, no segundo capítulo, mostraremos que o homem é um ser lançado no mundo que está extraviado, fora de seu curso natural. O homem não tem um ponto fixo, falta-lhe um referencial. A causa disso tudo é a queda a partir de um estado antropológico originário.

Pascal nos apresenta um estágio da existência em que o homem vivia em um estado de graça, contemplava Deus face a face, era forte e justo. Com o pecado original isso acaba. O homem caído é miserável e sabe que só Deus é capaz de preencher o vazio que existe dentro dele. Mas ele busca preencher esse vazio com coisas finitas, caindo no divertimento. O divertimento tem como finalidade distrair o homem daquilo que ele realmente é, faz com que, mesmo que por pouco tempo, o homem se esqueça da sua miséria e finitude.

110 Conhecimento e condição humana

Pascal apresenta o termo caniço pensante para

definir o homem. Somos pequenos e frágeis, mas grandes porque pensamos. Nossa dignidade e grandeza estão no pensamento. Isso desde que ele nos leve a reconhecer nossa miséria e pequenez. Precisamos compreender que nossa grandeza está nisso: pensar bem. E pensar bem é ter consciência das limitações e do estado em que nos encontramos.

Há também no homem a ação das forças enganadoras, sendo elas: imaginação, costume e divertimento. O homem tem sua razão orientada e domada pela imaginação. O costume cria a nossa forma de ver o mundo e os nossos juízos, para ele todos os nossos princípios são de hábito.

Quanto ao divertimento, ele é usado pelo homem a fim de esquecer seu estado. O divertimento não está apenas relacionado ao lazer, mas pode ser um trabalho, uma ocupação qualquer, uma posição política, os estudos ou ainda uma vida religiosa. Algo interessante é que ele aponta que o homem não consegue ficar sozinho em um quarto, pois sentirá tédio e angústia, por isso está constantemente buscando o divertimento, que o desvia de pensar na sua existência vazia e miserável.

No terceiro capítulo, demonstraremos a necessidade da religião cristã para o homem. O homem é um ser decaído pelo pecado original. Ele não pode conhecer a essência de Deus, por esse motivo não se pode provar racionalmente a existência de Deus. Pascal não é simplesmente um teólogo, ele parte da antropologia e de uma análise das fraquezas e limitações humanas para, assim, chegar a Deus. É isso que pretendemos mostrar com a presente pesquisa: Pascal opera uma discussão ao nível da filosofia da religião. A sua discussão é fundamentar a antropologia em bases teológicas.

O homem criado por Deus contemplava a Deus. Era justo e forte. Não continuou nesse estado, pois pecou. O pecado original exerce implicações diretas na condição

Introdução da parte II 111

humana. O pano de fundo da antropologia pascaliana é o princípio teológico de que o homem é um ser que decaiu de Deus.

No entanto, como o homem não pode ter provas absolutas da existência de Deus (O próprio pecado original criou um abismo entre Deus e o homem), ele precisa apostar nesse ser supremo. Daí surge o tema da aposta e, assim, tema do terceiro capítulo. O argumento da aposta não é baseado na verdade, mas na vantagem. Por outro lado, mostraremos que Pascal pode ser considerado um “autor trágico” na medida em que observamos que não há referenciais fixos e seguros em seu pensamento, não sendo nem a religião esse “porto seguro”.

Ao apresentarmos no corpo do trabalho citação direta do texto do filósofo, abreviaremos Br. que corresponderá à edição Brunschvicg e usaremos Lf., ao citarmos a edição de Louis Lafuma. Para que o leitor acompanhe o texto e tenha um melhor diálogo com a obra do filósofo, citaremos sempre as duas versões de forma que a primeira será a que corresponde ao fragmento citado e a outra servirá como auxílio, caso o leitor não se encontre com as duas edições. Isso significa que ao fazermos uma citação direta da edição Lafuma, este se encontrará citado primeiramente a abreviatura Lf., e em seguida Br., mostrando qual fragmento citamos nas duas edições.

112 Conhecimento e condição humana

= I =

UM CONVERTIDO QUE ASPIRA CONVERTER Iniciando esse trabalho apresentaremos uma

contextualização do período histórico e da vida de Pascal. Para entendermos melhor o pensamento desse autor faz-se necessário uma análise bibliográfica e veremos porque, para quem e como ele escreve. Mostraremos que ele é um convertido que tem como intenção converter em um tempo de descobertas cientificas, em que a fé cristã tem como pano de fundo o racionalismo e o ceticismo. Também devemos ressaltar que todo o conteúdo histórico terá como base um livro biográfico sobre Pascal.1

1.1 O SÉCULO XVII E O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO ALICERÇADO NA TEOLOGIA

Observamos que a revolução científica produziu

uma mudança radical na forma de o homem ver o mundo físico e, com isso, fez também com que ele mudasse sua concepção de indivíduo, sociedade e propósito de vida. Ela foi fundamental para a construção do mundo moderno. Os homens deixaram de lado a concepção de mundo medieval2 fechado e infinito. Colocaram a concepção moderna de que há um espaço ilimitado e com número infinito de corpos celestes. A partir daí não existe mais limite entre os céus e a Terra, muda-se também a noção de Deus.

1 Trata-se do Livro: Blaise Pascal ou o gênio francês de Jacques

Atalli, traduzido pela editora EDUSC no ano de 2003. 2 Na qual a terra ocupava o lugar central, o céu situava-se mais além das estrelas fixas e cada objeto tinha seu lugar numa ordem hierárquica e qualitativa.

114 Conhecimento e condição humana

Todas essas questões levaram o homem a uma

crise e a se questionar com as seguintes indagações: seria o universo criado apenas para os seres humanos? Poderia ele conter um céu para os fiéis e um inferno com chamas eternas para os pecadores? Hoje sabemos que existem bilhões de corpos celestes e a Terra é mais um desses, um ponto minúsculo no universo.

Nesse tempo eram poucos os que estavam cientes das profundas implicações da nova cosmologia. Pascal era um desses. Como católico devoto, ficou amedrontado com a infinitude do universo e se expressa da seguinte maneira: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”.3 Essa formulação aponta para o fato de que a nova ciência poderia fomentar dúvidas, incerteza e ansiedade. Tudo isso poderia ameaçar a crença.

A nova concepção de razão divergia dos escolásticos medievais.4 Agora a ocupação fundamental da razão é a investigação da natureza, assim ela passa a ser autônoma, livre de qualquer submissão. Foi estimulado também um desenvolvimento crítico e racional entre a elite intelectual. Foi argumentado que os fenômenos atribuídos a forças ocultas poderiam ser explicados recorrendo-se a forças naturais, havendo um distanciamento entre os intelectuais e a massa que continuava com suas crenças e superstições.

As ciências modernas não combatem as igrejas, afinal não havia sérios conflitos entre o cristianismo tradicional e a nova visão de mundo físico. Os homens acreditavam compreender as leis naturais instituídas por Deus.5 Mas o cristianismo tradicional foi enfraquecendo, foi questionada a verdade literal contida na bíblia e rejeitaram

3 PASCAL. Pensamentos, Lf. 201; Br. 206 4 Os escolásticos medievais entendiam a razão como um instrumento único na contemplação da verdade divina e ela deveria sempre estar a serviço da teologia. (PERRY, 2002, p. 283) 5 Finalmente a mente humana era capaz de compreender a magnifica obra de Deus.

Um convertido que aspira... 115

os milagres, sendo substituídos por aquilo que ensina a ciência. A teologia que era considerada a principal forma de conhecimento foi acusada de construir uma barreira à compreensão e até mesmo foi tida como irrelevante. Ela parecia estéril e ineficiente perante a nova ciência. A cultura europeia passava por uma grande transformação, marcada pelo triunfo de um espírito secular e científico entre a elite intelectual.

Aplicando, nesse tempo, a teoria da dúvida de Descartes, começaram a rejeitar a autoridade e deram ênfase à clareza, precisão e exatidão de uma ideia. Foram consideradas como supérfluas a magia, o encantamento, os demônios, a feitiçaria, a alquimia e a astrologia. Tinha-se como argumento que os eventos e acontecimentos tidos como ocultos e sobrenaturais poderiam ser explicados recorrendo-se à natureza. Houve, nesse período, um grande distanciamento entre a massa e a elite intelectual; afinal as massas continuavam buscando superstições e estavam ligadas ao dogma cristão.

Poder-se-ia refletir muito sobre esse rico período histórico, mas o foco da presente pesquisa não é este. Ressaltamos apenas aquilo que mais deve ter influenciado o pensamento do nosso autor. Diante desse contexto em que nasce Blaise Pascal se verá agora um pouco mais de sua vida. É de suma importância relatar-se que o seu pensamento está intrinsecamente ligado com a sua vida e o seu tempo. Portanto, este capítulo servirá para a melhor compreensão da filosofia pascaliana.

1.2 DA CRIANÇA PRODÍGIO AO JOVEM LIBERTINO

Pascal nasce em uma família da baixa nobreza

provinciana que vivia prestando serviços ao rei e esse seria o seu futuro. Podemos dizer que sua família era de pequenos burgueses ou aristocratas modestos ou ainda que fizeram parte do alto terceiro estado, chegando a acumular um certo capital.

116 Conhecimento e condição humana

Étienne Pascal casou-se, em 1616, com Antoinette

Begon, filha de um parlamentar. O casal foi morar em Clermont, cidadezinha com aproximadamente nove mil habitantes. Pouco tempo depois, nasceu a primeira filha Antônia, que logo morreu. Gilberte nasceu em 1620 e Blaise, em 19 de junho de 1623; e, em 05 de outubro de 1625, nasceu Jacqueline. Têm-se diversos relatos detalhados de Blaise devido aos escritos de sua irmã Gilberte e os dois filhos dela Étienne e Marguerite.

O pai de Blaise não deixou que nem os filhos nem as filhas frequentassem a escola. Foi ele o único professor dos filhos. Havia frequentado as escolas de Clermont-Ferrand e as universidades parisienses, devido a sua experiência optou em não deixar que os filhos a frequentassem. Criou métodos pedagógicos bastante avançados para a época. Blaise começa a aprender latim mesmo antes de aprender completamente o francês, isso com aproximadamente sete anos. Não tinham muito contato com livros, a educação era oral e por meio do raciocínio.

Ao iniciar o ano de 1631, a família Pascal vai para Paris. Blaise era uma criança frágil, apega-se ao pai e à irmã mais nova. Seu pai não estava bem em Paris, em 1632, tenta pela segunda vez o cargo de presidente da Cour-des-aides de sua província, mas não conseguiu. Depois renuncia a qualquer função.

É Blaise quem recebeu os maiores esforços de Étienne; deveria sempre entender antes de aprender e a redescobrir mais do que a repetir. Devido a sua dedicação aos estudos ele acaba por se isolar e nada aprende das relações humanas. Fica quase enclausurado em casa, saía pouco e só com o pai, tinha apenas a companhia de suas irmãs e da governanta.

O pai de Pascal decide, em 1635, que o latim será falado na casa. Blaise tinha doze anos e quatro dias por semana falava a língua. Estudava também grego e hebreu, conversava durante as refeições com o pai sobre lógica,

Um convertido que aspira... 117

física e filosofia. Ele fala e lê bem o latim aos treze anos. Não ficava preso aos livros, mas gostava de ficar escutando os amigos de seu pai. Continua o mesmo menino franzino, magro, mimado e admirado pelo pai e pelas irmãs. Era muito nervoso, sofria de enxaqueca e não tinha amigos.

A França estava na guerra dos “Trinta Anos”. Étienne participa de uma manifestação juntamente com mais de quatrocentos aplicadores. Ele era um dos organizadores desse protesto. Foram, depois, identificados os quatro líderes estando Étienne entre eles. Três foram presos e ele ficou se escondendo com medo de ser preso também. Raspou a barba e dormia, às vezes, em casa e, às vezes, nas casas dos amigos. Ao meditar sobre a realidade do pai e sobre a relatividade da justiça nos diz Blaise: “[...] divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém dos Pireneus, erro além”.6

Étienne, ao voltar para a casa, percebe que Blaise, no tempo de solidão, não se entregou à preguiça ou ao divertimento, mas estudou, mesmo sendo um adolescente de dezesseis anos. Aos dezoito anos ele era diferente, não se rebelou contra o pai, nem contra o que havia aprendido, não se fechou num autismo. Ele pensava livremente e escrevia com simplicidade.

A família Pascal passa por uma crise, o pai era uma alta autoridade, mas com algumas mudanças precisará prestar muita atenção à qualidade do seu trabalho, pois o novo senhor, Mazarino, poderia designar um de seus favoritos para o cargo. Blaise percebe tudo isso, mas não se importa em procurar um emprego ou ganhar a vida por conta própria. Mesmo nos momentos mais difíceis de sua vida, quando estava sem dinheiro, sozinho, abandonado por todos, não lhe parece imaginável trabalhar.

Blaise continua estudando matemática por prazer e lê alguns textos religiosos. A biblioteca da família não é tão boa quanto a de Paris. A família Pascal escreve, pesquisa,

6 PASCAL. Pensamentos, Br. 294; Lf. 60

118 Conhecimento e condição humana

discute muito, mas lê muito pouco. Fala-se muito pouco sobre o fato de que Jacqueline foi pedida em casamento aos dezoito anos. Seu pai não mostra muito interesse, pois a fortuna do jovem não é considerável. Blaise mostra-se bem apegado à irmã e fica doente. Usa toda sua sabedoria para desiludir a irmã, critica o jovem, diz que ela é nova e que não podia deixá-lo sozinho, pois era muito novo.7 Ela não aceita o casamento e a saúde de Blaise melhora.

O pai da família está cansado, tem cinquenta e seis anos, organiza papéis de mil e oitocentas circunscrições, precisa fazer difíceis e complicados cálculos. Todo erro é punido de forma severa. Não há outro meio para trabalhar se não a mão e ele teme que o raciocínio não esteja mais tão rápido. Blaise vê seu pai cansado e abatido e conclui:

Sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua honra, dos bens, dos amigos, e ainda dos bens e da honra dos amigos; cumulam-nos de afazeres, do aprendizado das línguas e de exercícios e se lhes dá a entender que não conseguiram ser felizes sem que a sua saúde, honra e fortuna, e as de seus amigos estivessem em bom estado, e que a falta de uma única coisa dessas os tornará infelizes. Assim, são lhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça desde o raiar do dia. Aí está, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer melhor para torná-los infelizes?8

Tendo em vista o cansaço do pai, o jovem Pascal

começa a pensar em criar sua famosa “máquina de calcular” para ajudá-lo no serviço. Projeta primeiramente automatizar a soma e a multiplicação. É preciso fazer um número passar automaticamente de uma coluna para outra. Usa técnicas analógicas de relojoaria. Em alguns meses monta um esquema teórico, no qual cada roda ou vareta, ao girar dez algarismos, provoca o levantar de um

7 Pascal tinha vinte anos! 8 PASCAL. Pensamentos, Lf. 139; Br 143

Um convertido que aspira... 119

algarismo na roda ou vareta seguinte. Nisso consiste o princípio da máquina de calcular, podendo-se dizer que foi precursora do computador.

Depois de melhoras e mais pesquisas manda fabricar sua primeira máquina de seis algarismos, mas ela não funciona direito. Decide reunir uma equipe de operários patrocinados pelo seu pai. Ainda não acerta. Na terceira tentativa coloca molas sobre as rodas para facilitar a passagem da dezena para a centena. Enfim o modelo novo funciona.

O sucesso da máquina de Blaise restringiu-se à curiosidade que despertava. O seu preço era elevado e tinha problemas com a fabricação e a regulagem, mas ele não desiste. Entre 1642 e 1644 manda fabricar mais de 50 máquinas9. Tenta garantir o direito de propriedade e comercializá-la, precisa de um privilégio real capaz de só permitir comercializar as máquinas fabricadas por ele ou com sua garantia. Vai com seu pai a Paris mostrar o invento na Academia de Mersenne. Lá são aplaudidos, mas ao pedirem apoio não o conseguem.

Seu pai decide mandar a máquina a Mazarino. Ele manda fabricar um protótipo especialmente para isso com oito engrenagens. Cansado de esperar pelo sucesso, Blaise anuncia a máquina em uma espécie de prospecto publicitário.10 Há algumas encomendas. Até a rainha de Polônia leva duas para Varsóvia. Sobre essa questão vale a pena observarmos:

Contudo, Pascal foi quem primeiro, na história da humanidade, automatizou a manipulação de sinais e realizou uma máquina capaz de programar regras operatórias. Mas está três séculos adiante de sua época. Sua máquina de calcular continuará, ainda por muito tempo, sendo um simples objeto de curiosidade. A segunda máquina do mesmo tipo só será imaginada em 1920 pelo inglês Babbage. Não vai funcionar. Na

9 Fabricou algumas de madeira, outras de marfim e de ébano de cobre. 10 Foi o primeiro para um produto industrializado.

120 Conhecimento e condição humana

verdade, todos os computadores de hoje não passam de um aperfeiçoamento da máquina de Pascal [...].11

Em 1645, Jacqueline é pedida em casamento por

um conselheiro no parlamento de Rouen. Ela pensa em aceitar e seu pai a incentiva. Novamente Blaise faz de tudo para ela não aceitar, fica doente com paralisia nas pernas e desmaios. Ela cuida dele noite e dia. Ele comenta com ela o que acabou de descobrir com o jansenismo12 e de tudo que há para aprender sobre Deus e se consagrar a Ele. Ela comenta o desejo de ingressar em uma ordem de religiosos. Blaise se assusta e fala com seu pai que também a inibe. Ao decidir que, por enquanto, ficará com o pai e o irmão, Blaise se tem uma melhora na sua saúde. Pascal inicia agora a reflexão sobre uma questão que não mais deixará de preocupá-lo: a da salvação e da responsabilidade de cada um sobre seus atos. A fama de Pascal se espalhava por toda a França.

Diante disto, Descartes ficou intrigado com Pascal. Irritado com suas pretensões em matéria de geometria. As ideias de uma máquina de calcular e o tratado do vácuo deixaram-no perplexo. Ele pede que Pascal o visite, mas este não se sente bem para atravessar a cidade. Descartes não gostou, e considera o jovem como orgulhoso. Então o filósofo vivo mais importante da Europa vai visitar o jovenzinho de vinte e quatro anos. Isso

11 ATALLI, Jaques. Blaise Pascal ou o gênio francês. Bauru: EDUSC,

2003. p.70 12 É uma corrente teológica fundada pelo holandês Cornelio Jansenio, afirmava que a razão filosófica era a “mãe de todas as heresias” em outras palavras, condenava qualquer pensamento livre, não sujeito ao controle da Igreja. Segundo ele, o homem não era guiado por sua livre vontade; era predestinado, e a salvação não dependia de suas ações, mas, unicamente, da graça divina. Apesar de oficialmente condenada pelo Papa, propagou-se com rapidez, na França, tendo como principal centro difusor o convento de Port-Royal. Os jansenistas franceses passavam a pregar o retiro solitário e o desprezo pela vida material e social.

Um convertido que aspira... 121

acontece no dia 23 de setembro de 1647, às 10 horas da manhã. Blaise o recebe na cama. Ele quer saber se Pascal está realmente doente e o interroga sobre os sintomas, mas ele não responde nada. O filósofo, gabando-se de também ser médico, receita-lhe caldo e repouso. Pascal lhe apresenta a máquina de calcular e a seringa de fazer vácuo. O jovem surpreendeu Descartes com seu silêncio. Ele volta, então, no outro dia antes de ir para a Holanda. Não se sabe muito desse encontro. Dois anos mais tarde, o velho Descartes diz ter dado conselhos ao jovem Pascal.

Blaise, em sua juventude, não está mais feliz vivendo em clausura com o pai doente e a irmã. Começa a querer andar pelo mundo, agradar as mulheres, responder ao desafio da inteligência e aos enigmas que possa encontrar no mundo. Durante três anos de agitação mundana e com questões surgidas por acaso, inventa o cálculo das probabilidades, descobre os princípios do cálculo infinitesimal e integral; formula sua teoria do vácuo e começa a projetar um livro sobre a condição humana.

Jacqueline continua tomando conta da casa da família. Étienne entra em depressão e quase não sai de casa. Blaise ignora essa realidade para se encontrar com amigos nos salões e na academia. É visto com algumas mulheres eruditas da época. Não era feio e falava muito bem. Alguns conhecem seus tratados e sua máquina de fazer contas. Tem coche e cocheiro, usa relógio no pulso, bem antes dos outros. Sente-se à vontade em todos os lugares; é levado para a corte pela duquesa de Aiguillon. Sua irmã Gilberte não gosta da vida que ele está levando. Inicia uma amizade com o jovem Arthus Gouffier13, duque de Roannez, que em 1652 é nomeado governador do Poitou. Ele sente por Blaise uma amizade sincera e profunda admiração, pois vê nele o cientista que gostaria de ter sido. Pascal faz novos amigos por meio dele, geralmente personalidades notáveis da época e não

13 Após a morte de Pascal mandará pulicar seus escritos e espalhar pelo mundo.

122 Conhecimento e condição humana

pessoas comuns. Ele é seduzido pela exigente moral apresentada por Antoine Gombaud, cavaleiro de Méré. Este o leva a descobrir a vida de sociedade e a ler Montaigne e Epicteto e o inicia nos jogos de dados.

Blaise e Jacqueline assistem, em sua residência, na cidade de Paris, a morte de Étienne Pascal, aos 24 de setembro de 1651. Quatro dias depois, Gilberte ainda não sabia da morte do pai e dá à luz o sexto filho. Só no dia 17 de outubro daquele ano, Blaise resolve, sozinho, escrever a Gilberte sobre o acontecido.

Jacqueline havia jurado ao pai que enquanto ele estivesse vivo não entraria no convento. Agora ela está livre da promessa. Volta a Faubourg Saint-Jacques para ver Madre Agnés e acertar sua entrada no convento de maneira tradicional, mas a madre lhe diz que nesse caso não é necessário fazer o postulantado14. Com sua cultura pode já ser professora. Ela insiste em fazer o postulantado até tomar posse da herança e doá-la ao convento. Mas, como em Port-Royal dinheiro e lucro não contam, acabam por acolhê-la.

Lá ela não poderia ter ostentação, luxo ou riqueza. Decidem que será noviça antes de receber a herança, mas não fará as promessas. Ela confessa à irmã a intenção de ingressar em Port-Royal e as duas escondem o segredo do irmão. Em 4 de janeiro de 1652, avisando apenas a irmã, Jacqueline vai para o convento. Quando Blaise percebe tal fato vêm as convulsões, dores, paralisia e fica atordoado. Gilberte não sabe o que fazer e Jacqueline ignora, pois já conhece a chantagem dele. A herança torna-se um problema, pois se ela faz os votos antes de receberem, perde sua parte. Começa a pedir a Blaise para adiantar a parte dela, mas ele ignora suas cartas. E nos divertimentos mundanos, foge da morte do pai e da partida da irmã.

14 São os quatro primeiros anos no convento. Que são validos pelos quatro anos que ela foi impedida pelo pai de ingressar na vida religiosa.

Um convertido que aspira... 123

Os irmãos se encontram para tratar da herança.

Jacqueline propõe abrir mão de metade de sua parte15 para os irmãos que em troca disso dariam a outra parte imediatamente. Os Périer recusam. Não veem razão em dar dinheiro às religiosas. Blaise também começa a recusar, dizendo não ter dinheiro.

Blaise vai morar com Gilberte e Florin. Todos estão preocupados com as dores no olho de Marguerite Périer, filha de Gilberte, sobrinha e afilhada de Blaise. Em 5 de junho de 1653, Jacqueline professa e Blaise fica escondido atrás da grade, silencioso e chorando.

1.3 CONVERSÃO

Desde que sua irmã entra no convento e faz a

profissão Blaise fica em crise, demonstra-se insatisfeito. Mesmo assim continua a escrever. Gilberte percebe sua mudança de comportamento, mas não vê ligação com a partida da irmã. Vai acumulando pensamentos cada vez mais negros. Pensando em Jacqueline escreve:

A verdadeira e única virtude está, pois em odiar a si mesmo, pois se é odiável pela concupiscência, e em buscar um ser verdadeiramente amável para amar. Mas como não podemos amar o que está fora de nós, é preciso amar um ser que esteja em nós, e não seja nós.16

Aos poucos ele vai aceitando a ideia da irmã. O que

não quer agora é afastar-se dela. Começa a visitá-la e se muda para ficar mais perto de Port-Royal. Ele é orientado a fazer um retiro. E, no dia 23 de novembro de 1654, de 22:30h até a meia-noite e meia, é deslumbrado por uma espécie de “fogo”. Ele sente escapar-se do corpo e voar.

15 Aproximadamente 23.000 libras. 16 PASCAL. Pensamentos, Lf. 564; Br 485

124 Conhecimento e condição humana

Pensa que Deus está com ele, desmaia e desperta ao amanhecer. Com mão firme escreve:

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios. Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz. Deus de Jesus Cristo. Deum meum et Deum vestrum. Teu Deus será meu Deus. Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus. Ele só se encontra pelas vias ensinadas no evangelho. Grandeza da alma humana. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci.17

O manuscrito é impressionante, tem escrita

precisa, forte e jubilosa. Com trinta e um anos Pascal passa para outro lado do mundo.

No dia seguinte a essa experiência, ele sente vontade de falar com Jacqueline. Ela, muito desconfiada, escuta-o e questiona-o sobre tudo, não sendo muito crédula. Ele diz que está dizendo a verdade e que mudou e quer conhecer mais sobre Deus e aprofundar sua fé. E o jovem que sempre se considerou o melhor juiz de si mesmo, que nunca aceitou que alguém lhe ditasse a conduta, insiste em ter um diretor de consciência, pois agora não aguenta seguir sozinho. Propõe que ela faça essa função, mas ela fica irritada, pensando que ele poderia ter inventado isso para encontrar um motivo de vê-la com mais frequência. Então lhe propõe outras pessoas.

Ele vai para casa, sofre das pernas, fica trancado; lê e escreve com urgência. O duque de Roannez achando estranha a ausência de Blaise, vai procurá-lo. E ele conta sobre a “noite”. O duque ouve meio cético e propõe uma viagem a Poitou para conversarem mais. Antes chega a carta na qual Singlin aceita ser diretor de consciência de Pascal e ele renuncia à viagem. Singlin propõe-lhe um retiro, mas ele diz querer apenas um diretor de

17 PASCAL. Pensamentos, Lf. 913.

Um convertido que aspira... 125

consciência. Seu diretor argumenta a dificuldade de orientar quem não quer ser orientado.

Aos trinta e um anos Pascal se sente longe dos prazeres do mundo. Suas dores de cabeça são constantes. Nada acaba com elas. Sente vontade de morrer, com um estranho desejo de estar próximo de Deus logo. Não pensa em suicídio pelo medo do Inferno.

Em 07 de janeiro de 1655, Pascal aceita o convite de Singlin. É muito bem recebido para o retiro, afinal é um hóspede notório e irmão de uma religiosa promissora. Todos os solitários querem conhecê-lo. Ao chegar se adapta ao modo de vida dos solitários sem se considerar um deles. Acorda às cinco da manhã, vai assistir ao ofício e lê a bíblia. Faz leituras também de Santo Agostinho, Epicteto, Montaigne, Charron e Grotius. Conversa demasiadamente com Antoine Arnauld. Os dois têm muito em comum. Antoine foi advogado famoso e depois se tornou sacerdote e teólogo, interessado por matemática. Nasce entre os dois uma amizade intensa e conflituosa.

Entre os solitários se comentava muito sobre a bula papal que condenava as cinco proposições matemáticas. Blaise não fica muito feliz em meio às discussões teológicas. Singlin não aceita ser o seu diretor de consciência e indica Isaac Le Maistre Sacy, que mora em Port-Royal-des-Champs. Porém Pascal não tem intenção de morar lá. Seriam necessárias oito horas de viagem toda vez que quisesse uma orientação.

Contudo, vai procurá-lo e tem início a conversa entre os dois. Comentam sobre Montaigne, Epicteto e a Bíblia. Discutem ainda sobre os milagres, o povo judeu, o pecado original e a aposta em Deus. Pascal que era visto como um físico convertido, surpreende o seu diretor de consciência com a profundidade de reflexão, riqueza de referências e sutileza de raciocínio com que fala. E Pascal se agrada com o diretor que lhe foi indicado. Sua saúde melhora e ele volta a escrever, sobretudo, a respeito da conversão dos primeiros cristãos.

126 Conhecimento e condição humana

Passadas três semanas entre os solitários Pascal

quer ir embora. Seu diretor de consciência o convida para dar uma conferência sobre o pessimismo de Montaigne e o otimismo de Epicteto; o pessimismo cristão e o otimismo pagão. Assuntos que eles conversaram. Ele aceita e fala duas horas àquele público de alto nível. Diante do qual os dois tem um embate intelectual formidável.

É por meio de uma carta que Pascal descreve a Jacqueline como foi o retiro. E ela transmite a Gilberte. Essa fica pensando se seria a única da família a não ter o dom da graça. Pensa também em deixar marido, filhos e bens para salvar a sua alma e também entrar no convento.

Aos 29 de janeiro de 1655, Pascal volta para a casa, continua sofrendo das pernas e tem que escrever deitado. É proposto a ele casamento com uma das mais ricas herdeiras da França, Mille. De Mesmes. Ele está em dúvida, mas a ideia não lhe agrada muito. No mesmo ano volta várias vezes a Port-Royal para fazer retiros. Demonstra alegria por ter um pretexto para ver Jacqueline com mais frequência.

Um ano depois, em janeiro de 1656, Pascal escreve em três dias uma carta a um provincial em favor de um de seus amigos sobre o assunto das disputas presentes na Sorbonne. É proposto por Arnauld que ela seja lida aos solitários. Ele aceita e chama Roannez para ver o que ela provoca em um leigo. Ele ousa pôr os jesuítas em cena e fazer rir à custa deles. Um debate entre jesuítas e jansenistas. Todos aplaudem e Arnauld quer mandar imprimir.

Devido à censura do rei o texto deveria ser publicado rapidamente e em segredo. Ele foi publicado sem constar o nome do autor. O título e o anonimato do autor chamam a atenção. Ninguém se arrisca, até então, a ridicularizar dessa forma Sorbonne e os jesuítas. Rapidamente foi um sucesso. O chanceler Séguier ordena o início de uma investigação sobre os livreiros, pois essa indicava que deveria vir mais cartas. Seis dias depois, foi

Um convertido que aspira... 127

publicada uma outra carta mais pesada. Depois, publica a terceira carta criticando o poder. Os seis mil exemplares foram vendidos mais rapidamente que as anteriores.

A quarta carta é publicada em 25 de fevereiro. Nela Pascal ataca os casuístas e diz que conduzem diretamente ao Inferno aqueles que os seguem. Em 20 de março, na quinta provincial, denuncia os pecados para os quais os jesuítas fecham os olhos. Diante de tanta polêmica observa dizendo: “Se minhas cartas são condenadas em Roma, aquilo que nelas condeno é condenado no céu”.18 Novamente fica doente. Viagens e o medo daquela luta o cansam. Sente dificuldade de escrever.

Fato interessante é que, naquele ano, em Amsterdã, a comunidade judia bane Spinoza e, em Paris, um erudito do rei cria o “Hôpital Géneral” para internar pobres, ociosos, inúteis e perigosos. Esses fatos foram muito relevantes em toda a Europa.

A criança Marguerite, filha de Florin e Gilberte, sofre de uma espécie de purulência do olho esquerdo. Os médicos de Auvergne queriam cauterizá-la com uma lâmina quente. Seus pais rejeitam tal método e vão a Paris para consultar outros profissionais. Eles a internam, em Port-Royal, junto com a irmã para que ela não se sinta só. Jacqueline fica sendo responsável pelas duas crianças. Convida os melhores médicos de Paris para verem a criança. Eles confirmam o diagnóstico e o tratamento proposto anteriormente.

O mal piora no fim de 1654 e Jacqueline escreve para Florin, pois, segundo os médicos, se não cauterizarem a purulência ela vai morrer. Marguerite sofre de terríveis enxaquecas e está com quase dez anos. Como Blaise visita Port-Royal com frequência, ele sempre a vê.

Port-Royal recebe para exposição por um ou dois dias o relicário com um espinho da coroa de Cristo. É sexta-feira santa e todos passam, beijam o crucifixo e a

18 PASCAL. Pensamentos, Lf. 916; Br. 920

128 Conhecimento e condição humana

relíquia. Vêm também as crianças coordenadas pela irmã Flavie Passart. Ela sinaliza para Marguerite, que está se contorcendo em dores, a encostar a chaga na relíquia. Detalhe é que nenhuma outra criança toca na relíquia depois.

Pelo fato de estar vivendo o período quaresmal, a regra era silêncio. À noite Marguerite vai acordar irmã Flavie, que chama Madre Agnés e esta avisa Jacqueline. Iluminadas por um candelabro, ficam pasmas e incrédulas ao verem que a chaga sumiu totalmente de seu olho e ela não sente mais nada. Por quatro dias esperaram a fim de se certificarem que não é uma melhora passageira. Jacqueline avisa Blaise, Florin e Gilberte. Por mais dois dias o convento guarda o segredo. Madre Agnés resolve mostrar a criança aos médicos que antes a atenderam. Eles dizem que ela está curada. Na outra sexta quatro médicos escrevem reconhecendo o milagre. Pascal observa o fato como um sinal e anota: “Como odeio aqueles que fingem duvidar dos milagres!”19

O papa Bento XIII, no século XVII, reconhece a cura e cita como exemplo da ação de Deus, na vida da Igreja. O fato é reconhecido até hoje por Roma como milagre. Muitos afirmam que, em Port-Royal, aconteceram vários outros milagres.

Os jesuítas estão na defensiva devido ao sucesso da quinta provincial e do inesperado milagre. Desde o milagre, Florin e seu filho Étienne moram com Blaise. Florin o observa escrever e percebe que o autor desconhecido é seu cunhado. Ele não entende muito sobre as polêmicas, mas também não denunciaria Pascal.

A sexta provincial é publicada em 10 de abril. Ele se defende dos jesuítas. Elas são muito vendidas e, às vezes, chegam a ser lidas por padres no púlpito em Paris e nas províncias onde se está sendo implantado o jansenismo. Depois de quinze dias, publica a sétima carta e ataca o que chama de direção de intenção. Em 28 de

19 PASCAL. Pensamentos, Lf. 872; Br. 813

Um convertido que aspira... 129

maio, publica a oitava provincial, que continua dissecando a moral relaxada dos jesuítas.

São publicadas ainda, em 03 de julho, a nona carta e a décima, em 02 de agosto. Elas estão cada vez mais violentas. Na décima primeira carta, em 18 de agosto, Pascal provoca ainda mais os jesuítas. Algumas de suas citações são contestadas e ele escreve a décima segunda carta, em 09 de setembro, para comprovar a veracidade delas. Na décima terceira carta, em 30 de setembro, acusa os jesuítas de levar o homem a acreditar que pode ser salvo apesar dos pecados. Há um tom mais violento na décima quarta carta que publica em 23 de outubro. Ele volta a falar da calúnia de seus adversários, na décima quinta carta, no dia 25 de novembro.

A décima sexta carta foi escrita de forma mais longa e publicada em 04 de dezembro. Em 23 de janeiro de 1657, foi escrita a décima sétima carta. Encontra dificuldades para imprimir a décima oitava carta que foi censurada. Chega a fazer anotações para a décima nona carta em abril, mas acredita já ter dito tudo. Para evitar que elas se percam ele as publica juntas, em Colônia. Depois, elas foram traduzidas para o inglês e o latim.

Blaise está muito dedicado em seus estudos. Não tem tempo para o amor, para as pessoas mais próximas e nem para si mesmo. Come muito pouco. É amado por Charlote que ele conhece desde pequeno, irmã de Arthus. Pascal precisa despistá-la sem deixá-la zangada. Diz ela que, se ele não a quiser, será freira. Seu irmão não quer. Pascal a aconselha por meio de cartas. Ele não é muito favorável ao casamento e dirá mais tarde: “A natureza do amor-próprio e desse eu humano está em não amar senão a si e em não considerar senão a si”.20

Jacques Atalli relata sobre os últimos cinco anos da vida de Pascal:

20 PASCAL. Pensamentos, Lf. 978; Br. 100

130 Conhecimento e condição humana

[...] constituem um desafio para todo biógrafo. Quando interrompe as provinciais no meio da redação da décima nona, entra no período mais criativo da sua vida. O mais doloroso também: mora na Rua Francs-Burgeois-Saint-Michel com um criado e os Delfauts. Às vezes é visitado pelas sobrinhas Jacqueline e Marguerite, que estão sendo educadas em Port-Royal, e pelos sobrinhos Étienne e Louis.21 Quando tem forças, Blaise visita Jacqueline.

Cultiva a amizade com os duques de Roannez e de Luynes que se converteram ao jansenismo. Como filósofo produz uma desesperada reflexão sobre a condição humana. A filosofia política de Pascal é simples. Só é possível melhorar a sociedade pela reforma espiritual e moral dos governantes. Acredita na superioridade dos pensadores e na educação dos príncipes. Conclui que só se pode melhorar a sociedade educando os herdeiros e os sucessores dos príncipes.

1.4 APOLOGÉTICA

Blaise Pascal tem a ideia de escrever uma apologia

à religião cristã. No início do século XVII, a apologia tornou-se um gênero literal muito usado. Ele queria demonstrar a verdade do cristianismo e contar toda a história da condição humana. Quer mostrar que o pecado de Adão enfraqueceu o homem e o impediu de ter esperança de felicidade aqui na terra. Vai contra os filósofos e mostra que o único caminho para a felicidade é o de Jesus.

Para o filósofo, Deus não é nem evidência natural nem um dado racional. Ironiza Descartes que afirma ter provado a existência lógica de Deus e não observou que a

21 ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. Bauru: Editora

Edusc, 2003. p. 221

Um convertido que aspira... 131

lógica é incapaz de demonstrar a imortalidade da alma. Não se pode conduzir a Deus impondo um saber ou uma verdade. Ele se esforça na missão de mostrar que a razão não é suficiente para compreender a condição humana.

Observa-se que Pascal tem noção de que não é possível descartar de modo total a razão, segundo ele:

Os homens têm desprezo pela religião odeiam-na e têm medo de que seja verdadeira. Para curar isso, é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão; em segui-la, que é venerável, respeitá-la: torná-la, em seguida, amável; fazer os bons desejarem que fosse verdadeira, e, depois, mostrar que ela é verdadeira; venerável, porque conheceu bem o homem; amável, porque promete o verdadeiro bem.22 Ao tratar questionamentos referentes à condição

humana é necessário ultrapassar a razão. Para o filósofo excluir a razão ou somente admiti-la são excessos. Não se deve tentar explicar de modo racional todos os mistérios da fé. Não se pode acreditar em Deus senão pelo amor. Crer nele porque tenhamos demonstrado sua existência não tem sentido. Demonstrar a realidade histórica de Deus e levar à compreensão de que Cristo veio trazer resposta a todas as questões são os dois pontos nos quais ele se organiza.

Como não se pode provar a existência de Deus por uma experiência, deve-se buscá-lo na História. Ele não pode ser demonstrado experimentalmente, mas por meio de testemunhos. Deve-se amá-lo para vê-lo. Ainda acusa os casuístas de dizer saber tudo sobre Deus e não o amar. Diz que o Deus dos Cristãos é:

[...] um Deus de amor e consolação; é um Deus que enche a alma e o coração daqueles que o possuem; é um Deus que lhes faz sentir, interiormente, a própria miséria e a sua infinita misericórdia; que se une ao fundo

22 PASCAL. Pensamentos, Lf. 427; Br. 194.

132 Conhecimento e condição humana

de suas almas; que as enche de humildade, alegria, confiança e amor; que os torna incapaz de outra finalidade senão ele mesmo.23 “É o coração que sente Deus e não a razão”.24

Nessa frase é explicitada a palavra “coração” que ele muito usará. Diz que a razão e o coração se complementam. Não se acredita em Deus e em Jesus só porque nasce em meio cristão? Que pensar do povo judeu do qual veio Jesus e não creram nele? Não é contraditório publicar um livro cujo tema é apologia à humildade, desejando a glória? São nestes três problemas que Pascal vai pensar.25

Acumulou cerca de oitocentos fragmentos, isso antes de 1658, sendo alguns com várias páginas e outros com apenas uma única frase. Depois ele começou a classificar os papéis. São separados, primeiramente, por temas. Agrupa-os em maços para depois se localizar. Depois, como era costume na época, fura as folhas com uma agulha e passa um barbante colocando em cima o título do maço. Amarra o cordão sem ficar muito apertado para facilmente desamarrá-lo quando precisar usar.

Aos 36 anos, trabalha todo o inverno. Em janeiro de 1659, sente dores abdominais, de cabeça e, de forma mais acentuada, nos dentes. Não conseguia remédio que melhorasse a dor. Nesse período termina a prece para pedir a Deus o bom uso das doenças. Tal texto tem grande ressonância na Igreja. Diz o enfermo Pascal:

Concedei-me a graça, Senhor, de ajuntar vossas consolações a meus sofrimentos, afim de que eu sofra como cristão. Não peço ficar isento de dores, pois essa é a recompensa dos Santos; mas peço não ficar abandonado às dores da natureza sem as consolações

23 PASCAL. Pensamentos, Br. 556; Lf. 449 24 PASCAL. Pensamentos, Br. 278; Lf. 424 25 ATTALI, op. cit., 2003, p.249

Um convertido que aspira... 133

de vosso Espírito; pois esta é a maldição dos judeus e dos pagãos.26

Entre fevereiro de 1659 e o verão de 1660, são

dezoito meses, a doença monopoliza seus pensamentos. Ele está muito fraco, ingere somente caldos e remédios. Não consegue escrever, ler, trabalhar e até responder as cartas que recebe. Depois de um mês, o estado da sua enxaqueca é tão crítico que os médicos o proíbem até mesmo de falar. Quando escrevia observava como a sua memória estava fraca, pois o pensamento lhe escapava. Não tem forças para visitar Jacqueline. Seus amigos ficam bastante tempo a seu lado. Quando consegue, ele dita as palavras a alguém que escreve e insere em algum maço de papéis.

Uma forte tristeza toma conta dele. Recebe a notícia, em janeiro de 1659, de que Jacqueline é eleita subprioresa de Port-Royal-des-Champs. Como estará mais longe, a dificuldade para visitá-la é bem maior. Sabe que não lhe convém pedir para que não aceite a eleição. Todos estranham, mas em março de 1660 ele tem uma melhora e volta a escrever, ler e a trocar cartas com Jacqueline.

Não vê a sua irmã Jacqueline há um ano. Nunca pensou suportar tanto tempo sem vê-la. Ela também não tem forças para visitar o irmão. O que lhe importa agora é completar o que iniciou. Passa dias pensando em seu livro. Planeja quatro grandes partes e, depois, duas como se vê:

Primeira parte: Miséria do homem sem Deus. Segunda parte: Felicidade do homem com Deus. Ou, em outras palavras: Primeira parte: A natureza está corrompida (por ela mesma). Segunda parte: Há quem a repare (pela escritura).27

26 MAURIAC, François. O pensamento vivo de Pascal. São Paulo:

Martins, 1961. p. 45. 27 PASCAL. Pensamentos, Br. 60; Lf. 6.

134 Conhecimento e condição humana

Pela mística do ódio a si mesmo prepara-se para a

morte. Vende os móveis e as tapeçarias para se livrar de tudo que lhe dá prazer. Coloca um cinto de ferro sobre a pele e o aperta quando algo lhe dá prazer. Quando tem forças para sair, vai para as igrejas de Paris. Sua saúde está melhorando. Em 16 de novembro, exatamente um ano depois do último encontro com Jacqueline, recebe dela uma carta na qual ela encerra praticamente dizendo que aspira à morte.

Angélique morre e Jacqueline se sente esgotada com o fato. A querida irmã de Blaise, no dia 04 de outubro, véspera do dia em que completaria 36 anos amanhece morta em sua cela. Supostamente ela deve ter perdido a vida por decidir assinar em favor dos jansenistas e por suas cartas terem sido interceptadas. Ela é sepultada em Port-Royal-des-Champs. Estão presentes Blaise e Gilberte. Estava também lá Arnauld, a quem Pascal considerava responsável pela morte dela. Seu irmão está arrasado pela dor e pela tristeza.

Pascal não consegue escrever e tem fortes dores de cabeça, no fim de 1661. Gilberte estava em Paris para cuidar dos três filhos que estavam com ele, pois seu irmão não tem mais forças para deles cuidar. Seu desejo agora é se preparar para a morte.

Paris vive um momento difícil. A miséria está se espalhando. As colheitas não foram boas. O preço do trigo é excessivamente alto. Há muitos mendigos perambulando. O número de asilos é multiplicado na intenção de enfrentar o problema. Blaise sente-se obcecado pela caridade. Dá seus bens e quer acolher os pobres em casa. Gilberte o contraria por medo de perder a fortuna. Sobre esse período ele comenta:

Amo a pobreza porque ele a amou. Amo os bens porque me dão meio de assistir os desvalidos. Guardo fidelidade a todos. Não devolvo o mal a quem me faz, mas lhes desejo uma situação semelhante à minha em que não recebe nem mal e nem bem por parte dos homens.

Um convertido que aspira... 135

Tento ser justo, verdadeiro, sincero e fiel com todos os homens e tenho ternura de coração por aqueles que Deus me uniu mais estreitamente.28

Muitos lhe falaram de grandes projetos de reforma

social. Para ele, estes projetos só darão certo se os responsáveis por ele também renunciarem aos seus bens. Somente os atos coletivos de caridade teriam condições de amenizar esse problema.

Recebe a notícia de que Port-Royal vai lhe devolver o dote de Jacqueline. Acredita que não deve tocar no dinheiro e sim usá-lo com os pobres. Com alguns amigos ricos cria o projeto de uma empresa capitalista, cujo lucro será destinado aos pobres. Cria então os primeiros transportes coletivos de uma grande cidade da Europa. Talvez em suas idas às igrejas em busca de missas e relíquias tenha tido essa ideia. Uma rede de carruagens que transitam em locais e horários fixos. Também é muito acessível ao povo. A primeira linha é inaugurada e Pascal, mesmo doente e cansado, vai nela e esse talvez possa ter sido seu último passeio na cidade. O sucesso veio logo.

É hospedada na casa de Pascal uma família de operários encontrados na rua e o filho está com varíola. Gilberte não o visita pelo medo da doença. Quer que ele expulse o povo, mas ele se nega. Então ela o busca e leva para uma casa que possuía. As dores de cabeça e as cólicas redobram a intensidade. Médicos dizem que ele está apenas com enxaqueca e que soro de leite o curaria. Não levam os sintomas a sério, afinal ele é muito jovem.

Em 02 de julho, seu estado de saúde se agrava. Dia 03, Pascal recebe a visita do médico da rainha. No dia 04 piora e com insuportáveis dores chama um padre. Esse vem, mas não sabe quem é Blaise. Depois o padre escreve um tratado sobre um Pascal submisso ao papa e distante de polêmicas teológicas. Questiona-se muito o valor desse

28 PASCAL. Pensamentos, Lf. 931; Br. 550.

136 Conhecimento e condição humana

escrito, mas também o padre tem fama de honesto e leal. Porém, é muito difícil acreditar que Pascal falaria tal coisa.

Ao fim do mês, Pascal está muito pior. Os médicos não se preocupam, pois não há febre. Não comunga para não assustar quem está perto dele. Está demasiadamente magro. Seu testamento foi ditado em 03 de agosto. Pede perdão a Deus de início. Tem poucos bens, mas as ações na empresa de carruagem estão em alta. Divide as ações em quatro sendo uma parte para o albergue de Paris, outra para o de Clermont-Ferrand, outra para Jean Domat e também para Gilberte.

Sente culpa por não ter mais bens para dar aos pobres. Em 06 de agosto, Pascal desmaia pela forte dor de cabeça. Ele sabe que está morrendo e pede os últimos sacramentos, os médicos dizem ser desnecessário. Na noite de 17 para 18 de agosto, o padre entra no quarto dizendo trazer o que ele desejava. Era a Eucaristia. Pascal ergue-se para receber a comunhão, fazendo grande esforço. Depois recebe chorando o viático e a unção dos enfermos. Depois da benção do pároco, Blaise pede que Deus nunca o abandone e isso pode ter sido suas últimas palavras.

Durante vinte e quatro horas Pascal tem convulsões. A uma hora da madrugada, do dia 19 de agosto de 1662, aos trinta e nove anos e dois meses, Blaise Pascal deixa a sua vida terrena. Sua irmã manda fazer um molde de seu rosto. Os médicos pedem autorização da família para fazer uma necropsia29 e sua irmã aceita, mas os dois fiéis amigos dele estarão juntos.

Todos os seus amigos se reúnem com cerca de 50 sacerdotes, na segunda-feira, dia 21 de agosto, às dez da manhã, na Igreja Saint-Étienne-du-Mont, onde Pascal queria ser sepultado, para celebrarem a Missa. Entre as muitas pessoas, poucos sabiam de suas obras.

29 Atualmente interpretaram que o motivo da sua morte foi necrose intestinal, infarto do mesentério e hemorragia cerebral.

Um convertido que aspira... 137

1.5 DEPOIS DA MORTE, SURGE O RECONHECIMENTO

Logo após o enterro, os jansenistas decidem

publicar a sua obra. Reúnem os manuscritos, organizam a vida e a obra. Ignoram a matemática e os argumentos teológicos que podem causar problemas. Em sua casa encontram, nas gavetas de uma cômoda, no cofre e nos bolsos da sua roupa, muitos escritos desordenados.

Houve uma grande disputa. Roannez queria ser responsável por tudo. Gilberte elimina qualquer papel que pode causar dano à santidade e memória do irmão. Arnauld e Nicole querem eliminar o que possa prejudicar Port-Royal. Étienne, seu sobrinho, é o único que busca guardar tudo, mesmo aquilo que não entende. Depois o depositou na biblioteca da abadia Saint-Germain-des-Prés.30

O fim do jansenismo é acelerado vinte anos depois. Em 22 de janeiro de 1710, o Rei decreta a demolição dos conventos ignorando o fator histórico; e os corpos lá enterrados seriam entregues às famílias ou colocados em valas comuns. O corpo de Jacqueline é entregue à sua família. O escândalo chegou a Roma. Port-Royal que tentou acabar com o Rei agora está acabado. O Rei ainda pede ao Papa uma bula que condena a Bíblia traduzida para o francês pelos jansenistas. Depois, o Papa Clemente XI lança a bula. Os jansenistas lutam pela liberdade de expressão na Igreja e na França.

Os jesuítas e os jansenistas franceses perdem força. As luzes começam a se acender na França. A mortal batalha serviu apenas para os inimigos laicos. Os iluministas consideram Pascal perigoso pelo fato de mostrar que o homem é mau por natureza. Um homem irreversivelmente caído, incapaz de ser feliz, de fazer

30 Hoje chamam de Coletânea Original dos Pensamentos. Depois foi levado para a Bibliothèque Royale. Hoje chamada de Bibliothèque Nationale de France.

138 Conhecimento e condição humana

alguém feliz e até de buscar a felicidade. Usam apenas a literatura pascaliana, ou seja, o modo como ele escreve.

Marquês de Vauvenargués é o primeiro a reconhecer o gênero filosófico de Pascal. Acredita que o ideal para todo homem de letras é pensar como Blaise e escrever como Bossuet. Ele diz que Pascal erra ao dizer que os judeus e os cristãos têm a mesma religião. Muitos dizem, erradamente, que Voltaire detesta Pascal. Ele declara falsas as teses das provinciais, mas vê em Pascal o mestre da polêmica.

Henri Baptiste Grégoire, nascido aos 04 de dezembro de 1750, é ao mesmo tempo discípulo dos jesuítas e dos jansenistas. Inicia, em 1788, a pesquisa sobre o destino dos judeus antes mesmo de conhecer o Jansenismo. Muito inspirado pelo que leu de Pascal sobre os judeus, começa a pedir cidadania francesa para eles.

Victor Hugo é bem otimista. Tem fé no homem. Ele silencia sobre Pascal, mas em muitos de seus versos demonstra ter lido o “gênio francês”. Acredita muito no progresso e não pode compactuar com quem denuncia a podridão da alma humana. Reina Luís Felipe e se difundem as ideias de Voltaire; as religiosas diminuem.

Pascal não é patriota. Ironiza e ataca a França. Porém, é um dos construtores do seu país. É um gênio francês. Tudo, hoje, tende a levar o homem do século XXI a se aproximar de Blaise. Afinal, sua recusa a ser amado, seu desprezo pelo mundo, sua obsessão religiosa, seu ascetismo, sua solidão, sua aversão às diversões estão presentes e constantemente sendo questionados na atual sociedade.

No próximo capítulo será abordado o pensamento antropológico de Blaise Pascal. Partiremos da sua visão de homem como ser grande e miserável. A visão pascaliana concebe o homem como miséria e finitude. Veremos a dignidade do pensamento, tendo como ponto de partida a imagem do “caniço pensante”. Em seguida

Um convertido que aspira... 139

destacaremos as forças enganadoras da imaginação, do costume ou hábito e, por fim, do divertimento.

140 Conhecimento e condição humana

= II =

MISÉRIA E FINITUDE: A VISÃO PASCALIANA DE HOMEM

Nesse segundo capítulo, abordaremos a

concepção de homem no pensamento de Pascal. No capítulo anterior, estudamos sobre a vida e a obra desse pensador, é importante ressaltar a necessidade de entender a sua biografia e seu contexto histórico, pois ambos influenciam demasiadamente no seu pensamento. Pascal é fruto do seu tempo.

A obra de Pascal nos apresenta uma divisão bastante interessante em relação à questão antropológica. Primeiro, ele aborda a questão da miséria do homem sem Deus e, posteriormente, a felicidade do homem com Deus. Primeiramente, abordaremos a miséria do homem sem Deus e, no próximo capítulo, será abordada, de maneira mais profunda, a religião como alicerce antropológico. Para tanto, faremos um breve resumo do que veremos nesse capítulo.

Segundo Pascal, o homem deve ser interpretado como um ser extraviado, lançado no mundo1. O ser humano, na visão pascaliana, é um ser perdido, nesse sentido tenta compreender o universo que o envolve, mas não sabe em que lugar encontrará um ponto fixo que lhe sirva de referencial. Como o homem está extraviado nos diz Pascal:

O homem não sabe em que lugar se colocar. Está visivelmente perdido e caiu de seu lugar sem conseguir

1 Para observarmos isso melhor deveríamos adentrar na questão da queda, mas faremos isso no próximo capítulo.

142 Conhecimento e condição humana

reencontrá-lo. Busca-o por toda parte com inquietação e sem êxito [...].2

Isso acontece pelo fato dele ter decaído de uma

natureza superior, a qual não lhe pertence mais. Para o Pascal, antes do pecado original o homem

vivia em um estado de grandeza, contemplava Deus face a face, era justo, forte e santo. Para que possamos compreender esse primeiro estado, nos remetemos ao que ele diz:

Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem.3

Com a queda, o homem miserável sabe que só

Deus pode preencher o vazio que há nele. Esse homem vive em um vazio. Para tentar preencher esse vazio, o homem busca as coisas finitas, mas, com isso, ele só consegue prazeres momentâneos; consequentemente nunca está feliz, pois coloca a felicidade naquilo que poderá possuir. Nesse sentido, podemos dizer que o homem busca o universo das coisas finitas, mas o vazio de sua condição miserável somente poderá ser preenchido pelo infinito.

Um dos fatores que marcam essa condição miserável é o divertimento que utilizamos, frequentemente, com o objetivo de nos desviarmos de nós mesmos. Como diz Pascal: “Ocupam-se os homens com uma bola ou uma lebre; esse é o prazer, para os reis inclusive”.4 Por outro lado, veremos também que, na existência presente, é impossível fixar a natureza do homem, para Pascal a

2 PASCAL. Pensamentos, Br. 427; Lf. 400. 3 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf.149. 4 PASCAL. Pensamentos, Br. 141; Lf. 39.

Miséria e finitude... 143

natureza é somente hábito e as crenças, nas quais acreditamos, são obra de nossa imaginação.

No próximo capítulo abordaremos o papel do pensamento na antropologia pascaliana. Mostraremos que ele nos leva a um reconhecimento de nossos limites. A compreensão dos limites é útil, pois nos leva a uma compreensão de nós mesmos e da posição (ínfima) que ocupamos no universo.

2.1 O HOMEM, O CANIÇO PENSANTE

Em Pascal, é o pensamento que constitui a

grandeza do homem. Afinal, o fato de ele pensar o diferencia dos outros animais. Residem, no pensamento, a dignidade e a grandeza do homem. No entanto, somente podemos atingir a grandeza por meio desse pensamento, quando este é utilizado para levar-nos ao reconhecimento de nossa miséria. Vamos refletir agora sobre um fragmento, que nos servirá de base para adentrarmos mais nesse tema e no qual o nosso filósofo enfatiza, que pensar bem é o princípio da moral; vejamos:

O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água basta para matá-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata. Pois ele sabe que morre e vantagem que o universo tem sobre ele. O universo de nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois no pensamento. É daí que temos de nos elevar, e não do espaço e da duração que não conseguiríamos preencher. Trabalhemos, pois, para pensar bem: eis aí o princípio da moral.5

5 PASCAL. Pensamentos, Lf, 200; Br. 347.

144 Conhecimento e condição humana

No fragmento supracitado, Pascal leva o leitor a

entender que a grandeza do homem está em pensar bem, mas o que significa pensar bem? Para Pascal pensar bem é nortear-se pela razão, é ter consciência de nossa finitude e de nossas limitações.

Primeiro, Pascal demonstra que possuir a razão é a maior qualidade do homem. A razão participa da grandeza natural do ser humano por diferenciá-lo dos demais seres. Conforme foi afirmado no fragmento anterior, o universo não tem consciência de sua extensão e infinitude, mas o homem tem consciência da sua finitude (miséria), isso o faz superior, pois é o único que tem consciência dos seus limites. A razão, dessa forma, é capaz de conduzir-nos ao autoconhecimento. Nesta busca pelo autoconhecimento, o homem pode interpretar-se como um ser finito e frágil diante do universo que o cerca. No entanto, mesmo que ele morra, a sua grandeza está em saber que morre e o quanto sua existência é limitada.

O maior trunfo do homem, portanto, é a possibilidade de racionalizar a realidade, mas aqui essa racionalização significa compreender a limitação de nossa natureza diante da realidade que nos cerca. Nesse sentido, o ponto chave é que a natureza, vista pelo homem, ultrapassa infinitamente o homem e que é nessa compreensão que reside a grandeza do pensamento.

É a esta visão do infinito que nos conduzirá os escritos de Pascal. Ela será o referencial de sua antropologia. O homem deve buscar o autoconhecimento e nessa busca vai se deparar ocupando posição mediana entre dois infinitos. Isso é necessário e definirá a compreensão da existência do próprio homem, nas palavras de Pascal: “É necessário conhecer a si mesmo; se isso não servir para levar à verdade, serve ao menos para regular a vida e não há nada mais justo”.6

Em primeiro lugar, é necessário que o homem tome consciência de sua insignificância física, quando

6 PASCAL. Pensamentos, Br. 66; Lf. 72.

Miséria e finitude... 145

comparado ao restante do universo. Na opinião do filósofo, o homem ocupa uma posição mediana entre dois infinitos. O que o leva a chegar a essa conclusão? Citemos o fragmento 72, intitulado “Desproporção do homem”:

Que o homem, voltado para si próprio, considere o que é diante do que existe; que se encare como um ser extraviado neste canto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde se acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio. Que é um homem dentro do infinito?7

Vemos, em Pascal, que o homem é um ponto

imperceptível no universo. Nos termos dele podemos dizer que, na natureza, o homem é “Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada, o homem”.8 Não podemos conhecer a totalidade que nos envolve, em virtude de o universo ser infinito e, portanto, não estamos em pé de igualdade em relação à imensidão do cosmos. Nesse sentido, Pascal exorta o homem a conhecer, por intermédio do pensamento, sua pequenez, levando-o a concluir racionalmente que “somos algo e não tudo”.9

Quando nos deparamos com a enormidade do universo percebemos o quanto somos insignificantes, em termos físicos. A Terra é descrita por Pascal como um ponto insignificante na rota dos outros astros. E se o nosso planeta é uma partícula dentro do cosmos, que podemos dizer que seja o homem?

Que não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestade. Considere essa brilhante luz colocada em cima dele como uma lâmpada

7 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199. 8 Id. 9 Id.

146 Conhecimento e condição humana

eterna a iluminar o universo e que a terra lhe apareça como um ponto na órbita ampla desse astro, e que se maravilhe de ver essa amplitude tampouco passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento [...]. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas. Esta é uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma.10

Devido a essa desproporção entre o homem e o

universo, torna-se difícil fazer uma compreensão racional do universo que nos envolve. Não somos nada mais do que um simples ponto, um nada ao ser comparado com a grandeza da natureza. Por outro lado, podemos também fazer uma reflexão sobre as coisas mais pequenas da natureza, e ver dentro dessas coisas, um novo “abismo”. Eis, no mesmo fragmento, o exemplo da lêndea11 apontado por Pascal:

Eis uma lêndea que, na pequenez de seu corpo, contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias, humores nesse sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas; dividindo-se estas últimas coisas, esgotar-se-ão as capacidades de concepção do homem, e estaremos, portanto, ante o último objeto que se possa chegar o nosso discurso. Talvez ele imagine então, ser essa menor coisa da natureza. Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela um novo abismo. Quero pintar-lhe não somente o universo visível mas também a imensidade inconcebível da natureza dentro dessa parcela de átomo. Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra

10 Id. 11 Na edição Louis Lafuma é citado o ácaro e não a lêndea.

Miséria e finitude... 147

há animais e neles essas lêndeas, em que voltará a encontrar o que nas primeiras observou.12

Segundo Pascal, do lado das pequenas coisas,

podemos propor a possibilidade de uma divisibilidade infinita. Para ele, se anatomizarmos um organismo vivo muito pequeno, como uma lêndea, por exemplo, nunca teremos plena certeza de atingirmos os elementos últimos e indivisíveis que encerrariam a divisão. A nossa compreensão limitada impede-nos de chegar aos elementos últimos da matéria. Com efeito, há sempre a possibilidade de o processo divisível continuar, não obstante o fato dos sentidos físicos do homem não poderem presenciar essa divisão até o infinito.

O ponto central e a conclusão dessa abordagem estão no fato de que o homem é um nada perante a infinita grandeza, mas é um todo ao compará-lo com o infinito de pequenez. O homem é “Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada”.13 E ainda é incapaz de compreender esses extremos. A dupla infinitude ultrapassa infinitamente o homem, e, por isso, ele não tem onde se situar.

Assim, podemos concluir que a constatação dessa limitação física não nos conduz a nenhum porto seguro. A situação do homem no interior do universo denota a impossibilidade de determinar aonde residiria o ponto fixo a partir do qual poderíamos fazer uma compreensão cosmológica do mundo. Com a impossibilidade de se determinar o centro, o ser humano é visto como um ser descentrado, sem uma situação cosmológica e ontológica que o defina.

Não procuremos, assim, segurança e firmeza. Nossa razão sempre é iludida pela inconstância das aparências

12 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199. 13 Id.

148 Conhecimento e condição humana

e nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o cercam e dele se afastam.14

Há, portanto, uma desproporção do homem

perante os infinitos. O homem permanece espantado perante a grandeza do universo. Acaba por perceber, que pode captar apenas a sua insignificância em tudo isso, ou seja, o homem percebe que é um nada. Desse modo, o homem se depara com a sua miséria, mas esse não é o ponto final do seu pensamento, pois é essa miséria que, de maneira inversa, nos conduz à grandeza humana. O homem é grande porque tem consciência da sua miséria.

Assim, retornemos ao fragmento Lf. 200, e concluamos que, para Pascal, pensar bem é ter consciência da sua pequenez; afinal, segundo esse fragmento, o infinito não tem consciência de sua infinitude e o homem tem consciência de sua finitude e de sua miséria.

Ao lado dessa miséria física, nos deparamos com outro tipo de miséria que é, justamente, a miséria psicológica e moral. Segundo Pascal, o homem não possui princípios fixos e seguros, quando se tratar de julgar e agir em termos morais. Na verdade, a natureza humana, segundo Pascal denota um imenso vazio. Esse vazio, por sua vez, acaba sendo preenchido pelas forças enganadoras, que são três: a Imaginação, o Hábito e o Divertimento. Comecemos pela Imaginação, tema do nosso próximo capítulo.

2.2 A IMAGINAÇÃO COMO FORÇA ENGANADORA

Observando sobre as forças enganadoras,

destacamos a imaginação e o costume, mas inicialmente vamos abordar a imaginação, ao discorrer sobre ela vamos também ter um contato com o costume nos

14 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

Miséria e finitude... 149

dedicando de maneira especial a ele, e, depois, abordaremos de maneira específica o divertimento.

O homem tem a razão orientada e domada pela imaginação. O que nos inspira é a declaração de Pascal: “Ela (a imaginação) faz acreditar, duvidar, negar a razão”.15 Porém, em muitos outros fragmentos, o autor tece comentários sobre a imaginação e também refletiremos sobre eles, tentando ver se é realmente na imaginação que se manifesta o erro e o engano, os quais são sinais da miséria humana

Para Pascal a imaginação desloca todo critério último que poderá servir de modelo para o discernimento daquilo que é falso e verdadeiro. Os efeitos da imaginação visam, sobretudo, a levar-nos a acreditar em uma realidade fantasiosa. Diante dessa realidade imaginária, mesmo o indivíduo extremamente racional passa a pensar de maneira ilusória e não mais lógica. Nesse sentido, ela é uma potência que impede o discernimento, construindo falsos conceitos e coagindo os sentidos.

É essa parte enganadora no homem, essa senhora do erro e falsidade, tanto mais velhaca quanto não o é sempre; pois seria regra infalível da verdade, se o fosse infalível da mentira. Mas, sendo o mais das vezes falsa não dá nenhuma marca de sua qualidade, emprestando o mesmo caráter ao verdadeiro e ao falso. Não falo dos loucos, falo dos mais sábios, e é entre eles que a imaginação tem o grande dom de persuadir os homens. Por mais que a razão grite não pode valorizar as coisas.16

A imaginação é responsável por valorizar as

coisas, emprestando o mesmo caráter fantasioso, tanto em relação àquilo que é considerado verdadeiro, quanto em relação àquilo que é considerado falso; nesse sentido, Pascal apresenta a imaginação como mestra do erro e da

15 PASCAL. Pensamentos, Lf. 44; Br.82. 16 PASCAL. Pensamentos, Br. 82; Lf. 44.

150 Conhecimento e condição humana

falsidade. A imaginação, para ele, persuade não apenas os loucos, mas os sábios, os filósofos e os doutores.

Podemos dizer que na medida com que a imaginação submete o homem a seus efeitos ela o domina. Nesse mesmo fragmento, mais à frente, Pascal nos ilumina dizendo: “Jamais a razão (sobrepuja) totalmente a imaginação, (mas o) contrário é o que costuma acontecer”.17 Vemos que, em um possível duelo entre razão e imaginação, a imaginação sairia à frente, pois no mundo em que vivemos somos, muito mais propícios a crer em algo que se apresenta com roupagens belas e ilusórias do que, propriamente, ver a própria realidade, através do pensamento e da racionalidade. Enquanto a razão procura ordenar, separar, a imaginação produz efeitos contrários. Por exemplo, ela leva o homem a fantasiar um estado de coisas inexistente e, muitas vezes, produz uma desordem na ordem do juízo.

Todo juízo que quer se classificar como verdadeiro ou falso é desqualificado pela imaginação. Ela apresenta sempre um aspecto fantasioso em relação ao juízo, quer, seja verdadeiro ou falso, esse juízo é sempre imaginário, portanto, não corresponde à realidade. Imagina sem nenhum discernimento tanto o erro quanto a verdade, assim o problema reside na ausência de objetividade desse tipo de juízo. É nesse sentido que Pascal nos diz que a imaginação “não dá nenhuma marca de sua qualidade, emprestando o mesmo caráter ao verdadeiro e ao falso”.18

No entanto, longe de a imaginação atuar apenas entre os loucos e os artistas, na opinião de Pascal é essa força enganadora a responsável por atuar em âmbito moral, sobretudo na dimensão do juízo. Desse modo, a imaginação atua, de maneira generalizada, na valorização da realidade, verificada em âmbito moral. A imaginação seduz muito mais do que o pensamento, pois o ser

17 PASCAL. Pensamentos, Lf 44; Br. 82. 18 PASCAL. Pensamentos, Br. 82; Lf. 44.

Miséria e finitude... 151

humano quer viver muito mais no âmbito das aparências do que na dimensão da verdade. Dirá Pascal: “Por mais que a razão grite não pode valorizar as coisas”. Diante da imaginação, a razão se cala num estranho silêncio, pois o raciocínio lógico não é de muita utilidade para o homem iludido com seus juízos fantasiosos. Mas vamos avançar um pouco mais e analisar a relação da imaginação com os sentidos.

Os efeitos contingentes da imaginação também afetam os sentidos, afinal a imaginação é capaz de nos fazer senti-los e também de suspendê-los. Já iniciamos com as palavras de Pascal que nos dará uma base para prosseguir nessa singela análise e observarmos os efeitos da imaginação nos sentidos:

O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o convença que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá. Alguns nem podem pensar nisso sem empalidecer e suar.19

Vemos explicitamente um exemplo dos efeitos da

imaginação nos sentidos. O exemplo da tábua é muito pertinente, pois descreve alguém com razão suficiente para ver que está em perfeitas condições de segurança, mas estando no abismo a imaginação começa a funcionar deixando o filósofo pálido e suado. Mesmo nos homens mais sábios, a imaginação engana os sentidos. Ao dizer “maior filósofo do mundo” ele não aponta para um indivíduo específico, mas mostra alguém que age racionalmente e confia na razão e sabe tomar decisões, mas a imaginação causa-lhe medo e muda seus comportamentos.

Não é somente no nível físico que a imaginação persuade, mas também no domínio intelectual. Os movimentos da imaginação que afetam o espírito são

19 PASCAL. Pensamentos, Lf. 44; Br. 82.

152 Conhecimento e condição humana

sentidos na carne. Remetemo-nos ao exemplo de Pascal que comenta que até mesmo um artesão teria a mesma felicidade do rei se fosse convicto que passaria metade do dia sonhando como se fosse rei.

Se todas as noites sonhássemos com a mesma coisa, elas nos afetariam tanto quanto os objetos que vemos todos os dias. E se um artesão estivesse seguro que sonharia todas as noites durante doze horas que era reis, creio que seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse todas as noites durante doze horas que era um artesão.20

A imaginação causa prazer e satisfação. Com isso

vemos, no exemplo, que o filósofo fica tenso perante a falta de controle da razão, mas somente através da ficção e do sonho brota no artesão o prazer de ser um rei.

Observamos nesse caso que, ao contrário do exemplo do sonho do artesão, no caso do filósofo sobre a tábua, vemos o efeito da imaginação em nos fazer sentir o desprazer de um momento que é racionalmente seguro, mas que se torna de alto risco pela impressão de insegurança provocada pela imaginação. Com o artesão vemos a capacidade de a imaginação gerar prazer com algo jamais realizado.

Então, concluímos que nos dois exemplos o homem é vítima passiva dos efeitos da imaginação. No entanto, para Pascal não parece que a imaginação seja algo que faça o homem totalmente passivo em relação a ela. Pois para ele, o homem também pode usar a imaginação para estabelecer o domínio sobre os outros homens. Agora voltamos o nosso olhar para a aparência, pois ela é construída pelos impulsos da imaginação, no mundo onde a objetividade foi perdida só resta a aparência, então vamos continuar nossa análise

20 PASCAL. Pensamentos, Lf. 803; Br. 386.

Miséria e finitude... 153

verificando um pouco mais a relação entre aparência e imaginação.

Destacamos que é bem sutil o diálogo entre imaginação e aparência ao passo que a imaginação estabelece aparências provocando efeitos persuasivos nos indivíduos afetados pelos solavancos da imaginação. São-nos apresentados por Pascal alguns elementos externos que são criados pela imaginação e que colaboram no momento da persuasão, vejamos:

As suas togas vermelhas, os arminhos com que se acalentam, os palácios onde julgam, as flores-de-liz, todo esse aparato augusto era bem necessário, e se os médicos não tivessem batas e mulas, e se os doutores não tivessem barretes quadrados e roupas muito amplas de quatro partes, jamais teriam podido enganar o povo que não pode resistir a essa exibição tão autêntica. Se tivessem a verdadeira justiça, e se os médicos tivessem a verdadeira arte de curar, não teria o que fazer com seus barretes quadrados. A majestade dessas ciências seria bastante venerável por si mesma, mas só possuindo ciências imaginárias é necessário que lancem mão desses vãos instrumentos que tocam a imaginação a que eles fazem apelo e mediante isso, de fato, provocam respeito.21

No fragmento que citamos vimos alguns elementos

externos que os magistrados, médicos e doutores usam. Esses elementos fazem parte da dinâmica persuasiva que está sob o comando da imaginação. Todos esses paramentos tem a intenção de persuadir o povo. Destacamos que Pascal dá o nome de ciências imaginárias à união desses elementos com os efeitos de imaginação. Elas se fundamentam nelas mesmas, o uso desses instrumentos tem a função de produzir o respeito.

Podemos afirmar que os atos desses homens são persuasivos pela sua aparência. Todos respeitam o juiz

21 PASCAL. Pensamentos, Laf. 44; Br. 82.

154 Conhecimento e condição humana

por estar no tribunal e pelas roupas que usa. Cada profissão tem um uniforme para assim persuadir o povo. Justificamos com as palavras de Pascal: “[...] jamais teriam podido enganar o povo que não pode resistir a essa exibição autêntica”.22 Vimos que Pascal tece críticas à relação que existe entre a profissão e suas roupas persuasivas, ele revela que se os médicos tivessem a verdadeira cura não precisariam de tal pompa. Por outro lado, podemos notar que um advogado faz uso de roupas persuasivas e acredita possuir a verdadeira justiça, isso para dizer que até mesmo os persuasores acabam, pela imaginação, sendo persuadidos. Este se torna vítima dela.

Devemos nos perguntar, agora, por que a imaginação consegue exercer seu império fantasioso sobre o homem? Por que essa potência enganadora consegue dominar a própria racionalidade do homem? Uma hipótese que podemos levantar é que talvez a natureza humana não tenha um sentido determinado no qual se apoiar, por isso o homem é seduzido facilmente pela imaginação. Talvez haja uma miséria moral e psicológica muito mais intensa do que a própria miséria relacionada à insignificância do homem, o que nos leva a pontuar nossas escolhas e nossa existência mais pela ilusão do que pela verdade. O pensamento revela sua grandeza quando constata tal miserabilidade.

Por outro lado, há uma outra força enganadora que se alia à imaginação para produzir o aspecto ilusório em âmbito moral: é o costume ou hábito. Pascal cita, como exemplo, uma situação em que o costume atua de maneira imaginária. Ao vislumbrarmos um Rei acompanhado de guardas, de tambores e oficiais, somos levados a imaginar que ele possui um poder autêntico, até mesmo quando está sozinho. No entanto, esse tipo de juízo é provocado pela imaginação, pois não corresponde à realidade.

22 PASCAL. Pensamentos, Laf. 44; Br. 82.

Miséria e finitude... 155

O costume de ver o rei acompanhado de guardas, de tambores, de oficiais e de todas as coisas que levam o mundo ao respeito e ao terror faz com que o seu rosto, quando ele está às vezes sozinho e sem esses acompanhamentos, imprima aos seus súditos o respeito e o terror, porque não se separa no pensamento a sua pessoa do séquito que se vê de ordinário juntamente com ele. E o mundo, que não sabe que esse efeito tem sua origem em tal ou qual costume, acredita que isso provenha de uma força natural; daí estas palavras: “O caráter da Divindade está impresso no seu rosto, etc.”.23

Nesse sentido, o tema do próximo capítulo será o

papel do hábito na construção dos chamados “princípios naturais”.

2.3 O COSTUME: QUE SÃO NOSSOS PRINCÍPIOS NATURAIS, SENÃO PRINCÍPIOS DE HÁBITOS?24

Outra força enganadora apontada por Pascal é o

costume ou aquilo que pode ser chamado de hábito. Segundo ele, quem cria nossa forma de ver o mundo e modula nossos juízos é o costume. Podemos sugerir o exemplo que nos é fornecido por Pascal:

De onde vem que se acredita em tantos mentirosos que dizem ter visto milagres e que não se acredita em nenhum daqueles que dizem ter segredos para tornar o homem imortal e para rejuvenescer?25

Vemos, portanto, que as pessoas acreditam

facilmente em mentiras dependendo delas e de quem as conta. É mais fácil acreditar em algo rotineiro, como o nascer do sol, do que na possibilidade da existência eterna, bem como é muito mais fácil acreditar na máquina

23 PASCAL. Pensamentos, Br. 308; Lf. 25. 24 PASCAL. Pensamentos, Br. 92; Lf. 125. 25 PASCAL. Pensamentos, Lf. 734; Br. 817.

156 Conhecimento e condição humana

de calcular do que no macaco lendo filosofia. Assim, vemos que as pessoas podem procurar um médico para curar uma doença, mas não se este lhes prometer a imortalidade. Confirma-nos Pascal: “Da mesma forma, se um homem se gabasse de impedir que se morresse, ninguém acreditaria nele porque não há nenhum exemplo disso”.26 O costume está relacionado a uma repetição contínua de algo para que se tenha a possibilidade de crença.

Para que aconteça a crença ou o consentimento o costume é fator essencial. O homem opta sempre pelo costume como nos exemplificou Pascal. Mas esse consentimento não é desprovido da potência imaginativa. Isso nos convida a aprofundarmos a maneira como ele atua. Pela força da repetição, somos sempre levados a acreditar em algo. Estamos acostumados com as coisas e criamos o âmbito da crença, pois algo, depois de repetido várias vezes, transforma-se numa espécie de hábito natural e duradouro.

Para explicitarmos e analisarmos um pouco mais isto, voltemos ao exemplo supracitado do macaco lendo filosofia. Vários fatores não colaboram para as pessoas aderirem a essa ideia. Pelo costume ninguém viu tal fato, e pelo interesse, quem acreditasse em tal fato poderia ser considerado insensato. Há, portanto, uma grande motivação para a pessoa não consentir, pois não existe a força do hábito a alicerçar essa hipótese.

O homem julga o mundo conforme seu costume e não segundo princípios universais e absolutos. É o hábito o responsável por edificar e consolidar suas crenças. O hábito age usando da repetição para se impor, se costumamos tomar uma decisão perante uma situação em qualquer outro momento quando tivermos que fazer isso novamente o costume nos levará a repeti-lo. Assim, o homem se acostuma a fazer as coisas segundo o mesmo ponto de vista e acredita ser uma necessidade intrínseca.

26 Id.

Miséria e finitude... 157

Um exemplo muito claro é aquele dos cientistas que são motivados pelo hábito a acreditar que suas teorias são necessariamente verdadeiras. O próprio David Hume trata disso em sua crítica em relação ao princípio de causalidade.

A imaginação e o hábito são duas forças enganadoras, que têm como principal objetivo construir uma existência fantasiosa e imaginária para o homem. A existência humana é limitada, pois existem os limites físicos que impedem que o homem possa compreender de maneira total o universo em que vive, tendo uma compreensão ontológica e antropológica de si. No entanto, as forças enganadoras levam o homem a construir uma existência fantasiosa, aonde este se contempla como um ser que se compreende a si mesmo de maneira certa e segura.

Através da imaginação, fantasiamos um estado de coisas agradável e não percebemos o quanto a nossa existência é vazia de significado. Por outro lado, o hábito, nos acostuma a contemplar as coisas segundo o viés oferecido pela imaginação e, assim, nos acostumamos a julgar sempre da mesma maneira.

Efetivamente o hábito é responsável por fabricar uma espécie de uma dúvida para o homem. Muitas vezes o homem crê agir e julgar em virtude de princípios naturais e verdadeiros, mas são apenas princípios produzidos pela imaginação, que fantasia um estado de coisas inexistentes; e pelo hábito que, através da força da repetição, leva-nos à crença do caráter necessário de nossos juízos e nosso comportamento.

Que são nossos princípios naturais, senão princípios de hábitos? E nas crianças, os que receberam com os hábitos dos pais, como a caça entre os animais? Hábitos diferentes dão-nos princípios naturais diversos, é o que nos prova a experiência e, se existem princípios que o hábito não pode fazer desaparecer, há-os também do costume contra a natureza, inapagáveis por esta, ou

158 Conhecimento e condição humana

por um segundo costume. Tudo depende da disposição.27

Pascal nos apresenta dois exemplos, muito

ousados para a época em que viveu, que apontam para a importância do hábito na formação de nossa natureza e dos princípios que a sustentam: A fé e a concepção mecanicista. Até mesmo a fé, pode ser considerada um hábito, pois, nesse caso o indivíduo se acostuma a julgar a realidade, a partir da sua crença em Deus. Por outro lado, a crença no número, no movimento e no espaço, como instrumentos que possibilitam a compreensão da realidade segundo a perspectiva mecanicista, também tem sua origem no hábito.

O hábito é nossa natureza. Quem se habitua à fé crê, e não pode deixar de temer o inferno; e não crê em outra coisa. Quem se habitua a crer que o rei é terrível, etc... Quem duvida, pois, de que nossa alma, estando habituada a ver número, espaço, movimento, creia nisso e somente nisso.28

Dessa maneira, o hábito é o responsável por

construir uma espécie de natureza para o homem. Mas, porque o homem necessitaria construir uma natureza para si? Ele não possui uma? Tal pergunta será respondida só no próximo capítulo dessa pesquisa. Por ora, faremos uma análise da terceira força enganadora, o chamado “Divertimento”.

Se, por meio do hábito e da imaginação construímos uma natureza artificial, através do Divertimento somos levados a nunca aceitar essa verdade de maneira direta. O homem não possui uma natureza determinada por princípios certos e seguros, mas ele nunca percebe tal verdade, pois o Divertimento leva-o a

27 PASCAL. Pensamentos, Br. 92; Lf. 125. 28 PASCAL. Pensamentos, Br. 89; Lf. 419.

Miséria e finitude... 159

buscar um entretenimento que o distraia de sua condição terrível e miserável.

2.4 O DIVERTIMENTO COMO TENTATIVA DE PREENCHER O “VAZIO” EXISTENTE NO HOMEM

Ao tratarmos agora, especificamente, da questão

do divertimento em Pascal, devemos destacar que o homem usa do divertimento para não se dar conta da sua miséria; esse divertimento não está relacionado apenas ao lazer e ao entretenimento, mas pode ser um trabalho, uma profissão, uma ocupação, uma posição política, os estudos ou até mesmo uma vida religiosa. Dito de maneira sintética, o divertimento seria uma maneira encontrada pelo homem de ocupar-se, de maneira a distrair-se de sua condição vazia e miserável.

Na obra “Pensamentos” Pascal faz uma observação espantosa: o homem não consegue ficar parado, trancado em um quarto, pois na condição humana somos alheios à ausência de uma ocupação. Isto se deve a fatores antropológicos, como os analisados anteriormente; com efeito, ao ficar no estado de repouso completo, o homem se depara com o vazio que há dentro de si. Sente tédio e angústia, vejamos as palavras do filósofo:

Quando às vezes me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos, e as penas que se expõem na Corte, na guerra de onde se nascem tantas desavenças, paixões, ações ousadas e muitas vezes maldosas etc., repeti com frequência que toda a infidelidade dos homens provém de uma só coisa: de não saber ficar quieto num quarto.29

Como vimos no fragmento, supracitado, isso

acontece porque a ausência de um entretenimento e o

29 PASCAL. Pensamentos, Lf. 136; Br. 139.

160 Conhecimento e condição humana

silêncio levarão o homem a pensar em sua existência miserável, consequentemente ele perceberá o vazio, descrito anteriormente, assim como a ausência de sentido que existe em sua vida. Isso o deixará angustiado e desesperado. Como vemos no pensamento que estamos estudando:

Mas, quando considerei de mais perto e, depois de ter encontrado a causa de todos os nossos infortúnios, quis descobrir lhes as razões, encontrei que existe uma realmente efetiva que consiste na infelicidade natural de nossa condição fraca e mortal, e tão miserável que nada nos pode consolar quando a consideramos de perto.30

Pela nossa insatisfação com esse silêncio que

revela nossa miserabilidade buscamos a agitação, que pode ser representada por várias atividades, bem como viagens, festas, jogatinas, etc. Vemos então que Pascal chama de divertimento não apenas determinados passatempos, mas qualquer tipo de ocupação que nos distraia de nossa condição fraca e natural. O divertimento tem a função de desviar o nosso olhar da nossa condição miserável. Afinal nos diz Pascal que mesmo o homem triste, ao entrar no divertimento, será feliz enquanto estiver nele, mas o homem mais feliz se não estiver no divertimento, em pouco tempo, se entristecerá. Logo, vemos que sem o divertimento somos todos infelizes e com ele temos uma falsa felicidade, mas que nos dará uma satisfação momentânea, conforme ele mesmo diz:

Por mais cheio de tristeza que um homem se encontre, se por ventura conseguirmos que entre num divertimento, será feliz durante esse tempo; e o homem mais feliz, se não se estiver divertindo e ocupando com alguma paixão ou com alguma distração que impeça o tédio de se espalhar, ficará logo triste e infeliz. Sem o

30 PASCAL. Pensamentos, Lf. 136; Br. 139.

Miséria e finitude... 161

divertimento não há alegria, com divertimento não há tristeza.31

É impossível dizer que um ser humano não busca

o divertimento, mesmo um doutor em Filosofia, trancado em sua biblioteca particular, distante de tudo e de todos busca se entreter. Ele não percebe, mas o estudo é uma maneira de distraí-lo da sua miséria. O repouso é insuportável ao homem, como veremos agora nesse pensamento:

Tédio. Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação. Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Imediatamente nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero.32

Mas o divertimento deve ser impulsionado por

algum tipo de paixão, isto é, o divertimento deve ter como objetivo um prêmio, como por exemplo, ocorre com as loterias. O homem então sonha que ganhando na loteria será feliz e eliminará o vazio que o impossibilita de ser feliz. Da mesma maneira, no Divertimento o homem imagina que ao atingir o alvo que ele visa com sua ocupação, poderá realizar-se de maneira completa e acabada.

No entanto, depois do divertimento vem o vazio e com ele volta também o tédio. Então, o que poderá o homem fazer? Ele poderá realizar apenas duas coisas: ou ele vai à busca de mais divertimento, para assim evitar o tédio ou ele se entedia mais uma vez. Vemos então que o divertimento é a fuga do tédio e do vazio fazendo com que o homem se agite e movimente-se, mas também, paradoxalmente, é a busca por um repouso que nunca se

31 PASCAL. Pensamentos, Br. 139; Lf. 136. 32 PASCAL. Pensamentos, Lf. 622; Br.131.

162 Conhecimento e condição humana

efetivará. O repouso é apenas um ideal existente na mente do homem.

O autor também reflete sobre como tentam sobrecarregar os homens e fazê-los felizes com algum tipo de ocupação. Dirá Pascal: Por que não retiramos do homem todas essas preocupações relacionadas ao trabalho? No entanto, o repouso, sendo totalmente alheio à condição humana, é uma razão muito justa para levar o homem a crer nesse tipo de felicidade laborante:

Sobrecarregamos os homens, desde a infância, com o cuidado de sua honra, de sua riqueza, de seus amigos, e ainda com o cuidado da riqueza e da honra desses amigos. Fatigamos os homens com negócios, com o estudo de línguas e exercícios, e fazemos-lhes sentir que não poderão ser felizes sem que a sua saúde, sua honra e fortuna, e a de seus amigos estejam em ordem, e que basta faltar-lhes uma destas coisas para se tornarem infelizes. E damos-lhes encargos e negócios que os atormentam desde que desponta o dia. – Eis aí, direis, uma estranha maneira de fazê-los felizes! Que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? – Como! Que se poderia fazer? Bastaria tirar-lhe todas essas ocupações; então se veriam a si mesmos, pensariam no que são, donde vêm e para onde vão.33

Uma das constatações, que podemos retirar de

uma análise do Divertimento, portanto, é a condição paradoxal do homem. Ele busca o repouso, mas não pode obtê-lo através da agitação e o movimento. O ser humano tem um desejo que o leva a buscar o repouso e a felicidade, mas é levado, por um movimento contrário em direção à agitação. Devemos destacar que o homem tem um desejo de conhecer a verdade. E, observando o divertimento, vemos a verdadeira condição humana. Vemos que o homem busca sempre o repouso, porém, como ele não atinge esse estado, ele é levado a crer nos

33 PASCAL. Pensamentos, Br. 143; Lf. 139.

Miséria e finitude... 163

princípios fabricados pelo hábito e mantidos pela imaginação. Um desses princípios é a própria crença no divertimento, como meio de levá-lo ao repouso.

Conforme mostramos, o Divertimento é uma força enganadora, é a maneira que o homem encontra para desviar a atenção de si mesmo, pois não suporta a verdadeira condição humana, povoada de vazio e de miséria; isto é, o que Pascal está querendo dizer é que, no fundo, o homem não se suporta. Para ele, o divertimento é fundamental para distraí-lo da consciência de sua finitude, por isso os homens procuram o barulho e o movimento.

Assim, em que sentido o pensamento aponta para a grandeza do homem? Segundo Pascal, toda a dignidade do homem consiste em “pensar bem”. Ora, pensar bem é ter uma compreensão dos limites antropológicos, os quais acabamos de apontar. A constatação de que o homem se encontra no interior de um universo infinito, fornece-lhe a consciência de sua finitude, assim como é o pensamento o responsável por mostrar a atuação das forças enganadoras em âmbito moral. O homem, para pensar bem e atingir sua verdadeira dignidade, deve se dar conta “conscientemente” de quanto é limitado em termos físicos e morais. Esse é o primeiro passo.

O segundo passo será o tema do próximo capítulo. A partir do momento que o homem percebe, por intermédio do pensamento, o quanto a sua existência é vazia e miserável, deve procurar uma solução para esse dilema existencial. Podemos adiantar, de antemão que a religião cristã representará, para Pascal, a possibilidade de um referencial para o homem. No entanto, longe do Cristianismo representar um porto seguro, capaz de fundamentar a antropologia pascaliana de maneira absoluta, ele corresponderá muito mais à possibilidade de um significado para o problema da natureza humana.

164 Conhecimento e condição humana

= III =

A NECESSIDADE DA RELIGIÃO CRISTÃ No capítulo anterior, abordamos a dignidade no

pensamento de Pascal. Analisamos a miséria e a finitude do homem, que ele é um caniço, mas sua dignidade repousa na razão, ou seja, ele é miserável, mas ter consciência de sua miséria, por meio do pensamento, torna-o grande e superior aos outros seres. Vimos, ainda, as forças enganadoras que corrompem o homem e o impedem de pensar bem: como a imaginação, o costume e o divertimento que tentam preencher o vazio existente no homem.

Agora vamos analisar, de forma mais precisa, a necessidade da Religião Cristã. Conheceremos a aposta que o homem deve realizar em relação a Deus, o mito do pecado original e a queda como explicação para a miséria do homem, justificando a necessidade de apostarmos em Cristo.

Destacamos que o homem não conhece a essência de Deus e não pode vir a conhecê-la, portanto, segundo Pascal, a existência de Deus é injustificável racionalmente. Para chegar a Deus, Pascal parte da antropologia e de uma análise das fraquezas e limitações humanas. O homem é um ser decaído e miserável, devido a tais limites é impossível justificar racionalmente a existência de Deus ou conhecer a essência desse ser divino. No entanto, é a partir da análise das insuficiências humanas que será possível nos aproximarmos de Deus, pois, surgirá a partir desta discussão, a necessidade de apostar em um sentido teológico capaz de preencher esse vazio. O Cristo poderá dar sentido à miséria humana.

Ao trabalharmos e estudarmos sobre a necessidade da Religião Cristã, partiremos do Fragmento 430 da edição Brunschvicg. E, abordando esse extenso

166 Conhecimento e condição humana

Fragmento, compreenderemos um pouco mais dos princípios, por ele julgados necessários para a verdadeira religião. A Religião Cristã é única capaz de nos colocar ante o mistério paradoxal da existência humana que o homem trata com infelicidade:

É preciso que, para tornar o homem feliz, ela lhe mostre que há um Deus; que somos obrigados a amá-lo; que a nossa verdadeira felicidade é estar nele, e o nosso único mal é estar separado dele; que reconheça que estamos cheios de trevas que nos impedem de conhecê-lo e de amá-lo; e que, assim como os nossos deveres nos obrigam a amar a Deus, e as nossas concupiscências nos desviam dele, estamos cheios de injustiça. É preciso que nos dê satisfação dessas nossas oposições, em relação a Deus e ao nosso próprio bem; é preciso que nos ensine o remédio para essas impotências e os meios de obter esses remédios. Examinem-se a esse respeito todas as religiões do mundo e veja-se se há alguma que satisfaça a todos esses requisitos como a cristã. Serão os filósofos que nos propõem, como todo bem, os bens que estão em nós? Será esse o verdadeiro bem? Descobriram eles o remédio para os nossos males? Será curar a presunção do homem igualá-lo a Deus? Os que nos igualaram aos animais, e os maometanos, que nos deram como todo bem os prazeres da terra, até mesmo na eternidade, trouxeram remédios para as nossas concupiscências? Que religião nos ensinará, portanto, a curar o orgulho e a concupiscência? Que religião, enfim, nos ensinará o nosso bem, os nossos deveres, as fraquezas que nos desviam, a causa dessas fraquezas, os remédios que podem curá-las e o meio para obter esses remédios? Não o conseguiram as demais religiões.1 Podemos observar, no Fragmento supracitado, que

Pascal apresenta o que divide o homem. Então, podemos

1 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

A necessidade da religião cristã 167

exemplificar ao dizer que o homem não é apenas por pensamentos e ações injusto, mas que essa injustiça perpassa o seu ser, por estar corrompida a sua natureza. Portanto, a ação humana é contraditória em relação a Deus e a seu próprio bem, pois suas ações estão intimamente ligadas com as contradições que o definem.

Como observamos, a Religião Cristã mostra essa contradição. É isso que a separa da Filosofia e das outras tantas religiões que se apoiam nos extremos, isto é, na grandeza ou na miséria humana. Como exemplo, a Filosofia, ao apontar que o homem pode ser autossuficiente, apenas indica mais ainda para a sua miséria e seu orgulho, mas não aponta, segundo Pascal, para os remédios que deveria apontar.

A religião verdadeira não impõe ao homem a necessidade de optar pelo seu bem ou sua fraqueza, no entanto, ela explicita as fraquezas que o impedem de chegar ao bem. A Religião Cristã demonstra visivelmente a exigência do bem e aponta no homem as fraquezas que o impedem de cumprir o bem.

Abordaremos a questão da queda em Pascal, para assim observarmos mais detalhadamente o pecado original e compreendermos a necessidade da aposta na religião e na existência do Deus Cristão.

3.1 A QUEDA E O PECADO ORIGINAL

Ao darmos início a esse assunto, primeiramente,

vamos refletir sobre a queda do homem. O mito do pecado original, que estudaremos, também foi trabalhado por Agostinho para explicar o cárcere da alma; é muito encontrado na Patrística e na Filosofia Antiga. Como o nosso trabalho propõe uma visão antropológica, não podemos deixar de lado esse assunto.

Destacamos que o homem, antes da queda, estava em uma situação de pleno domínio de si, afinal, contemplava a Deus. Mas não continuou neste estado

168 Conhecimento e condição humana

porque pecou. Por ter pecado, o homem se afastou de Deus. Ao comentar sobre o estado em que o homem está e como ele era, Pascal diz:

Mas não estais, agora, no estado em que vos formei. Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem. Mas não pode manter tanta glória sem cair na presunção. Quis tornar-se o centro de si mesmo, independentemente do meu socorro. Subtraiu-se ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo [...].2

Observamos que são muitas as sofridas

implicações diretas na condição humana trazidas como consequência do pecado original. Como vimos no capítulo, anterior existem, no estado presente do homem, grandes limitações no sentido físico, epistemológico e moral. Segundo o mito do pecado original, hoje, o homem vive num perpétuo estado de concupiscência.

Apresentamos, então, que o pensamento antropológico de Pascal tem como pano de fundo, ou ainda, como alicerce o princípio teológico de que o homem é um ser que decaiu de Deus. É um pensamento útil, prático e real, pois podemos observar que o homem não é um ser soberano com limitações. A queda apenas descreve aquilo que é visível aos nossos olhos.

O início da queda está no pecado da criatura perante o criador, ou seja, do homem diante de Deus. A intenção do homem era se transformar na causa final, tentando ocupar o lugar de Deus. Por esse motivo, o homem cai e se encontra em um segundo estado de natureza. Esse não é mais o estado original, mas sim, um estado de miséria que lhe causa tormento.

2 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149.

A necessidade da religião cristã 169

Nessa perspectiva, percebemos que o homem está

em um estado de ignorância, não está em seu estado nato, mas está perdido. Com a queda, além do fato do homem ter se tornado mortal, constatamos o início de um estado de profunda desordem interior. Acontece uma desordem do seu ser. Ele não se conhece mais e perde Deus como referencial. Nos diz Pascal, a respeito desse segundo estado sucedâneo do original:

Aspiramos à verdade e só encontramos incertezas. Buscamos a felicidade e só achamos miséria e morte. Somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade e somos incapazes da certeza ou da felicidade. Deixam-nos este desejo tanto para nos punir como para nos fazer sentir de onde caímos.3 É muito presente a influência de Agostinho no

pensamento de Pascal. O Bispo combate a contradição existente no fato de que Deus, sendo Santo, Justo, Perfeito e Criador de tudo, criou um ser ignorante e concupiscente como o homem. Não é que haja uma contradição efetiva em relação a esse fato, é que Deus criou o homem livre e, nesse sentido, ele não foi capaz de manter a perfeição da criação divina, pecando em decorrência da sua liberdade. A falta do homem foi transgredir a lei de Deus, foi ter pecado. Este pecado foi tamanho que o homem mereceu tal castigo.

Claro que nosso trabalho é de cunho filosófico e antropológico, porém, ao usarmos um argumento teológico apenas ilustramos e apontamos para o sentido da antropologia de Pascal. Como trabalhamos no primeiro capítulo, Pascal queria escrever a Apologia da Religião Cristã, obra que hoje conhecemos como Pensamentos. No entanto, sua obra apologética não aspira exclusivamente a trabalhar a religião cristã do ponto de vista de uma teologia tradicional. O cerne da sua apologia está em

3 PASCAL. Pensamentos, Br. 437; Lf. 401.

170 Conhecimento e condição humana

Jesus Cristo, mas não por uma questão puramente teológica e, sim, por uma exigência antropológica.

Além de tudo, o problema da queda foi trabalhado, como já citamos, em diversos autores. Podemos recordar o próprio Platão que, mesmo estando aproximadamente quinhentos anos antes de Cristo, já nos dava uma ideia de castigo, pois os deuses teriam castigado os homens e estes estão deportados na terra e devem se libertar dos seus corpos para que aconteça o retorno à verdadeira pátria.

O pecado pressupõe a queda. O pecado aconteceu porque o homem foi orgulhoso. Mesmo que possamos considerar um mistério na queda, devemos nos focar na essência dela, isto é, o sentimento de orgulho que move o homem a cometer o pecado. Adão quis tornar-se a fonte de delícias e prazeres, queria ser causa do bem em si mesmo. Concluímos que, em Adão encontra-se o ápice do orgulho.

A princípio, poderíamos compreender a queda como um castigo por parte de Deus. Mas é apenas uma desorganização ou confusão natural4. Sendo católico, Pascal não poderia falar em castigo, pois estaria se aproximando do Calvinismo5. Pascal contraria o Calvinismo, ele parte do interior do homem, da sua atitude egoísta e não como algo posto externamente.

Por esse castigo ou, podemos dizer, consequência interior é que se manifesta no homem sua condição após a queda. Afinal, ele é grande e ao mesmo tempo pequeno e miserável. Ele consegue simultaneamente ser tudo e nada. Assim, caímos na questão paradoxal, contida no capítulo anterior, de grandeza e miséria. Escreve Pascal:

Eis o estado que os homens se acham hoje. Resta-lhes algum instinto impotente de felicidade de sua primeira

4 Cf. PASCAL. Pensamentos, Br. 20; Lf. 683. 5 Este afirma todos são castigados por causa do pecado cometido por Adão.

A necessidade da religião cristã 171

natureza, e estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, a qual se tornou sua segunda natureza.6

Como observamos até aqui, o homem é um

constante paradoxo que só pode ser compreendido por meio da Religião Cristã. Podemos confirmar essa duplicidade do homem com as palavras de Pascal: “Essa duplicidade do homem é tão visível que ouve quem pensasse que tínhamos duas almas”.7

Da forma como vimos no capítulo anterior, ao trabalhar a miséria e a grandeza humana observamos que o homem é miserável, na medida que é impossível a concretização, de maneira absoluta, daquilo que essencialmente daria sentido à sua existência; no entanto, o homem também é grande, pois conhece os seus limites antropológicos e suas misérias.

Tendo como pano de fundo o problema do pecado original, Pascal nos apresenta o homem enquanto um ser decaído. Assim, a Religião Cristã embasará um ponto de vista antropológico mais elevado. Para adotar um equilíbrio entre os termos morais: miséria e grandeza, é necessário acreditar na postura cristã, que tem como fundamento o pecado original. Somente através do pecado original é possível explicar as contrariedades da natureza humana:

Pois, enfim, se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com segurança em sua inocência, tanto da verdade como da felicidade. E se o homem só tivesse sido corrompido, não teria qualquer ideia da verdade e da beatitude. Mas, infelizes que somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma ideia da felicidade e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade e só possuímos a mentira: somos incapazes de ignorar em absoluto e de

6 PASCAL. Pensamentos, Br. 430; Lf. 149. 7 PASCAL. Pensamentos, Br. 417; Lf. 629.

172 Conhecimento e condição humana

saber com certeza, de tal maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente caímos!8

Observamos, no capítulo anterior, ao descrever o

divertimento e o repouso, que somos mais inclinados ao repouso e temos uma grande vontade de chegar aos verdadeiros princípios morais que embasam nossa existência, isso só pode ser percebido ou entendido a partir do princípio do pecado original. Como afirmamos acima, antes da queda, Adão, o primeiro homem, estava ligado a Deus; quando ele decai, perde essa natureza. É perceptível que carregamos ainda as marcas do primeiro estado de natureza, visíveis nessa inclinação para o repouso.

No entanto, o atual estado do homem é formado pela ausência dos princípios primeiros, pois habita uma natureza corrompida, marcado pelo movimento e pela agitação. Por isso, é pela agitação que o homem busca o repouso. O repouso é o cume a ser atingido ao longo da existência humana. E nunca o homem chegará até ele, pois sua natureza está corrompida; nada do que existe efetivamente na sua realidade concupiscente pode garantir-lhe o repouso. Em outras palavras, o homem tem predisposição para o repouso, mas os meios que utiliza, nessa existência, para obter o repouso almejado não surtem efeito.

Observamos que o pecado original não resolve essa questão, pois o homem apoiando-se ou não nele continuará a ser contraditório e paradoxal, um misto entre miséria/grandeza e movimento/repouso. No entanto, ele fornece uma perspectiva mais elevada, afinal é somente a partir de tal princípio religioso, que o homem terá uma compreensão das suas contrariedades.

Uma pergunta que devemos propor nesse momento é a seguinte: o pecado original é verdadeiro?

8 PASCAL. Pensamentos, Br. 434; Lf. 131.

A necessidade da religião cristã 173

Realmente aconteceu? Ora, podemos responder que nesse momento da reflexão de Pascal, quando se trata de encontrar um princípio explicativo para um problema de ordem antropológica, não há necessidade de o pecado original assumir o papel de verdade de fé, não precisa ele ser um dogma religioso. O que deve ser levado em conta é que ele estabelece um princípio de caráter antropológico, afinal, ele é responsável em ordenar o conhecimento sobre o homem e decifrar sua condição.

Podemos constatar isso através do próprio Pascal, que não está interessado em provar, de maneira lógica, se houve ou não o pecado original. Se há provas, essas provas são extraídas do modo de vida dos ímpios, os quais, de tão corrompidos, vivem na indiferença da religião:

Não conhecemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas que se passaram no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vão além da nossa capacidade presente. Tudo isso nos é inútil saber para sair disso; e tudo o que nos importa conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus, mas resgatados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis sobre a terra. Assim, as duas provas da corrupção e da redenção são extraídas dos ímpios, que vivem na indiferença da religião, e dos judeus, inimigos irreconciliáveis dela.9

O que devemos destacar vai muito além de tentar

mostrar se aconteceu ou não o pecado original. Conforme a citação acima: “Tudo isso nos é inútil saber para sair disso”. É necessário deter-se no único problema: o homem é incompreensível e tem necessidade de algo que torne o paradoxo de sua condição compreensível. O que ilustra essa situação é o pecado original com sua ideia de

9 PASCAL. Pensamentos, Br. 560; Lf. 431.

174 Conhecimento e condição humana

decadência. Portanto, precisamos nos deter na função que o pecado original ocupa e não na sua veracidade. É válido lembrar, que esse momento da reflexão de Pascal, trata-se de uma reflexão antropológica.

Temos de levar em consideração que é preciso conhecer a miséria vinda da nossa condição, que nos bloqueia para a virtude e para a verdade. Também, que temos a possibilidade de sermos receptores da graça do Cristo, com a missão de nos salvar ou redimir desse estado.

Como vimos, então, o princípio do pecado original não encerra a questão sobre a natureza humana, afinal, é visível que ele não apresenta soluções e muito menos resolva a condição em que se encontra o homem. Mas o que ele faz é tornar pensável o que outrora parecia irracional, isto é, nossas contradições.

Ao concluir, vamos refletir sobre o que é o pecado original. Tomemos como base o livro da Gênesis que narra a criação. Partimos da seguinte afirmação:

E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer.10

Como fica explícito no texto sagrado, o homem não

deveria comer do fruto do conhecimento do bem e do mal. Esse conhecimento é reservado ao Criador e com o pecado o homem o usurpara. Não é a onisciência que o homem decaído não possui, também não fala do conhecimento moral que o homem já possuía e que Deus não pode negar ao ser humano. Neste caso, o que está sendo considerado é a capacidade de agir por si mesmo, decidindo o que é bom e mau. Com isso, o homem nega seu estado de criatura. Ele comete o pecado contra a

10 GÊNESIS. Português. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cap.2, vers. 16-17, p. 36.

A necessidade da religião cristã 175

soberania de Deus, é orgulhoso. Então, analisemos agora a passagem da Sagrada Escritura em que o homem comete o pecado:

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”. A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir conhecimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Então abriram os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e os cingiram.11

Deus criou o homem à sua imagem e semelhança,

com o pecado o homem quer se tornar Deus. Então, essa passagem revela a queda do homem, sobretudo quando se percebem despidos; quando percebem isso já fica claro o sinal da desordem que o pecado introduziu. Mais à frente, Deus os expulsa do Paraíso. O homem, pelo seu orgulho, cai, deixa o seu estado natural e entra na desordem.

Vemos que o pecado original perpassa a antropologia. Como podemos ver na carta que Paulo de Tarso escreve aos Romanos: “Porque o salário do pecado é a morte”.12 Nesse caso a morte não enquanto fim da vida,

11 GÊNESIS. Português. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cap.3, vers. 1-7, p. 37. 12 ROMANOS. Português. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cap.6, vers. 23, p. 1976

176 Conhecimento e condição humana

mas como queda. Outro exemplo do que diz Paulo aos Romanos é: “Visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus”.13

Até agora observamos que, para Pascal, o único caminho de resgate para sua condição de angústia e desespero é a Religião Cristã. Em vários fragmentos ele nos aponta que o homem deseja a felicidade: “Todos os homens desejam ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim”.14 É bem isso que ele deseja, ser feliz. Ele acaba buscando em várias coisas e não encontra essa felicidade. Isso, porque o homem não percebe que a felicidade não pode ser encontrada no mundo.

Por que a felicidade verdadeira não pode ser encontrada no mundo? Porque o mundo é finito, assim como o próprio indivíduo, todas as alegrias oferecidas pelo mundo são finitas, por isso passageiras. E como se pode obter a realização humana? Com o nosso estudo temos que dizer que é através da fé e da religião. Afinal, Pascal aponta que somente pela fé podemos ir à procura da felicidade e da alegria, mesmo assim não temos certeza delas. Manifesta-se novamente o lado trágico dele. O homem busca Deus porque é só de Deus que pode vir o bem que ele espera.

Pascal aborda que o homem tem certa desconfiança quando o assunto é religião. A religião exige muito do homem. É preciso que ele mude a forma como observa o outro; tem que se aproximar mais dele e obriga-o a esquecer-se mais de si mesmo. O verdadeiro cristão faz o oposto da condição em que se encontra o homem, pois a doutrina cristã exclui qualquer atitude egoísta.

A religião exige que o homem renuncie a si mesmo por uma vontade superior à dele que é a de Deus. Como o homem não acha fácil fazer isso, e de fato não é, ele

13 ROMANOS. Português. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cap.3, vers. 23, p. 1970 14 PASCAL. Pensamentos, Br. 425; Lf. 148

A necessidade da religião cristã 177

tende a se afastar dessa proposta. Ao falar sobre a Religião Cristã o autor apresenta que ela não traz evidências razoáveis para convencer o homem a ter fé, aquele que tenta fazer isso de forma racional é tolo. Antes de conhecer a Religião se deve levar o outro a amar as verdades dela, para conseguir convertê-lo, assim

é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão, que é venerável; torná-la respeitável e, em seguida, amável para que os bons desejem que seja verdadeira; e depois mostrar que é verdadeira.15

Pode haver dentro do ser humano um desejo

incomensurável de amar a Deus, mas é inesgotável seu conhecimento sobre Ele. Deus não se apresenta em plenitude ao homem, no entanto, a realização do homem nessa vida é buscar a Deus, portanto, o homem busca o repouso e um sentido absoluto para a sua existência. Não existe um porto seguro para o homem se apoiar. Ele não sabe se existe algo além dessa vida, mas tem uma inclinação a crer que exista, que se traduz no seu desejo incomensurável pelo repouso. “Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma torre que se erga ao infinito”.16

Dentro desse panorama de incerteza e miséria percebemos a necessidade de o homem dar um salto, ou seja, apostar no fato de que existe algo além do que sua razão e suas certezas possam ver. E essa aposta deve ser sustentada pela fé. Nisso consiste o ponto decisivo da sua existência.

É nesse exato momento que Pascal propõe a aposta. Ela apresenta toda a sua angústia. O homem se conhece fraco, finito e miserável. Percebe sua queda no pecado original; mas o que lhe resta fazer agora? É bem

15 PASCAL. Pensamentos, Br. 187; Lf. 12. 16 PASCAL. Pensamentos, Br. 72; Lf. 199.

178 Conhecimento e condição humana

aqui que ele nos oferece uma proposta: é preciso apostar em Deus, ter que apostar no Cristo e assumir-se cristão. É o que trabalharemos a seguir.

3.2 A APOSTA NA RELIGIÃO CRISTÃ

Primeiramente, devemos levar em consideração

aquilo que já estudamos sobre o pensamento de Pascal até aqui, desde o primeiro capítulo, onde contextualizamos sua vida, discutimos sobre sua conversão, juntamente com o período histórico em que ele viveu, bem como o segundo capítulo onde lançamos as bases para o que discutiremos agora.

Pascal nos apresenta que o homem não pode ter certeza de Deus. Ele precisa apostar nesse Deus. O homem não tem provas da existência de Deus, no entanto, é necessário apostar em Deus, pois, se ele existir é mais vantajoso. É digno de nota também dizer, que nosso filósofo não escreve o fragmento da aposta visando aos próprios cristãos, pois esses não precisam apostar, exatamente por que creem por meio do coração (sentimento). “Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”.17 O autor visa ao incrédulo, o qual não consegue acreditar em Deus. No entanto, podemos dizer que, mesmo um cristão aposta, quando constata uma imensa distância entre os princípios fixos e seguros da racionalidade e os princípios indemonstráveis da religião.

Pascal é considerado um autor trágico e, mesmo no tema da aposta, esse jogo em que a existência está em questão, escolher cara ou coroa não garante ao homem, e mesmo ao cristão, nenhuma certeza. Afinal, o cristão passará a vida toda sem a certeza da vida eterna ou da existência de Deus.

O homem é finito, possui seus limites. Deus é infinito e o homem não conhece a Sua essência e natureza. Pascal, ao falar sobre o conhecimento de Deus,

17 PASCAL. Pensamentos, Br. 278; Lf. 424.

A necessidade da religião cristã 179

nos revela: “Mas pela fé conhecemos sua existência e pela glória conheceremos a sua natureza”.18

Ao discutir sobre a existência ou não de Deus, Pascal aborda que não podemos, pela razão, defender nenhum ponto de vista. Não há provas ontológicas da existência de Deus nas obras de Pascal. É como se jogássemos cara ou coroa e a razão não pode ajudar em nenhum dos casos. Portanto, o que fazer? Temos que apostar. Não porque apenas queremos apostar, mas, acima de tudo, porque precisamos da aposta. Como é necessário escolher, devemos observar o que mais e o que menos nos interessa. É mais vantajoso ao homem apostar.

O homem tem a perder a verdade e o bem, e a empenhar a razão e a própria vontade. Ele precisa, necessariamente, fazer a escolha. Pascal nos aponta, ao refletir sobre a perda e o ganho no que se refere a escolher a cruz, isto é, Deus, que “Se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada”.19 Justifica, então, aconselhando o homem: “Apostai, pois, que ele existe, sem hesitar".20

Por que o homem não perderia nada? Simplesmente por que mesmo que o homem apostasse em Deus e esse ser supremo não existisse, ele continuaria na mesma situação anterior, viveria uma vida finita e morreria. Mas o mesmo não pode ser dito daquele que não aposta em Deus, esse pode perder tudo, pois caso ele exista perde a vida eterna. Vemos, portanto, que seria impossível ao homem não apostar, afinal quem não apostaria em algo que não perde nada? O homem não tem nada a perder, caso o resultado seja negativo, tudo continua como está. Mesmo assim justifica Pascal:

18 PASCAL. Pensamentos, Br. 233; Lf. 418. 19 Id. 20 Id.

180 Conhecimento e condição humana

Mas há uma eternidade de vida e de felicidade. E, sendo assim, mesmo que houvesse uma infinidade de probabilidades, das quais uma somente a vosso favor, teríeis ainda motivo para apostar um para ter dois; e procederíeis sem tino se, obrigado a jogar, e havendo uma infinidade de vida infinitamente feliz a ganhar, recusásseis a jogar uma vida contra três num jogo em que, em uma infinidade de acasos há um a vosso favor.21

Segundo Pascal, e seguindo o mesmo raciocínio

da vantagem, em qualquer jogo apostamos um para obter dois, mas no caso da aposta em Deus, seria insensato não jogar. O ganho é maior do que em qualquer jogo. Com efeito, o que jogamos é finito, nossa existência, mas o que ganhamos é infinito, a eternidade.

No final do argumento da aposta, há uma alusão àqueles que são impotentes para crer. Mas, mesmo esses, segundo Pascal, podem criar um determinado condicionamento psicológico, por meio da força do hábito; e, assim, apostar. É pelo hábito que aquele que é incapaz de crer, começará a crer. Aconselha-o Pascal: “[...] fazendo tudo como se tivesse fé, tomando água benta, mandando dizer missas, etc... Naturalmente isso vos fará crer [...]”.22

Aquele que aposta, empenhando toda sua vontade, no decorrer de sua existência observará os ganhos de levar uma vida cristã, e que não trocou nada de útil, por algo inútil. Verá que apostou em algo infinito. Assim, embora tenha dado muito em troca, pois não é algo pouco toda a sua existência, ainda assim o ganho é maior, o pensamento de uma felicidade perpétua com Deus. O próprio Pascal manifesta que fez essa aposta ao relatar:

Se esse raciocínio vos agrada e vos parece forte, sabei que é feito por um homem que se pôs de joelhos antes

21 PASCAL. Pensamentos, Br. 233; Lf. 418. 22 Id.

A necessidade da religião cristã 181

e depois, para suplicar a esse ser infinito e sem partes, aos qual submete tudo o que é seu, que submeta também o que é vosso, para vosso próprio bem e para sua glória, e que assim a força se concilie com essa baixeza.23

É necessário apostar. Um dos motivos é que

fazemos isso a todo momento, pois, no que se refere à certeza, não temos certeza de nada. É certo que na religião não existe certeza, mas a análise antropológica de Pascal aponta diversas coisas que o homem faz na incerteza, como as guerras e as viagens. Se alguém não quer apostar porque é incerto, essa pessoa também não deve fazer mais nada, afinal, nada é certo.

Se somente se devesse fazer alguma coisa com certeza, nada se deveria fazer pela religião, pois ela não oferece certeza. Mas quantas coisas se fazem na incerteza: viagens marítimas, batalhas! Digo, portanto, que não se deveria fazer absolutamente nada, porque nada é certo.24

É apresentado, por Pascal, que o homem que

aposta, ou seja, aquele que espera a salvação vive com medo de ir para o Inferno. Então, faz algumas considerações sobre isso abordando sobre quem deveria temer o Inferno, e este é aquele que não aposta, pois se existe suas chances são maiores de ir para lá do que as do homem que espera ser salvo.

Tendo em mente o que notamos anteriormente, podemos concluir quatro sentenças sobre o argumento da aposta em Pascal, vejamos:

a) Quem apostar em Deus e estiver certo, ganhará

a salvação;

23 Id. 24 PASCAL. Pensamentos, Br. 234; Lf. 577.

182 Conhecimento e condição humana

b) Quem apostar em Deus e estiver errado, não

perde coisa alguma; c) Quem não apostar em Deus e estiver certo, não

perde coisa alguma; d) Quem não apostar em Deus e estiver errado,

perde a salvação e vai para o inferno. O homem só poderá chegar a Deus por intermédio

da fé. Mesmo que saibamos que Deus não é demonstrável, não perdemos o interesse em buscá-lo ou tomá-lo como objeto de investigação. Interessamo-nos em saber para que lado caminhar, se é como fiel ou infiel. A respeito dessa temática, nada é certeza ou segurança. O fiel vive sem saber se será salvo e o infiel não tem certeza se será condenado.

Poderíamos comparar a aposta a algo matemático, como a probabilidade de ganho em um jogo. Pascal quer convencer o infiel que a melhor coisa, aquilo que lhe é mais vantajoso, mais rentável é apostar. O homem também foi criado para apostar, mas ele tenta esconder essa inclinação:

Pelos partidos, deveis dar-vos ao trabalho de pesquisar a verdade. Com efeito, se morreis sem adorar o verdadeiro princípio, estais perdidos. “Mas”, dizeis, “se ele tivesse querido que eu o adorasse, ter-me-ia deixado sinais de sua vontade”. – Em verdade, ele o fez; mas vós os negligenciais.25

Deus não é objeto da razão. A questão religiosa

encontra-se muito mais próxima do jogo. O ateu pode questionar o fiel sobre sua escolha, afinal, já que a razão é neutra, não é ela quem vai nos inclinar mais para uma possibilidade do que para a outra. No entanto, a questão não é algo lógico ou racional, mas é algo existencial. Não temos como escapar de nos comprometermos mais para

25 PASCAL. Pensamentos, Br. 236; Lf. 158.

A necessidade da religião cristã 183

um lado que para o outro. É preciso apostar na existência ou não existência de Deus e isso significa ser homem com Deus ou homem sem Deus. Assim, se é possível, nessa questão, sermos racionalmente neutros, já não é possível sermos existencialmente neutros. Com efeito, quem se recusa a apostar, já, logo de início, aposta na inexistência de Deus e na impossibilidade de um sentido para sua própria existência.

Conforme observamos, nos capítulos anteriores, toda a preocupação de Pascal na obra “Pensamentos” reside em encontrar um referencial para o homem. Esse referencial, ele o encontra na religião, pois somente por intermédio do Cristianismo pode o homem compreender as suas contradições. No entanto, longe dessa compreensão ser uma espécie de “porto seguro”, que liberta o homem de todas as suas dúvidas e tormentos, ela corresponde a uma aposta visando conferir um sentido mais elevado à sua existência. Embora não possamos efetivamente provar que realmente existiu o pecado original ou não possamos demonstrar a existência de Deus, o pecado original e a existência do Deus cristão encarnado em Cristo seriam os únicos princípios que tornariam possível a compreensão de nossa condição existencial entre a miséria e a grandeza, o movimento e o repouso.

Pascal pretende mostrar como a religião é boa e como revela ao homem o Bem Supremo. Muitos combatem a religião sem conhecê-la. Isso é visível ainda nos dias atuais. Nossa sociedade, constantemente, tenta colocar a religião como algo negativo. Existem meios de comunicação, autores e pessoas que se dedicam a criticar a religião sem conhecê-la. No entanto, não é esse nosso objetivo.

As Escrituras não apresentam ideia clara de Deus, isso é um fato. E elas deixam isso muito claro ao dizerem que o homem vive nas trevas e está distante de Deus: “Entretanto tu és um Deus que se esconde, ó Deus de

184 Conhecimento e condição humana

Israel, o Salvador”.26 Como podemos verificar em diversos outros textos sagrados. Diz-nos Pascal:

Deus estabeleceu na Igreja sinais sensíveis para se fazer reconhecer pelos que sinceramente o procuram; e que, entretanto, cobriu de tal maneira esses sinais que só serão vistos por aqueles que o procuram de todo o coração.27

Assim, é necessário ao homem uma predisposição

para ser religioso, é necessário querer apostar em Deus.

26 ISAIAS. Português. In: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004. Cap.45, vers. 15, p. 1326 27 PASCAL. Pensamentos, Br. 194; Lf. 427.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PARTE II Como abordamos na presente pesquisa, o

pensamento de Blaise Pascal é atual e útil ao homem contemporâneo, por essa razão fomos instigados a estudar esse pensador. Embora seja um filósofo que busca respostas para a antropologia, através da teologia, como faziam os medievais, ao mesmo tempo aponta com seus questionamentos para a miséria e a finitude do homem, o vazio e a angústia que se encontram na sua natureza; tema caro a autores contemporâneos, como os existencialistas. Com certeza, a leitura da sua principal obra, Pensamentos, não é muito fácil, mas a profundidade, a atualidade e a utilidade dos seus escritos recompensam o leitor.

Sua vida foi marcada pelo seu tempo. Seu pensamento foi vivido por ele. Ele se apavorou com o silêncio dos espaços infinitos. Ele foi um protótipo do homem de seu tempo, alguém buscava algo maior que sua miséria. Não pensou em algo inatingível nem muito menos foi metafísico. Sua obra apologética foi fruto de uma verdadeira experiência religiosa que o motivou a querer converter os homens. Sua morte precoce o impediu de ir mais longe. Sua capacidade nos impressiona, por esta razão, recebe simbolicamente o título de gênio francês1.

Observamos como Pascal parte da sua antropologia, das misérias e fraquezas em que se encontram o homem para assim chegar à necessidade de Deus e da Religião Cristã. O homem é, para ele, um caniço, mas um caniço que pensa, nisso está a sua dignidade. O homem se torna grande por saber que é pequeno. Ao reconhecer sua miséria e finitude ele está pensando bem, por isso é grande.

1 “Blaise Pascal ou o gênio francês”. Título do Livro de Jacques Attali.

186 Conhecimento e condição humana

O homem é vulnerável às forças enganadoras tais

como a imaginação, o costume e o divertimento. Elas fazem com que ele não pense em quem é verdadeiramente e qual o verdadeiro significado da sua existência. O divertimento é uma forma de distrair o homem, mesmo não sendo necessariamente lazer. Sem uma ocupação e um passatempo nossa existência pode ser representada por um constante vazio, e nossa subjetividade está muito distante de retratar a acolhedora ideia de uma interioridade agostiniana.

Por outro lado, com a temática do divertimento, mostramos que o homem é um ser contraditório, pois busca o repouso por meio da agitação. E, mesmo quando obtém o alvo ou o prêmio do divertimento, ele não se satisfaz com o objetivo atingido e busca outro modo de satisfação. A ideia do repouso, embora seja o objetivo de todo divertimento, é totalmente adverso à nossa condição. Daí o papel da religião em Pascal, pois é necessário fundamentar a compreensão antropológica em um princípio que torne possível entender as duas inclinações antagônicas de nossa natureza: a predisposição para o movimento e a aspiração pelo repouso. Nesse caso, o princípio do pecado original torna-se decifrador de nossas contradições.

Aprendemos, com essa pesquisa, que o homem não pode conhecer a Deus, muito menos ter provas ontológicas de sua existência; e, por isso, a necessidade da aposta. A aposta não se dá racionalmente. É uma questão de optar pelo que é mais vantajoso. Novamente ratificamos que Pascal propõe a aposta àqueles que não optaram pela fé cristã por meio da fé. Ele busca converter os infiéis. Aqueles que já são católicos não precisam apostar, pois já abraçaram a religião de outro modo.

Pascal insiste bastante no argumento da aposta, afinal, ele quer convencer o infiel de que a melhor alternativa é apostar, já que poderá ganhar tudo no caso de Deus existir e caso Ele não exista não perderá nada.

Considerações finais da parte III 187

Eis, portanto, porque a aposta é puramente uma questão de optar por aquilo que é mais vantajoso.

Pensando somente na religião, encontraremos uma proposta existencial autêntica, capaz de acabar com todas as ilusões que criamos ao longo de nossa existência. Ilusões criadas principalmente por meio das forças enganadoras que estudamos. Deus é o único que pode conceder a verdadeira felicidade, relacionada à nossa salvação.

Mas a principal lição que podemos tirar de Pascal é que a religião, mesmo nos dias de hoje, ainda pode e deve ser considerada uma referência para conhecermos a nós mesmos. Se há um abismo e trevas dentro de nós, se constatamos o vazio que nos angustia todos os dias, não nos desesperemos, há um significado e um mistério mais profundo para isso. Esse vazio tem a sua razão de ser. Indiretamente, ao encararmos a ausência de sentido da nossa existência, talvez seja a única maneira de sermos completamente homens.

188 Conhecimento e condição humana

REFERÊNCIAS DA PARTE II

ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. Bauru: Editora Edusc, 2003. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. CÂMARA, Hélder. O deserto é fértil. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977a. _____. Um olhar sobre a cidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977b. MAURIAC, François. O pensamento vivo de pascal. São Paulo: Martins, 1961. _____. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores: De acordo com a edição de Brunschivicg) _____. Pensamentos. Ed. Apresentação e notas de Louis Lafuma; trad. Mario Laranjeira; revisão técnica e introdução da edição brasileira de Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Martins fontes, 2005. PERRY, Marvin. História ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ROHDEN, Humberto. Pascal: o homem que apelou da razão para o coração e de Roma para Deus. 2. ed. São Paulo: União cultural editora, 1956.

190 Conhecimento e condição humana

OBRAS CONSULTADAS BECKER, Idel. Pequena história da civilização ocidental. 7. ed. São Paulo: Companhia editora nacional, 1975. BRAUDEL, Fernand. Século XV – XVIII: o tempo do mundo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. v.3. _____. Século XV – XVIII: as estruturas do cotidiano. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DENIS, Benoit. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo: EDUSC, 2001. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 2000. _____. As paixões da alma. São Paulo: Abril Cultural, 2000. _____. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 2000. GOUHIER, Henri. Blaise Pascal: conversão e apologética. Tradução: E. M. Itokaz; H. Santiago. São Paulo: Discurso Editorial, 2005. LEBRUN, Gérard. Blaise Pascal. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Brasiliense, 1983. MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1981. v. 2. OLIVA, Luís César. As Marcas do Sacrifício: um estudo sobre a possibilidade da história de pascal. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.

Referências da parte II 191

PASCAL, Blaise. A arte de persuadir. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _____. Do espírito geométrico pensamentos. São Paulo: Escala, 2006. PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino. (Org.) Deus na Filosofia do século XX. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2000 PINTO, Rodrigo Hayasi. A noção de perspectivismo na filosofia de Blaise Pascal. 2006. 194 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006. PONDÉ, Luiz Felipe. O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana. São Paulo: Edusp, 2001. _____. O conhecimento na desgraça: ensaio de epistemologia pascaliana. São Paulo: Edusp, 2004. ROGERS, Bem. Pascal elogio do efêmero. Tradução: Luiz Felipe Pondé. São Paulo: Editora UNESP, 2001. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 1999. SCIACCA, Michele F., História da Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. v. II. SILVA, F. L. Fé e razão na apologia da religião cristã: Anotações sobre a relação entre existência e transcendência em Pascal. Síntese, Belo Horizonte, v. 34, p. 373-386, 2007. _____. O mediador e a solidão. Cult, São Paulo, v. 64, p. 44-56, 2002.

192 Conhecimento e condição humana

VAZ, Henrique C. L. Antropologia filosófica I. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000. _____. Antropologia filosófica II. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1995. VV.AA. Os filósofos através dos textos: de Platão a Sartre. São Paulo: Paulus, 1997.

Referências da parte II 193

OS ORGANIZADORES

194 Conhecimento e condição humana

ADEMIR MENIN é Mestre em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana de Roma-PUG (2013).

Especialista em Letras (Estudos Linguìsticos e Literàrio) pela Universidade Estadual do Norte do Paranà-UENP (2010).

Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (1995).

Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma-PUU(1999).

Atualmente é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

Referências da parte II 195

José Francisco de Assis Dias, é Professor Adjunto da

UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão

do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR;

pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão”

e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE,

CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela

Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano,

Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma

Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico

também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana;

Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade;

Especialista em Docência no Ensino Superior pela

UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade

de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela

UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de

Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail:

[email protected]

196 Conhecimento e condição humana

Referências da parte II 197

Prof. Pe. Leomar Antonio Montagna possui Mestrado

em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do

Paraná PUCPR;

Curso de Especialização, ênfase em Ética, também, pela

Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR;

Pós-Graduação em História do Pensamento Brasileiro

pela Universidade Estadual de Londrina UEL;

Reconhecimento de Graduação em Filosofia pela

Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE;

Graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI

de Londrina;

198 Conhecimento e condição humana

Graduação em Ciências: Licenciatura de 1º Grau pela

Fundação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de

Mandaguari FAFIMAN e Curso de Graduação em Filosofia

pelo Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá

IFAMA.

Presbítero da Arquidiocese de Maringá, Pe. Leomar

Antonio Montagna, atualmente, é membro e Coordenador

do Conselho de Presbíteros, Diretor e Professor do Curso

de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade

Católica do Paraná (PUCPR) Câmpus Maringá;

Foi Professor convidado da Faculdade Missioneira do

Paraná (FAMIPAR) de Cascavel;

Assessor e Professor da Escola Teológica Para Cristãos

Leigos da Arquidiocese de Maringá.

Membro do Conselho Editorial da Editora Humanitas

Vivens LTDA – Editora On-line, nesta, publicou a sua

principal obra: “A Ética como Elemento de Harmonia Social

em Santo Agostinho”.

Autor de vários artigos para revistas e jornais, palestras e

cursos de breve duração.

Na área de Filosofia, atua, principalmente, nos seguintes

temas: Filosofia, Ética, Filosofia Política, Santo Agostinho,

História da Filosofia e História do Pensamento Brasileiro e

Latino-americano.

Na área de Teologia tem experiência em Moral Social e

Doutrina Social da Igreja.

Referências da parte II 199

200 Conhecimento e condição humana