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Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 41 -
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O cotidiano profissional – a história em vidas de trabalho
Doutora Emília, Doutor Fábio, Doutor Paulo, Doutor Maurício, Doutor
Silvio, Doutor Nélson, Doutor Antônio, Doutor Luís e Doutor Carlos1 contam a
história de uma mudança, a passagem de uma a outra “profissão” e de uma a outra
identidade profissional: eles fazem parte daquele coletivo quer testemunhou a criação
da medicina tecnológica.
Foram eles agentes da inovação, renovando a prática, incorporando a
especialização no trabalho e as tecnologias materiais, ao mesmo tempo em que
buscaram preservar aspectos e componentes que tinham caracterizado uma identidade
passada e da qual partiram no início da profissão. Identidade forjada no interior de uma
medicina homogeneamente exercida como prática liberal e com a qual eles não
conviveram exatamente, mas da qual tomaram a concepção de autonomia que
reconhecem como seu ideal de prática. E mesmo supondo que preservavam, por seus
procedimentos e ajustes, o caráter “universal” da prática, mantendo, através da
autonomia reconstruída, supostamente intacta a essência” daquela mesma identidade
primeira, constituíram-se de fato em sujeitos também da reconstrução das concepções
acerca do trabalho médico, a partir das quais outra e nova identidade passa a firmar-se.
Partiram eles do princípio de que a prática seria adequada e tecnicamente
bem qualificada quando se encontrassem condições nas quais a racionalidade
do ato médico, tanto seria progressivamente conformada pelo plano
científico-tecnológico, quanto se manteria assentada no julgamento e poder decisório
individual do médico. De certo modo essa conciliação tem por suposto
a possibilidade de se estabelecer, entre o plano científico-tecnológico
(configurado sobretudo no equipamento material, nesse período do
histórico de suas vivências profissionais) e o empenho ou a capacidade
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de decisão pessoal de cada médico, as mesmas formas de articulação que
anteriormente se tinham estabelecido entre o médico liberal e o saber. Partiram nossos
médicos, portanto, do pressuposto da necessária preservação de um momento
essencial de autonomia no interior da prática, concebendo-o como fator que deveria
presidir o modelo operatório. Mas, ao buscarem objetivamente um modelo consistente
com esses princípios, transformaram o trabalho, nele recortando um conjunto
destacado de procedimentos, que individualizaram, isolando-os de outros
componentes do exercício profissional. Assim, tendo separado um pouco “o joio do
trigo”, prosseguiram aprofundando as cisões já dadas no trabalho liberal.
Seus movimentos significaram para eles a busca de uma independência de
ação e de julgamento. Busca que veio dar-se através da demarcação de um espaço de
trabalho que seria uma espécie de “território livre” e no qual reviveriam, de modo
análogo à medicina liberal, a plena autonomia de trabalho. Esse território onde o
desempenho poderia ser totalmente livre porque circunscrito ao âmbito pessoal do
médico, correspondeu ao consultório particular. Por isso, essa forma institucional de
organização da produção dos serviços viria assumir a qualidade de única forma capaz
de corporificar as condições necessárias e adequadas para o exercício autônomo.
Assim sendo, no mesmo sentido em que promoveram a reconstrução da autonomia,
iniciaram uma reorganização do consultório, como base institucional da produção dos
serviços. E uma vez reorientada sua prática, produziu-se um novo consultório privado
do médico, por conseqüência produzindo-se, a seu respeito, toda uma outra
conceituação.
A individualização do exercício profissional e a liberdade correlata,
concebidos como atributos necessários para a prática e para sua forma institucional
ideal de realização, constituíram, sem dúvida, as questões centrais com as quais
cotidianamente se defrontaram estes nossos entrevistados. É esta a razão pela qual a
interpretação que fizemos de suas vivências singulares, e que delas considerou alguns
pontos sem pretender constituir uma análise exaustiva, caminhou pelas narrativas
privilegiando essa mesma questão da individualização e da liberdade pessoal.
Buscamos, porém, cotejar a subjetividade e seu exercício
na prática profissional com os determinantes sociais que fazem, do
comportamento de cada um, um desempenho social. Também buscamos
contrastá-los com as condições históricas concretas que demarcaram os
espaços e as formas possíveis dessa atuação individual. E assim o fizemos porque foi
nossa pretensão resgatar o modus operandi construído por esse segmento
profissional, ao se articular ao modelo geral da medicina tecno-
lógica. Foi igualmente nosso propósito apontar para esta articulação. Aliás, deveríamos
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observar, mais precisamente, que conhecendo o modelo de prática por eles produzido,
estávamos identificando suas relações com o conjunto da prática médica, ao mesmo
tempo que a reconhecíamos como prática social. Objetivávamos, assim, evidenciá-los
como parte de um sujeito coletivo, o médico, tanto quanto evidenciar a este como
sujeito social.
Evidências, no entanto, que nem sempre são conscientes. Poderíamos até
dizer que em função das concepções de vida e trabalho de que partiram, e em função
do modo com que lidaram com essas questões em suas vidas profissionais, esses
médicos não se reconheceram como constituindo as relações de produção mais gerais
da prática médica. Não se viram, portanto, como inseridos, desde o princípio de suas
vidas de trabalho, em processos de mudança. Antes supuseram o processo específico
do qual eles próprios participaram, como expressando uma espécie de movimento de
resistência. Uma estratégia de preservação por parte de um grupo de médicos que
ainda conseguiria manter a antiga identidade profissional: seriam eles os profissionais
liberais, distantes e diferentes dos demais, resguardando, pelo esforço pessoal, a
qualidade de assistência médica que derivaria de uma autonomia preservada. Por isso,
para eles, tudo se passa como se os novos tempos demarcassem a permanência de seus
exercícios profissionais em um modelo independente, um “outro tempo” no tempo
presente.
Doutora Emíllia nasceu no Estado de São Paulo, em 1902. Primeiro fez
odontologia e depois fez medicina, no interior da qual escolheu a Obstetrícia e
Ginecologia: Meu cartãozinho aqui... “Partos, operações, moléstias de senhoras.”
Filha de um “forte negociante” que faleceu aos 32 anos, a complementação da renda
familiar logo se tornou algo importante, muito embora com o segundo casamento de
sua mãe a família se tenha mantido em condições de renda estáveis. Não obstante, ser
independente e ter renda própria, que significava então ter uma profissão, era o lema
da casa, de modo que aos dezoito anos formou-se em odontologia. Não conheceu
médicos na família, e dos cinco irmãos nenhum outro fez medicina: apenas uma irmã
cursou também a Faculdade de Odontologia e outra, Fármacia e Filosofia; seu irmão é
advogado e as outras duas irmãs, pianistas. Exerceu a profissão de dentista por seis
anos, tempo em que ingressou como funcionária pública nos Correios e Telégrafos,
onde por dez anos trabalhou como tesoureira, por outros trinta anos, como médica.
Logo após formar-se em medicina trabalhou no ambulatório e hospital da
Cruz Azul, instituição de assistência aos integrantes da Força Pública e
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seus familiares, onde ficou por mais de trinta anos. Teve consultório privado durante
cerca de quarenta e cinco anos, e trabalhou em atividades hospitalares, como médica
contratada de hospital beneficente por trinta anos. Agora está aposentada.
Doutor Fábio é natural de Minas gerais, onde nasceu em 1910. Fez medicina
e trabalhou durante seus primeiros anos de formado só em Cirurgia Geral, depois disso
agregou à Cirurgia atividades clínicas (Clínica Geral e Pediatria). Trabalhou também
em Fisioterapia, como médico contratado em hospital privado por cerca de quinze
anos. Ao mesmo tempo, no consultório particular foi aos poucos delimitando seu
atendimento, da Clínica e Cirurgia Geral para a área de Ginecologia, à qual
posteriormente agregou a área de Obstetrícia, atividades que exerce até hoje e nas
quais trabalha já há cerca de 35 anos. Filho de comerciante e fazendeiro, conheceu
antes dele um tio médico na família e dois farmacêuticos. Tem vários outros primos
formados em medicina,, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, mas de seus onze
irmãos e irmãs nenhum outro é médico: (...) de profissão mesmo, apenas um irmão fez
direito (...). Na minha família não era importante fazer medicina! Não! Não havia
entusiasmo, não! O pessoal era mais fazendeiro (...) eram mais do comércio (...) isso
que era o forte lá no sul de Minas. Antes de formado não trabalhou. Já médico sempre
trabalhou em atividades hospitalares, como contratado de hospital privado, e hoje
ainda tem seu consultório situado dentro do hospital. Ficou alguns anos em Campinas
e depois fixou-se em São Paulo. Tem consultório privado há cerca de 48 anos, e nas
atividades hospitalares trabalha há mais tempo ainda.
Doutor Paulo nasceu em 1912, numa cidade do litoral de São Paulo,
mudando-se muito criança para a Capital. Da medicina logo escolheu e fixou-se na
Pediatria. Na família um tio foi médico, e seu pai, embora não o tivesse sido, queria
muito ter um filho trabalhando nessa profissão. Dos três irmãos, porém, só ele fez
medicina. Durante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico.
Em sua vida profissional localiza um corte, na viagem que fez para estudar Pediatria
fora do país: Quando voltei, aí tinha outras condições. Trabalha até hoje no seu
consultório, e mantém essa atividade de clínica privada há cerca de cinqüenta anos.
Também exerceu atividades hospitalares, como contratado por hospital beneficente, o
qual, após 35 anos de trabalho, afastou-se.
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Doutor Maurício é natural da Ucrânia, onde nasceu em 1916. Veio para o
Brasil com cinco anos de idade fixando residência primeiro no interior do Estado e
logo a seguir em São Paulo. Entre os familiares diretos um tio era médico, e entre os
mais distantes, dois outros parentes também, que o orientaram e auxiliaram a fazer
medicina. Ainda estudante ligou-se à área cirúrgica e ginecológica, através do que
também exercia por vezes atividades remuneradas, sobretudo nos três últimos anos de
estudante. Nos quase cinqüenta anos que tem de prática em consultório privado,
atividade em que se mantém até hoje, sempre se ateve mais à Ginecologia, clínica e
cirúrgica. Depois que se formou, trabalhou como voluntário em hospital beneficente e
foi médico contratado do Sindicato dos Condutores de Veículo e Anexos, onde fazia
ambulatório, e contratado do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados
em Transportes e Cargas (IAPETEC), respectivamente por dez anos e por mais de
trinta anos. Na Previdência, embora no início tenha exercido apenas atividades
hospitalares como plantonista, há cerca de sete anos passou a trabalhar só em
ambulatório, mantendo, porém, também a prática cirúrgica em hospitais da
Previdência para alguns casos. Mesmo aposentado pelo Instituto, além de seu
consultório, trabalha ainda nessa atividade ambulatorial: Até hoje nós sentimos uma
obrigação de fazer alguma coisa para essa área social. Sempre me perguntam: “Por
que você continua operando doente do INAMPS?”; respondo: “Porque me sinto
bem”.
Doutor Sílvio é nascido no interior do Estado de São Paulo, em 1915, e
ainda criança fixou-se na capital, no Brás. O pai sempre trabalhou no comércio e dos
três irmãos, ninguém fez medicina. Ele próprio oscilou na escolha entre medicina e
engenharia, profissão pela qual seus parentes próximos optaram: (...) sempre gostei
mais de clientes, de acudir as pessoas. (...) Foi mais por causa disso. Porque eu tenho
muita cabeça para raciocínio (...) eu deveria ir bem em engenharia. Sempre trabalhou
em Clínica Geral, primeiro em consultório privado, depois como proprietário de
hospital, exercendo atividades de enfermaria e ambulatório, por cerca de trinta anos e
quinze anos respectivamente. Trabalhou como médico perito da Previdência Social
por 35 anos. Não exerce atualmente a profissão.
Doutor Nélson sempre morou em São Paulo, onde nasceu no ano de 1912.
É filho de comerciante, sem ter na família outro médico. Começou a Faculdade de
Direito mas acabou desistindo e cursando medicina. Du-
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rante o curso trabalhou como propagandista de laboratório farmacêutico (...) a vida
sempre foi apertada para nós ... eu gostada de propaganda! Sabia falar, conversar,
discutir... Se o médico quisesse discutir, eu dizia... provava. Depois trabalhou também
como técnico de laboratório no Serviço Sanitário do Estado, ainda no tempo de
acadêmico. Durante toda sua vida profissional sempre trabalhou como clínico geral e
também na área de Moléstias Venéreas, através de atividades que exerceu por trinta
anos no Serviço Sanitário do Estado. Há cerca de 45 anos mantém sua atividade de
consultório privado, e mantém também um trabalho de médico plantonista em Pronto-
Socorro de hospital público, cargo que ocupa há já cerca de vinte anos. Por um período
mais curto, cerca de oito anos, foi médico contratado do setor público no Serviço de
Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU).
Doutor Antônio nasceu em 1917, em Portugal. Veio para o Brasil ainda
criança, fixando-se com sua família no Brás. Não é apenas o único médico da família
mas o único de seus seis irmãos que tem curso superior: (...) nós éramos e sempre
fomos absolutamente pobres. Este é um problema importante porque isto é que
norteou a minha vida: a pobreza! Seu pai foi gráfico. Desde menino já trabalhava no
comércio, iniciando-se na escolarização já na adolescência. Não tinha contato com
médicos exceto enquanto paciente. Fez curso trabalhando e continuou em atividades
não médicos por um certo período também após formado. Dentre as áreas da medicina
fixou-se logo na Pediatria, especialidade que exerce até hoje. Trabalhou como médico
contratado em hospital público e hospital privado por 35 anos e 25 anos
respectivamente. Mantém até hoje atividade em consultório privado, o que fez já cerca
de quarenta anos.
Doutor Luís é natural de São Paulo, onde nasceu em 1929. Filho de médico,
conviveu desde criança com a medicina, o hospital, os doentes e a vida de médico: (...)
eu me lembro muito de sair com papai, de lá para cá, atendendo chamado... Durante
o curso de medicina não trabalhou, e após formado fixou-se mais ou menos na mesma
área de atuação médica que seu pai: atividade hospitalar e clínica de consultório,
exercendo Cirurgia Geral e Ginecologia. Após formado trabalhou algum tempo como
voluntário em hospital público. Há mais de trinta anos exerce atividade de
consultório privado, e simultaneamente é empregado do setor público, traba-
lhando ainda também em ambulatório de fábrica como médico contra-
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tado do setor privado. Mantém também um vínculo de trabalho em atividade
hospitalar, com um hospital privado, onde também tem instalado seu consultório, e
com o qual também seu pai mantivera relações profissionais. Por cerca de 25 anos
trabalhou em ambulatório médico de uma sociedade mutualista, de um bairro da
região norte da cidade.
Doutor Carlos nasceu em 1927 e sempre morou em São Paulo. Seu pai foi
gerente de uma fábrica de cigarros e não existiam médicos em sua família. Mesmo
assim, porém, sempre conviveu muito com esses profissionais e outras pessoas de
prestígio. Desde o tempo de estudante de medicina já exercia atividades remuneradas
como estagiário em serviços da própria faculdade, tendo nessa ocasião trabalhado em
laboratório clínico durante quase quatro anos. Depois de formado exerceu sempre
Clínica, inicialmente em atividades de atendimento de emergência e de Clínica Geral,
quando trabalhou durante os primeiros anos de vida profissional no Pronto-Socorro
recém-criado de um hospital público e num Pronto-Socorro de que foi proprietário
junto com outros seis colegas, além do trabalho em consultório de outro médico mais
velho. Na primeira atividade ficou apenas dois anos, na atividade de consultório e
como proprietário do Pronto-Socorro por cerca de cinco anos. Este último teve que
fechar; Eu adorava! Adorava porque era minha característica. Como eu não paro,
então para mim era... (...) Mas o serviço não rendeu. Não rendeu porque era tudo
cientista, né? Só depois destas atividades profissionais é que iniciou seu consultório
privado, que mantém há cerca de trinta anos e onde foi delimitando seu exercício para
área de Cardiologia, na qual, hoje, se mantém predominantemente. Ao mesmo tempo,
trabalhou desde o início de sua vida profissional em duas outras atividades de emprego
público: como médico contratado em hospital público há quase trinta anos e em que
até hoje trabalha; como médico-perito do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Industriários (IAPI), em que trabalhou cerca de 25 anos.
Os depoimentos desses médicos revelam que eles próprios fazem do
início da vida profissional um marco, um corte que se separa e até certo ponto
opõe dois segmentos dessa vida: o começo e o restante. Em primeiro
lugar, procuramos respeitar essa divisão, buscando identificar as caracterís-
ticas dos dois momentos em si mesmos, para só depois considerarmos a
própria divisão como uma questão. O primeiro desses dois momentos
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corresponde ao período que se dá em torno de um começo da vida profissional, em
que esses médicos se profissionalizaram e estabelecem a primeira forma de
organização da prática, o que conforme veremos não se restringe necessariamente ao
período pós-formado. Ser médico, fazer-se médico e Os referenciais da liberdade são
as partes em que dividimos a análise relativa a esse primeiro momento. O segundo
momento corresponde às transformações que eles mesmos operam no modelo inicial,
estabelecendo as reconstruções necessárias à preservação de núcleos centrais de seu
modelo primeiro, à proporção que cada vez mais as condições objetivas do exercício
profissional se distanciam dos padrões identificados ao verdadeiro exercício
autônomo. A liberdade refeita é o título que demos à análise desse momento. Por
último quisemos conhecer as razões pelas quais esses médicos delimitam tais
momentos, o que fizemos analisando o modo pelo qual eles próprios vivenciam o fato
de serem sujeitos históricos, inseridos em processos de mudança, no movimento do
real de que são partícipes. Observamos, então, como eles refletem sobre a mudança e
reconhecem o Sinal dos tempos.
Antes, porém, de examinarmos as narrativas é preciso salientar dois aspectos
relativos às condições históricas de que são elas produto. O primeiro é dado pelo fato
de que a mudança que relatam corresponde a uma reconstrução da autonomia que
fornecerá a seus agentes uma espécie de progressivo “constrangimento” de um
exercício autônomo-independente. Constrangimento que se dá em razão da
redelimitação das bases mais pessoais e subjetivas, na conformação do ato técnico.
Trata-se do redirecionamento da autonomia para outros espaços, isto é, para
os domínios do especializado e do tecnológico. Isto parecerá “natural” a seus agentes,
razão pela qual não será tomado exatamente como alteração, mas apenas decorrência
necessária do desenvolvimento científico. Assim, o problemático constitui a perda que
ocorreria na antiga base de apoio mais subjetiva, a qual realmente se contrai, ao ganhar
o exercício da subjetividade novos padrões. E isso evidencia, de outro lado, o fato de
que concebem a mudança sobretudo reduzida àqueles sentidos da realidade aos quais
atribuem valor negativo.
Em segundo lugar está o fato de que todos estes médicos iniciam suas
práticas com a base do plano pessoal já “contraída” por referência à do ideal da
profissão, posto que começam suas vidas profissionais sob as determinações de uma
medicina que já não se dá como prática tipicamente liberal. Mas se este é o seu traço
comum, mesmo no interior desse agrupamento, as condições objetivas da prática
médica transformam-se o suficiente para produzir identidades profissionais
diferenciadas entre si.
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É deste modo que, de um lado, eles participam do mercado de trabalho na
forma de uma inserção em que coexistem as situações de trabalho assalariado, de
emprego público ou privado, com a situação de trabalho “liberal” do consultório
particular, à qual identificam um padrão de prática “difuso e maleável”, próprio do
exercício de caráter “essencialmente” pessoal e que por isso assumem como a
principal atividade na profissão. De outro lado, ainda que para todos seja o consultório
o que de fato simboliza o trabalho profissional, o sentido que assume a convivência
com as atividades sob vínculos empregatícios não é exatamente o mesmo para o
conjunto dos entrevistados, parecendo mais lógico aos mais jovens dentre eles. Para
este parecerá bastante plausível a necessidade de um emprego como a forma primeira
e mais imediata da inserção no mercado de trabalho: Logo depois que eu me formei,
então, fui arrumar um emprego, dirá o doutor Luís.
Também de mesma forma a especialização, o equipamento material ou a
base hospitalar, são componentes da prática profissional muito mais naturais e
próximos do doutor Carlos do que da doutora Emília ou do doutor Fábio, enquanto
componentes básicos para se iniciar a prática. Assim, o contraste aparece quando a
doutora Emília, mesmo na situação de trabalho com vínculo empregatício, repousa sua
prática no parto domiciliar ou na absoluta simplicidade tecnológica do consultório,
enquanto que para o doutor Carlos, não será estranha a incorporação do
eletrocardiógrafo e do aparelho de radioscopia como parte dos instrumentais do
consultório, ou então a idéia de criar um serviço um pouco mais especializado, tal
como o seu Pronto-Socorro. Elas fazem parte já de seu cotidiano, situação incorporada
que ele reconhece como familiar.
Não obstante esta diferenciação interna, será o conjunto dessas vidas
profissionais que observaremos para as considerações que seguem, uma vez que as
condições mais atuais da medicina tecnológica, e nas quais têm todos elas amplo
período de vivência, estreita muito as distâncias que a descrita diferenciação
profissional, pela especialização da prática ou incorporação de equipamentos da época,
consegue estabelecer para aquelas vidas entre si.
SER MÉDICO, FAZER-SE MÉDICO
a) o espelho da profissão
A profissão representa para os indivíduos entrevistados a viabilização do
projeto de ascensão social que da um traz como expectativa de par-
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ticipação na sociedade, de modo a se reconhecerem, e serem reconhecidos, como
sujeitos sociais de prestígio e valor. Para alguns pode representar a simples
continuidade de uma posição social já conquistada pela família. Doutor Luís, por
exemplo, seguiu os passos de seu pai e esperou que o filho seguisse os seus. Para ele
tratava-se de um caminho natural:
A idéia de fazer medicina sempre existiu. Não sei se teria me passado pela
cabeça fazer outra coisa! (...) Então, você gostava de falar, de letras, de latim, ia fazer
direito; ou você era muito bom em física, matemática, gostava das coisas – vamos
dizer – de cálculo, ia ser engenheiro; ou você ia ser médico. Não tinha muitas... muitas
variações. Tenho impressão que mamãe talvez, tenha gostado de eu estudar medicina.
Papai, não sei! Evidentemente deve ter gostado. Trabalhei com ele a vida inteira,
depois, né? Mas... eu... não senti de ter sido forçado, nem induzido. De fato você
vivendo... mas isso não quer dizer nada! Você vivendo num ambiente que você pode
escolher outras coisas, né? Talvez eu tenha escolhido fazer o mesmo tipo de clínica,
isso sim. Tive a facilidade de ir lá, um consultório junto, igual, fazendo a mesma coisa.
Mas, meu filho, por exemplo, escolheu um negócio totalmente diferente. Ele andou
freqüentando cirurgia e acabou optando por ... por Psiquiatria, que não tem nada a
ver, né?
Para outros o caminho não e de continuidade, mas uma ruptura com a
dependência, na afirmação da capacidade individual de construir sua vida com base
nas condições que criará em seu trabalho. Doutor Fábio quase não foi médico porque
na família o importante era ser fazendeiro; doutora Emília buscava a independência
como mulher, na visão de futuro que a mãe sabiamente já elaborava:
“Para viverem, muitas filhas terão a fé, educação, instrução e mais auto-
suficiência na vida.” Sempre lembrava que tínhamos direito à vida, mas que tínhamos
também o dever nesta vida. Assim nos educou! Outrora a mulher cuidava da casa e
educava os filhos. O marido provia a casa (...) Todas as minhas irmãs também
estudaram curso superior. Eu tenho uma irmã pianista; outra também pianista e que
fez também a Escola “Alvares Penteado”; a outra irmã fez farmácia e filosofia; a
outra irmã fez odontologia; e meu irmão é advogado. E eu sou médica, consultora
hospitalar (...) porque mamãe queria que a gente tivesse assim uma profissão, né? e
ser auto-suficiente.
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Para o doutor Maurício, como imigrante, ser médico significou a
possibilidade de um trabalho estabelecido que pudesse afirmá-lo como autoridade e
cidadão de valor na terra estranha e torná-lo por isso parte dela:
Meus dois irmãos, mais velhos, que já estavam no Brasil quando vim, e que
eram como pais para mim, tinham uma casa de móveis, em Santos. Mas, no espírito
de nosso povo, a melhor fortuna que se pode ter na família é cultura, fazer uma
carreira que dignifique, uma carreira humana, digna; isso concorreu para que eu
fizesse medicina. Outro aspecto é o sentido da vocação. Sempre tivemos vontade de
ser útil em alguma coisa, inclusive em outros trabalhos paralelos à medicina.
Para o doutor Antônio representa uma ruptura com os padrões de pobreza e
uma vida melhor:
E por aí na minha adolescência, eu resolvi estudar. Eu fui, voluntariamente,
me matricular no ginásio, trabalhava, pagava as minhas mensalidades e estudei! (...)
Inclusive eu me lembro de um médico que tinha um consultório na Rua Bresser – eu
morava ali perto – e quando eu ia consultá-lo, eu achava um encanto aquele negócio:
a casa do médico, com a plaquinha dele: “Doutor Fulano de Tal”. Então, ele tinha
consultório em casa. Uma realidade: eu também tive consultório em casa. Aqui! Eu
morava aqui em cima! Depois é que eu mudei. Bom!, então eu achava um encanto
aquele negócio: aquela casinha do médico, com a plaquinha, entrava\ lá, aquele
consultório e ele – não sei porque não me dava muita bola; porque eu era moleque à
toa – examinava, auscultava... Por sinal eu nunca gostei muito de médico. Lógico!,
porque eu não... não gostava de tomar injeção, nem não gostava de que ele
examinasse a minha garganta... Não gostava! Mas eu tinha uma atração por aquela
situação de médico! Mas ser médico é uma coisa notável! Então, isso já existia. Isto é
que.. constitui a minha motivação de ser médico! Me lembro perfeitamente quando eu
era muito adolescente ainda, eu fui consultar um médico na Rua Bresser. Ele se
chamava Souza Ramos. Então, ele morava naquela casa onde ele tinha também o
consultório, na sala da frente. A casa tinha um portãozinho com a plaquinha dele. E
eu entrei; achei encantadora. Mas eu já... desde menino, gostava muito dos médicos
em geral. Onde havia um consultório médico, eu sentia uma certa atração
pelo consultório médico. Era uma coisa invisível! Inclusive porque eu era um
menino pobre. Nunca imaginei ... rapazinho pobre que nunca imaginei
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que fosse ser médico. Mas eu... eu tinha essa apreciação, essa.. Quer dizer, não era
um médico em particular. Eu citei esse em particular porque era um médico que eu fui
consultar... e que ele me examinou, etc. etc. etc. E me lembro que ele receitou... Era
um... um processo de vias aéreas superiores e ele me receitou umas inalações assim
desses ... dessas substâncias de anti-sépticos respiratórios que dissolvem na água
fervente, aspira aquele vapor... Que não adianta nada! É uma porcaria! Não serve
pra nada! Então por isso eu o citei, mas não é... Quer dizer, não foi ele em particular
que me influenciou. Quer dizer, no meu entender daquele adolescente pobre, o médico
era um indivíduo distinto na sociedade. Era um médico que tinha até um... um
indivíduo que tinha posição muito distinta na sociedade. E eu... hã... Os poucos
médicos que eu via ou que eu conhecia ... de vista, não de conhecimento pessoal, e
achava que eles tinham alguma coisa de especial. Então, eram indivíduos elegantes,
bem-falantes, conhecedores, humanos... Quer dizer, essas coisas todas! Então, esse
era um problema que eu sentia.
Para outros, como o doutor Silvio – Naquele tempo ele era doutor, o senhor
doutor – ser médico representa a autoridade. Além disso, representa a popularidade e o
reconhecimento, como figura magnânima e dedicada, que faz do médico pessoa
conhecida e querida, como aquela imagem do seu médico de infância, que o doutor
Carlos retém na memória:
(...) um médico que faleceu em 1941, doutor Nacarato. Eu tenho a
impressão que esse homem nunca cobrou uma consulta de ninguém! Ele era amigo
de todo mundo! Então, quem necessitasse, ia procurar o doutor Nacarato. E ele
estava sempre às ordens (...) É verdade que os médicos, nessa época eram pessoas,
assim, ilustres. Muito considerados! (...) Indiscutivelmente! Isso, todos os que eu
conheci! Todos! Alguns até me recordo que se a gente comparar com o conhecimento
que a gente tem hoje, eles eram ingênuos. Mas eram umas pessoas que tinham uma
influência importantíssima! Alguns eram conselheiros de família ... que a pessoa ia lá
no consultório dele pedir opiniões pra decisões e tudo. Até acerca... opinar sobre
casamento de filhos! Eram coisas desse tipo. Então o médico tinha uma influência
muito grande, mais do que as outras profissões, inegavelmente. Inegavelmente!
Para todos, porém ser médico significa a possibilidade de uma afirmação de
identidade social que em boa medida decorrerá de seus esforços e
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desempenhos pessoais, onde alcançar o sucesso, nesta profissão socialmente bem-
sucedida, ainda se encontra neste período de seus primeiros passos profissionais (1930-
1955), relativamente mais dependente desse plano pessoal. A relação entre instrução e
autosuficiência, como aponta doutora Emília, enquanto possibilidade concreta de se
instalar um padrão de prática de exercício autônomo-independente, evidencia o sentido
da escolarização e da qualificação universitária como recurso necessária e por si
mesmo suficiente para a profissão. Ressaltemos que para tanto é central o fato de que,
até esse momento, o saber ainda representa o principal meio de trabalho, e sua posse, o
recurso suficiente para que o médico se estabeleça na vida profissional. Ser médico
podia ser assim simples como fazer-se médico por seu próprio esforço. As barreiras
sociais representadas pela escolarização e a seguir pela instalação do consultório e a
captação da clientela, ainda são nessa época passíveis de uma margem grande de
transposição pelo esforço relativamente mais individual.
Não obstante, devemos relativizar um pouco essa última afirmativa, pois
este esforço é apenas parte dos requisitos para ser médico: a própria camada social de
origem dos entrevistados (na maioria filhos de comerciantes, fazendeiros, gerentes de
indústrias grandes, funcionários públicos graduados) e a pequena presença de
indivíduos originários de famílias de baixos recursos nas escolas médicas, tal como
eles mesmos relatam, mostra como era socialmente difícil chegar à qualificação
profissional. O curso era longo, exigia grande empenho e a escola ocupava o dia
inteiro. Essa era a preocupação do doutor Carlos, cuja situação familiar piora muito
quando o pai é demitido do emprego já aos cinqüenta anos:
Medicina era um curso muito difícil, que o sujeito precisava estudar o dia
inteiro, não podia sair de casa, tinha que... E aquela era uma preocupação muito
grande porque eu me preocupava com a possibilidade de ganhar alguma coisa pra
fazer o curso. Precisava melhorar de vida porque nessa ocasião, também, aconteceu
uma problemática muito grave com meu pai e quase que... implicou na interrupção do
estudo... Enfim... mas enfim deu pra ir continuando com muita limitação e muita
economia...
Doutor Fábio também enfatiza esse aspecto ao relatar, em situação pessoal
oposta, a vantagem que obteve ao ter podido estudar e até mesmo exercer a prática, em
seus primeiros anos de formado, recebendo dinheiro da família. Nesse ponto o velho
foi bacana, é o modo de reconhecer o mesmo fato para o doutor Silvio:
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 54 -
A faculdade pra mim foi uma delícia! Gostei dela. Eu tinha vários colegas
de turma mais modestos do que eu. Mas tinha vários bem dispostos, parentes do
presidente Pena. E tinha até um colega negro. Ele era pobre também. Ele lutou muito.
A faculdade era uma coisa muito gostosa, a gente estudava... Mas eu nunca precisei
trabalhar. Nesse ponto aí o velho sempre se matou, né? Dava duro o velho! Aliás, o
meu filho me traga agora de velho, como eu trato meu pai. O velho sempre me tratou
bem. Eu não tinha dinheiro demais, mas também não faltava. Eu tinha as coisas que
precisava fazer.
Contudo, a época ainda inscrevia a possibilidade de se fazer os estudos
médicos trabalhando, para os estudantes mais pobres:
O tempo de faculdade – de estudo na faculdade – para mim foi muito difícil.
Pela seguinte razão: eu era um indivíduo pobre, casado, com um filho. Eu tinha só
uma vantagem: eu não pagava aluguel! Porque morava numa casa... numa casinha
velha que era da minha sogra. Então, não pagava aluguel. Esta era a única vantagem
que eu tinha. Mas as aulas da faculdade ocupavam o dia todo – de manhã e de tarde.
Eu tinha aula desde as oito da manhã até meio dia, depois das duas às seis, e eu
morava no Brás. Agora, acontece que já durante o primeiro ano, no começo, foi uma
dificuldade. Uma dificuldade porque não dava para trabalhar. Mas acontece que o
Colégio Anglo-Latino, que na ocasião era o melhor colégio de São Paulo, ele resolveu
dar, a título de prêmio, aos três alunos que mais se distinguiram no Colégio, dar um
emprego de professor. E entre esses estava eu! Então fui eu, foi um... e foram mais
dois colegas meus. Nós três que éramos os primeiros do curso. Então fomos
nomeados professores de Ciências Físicas e Naturais. Isso tinha uma certa
compatibilidade porque eu escolhia os horários. De fim de manhã, de fim de tarde e
de noite. Então dava para eu assistir as aulas na faculdade, sair correndo, ir para o
ginásio, dar uma ou duas aulas no ginásio. À tarde a mesma coisa: saía da faculdade
correndo, dava pra dar umas duas aulas no ginásio e, à noite, era livre. Eu dava mais
aulas à noite.
(Doutor Antônio)
Todo o esforço, porém, valia, pois a medicina era encanto, esperança,
conquista. Uma dificuldade que se realizava e compensa a quem nela se arrisca, como
conclui doutor Maurício:
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 55 -
Hoje mudou muito a visão filosófica da vocação médica! Bastante! Hoje,
infelizmente, o médico para poder atender um doente, pra ir à Santa Casa... pra ele já
onera, até o aprendizado fica um pouco mais difícil, porque a carreira médica é muito
onerosa para a classe social que não tem condições. São oito anos de... de vida. São
seis anos de curso; às vezes um, dois anos de pré-médico, são oito, e mais uns dois ou
três anos quando você quer sair da faculdade seguro do que você faz. Com esse
excesso de escolas médicas, esses rapazes têm que se jogar na vida de maneira muito
precoce, muito problemática. Não sei se é por vocação, por inclinação, por influência
dos pais, dos parentes, etc... É uma carreira sacrificada mas que realiza a gente.
A cada época evidenciam-se trabalhos correspondentes a essa representação:
a de serem formas de se colocar socialmente, de modo a obter prestígio, alta
remuneração e ascender no interior da estratificação social, situações que parecem
realizar-se na dependência do esforço de cada um, por meio da vontade, de
persistência em vencer dificuldades e da capacidade pessoal para fazê-lo. Nas
sociedades capitalistas e no interior dos trabalhos socialmente qualificados como
trabalhos “mais intelectuais”, essa imagem do empenho pessoal identifica-se à
escolarização, onde o sucesso parecerá derivar exclusivamente da persistência
laboriosa no estudo por parte do estudante.
A escolarização como promessa de “vencer na vida” e como produto de
disposições pessoais não é porém, apenas uma promessa falsa, uma imagem
totalmente enganosa da realidade. Ao contrário, a representação funda-se sobre a
realidade objetiva em que de certa forma e até certo ponto realiza-se a promessa, isto
é, confere-se crédito a uma imagem que dentro de determinadas proporções se efetiva.
Há portanto limites, há contenção dos espaços em que o concreto realiza a imagem.
Mas estes limites não estão reconhecidos na representação. Ao menos não na
representação construída pelo pensamento que é dominante, como veremos. E tal
como agora vemos, os limites tampouco perpassam a imagem que nossos
entrevistados trazem. No interior de seus discursos toda dificuldade parece esvanecer
ante a vontade individual, ainda que esta tenha que ser muito forte e verdadeira: uma
vocação.
Certamente poderemos encontrar nos dias de hoje, na sociedade dos anos
80, algum trabalho que se revista dessa qualificação de “profissão”. E com
certeza, dado o valor social do tecnológico atualmente, é provável que este
trabalho nem mesmo necessite deter o grau de “intelectualidade” que se
conferiu em outras épocas aos “trabalhos-profissões”. De qualquer
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 56 -
forma é possível identificá-lo: há trabalhos que ainda são representados, na ideologia
dominante, com esse caráter de trabalhos bem-sucedidos socialmente em razão de
qualidades pessoais de seus agentes. Vale dizer que, mesmo no mundo tecnológico ,
há trabalhos cujo êxito social parece vincular-se menos às tecnologias e mais aos
talentos, por serem êxitos em grande parte, embora não exclusivamente,
comprometidos com os esforços e desempenhos individuais. No período histórico que
examinamos, e que se passa em torno dos anos 40, são as “profissões liberais” e muito
acentuadamente a medicina que assim se apresenta na sociedade. Doutora Emília
evidencia esse aspecto já na decisão de fazer medicina e de optar pela especialidade,
parecendo que estudar, formar-se, definir um campo de trabalho é apenas questão de
decidir e fazer, ou então saber perceber seu próprio “dom” e realizá-lo, transpondo por
seu próprio empenho até as dificuldades dadas por sua condição de ser mulher.
Quando eu fiz odontologia, eu já queria ser médica. Mas eu fui fazer
primeiro aquilo que precisava, pra fazer frente às coisas da casa também, né? O
curso de odontologia era só dois anos. E eu clinicava no gabinete dentário das oito às
dez e das dezessete às vinte e uma horas. A profissão de dentista, naquela época, era
um trabalho de rotina e eu queria uma profissão que me desse algo mais. O de ser
médica a medicina. Seria médica de senhora: faltava mulher para atender a mulher.
Por pudor, as mulheres só procuravam o médico tardiamente, quando mais
acentuadamente estavam seus males. Comuniquei para mamãe a minha decisão e ela
disse: “É uma profissão para homens, minha filha! Precisa muito estudo e muita
coragem. E você é tão fraquinha.” “Bem – respondi – vou fazer meus preparatórios e
quando eu estiver pronta nós conversamos.” E como minha mãe era persistente, eu
também era! Puxei pela mãe (...) Eu fui escolhendo essa área mais por uma coisa.
Primeiro, por questão do meu temperamento. Eu tinha saúde, tenho raciocínio pronto,
tenho uma determinação imediata e a especialidade exige raciocínio, exige saúde.
Porque fazer Obstetrícia naquele tempo... Porque hoje já é um pouco diferente.
Naquele tempo precisava ter saúde, né? Levantar de noite, fazer um parto, por
exemplo, que a gente fica... De maneira que era questão de saúde e a minha
disposição dinâmica fez com que eu fizesse essa especialidade. Ao correr do curso eu
vi que... por exemplo, eu não seria uma mulher pra fazer – vamos dizer – pesquisa,
fazer... outros trabalhos que demandassem mais paciência, mais tempo, em virtude do
meu temperamento. Eu quis fazer medicina por pendor, por vocação! Não tinha
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 57 -
nenhum médico na minha família! A profissão médica... não é uma profissão! É uma
vocação! Naquele tempo era uma vocação!
Não obstante, é no interior desse mesmo depoimento que a relativização
desse “poder pessoal” em ultrapassar os obstáculos da vida social transparece:
delimitação já dada, de modo introjetado, consciente ou não, das próprias escolhas que
se concebem como exclusivamente definidas pelo esforço pessoal, o qual, porém, já
conhece de antemão os limites dos espaços em que poderá realmente vir a se
desenvolver:
Pra começar, médica – mesmo clínica geral – não examinava homem, né?
Aliás, acho que nem precisa. Hoje... tem quem trate de homem, né? Eu acho! Homem
é sempre homem e mulher é sempre mulher e sempre... Não dá certo! Em geral, as
médicas da minha época elas faziam Pediatria ou Clínica Geral, né? Mas aí, mais
ligado a parte de senhoras mesmo. Não me lembro de ninguém fazer... clínica de
homens, assim. Só atendiam mesmo senhoras, né? , vias urinárias só senhoras
mesmo. Mas hoje, a gente vê aquela doutora famosa aí que faz muito bem moléstias
ano-retais, né? Ela faz muito bem e faz Procto mesmo... Então, desde o quarto ano
que a gente se inclinava pra dentro das especialidades. Continuava com as suas
matperias básicas... mas já se inclinava, mais ou menos, naquilo que queria seguir. E
eu achei por exemplo, que a Clínica Geral era uma ... uma bela especialidade, mas
não se adaptava muito ao meu temperamento de imediatista, prática e objetiva. Então
eu achei que era difícil ser um bom clínico. E o bom clínico é o grande médico de
hoje, né? E o bom... o bom clínico é o grande médico de amanhã e sempre. Era difícil
ser um bom clínico. Porque... depende de muito estudo. Precisava estudar muito e
naquele tempo os recursos eram muito pequenos e os resultados não eram palpáveis,
por assim dizer. A área cirúrgica era mais... era mais objetiva, né? Era uma área mais
prática, mais objetiva, resultados imediatos! O cidadão... ficava bom ou ia... mas já
tinha resultado imediato só da... era mais útil a uma primeira vista, né? E eu fazia
toda essa parte como voluntária. Quer dizer, já ia me dirigindo mais pr’aquilo que
queria, mas ia fazendo voluntariamente. Tudo voluntário.
(doutora Emília)
Eduardo Etzel2 mostra como, simultaneamente ao fato de que era possível
fazer-se médico com grande dose de empenho pessoal, também de
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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outro lado o desempenho encontra limites nas condições concretas da vida social,
mesmo no interior da profissão: O médico após a formatura, para alcançar as
culminâncias do saber, tem que fazer um grande esforço com dedicação plena e
continuada por vários anos. São tempos difíceis em que vencerá quem for mais
persistente... (...)... na profissão somos o que somos não porque idealmente assim o
quisemos, mas apenas porque aquilo que as circunstâncias permitiam.
A busca de uma área definida de atuação no interior do campo profissional
permite, portanto, apreender bem essa articulação entre o plano das interferências
pessoais possíveis no social e o determinismo relativo desse social nas escolhas
pessoais. Observemos,nesse sentido, que mesmo no interior da escola médica, o
estudante parece dispor de um grande espaço para a opção pessoal, já permitindo
representar tudo o que diga respeito à profissão por meio da noção da liberdade – da
livre escolha, do livre arbítrio. Essa noção não mais deixará de acompanhá-lo como
referencial de pressuposto adequado e qualificador de seu trabalho.
Lá pelo meio do currículo escolar, o estudante já constrói no interior do
currículo formal o “currículo pessoal”, aquele que lhe permitirá alcançar qualificações
específicas, maior adestramento e experiência clínica, e que o diferenciará na profissão,
por algum domínio da arte clínica ou da técnica cirúrgica. Como diz doutor Nélson:
Dos colegas de faculdade, nem todos faziam Clínica. Variava muito! A
turma, do quarto ano em diante, já começa a desviar. Já fazia Ortopedia, já fazia
olhos, já fazia Dermatologia, já fazia Cardiologia, já faziam outras coisas...
Psiquiatria, tinha os neurologistas... Do quarto ano em diante eles já se dividiam. E
eu, já do quarto ano em diante, já fiquei na Clínica lá; fiquei lá na Clínica. Mudei de
enfermaria, para aquela do Celestino Bourroul. Eu gostava muito! Sexta, Medicina de
Homens.
Doutor Carlos lembrava, por exemplo, dessa autonomia de ação (naquela
época a gente tinha liberdade de expansão) derivada da combinação entre seu trabalho
no laboratório clínico e o currículo formal do estudo nas enfermarias do hospital:
E eu consegui arrumar uma vaga, por intermédio daquele colega
de turma, no laboratório central do Hospital São Paulo, que dava atendimento
a tudo, tanto aos indigentes – quer dizer, às enfermarias – como aos
pensionistas. Então eu comecei a aprender a colher sangue...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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A gente, naquela época, fazia contagem de glóbulos picando a ponta do dedo, colhia
com pipeta, preparava as diluições, punha no microscópio... uma habilidade, um
aprendizado que só vinha com o tempo! Fazia-se uma série de asneiras e tal, até
aprender! Então a gente aprendeu; trabalhava. No fim de alguns meses eu... eu e esse
rapaz\ ficamos...hã... mais diferenciados e eu... como tinha muito interesse em
Bioquímica... aos poucos, eu fui ficando especializado em execução de provas de
função renal, função hepática, padronizava, fazia novas técnicas. Então, eu me
recordo, por exemplo, que eu fui um dos primeiros, no Brasil, a ter feito... a fazer
volume de sangue circulante, com corante chamado Azul de Evans, T-1822. Eu
trabalhava em contato com o laboratório de hemodinâmica da Clínica Propedêutica
e aproveitava os cateterismos intracardíacos que estavam sendo iniciados na época –
que eu ajudava, também – e eu aproveitava, puncionava a artéria funeral do paciente
com uma agulha especial, injetava o contraste, depois colhia amostra arterial e media
no fotocolorímetro. Na época, o mais sofisticado era o “Coleman Júnior”, que hoje é
coisa de museu. E eu consegui fazer umas duzentas determinações! (...) O que
acontecia naquela época, é que os estudantes, alguns... Por exemplo, lá na escola,
cirurgia era muito limitada. Então, quem queria cirurgia já sabia que ou ele tinha que
se submeter a uma série de coisinhas e ficar muito restrito lá, ou então ele ia embora.
Então, frequentemente, havia muito colega meu que trabalhava tanto na clínica como
na cirurgia da Santa Casa. A Santa Casa, naquela época, tinha sido com a fundação...
com a inauguração do Hospital das Clínicas, a parte clínica e cirúrgica da Faculdade
de Medicina da USP, saiu da Santa Casa e foi pro Hospital das Clínicas. E a Santa
Casa ficou... um hospital de caridade simples. Mas com uma ampla possibilidade de
aprendizado. Então, muita gente se dirigia pra lá pra aprender. Então, Ortopedia,
Cirurgia e mesmo setores de Clínica. Então, o pessoal que não ficava naqueles
grupos, eles migravam para esse serviço. Ou hospitais particulares. Então muita
gente aprendeu assim. O aluno fazia o seu programinha, assistia as aulas e ia embora
trabalhar num outro lugar! O indivíduo tinha obrigação de responder a chamada, de
assistir as aulas obrigatórias, freqüentar os seus grupinhos, e tal, mas aquilo tudo era
muito limitado. Ou era muito... muito restrito, vamos dizer assim.
Doutor Antônio sente-se “exagerado” nas possibilidades de uso dessa
liberdade de escolha e de ação:
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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(...) já no primeiro ano eu optei para uma especialidade. O que é, no meu
entender, um absurdo, mas no meu ponto de vista eu estava decidido e a decisão era
visível. Por que eu estava optando já no primeiro ano para... por fazer Pediatria!
Porque eu já tinha um filho que tinha nascido naquele momento. Então essa criança
pequenina, recém-nascida, já despertou em mim apreciação, um amor assim
característico pela Pediatria. Tanto que, antes de eu conhecer pessoalmente... No
primeiro, segundo ano, quando eu andava pelos corredores da faculdade, eu parava
diante de um quadro de formatura, o único... o primeiro indivíduo que eu procurava
no quadro de professores era o velho Pedro de Alcântara Marcondes Machado, que
era o professor de Pediatria. E eu adorava aquele indivíduo! Então, eu optei pela
Pediatria já no primeiro ano. Quer dizer, a partir do primeiro ano eu já sabia que eu
deveria ser Pediatra. E, realmente, já no quinto ano médico eu já entrei no berçário
da Clínica Obstétrica, trabalhando com permissão do professor Raul Briquet... O
Briquet é um homem maravilhoso, um homem... maravilhoso no sentido de... estrutura
humana que esse homem... Ele era um grande obstetra! (...) Bom, e nós fizemos todos
os nossos anos – do primeiro ao sexto – exatamente com esse objetivo, de tal maneira
que no quinto ano eu já tinha entrado para a Obstetrícia, trabalhando no berçário por
indicação do professor Raul Briquet. Fiquei todo o quinto ano, todo o sexto ano lá
dentro do berçário. Mas, para estar lá, eu não tinha dispensa de nenhuma cadeira,
tinha de atender todas as aulas. E na minha turma, até aquela época, no sexto ano nós
tínhamos aula! Aulas teóricas e práticas. Inclusive na minha turma as aulas da
Psiquiatria... Ainda não estava funcionando o Instituto de Psiquiatria. Então, as aulas
de Psiquiatria eram dadas na Brigadeiro Luis Antônio, onde é hoje a “Cruzada Pró-
Infância”. É ... é naquele local! Era obrigado assistir aulas teóricas todos os dias;
aulas práticas todos os dias. Agora, nas horas de folga, eu estava lá dentro do
berçário, de dia ou de noite.
Essa introdução de um currículo informal e simultâneo é, para os futuros
clínicos, a forma de se iniciarem na complicada arte clínica, adquirindo um pouco da
experiência clínica pessoal tão necessária para o exercício da profissão.
Os futuros cirurgiões, de outro lado, buscavam maior habilidade
técnica, fixando-se logo nas enfermarias de doentes cirúrgicos e partici-
pando em cirurgias como assistentes ou instrumentadores do professor. Alguns
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 61 -
o fariam na própria escola, enquanto que outros, como o doutor Luís, podiam dispor de
uma forma de aprendizado totalmente independente:
Você se encaixa num campo; enquanto estudante mesmo já se escolhia uma
enfermaria... Bom, tinha o currículo escolar normal, né?, você passava por tudo. Além
disso, você se encaixava naquilo que você queria fazer, aí passava o dia na faculdade,
né? Chegava sete e meia, sete horas, sete e meia, oito horas, ficava até às seis, sete
horas da noite, né? Mas eu freqüentava o hospital. Durante a faculdade deu pra
freqüentar muito pouco porque não tinha hora vaga, né? Então... freqüentava nas
férias. Em geral, nas férias, eu ia de manhã com papai. Eu ia com ele e ficava lá no
hospital. Então freqüentava cirurgia – assistia, ajudava – e depois passava... ficava lá,
às vezes, espiando a Radiologia. Tinha um colega na Radiologia que era muito...
Sempre tem um colega que polariza os outros, né? Um colega que tomava conta da
Radiologia lá... É falecido há tempo também. Tem um filho que é... agora é... criador
de cavalo árabe, está rico! Mas ele... o cafezinho era tomado na sala dele. Eles
ficavam lá! Conversa de médico; já viu, né? Era só discutir: “Olha, eu vi esse caso,
não sei o que, não sei o que...” Se aprende muito em... em hospital, fuçando o hospital,
né? Às vezes aparecia um lá: “Eu preciso fazer... Você está livre? Pode ajudar a fazer
isso?” “Pois não doutor!” Ajudava a fazer gesso, ajudar ...Aprender um pouco de
cada coisa, né?
A importância dessa liberdade para a formação individual, como estímulo à
iniciativa pessoal, é o que relata também doutor Maurício, o que no seu caso significou
até a escolha de outra cidade, deixando o local em que morava, para cursar a faculdade
de medicina:
Comecei a trabalhar como voluntário, para aprendizagem , no segundo ano
da faculdade, em Urologia. A partir do quarto ano comecei a trabalhar de forma
remunerada. (...) Naquela ocasião não era como hoje, a medicina em São Paulo.
Hoje temos a USP, depois a Paulista. O Rio também oferecia maior
oportunidade hospitalar, mais oportunidade de ter local para trabalho.
Naquela época se falava muito que São Paulo era um ambiente um pouco fechado.
Um calouro, que está começando a pensar em medicina e ouvido esses
diálogos, chega à conclusão que já que o material humano e o ambiente
hospitalar são maiores ... por que não? Então fui ao Rio e assim começamos. Em São
Paulo era difícil que o estudante pudesse praticar a medicina, praticar
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 62 -
no hospital, nos grandes serviços. Para poder trabalhar naquela ocasião tinha que
obter uma amizade, alguém que me encaminhasse, e como eu não tinha
propriamente, então achei por bem... No Rio, realmente, o estudante tinha melhores
condições de trabalho que o paulista; isso confirmamos durante o nosso curso de
medicina. Desde o primeiro ano de medicina comecei a trabalhar numa enfermaria
aprendendo como se põe a mesa, como se cobre a mesa, como se dispõe o material
cirúrgico, o nome das pinças, que você lê nos livros de Anatomia, mas na prática você
não se sabe. Comecei a aprender a fazer injeções intravenosas. Trabalhei na Liga
Brasileira Contra Tuberculose, onde comecei a fazer infecções de cálcio na veia,
aprendi a olhar os pneumotóraxes. Então eu comecei lá na Tuberculose, depois um
emprego na cooperativa de manhã, naturalmente, na Santa Casa, e à noite no serviço
de Urologia. A escola só começava a parte prática do quinto ano em diante, então o
estudante tinha que procurar os serviços por autodeterminação. Ele ia fuçar os
serviços para ver se se identificava com o serviço. Eu fui procurar especialmente os
serviços cirúrgicos ginecológicos. Eu gostava de fazer cirurgia, gostava de viver
dentro de hospital”. Tinha a frequencia digamos religiosa, às vezes até ao sábados.
Acabamos percebendo que nós não sabíamos fazer outra coisa.
Ao mesmo tempo esses médicos convivem, nessa época da formação
escolar, com regras bem-definidas e bastante inflexíveis de comportamento: a
severidade enquanto base para a aculturação em um desempenho pessoal no qual, para
poder ser livre, deve-se ter comprometimento responsável e dedicação plena. A vida
marca-se nesse período pelo respeito que deriva do reconhecimento das autoridades,
fundadas num saber que não é só técnico ou científico, mas o da experiência pessoal
pregressa: o professor e o pai; a mãe; os mais velhos e experientes, todos são severos.
O médico mais antigo, a quem o recém-formado pode se “associar”, também priva
dessa qualidade em que severidade e sabedoria estão mescladas. Todos contam em
suas histórias de infância esse traço característico de uma dada moral de conduta de
estreitos limites para opções individuais. E sem querermos introduzir uma discussão
sobre o sentido da cultura e da moral na sociedade dos anos 40, não resta dúvida, por
todos os relatos, quão presente está no interior da escola médica essa identificação
entre a sabedoria e a severidade, na figura da conduta austera e rigorosa daquele que
sabe: ter autoridade e saber significará ter desenvolvido uma moral de férrea disciplina
pessoal. Seus referenciais podem ser verificados nas práticas de ensino através da
célebre aula inaugural do curso médico que trata
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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do respeito ao cadáver, como nos conta doutor Luís, ou do rigor do ensino com suas
provas públicas e “duríssimas”, como nos conta o doutor Antonio:
A entrada na faculdade foi muito dura por várias razões. Primeiro porque
só existiam duas faculdades. Então era muito duro! Poucas vagas e o número de
candidatos era em torno de oitocentos. Quer dizer, era dez pra um, mais ou menos,
como é talvez, ainda hoje; não sei. Porque hoje o vestibular é muito diferente... Bom, e
o vestibular era muito duro! Muito duro por quê? Porque o vestibular era feito na
própria faculdade. As matérias eram três; eram Biologia, Física e Química. Só! Eram
três matérias para o vestibular. E o exame era escrito e prático-oral. Quer dizer, cada
matéria tinha exame escrito e prático-oral. Eu me lembro até das questões que caíram
no exame... Então, a gente fazia prova escrita – todas as provas escritas – e, depois,
fazia as provas prático-orais. Então, a... a banca era constituída por três ou mais
professores, mas quem examinava era... na Biologia era o Joaquim Lacaz Neto. E o
aluno, na frente do indivíduo, então ele fazia todas as perguntas que ele queria e,
depois, ia para a prática. Pega o microscópio: “O que está vendo aí? E isto aqui, o
que é?” O negócio... era muito duro! Então o exame vestibular era um exame duro,
minha filha, duro! E eu passei – veja bem! – a minha média foi 7,3 e minha
classificação foi 63 lugar! Com esta média – 7,3 – 63 lugar! Era realmente muito
difícil, extremamente difícil.
(doutor Antônio)
Da faculdade, eu me lembro da primeira aula de Anatomia! Não sei se
continua assim! Foi uma aula que o Lochi deu. Naquele tempo era assim e ele... fazia
esta aula de propósito. Não sei se o pessoal mantém ainda esta tradição, mas era uma
tradição válida. Tenho a impressão que a minha filha teve ainda no... na Escola
Paulista uma aula assim. Ele só falava de Anatomia, do cadáver, do respeito ao
cadáver, papa-papá, depois ele tinha um cadáver assim, que estava na mesa. Depois
então, ele descobria o cadáver e dava aula. Um negócio, vamos dizer assim, bem...
Quer dizer, essa aula marcou muito.
(doutor Luís)
Há ainda o caso extremado que relata doutor Carlos:
Bom, a enfermaria era rigorosíssima! Porque o professor ia diariamente à
enfermaria e os assistentes tinham um pavor dele tremendo! E a
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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gente, consequentemente, por tabela, também! E o doente, internava, fosse a que hora
fosse, a gente tinha vinte e quatro horas de prazo pra fazer o exame completo, uma
anamnese completíssima com exame físico. Que era corrigido pelo assistente. Então,
nos mínimos detalhes. E... e eu me recordo, por exemplo, que num domingo... –
portanto, eu estava no quinto ano, eu já era interno da enfermaria – um domingo de
manhã, um sol bonito, um dia espetacular, tinha entrado, na sexta-feira de noite, no
sábado de manhã, um paciente novo e eu estava fazendo a evolução... nós estávamos
fazendo a evolução dos internos quando o professor entrou – ele era uma figura
imponente, alta, muito elegantemente vestido – ele entrou e pegou aquela papelada e
viu que não estava pronta. E ele perguntou quem era o assistente. E esse assistente
tinha ido para Santos, passar o fim de semana lá. Pegou o ônibus Cometa nessa
época, não tinha nem carro, e foi pra Santos. O professor mandou localizá-lo, ficou
esperando ele voltar de Santos, para confeccionar a anamnese do paciente que não
tinha sido feita. Então ele era desse rigor terrível! Brigava com todo mundo... Então, a
enfermaria dele funcionava de uma maneira rigorosa! E a gente aprendia
violentamente! Aprendia muito...
Essas são situações que dão conta de evidenciar o traço típico de uma época
em que à exaltação da iniciativa individual combina-se rígida moral de
comportamento. Assim sendo, mesmo no âmbito desse plano do desempenho
individual como referência para ação social, a liberdade de ação terá que se articular a
regras de contenção dadas pelas disciplinas de atuação pessoal: a liberdade encontrará
na severidade, e em sua correlata responsabilidade para com a ação proposta, os
limites que conformarão o comportamento do livre-arbítrio. Essa mesma moral de
conduta aparecerá também na forma de um comportamento de plena dedicação, posto
que, de um lado, a liberdade expressa o padrão de base mais pessoal, de outro lado esse
mesmo padrão implica contínua vigilância, de caráter pessoal e pessoalmente exercida,
no sentido de controlar o resultado, os efeitos da escolha e da ação realizada.
Responsabilidade e dedicação, portanto, são as contrapartidas que parece exigir essa
liberdade maior de comportamento expressa no “poder pessoal”.
b) a matéria da profissão
Uma outra situação na qual se observa essa livre iniciativa, e que por isso
parecerá produto exclusivo do desempenho pessoal, é aquela em que
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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se dá a instalação do consultório e a captação da clientela. Como já dissemos, ser
médico parecerá por referência a essas situações coisa tão simples como fazer-se
médico, desde que se queira e se esforce individualmente nesse sentido. São decisões
livres, cuja realização significa empreendimentos que implicam, porém, dedicação e
responsabilidade. E do mesmo modo que Etzel3, nossos entrevistados referem que a
paciência nesse campo viria a ser a porta do êxito futuro.
Em Água Rasa, a minha clientela começou, o início do movimento...
Naquela ocasião, lá onde eu estava, próximo, alguns quarteirões antes, estava o
doutor Arnon, na Quarta Parada. Ele era médico de uma grande indústria de tecidos
ali da região. E ele havia clinicado neste local em que eu fui consultar, fui trabalhar,
montei consultório, no início. Então montei o consultório lá. Eu cheguei lá e montei a
minha tenda. Hoje não teve cliente, outro dia não teve, foi vindo um, outro, foi
aumentando, e eu fiquei com uma clínica muito boa... E constância, a persistência, a
constância, o modo de atendimento...
(doutor Paulo)
A ausência da persistência pode ser, ao contrário, fatal, como lastima doutor
Nélson:
Quer dizer, eu acho que a clínica daria mais. Se fosse... se eu tivesse mais
tempo pra ficar no consultório ou ficar à disposição... Talvez isso! Eu ficava no
consultório à tarde e trabalhava de manhã no centro de saúde! Em Santana! E,
depois, no centro de saúde de Santa Cecília. Então... Mas é aquele negócio! Quando
você queria trabalhar de manhã, de repente te jogavam pra tarde. Então, era da uma
às quatro. Você já perdia a parte da tarde – umas horinhas – e de manhã já ficava
livre. Então, era aquela confusão! Entendeu? Eu achei que devia me dedicar mais.
Hoje em dia eu penso que eu devia – talvez, talvez – ter arriscado ser um franco-
atirador. Penso eu! Porque, naquele tempo, ainda se podia fazer alguma coisa. Você
ser livre! Ficar só no consultório! Sem interrupção! Trabalhar por conta do
consultório. Santana, Bom Retiro, Lapa, Belenzinho... Ficar lá! O dia inteiro! Consul-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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tório! Ou então, freqüentar... uma enfermaria, que eu gostava de Clínica. Ir lá
apalpar, percutir, ver casos novos, discutir... Aquela coisa que você sabe, que você
conhece! E de fazer a tarde toda livre lá, atendendo o pessoal! Entendeu? Mas...
Outra coisa! Eu não gostava de pedir favor. Pro farmacêutico encaminhar doente...
Eu nunca gostei. Eu queria fazer medicina pura! Como faziam esses medalhões, não
é? E isso aí – você sabe! – hoje precisa ter uma engrenagem.
O consultório aparece, portanto, como a principal e primeira atividade a ser
iniciada logo após formado. Um dos entrevistados conta que ao perguntar para seu
professor de Clínica quando deveria montar seu consultório, o professor devolveu-lhe
a pergunta: Quando o senhor se formou? Há quinze dias, professor – responde-lhe o
entrevistado. Então o senhor já perdeu quinze dias! Esse pequeno depoimento e o que
se depreende das narrativas de todos aponta para a possibilidade de uma inserção no
mercado de trabalho que ao menos parcialmente, já que esta é na maioria das vezes
apenas uma das situações de trabalho do médico, encontra-se comprometida em
grande parte com o empenho pessoal. Isto é relevante no caso da medicina, sobretudo
porque o consultório particular é que será a situação de trabalho que irá conferir maior
renda e prestígio, reiterando para o trabalho médico a concepção da promoção social
como produto do esforço de cada um.
Um outro exemplo está na própria instalação do consultório que parecerá
derivar tão-somente de se escolher um local, fixar-se e aguardar a clientela. A vontade
individual é que comandaria a efetivação do serviço médico, até porque os recursos
necessários para estabelecer o consultório são poucos, em especial do ponto de vista
dos equipamentos materiais. Assim, a qualificação escolar e certas virtudes pessoais,
com a disposição, a paciência e a atenção, em conjunto com o acertado desempenho
terapêutico, é que surgem enquanto os recursos suficientes para captar e garantir uma
clientela.
... quando eu montei o consultório, naquele tempo tudo era simples. Só tinha
que ter o sofá, uma mesa cirúrgica pras coisas simples, pras pequenas cirurgias,
equipamento de esterilização e tinha minha escrivaninha. Era simples, simples!
Não tinha nada demais. Era mais pra Clínica mesmo. Não tinha nada demais.
Eu não chegava a fazer eletro, por exemplo. Naquele tempo começou a
ser feito eletro, né? O Zé Ramos começava a fazer, tudo. Mas eram só três
derivações, muito raro. De modo que era muito precário, ainda. Quer dizer, era muito
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 67 -
mais ausculta mesmo no estetoscópio. Nesse tempo aí eu fui chamado pra atender um
cliente de vinte e poucos anos. Ele estava com dor precordial. Ele brigou com a
patroa e dormiu na rua! Aí, de manhã ele saiu e foi jogar bola. E teve infarto. Então
me chamaram. Quer dizer, tem muita coisa em jogo aí, né? Parte psíquica, briga, isso,
aquilo... Muita coisa em jogo! Mas pode ser, pode não ser, mas em todo caso vamos
esperar. Deixei ele em repouso. No dia seguinte chego lá, a pressão – pfss! – estava lá
embaixo. Aí saí correndo! Era infarto! O diagnóstico se fazia, assim, pela história, e
também porque caiu a pressão... Era assim naquele tempo. Mas isso não era difícil. É
como a história da pleuris que eu contei. “Mas o senhor não precisa fazer exame?”
Nesse caso desse rapaz, eu encaminhei ele pras Clínicas. Não ficou em casa, não.
Mas quando eu montei o consultório, o equipamento não era muito caro. Não era
barato também, mas não era caro demais. Dava pr’um médico recém-formado
montar porque não tinha nada de especial. Tinha a sua cabeça e o resto era coisinha
simples.
(doutor Sílvio)
Os depoimentos também mostram que alguma aparelhagem já se
incorporava à prática, contudo eram equipamentos de manejo mais simples, podendo
inserir-se como componentes próprios do consultório. Essa aparelhagem, além disso,
aparece também como recurso de fácil aquisição e instalação.
Eu tinha também uns aparelhos. Lá no Sanatório Esperança eu tinha uns
aparelhos que eram do hospital, mas tinha alguns que eram meus. Por exemplo,
ultravioleta, infravermelho, onda curta, eram meus. Eu tinha, né? Eu trouxe pro
consultório. Eu fazia também as aplicações no consultório. (...) O uso desses
aparelhos lá era mais a parte ginecológica e a parte de otite pra criança, para
adulto... Sinusite, caso de sinusite. Agente mandava fazer raio X. E dando diagnóstico
de sinusite, a gente fazia aplicações de ondas curtas. Fiz tratamentos de vacinas e
antibiótico também. Naquele tempo já tinha sulfa. Ou, então, pra reumatismo, não é?,
dores articulares, nos joelhos, assim, outras articulações... A gente fazia sessões. Aí,
dez, quinze, vinte aplicações, uma por dia, e vinte, trinta minutos de aplicação. Fora
esses equipamentos, no consultório tinha material para pequenas cirurgias. Tinha
todos, né? Assim pra abscesso ou pra fimose. É só isso que eu tinha. Eu mesmo fui
comprando esses aparelhos. Todo consultório tinha. Todo consultório
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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tinha esses aparelhos. Esse número de bisturis, pinças, tinha muita gaze, tinha
algodão... Todo consultório tinha. Você podia resolver os problemas no consultório,
de imediato. Isso sempre lá tinha. Tínhamos umas estufazinhas, mandava esterilizar o
material – enfermeira fazia isso pra mim – gaze, bisturi... Era fácil de comprar!
Acessível! A gente comprava nas farmácias maiores ou tinha mesmo depósitos no
centro da cidade – que não me recordo como é que era. A gente telefonava e eles
mandavam: gaze, algodão... Pacotes, né? Sempre tinha um estoquezinho. Muito
anestésico pra anestesia local. Quem abria o consultório, já abria com este tipo de
equipamento. Já abria. E não era caro. Mais caros eram os aparelhos, mas os
aparelhos eu já havia adquirido há muito tempo. Então, eram baratos, relativamente.
(doutor Fábio).
Eu montei meu consultório com meu próprio recurso e tal. Agora, essa
coisa, esse negócio de caro... Todo tempo foi um tempo! A coisa varia de acordo com
a época. Mas deu pra montar um consultório modesto. Não era luxuoso. Ele era como
esse aqui. Como aqui, ele tinha uma mesa ginecológica... eu tinha um aparelho
ultravioleta... Então eu fazia algumas aplicações. Ainda tem aí. E tinha uma mesa, e
tinha as cadeiras na sala... A sala era grande. Eu dividi e fiz uma saleta de espera.
Tinha... aquele esterilizador... Aparelhagem era aquilo! Era... do clínico mesmo!
Estetoscópio e aparelho de pressão. Não tinha mais nada! Material descartável tinha,
naturalmente, pra alguma peça, pra cirurgia, bisturi, uma pinça... Tinha alguma coisa
nesse sentido, material de pequena cirurgia. Eu fazia as pequenas cirurgias. Nem
parto no consultório nunca foi feito!
(doutor Nélson)
Esses depoimentos apontam para a característica de uma fase transitória
entre a prática calcado no uso do saber como único meio de trabalho e a
medicina tecnológica, evidenciando essas vivências profissionais como
vivências de um específico momento histórico: o momento da passagem, da transição,
no qual já há certa fragmentação do trabalho, já determinados
instrumentos e equipamentos materiais, diagnósticos ou terapêuticos. Mas ao mesmo
tempo, cada médico individualmente, para a situação de trabalho no
consultório privado, ainda é capaz de amplamente concentrar a apropriação e o
uso do saber e dos equipamentos, manter-se proprietário exclusivo dos
meios de trabalho e captar de modo difuso a clientela. Assim
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 69 -
sendo, embora possamos verificar a presença inicial de instrumentos materiais já
incorporados, e certo grau de especialização no trabalho, o médico ainda busca
produzir o serviço de modo mais autônomo e independente, subordinando-o à
dimensão mais pessoal que envolve a prática: os recursos diagnósticos ainda são de
muito menos uso e valor que a anamnese ou o exame físico:
Também a clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de
tanta coisa, nem se pedia tantos exames, como eu nem peço até hoje. O professor
Jairo Ramos... Só quem o conheceu... É muito difícil a gente traduzir em palavras o
que ele era! (...) ele exigia, o exame do paciente previamente a qualquer exame. A
pessoa que fosse pedir exame deveria justificar porquê. “Por que você está pedindo
exame tipo I?” Eu me recordo que ele ficava possesso, ele tinha crises, quando
alguém dizia que era... pedia um exame de urina simplesmente por rotina.
(doutor Carlos)
Da mesma forma os recursos terapêuticos ainda se dispõem sob o estatuto da
regra pessoal e individualmente estabelecida. Nos primeiros anos do período que
estamos examinando, encontramos a terapêutica por formulação enquanto a
modalidade terapêutica ainda privilegiada. O formulário clínico convive com os
primeiros fármacos industrializados (a sulfa e a penicilina), e até o final do período
estará superado. Assim, para o doutor Nélson, a formulação é uma ferramenta
terapêutica importante, enquanto que para nosso entrevistado mais jovem, o doutor
Carlos já nos anos 50 o mesmo recurso é uma medida do passado:
Dos meus casos, aqueles que eu resolvia, o que mais aparecia eram adultos,
homens e mulheres. Velho também, coisa de Geriatria.... Naquele tempo era “pessoa
de idade”. Pelo menos até... esse fricote de Geriatria, não é? Neurologia! Casos de
Neurologia, também. Muitos casos! Paralisia facial, periférica, muita... muito caso de
paralisia nervosa... É essa coisa toda! A gente fazia tudo! Era... é bonito clinicar por
causa disso! Por isso que eu sempre gostei! Por causa... por causa do raciocínio!
Então raciocinava e bastava! Procurava dar o que havia de melhor! E formulava se
fosse preciso! A fórmula! (...) Na faculdade se usava muito fórmula e se ensinava a
formular. E já se ensinava também o uso de medicamentos (...) A coisa foi assim! Que
a gente foi obrigado... foi obrigado praticamente a largar a formulação. Porque o
sujeito... Olha! Como passa essa parte! Nessa passagem da formula-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 70 -
ção pros medicamentos o doente sentia... sente diferença, sim! O doente é um
termômetro que... Se você faz a fórmula direitinho pro doente, mas certo mesmo, um
negócio que você... bota aquela dosagem que você acha que é bom pra idade dele, pro
tipo constitucional, tudo, ele sente. Sente mesmo! Porque, às vezes, você escreve o
remédio pronto – da Bayer mesmo ou de outro bom laboratório. Tanto que é muito
melhor formular! Porque, com a formulação você dá o que quer!
(doutor Nélson)
Aliás, havia um conflito muito sério porque a Terapêutica Clínica era
Clínica, também (...) E... havia um conflito muito sério porque nós já tínhamos
aprendido uma porção de coisas – inclusive na prática- no terceiro e no quarto ano, e
a Terapêutica Clínica era no quinto ano. Então nós já entrávamos, no quinto ano não
só com a formação de Propedêutica, já de Clínica Médica, inclusive de terapêutica.
Já tinha receitado, já tinha feito uma porção de coisa. O que ele fazia. Então ele dava
Arte de Formular. E, pra nós, aquilo não entrava na cabeça, fazer uma fórmula.
Porque já tinha recitado lá o diurético, o digitálico, o remédio pra úlcera... e ele vinha
lá com a receitinha, não sei o que, tantos por cento, não sei o quê, mande dez... Quer
dizer, era tudo... era a Arte de Formular. (...) Houve uma época na medicina aqui que
todos formulavam. Todos formulavam. Eu me recordo de farmácias pequenas, perto
da minha casa, no tempo de... de moleque, lá na Bela Vista... em que havia inclusive
uma farmácia chamada “Ribeiro”, que ficava entre o Viaduto Major Quedinho e hoje
o Viaduto Maria Paula, em frente a esse flat-service que está sendo construído ali! (...)
Tudo era formulado! Aos poucos, muito lentamente, foi-se infiltrando a medicação
preparada. Quando me formei nós tínhamos, praticamente, tudo já pronto! Claro que
nem comparação com o que se faz hoje porque... Por exemplo, diurético – só pra
lembrar a importância do diurético – eu sou da época do diurético mercurial!
(doutor Carlos)
A articulação de cada médico individual com outros serviços
complementares dá-se pela regra da relação interpessoal, onde a vinculação
deriva do conhecimento e da confiança pessoalmente estabelecidos, mantendo
cada médico, portanto, o controle total sobre cada caso particular: será o
seu paciente que encaminha a laboratório ou clínica radiológica de seu
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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conhecimento. Estes últimos serviços, por sua vez, também só se reportam
diretamente ao médico que os indica, que dessa forma representa o “proprietário” do
caso, pois é o único agente de prática e seu único responsável. Uma igual relação se
estabelece na articulação entre os diversos serviços médicos: será o médico do caso (de
quem é o caso) o solicitante e supervisor da presença do especialista, na famosa “junta”
ou “conferência médica”, sempre que se fizer necessária a presença de uma outra
assistência médica complementar. O resultado dessa forma de articulação entre
serviços parcelares será a manutenção do controle da prática, e do controle sobre os
efeitos desta, sob o monopólio de cada médico individual, configurando um trabalho
profissional próximo da representação do exercício autônomo-independente que
corresponde à figura tradicional do médico. É a esta figura, então, que Doutora Emília,
ginecologista e obstetra – e portanto já uma “especialista” – se refere quando relata seu
relacionamento com outras atuações complementares, até confundindo, hoje, os
termos médico-clínico ou médico-geral, com o termo médico simplesmente:
No caso de precisar outro especialista, na época já... havia especialistas...
Porque antigamente, havia, por exemplo, conferências médicas – que hoje não há
mais, né? Então o caso era mais obscuro, chamava o professor pra dar parecer e
resolver alguns casos mais obscuros, outros casos que... mais delicados, né? Que,
hoje, quase não se vê mais, senão... senão excepcionalmente, né? Nesse caso de
conferência, o professor que era um cidadão que da dava orientação e ... e deixava o
caso para a gente ou a gente passava o caso para ele, dependendo das circunstâncias.
E tinha conferência médica com outros especialistas também. Por exemplo, um
cardiologista, né? Hoje se faz até com o endocrinologista nos casos de...
hipotireoidismo, hipertireoidismo... Se faz de rotina isso, né? Mas, geralmente, eu não
chamava muito, não! A gente fazia essa medicação médica! Nós éramos médicos! E
especialistas! Mas éramos, primeiro médicos, né! Hoje a gente deve ser mais médicos
ainda do que são os especialistas, né? E os casos ligeiros a gente mesmo tratava.
Poucos casos de medicina, propriamente, eu tinha no consultório, poucos casos. Mas
tinha essas doenças de rotina, né? (...) Porque,sempre, a gente chamava uma figura...
Um especialista, mesmo! E sempre de conhecimento, assim, pessoal.
Geralmente eram os professores da escola mesmo que eu chamava. E a
gente se comunicava diretamente. Não havia... tinha que ter entrosamento entre o
especialista que era chamado por qualquer coisa e o médico obstetra
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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que estava tratando da paciente, né? Quer dizer que as medicações... não tivessem...
fossem bem vistas, né? essas coisas.
(doutora Emília)
Mas a relação era mais pessoal também com os laboratórios, por exemplo.
Era muito comum o laboratório telefonar pra você quando aparecia – vamos dizer –
uma glicemia de 400. A pessoa que foi lá só pra colher sangue, certamente o cara
telefonaria pedindo pra você reencaminhar o doente, você confirmar o exame, pra
você... Esses cuidados que hoje você não tem! Pelo contrário! Hoje você pode receber
uma glicemia de 4.000 e aí telefonar pro doutor: “Olha, doutor! Quatro mil aqui!
Não deve ser, né?” “Ah, então vem aqui. Deve ter sido engano, a vírgula que ficou
fora do lugar, é 40, ou é 45, é...” Sei lá! Enfim... isso acontece hoje com freqüência,
não aconteceria. Porque a coisa automatizou muito, o sujeito entra numa bateria de
computador. É a tal história: ele não ta fazendo a glicemia do seu Fulano, cliente do
doutor Fulano. Ele está com a bateria de tubos na frente que estão... num sistema
automático, então ... (...) Antes o médico que fazia o laboratório, ele mesmo olhava os
casos e, às vezes sugeria um ou outro exame. Quer dizer... Era menos gente; era
menos população... Ele deveria fazer cinqüenta exames numa manhã ele fazia dez ou
vinte. Então ele tinha tempo de ver o pedido, ver quem era, tinha o seu pedido na
mão... Se achasse qualquer coisa esquisita, ele ia ter o cuidado de telefonar. E a outra
coisa que está mudando muito é dos relatórios de radiologia que eram muito
detalhados. Vinham com verdadeiras aulas de diagnóstico! Era uma maneira dele...
do colega... do radiologista mostrar erudição... e te orientava, né? Não a descrição da
imagem. Hoje o pessoal – você vê – a grande maioria deles se restringe à descrição
da imagem. Só! Às vezes até nem isso vem descrito. Isso... até o cliente sente isso.
(doutor Luís)
Não serão, pois, apenas os aspectos relacionais entre médico e paciente, mas
a face mais técnica na produção do cuidado, o que ainda será identificado a uma
sabedoria individualizada do médico, reforçando a tradicional noção da
experiência clínica pessoal como base do saber, e assim reiterando a
construção de representações em que o trabalho profissional dar-se-ia,
principalmente, com base nesse comportamento pessoal. A raiz, portanto,
de ambos os aspectos da prática – o do esforço pessoal em
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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fazer-se médico e o do desempenho profissional em que se torna reconhecido como
médico – repousa sobre a base objetiva da estruturação desse trabalho em que é ainda
o uso pessoal do saber seu meio principal. Assim sendo, uma vez de posse desse,
através da escolarização, nada há o que aguardar para estabelecer-se profissionalmente:
eis porque para iniciar a prática clínica é suficiente diplomar-se; tudo o mais parece
tão-só depender de uma vontade pessoal.
Essa forma de pensar a prática permanecerá válida mesmo considerando a
área cirúrgica de atuação, posto que a terapêutica cirúrgica é ainda de indicação
cautelosa, pelo menos até próximo aos anos 50. Veja-se que, desse ponto de vista, o
ato operatório e o pós-operatório são situações de extremo risco: a ampliação do tempo
e o conforto no ato cirúrgico, bem como as possibilidades de serem evitadas ou
combatidas as infecções e ainda as possibilidades de ser mantido o equilíbrio
hidroeletrolítico do paciente no pós-operatório, são conquistas incorporadas à prática
médica posteriores aos anos 40, no Brasil4. Até essa época não existia o emprego
intravenoso das soluções de soro glicofisiológico, e a anestesia residia no uso do
clorofórmio ou do éter, nas famosas máscaras abertas, através das quais, como conta
doutor Silvio, logo se identificava quem era, dentre os médicos, um cirurgião:
Antigamente, quem fazia anestesia ficava mais doente d que o paciente. Era
aquela máscara de éter. Então, tinha que enfiar aquilo na cara do cliente, brigar com
o sujeito, porque ele não queria. O anestesista respirava mais éter do que o doente.
Então você via lá: “Você não está com hepatite?” “Não! Eu sou cirurgião!” Ele
estava todo amarelo!
O recém-criado uso de anestésico local é que presidia certas cirurgias mais
comuns, como as que se realizavam no tratamento da tuberculose e das úlceras, sob
condições rigorosamente problemáticas: Era uma luta amarga e clínica entre o
cirurgião que dizia para ter paciência, que era apenas sensação de tato e não de dor,
e o pobre infeliz que gemia com toda a razão do mundo. Caricaturando, seria como
dizer ao paciente “você pensa que dói, nas não dói”. Mas a operação tinha que ser
feita, pois a anestesia geral pelo éter, em caso de doença pulmonar, estava fora de
cogitação. Era operar e tentar a cura ou deixar morrer pela progressão da doença5.
A garantia contra a infecção residia apenas na assepsia e na esterilização,
nem sempre muito eficazes. Uma vez instalado o processo infeccioso, as
medidas terapêuticas subseqüentes eram de fato de resultados bastante
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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duvidosos, pois os primeiros quimioterápicos, como a sulfa, e o primeiro antibiótico, a
penicilina, apareceram no pós-guerra (1945), dispondo-se no mercado de forma nem
sempre suficiente para consumo ampliado:
Foi em 44, que a penicilina entrou a todo vapor. Porque foi mais ou menos
em 39 que fizeram as primeiras observações. E até tinha pouca penicilina. A gente
começava o tratamento e não tinha penicilina pra continuar.
(doutora Emília)
Naquele tempo, a Cruz Azul foi a primeira organização que teve assistência
ao parto domiciliar pago pela instituição. Os partos eram feitos a domicílio por
comadronas – gente mais ou menos ajustada,né? Não tinha muita gente formada
porque foi a Maternidade São Paulo quem fez a escola de parteiras, lá por volta de
1913. De maneira que eram umas pessoas adaptadas – por assim dizer – ao serviço, e
controladas até um certo ponto por médicos. Mas não eram pessoas formadas. Mas aí
a Cruz Azul teve o parto domiciliar, que foi a primeira organização que teve parto a
domicílio por parteiras. Então, a parteira chamava a gente por alguma coisa e a
gente se atrevia, naquele tempo, a fazer algumas intervenções em casa! Já viu isto? E
não tínhamos infecções! Por exemplo, a parteira chamava numa hora. Depois o parto
se modificava. E quando chegava a hora, as condições eram diferentes. Então a gente
resolvia a coisa com algumas pequenas intervenções que eram feitas a domicílio. E se
tivesse uma intervenção maior, então as pacientes seriam removidas pro hospital.
Porque as próprias pacientes não queriam ir pro hospital. Porque as próprias
pacientes não queriam ir pro hospital. No parto, não! Ninguém queria hospital de
medo das infecções!
Mesmo na área de atuação clínica, o eletrocardiógrafo, por exemplo,
hoje instrumento tão simples, se já faz parte da noção de equipamento necessário
para o doutor Carlos nos anos 50, não representa algo tão comum, quase um
recurso geral para qualquer prática, como nos dias atuais. O fato é que poucos
sabiam usá-lo de modo preciso e muito menos interpretar o traçado
gráfico. A eletrocardiografia, cujo uso clínico em São Paulo dá-se no
início dos anos 30, só após 1940 começou a ser uma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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técnica um pouco mais disseminada, através da Sociedade Brasileira de Cardiologia
(1943)6.
Nas décadas de 30 e 40, portanto, o desempenho profissional podia ainda
caracterizar-se como ato de discernimento e intervenção simultaneamente apoiado no
conhecimento, na intuição e na criatividade. Tudo isso para que o médico pudesse
decidir entre a cautela ou a ousadia, que o obrigava a pautar-se em uma observação
clínica atenta e paciente. A medicina seria, então, ainda um desempenho dependente
da arte, com base na qual se poderiam orientar diagnósticos e definir medicas
terapêuticas, como por exemplo a observação expectante da “crise do sétimo dia” da
pneumonia; ou as engenhosas tentativas de combate à infecção; ou a assistência
persistente e paciente que acompanhava o parto normal; ou ainda, as medidas heróicas
e súbitas do “desespero salvador”7:
Quando ainda não tínhamos os antibióticos e mesmo as sulfas, os quadros
abdominais, posteriores a todo tipo de intervenções, eram paralisias intestinais, era
um quadro mórbido, pós-operatório. Então veio a sulfa, o anasseptil peritoneal, e veio
o anasseptil em líquido. Naquele tempo a alta não era assim, dois dias depois da
operação vai embora, e tal. Não! Esperava-se seis, sete dias. E eu me lembro, eu era
interna no hospital e quando fui dar alta passei e vi uma mulher que tinha o sono da
doença meningeana: “Puxa! Essa mulher está com alta?!?” Entrei, pus o
termômetro, estava com 40 de temperatura. Naturalmente, naquele tempo, não tinha
os agentes que nós temos hoje e eu sentei lá na cama, peguei uma agulha e puncionei
a raque, deu um líquido opalescente, eu já injetei duas ampolas de anasseptil – que eu
nunca tinha usado – dentro da veia. Os dedos dela ficaram escuros – sabe? -, ela teve
uma reação muito grande! Mas eu já tinha tirado o líquido pra mandar fazer exame e
deu meningite pneumocócica. Porque ela tinha tido pneumonia. E essa mulher ficou
boa.
(doutora Emília)
Naquele começo do meu consultório, o impacto desses remédios, da
penicilina e da sulfa, foi uma coisa boa pra mim! Tratar uma
pneumonia, antigamente, era difícil. Era difícil! Eram sete dias! No sétimo
dia se rezava pra tudo quanto é santo pra ir tudo bem porque o
sétimo dia era perigoso. Então, depois veio a sulfa, em dois, três tias,
tirava tudo. Quer dizer, continuava o processo de dentro, interior. Mas o
sujeito saía sem febre, saía sem nada (...) Naquele tempo se demorava sete
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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dias pra tratar pneumonia e eu ia acompanhar o doente todos os dias, os sete dias eu
ia visitar. Dava mais trabalho. Era difícil! Não era fácil! No sétimo dia acontecia a
“resolução”! Porque, às vezes, nessa resolução – eu não sei porquê – o organismo ou
reagia demais, ou reagia de menos. Às vezes o paciente não agüentava a reação e ele
morria. (...) Eu tinha bom sucesso no diagnóstico e na terapêutica. Eu perdi pouca
gente. É difícil eu perder gente. No caso da pneumonia, eu sabia se o paciente tinha
curado pelos sinais clínicos. Primeiro tinha que bater o pulmão, ver se desapareceu a
macicez. Tinha os sopros, aquele sopro cavernoso, desaparecia também. A parte de
roncar, desaparecia também o frêmito. Então você fazia o diagnóstico. E depois tem a
expectoração, sumia a expectoração. Quer dizer, eram sinais de exame clínico. Eu
não chegava a pedir raio X pra ver se tinha passado o processo. Era difícil. Porque,
geralmente, eles não eram gente de muito dinheiro. Então fazia diagnóstico mais pela
ausculta, pelo estado geral, tudo. Acompanhava tudo! (...) Eu tive sempre na vida um
bom diagnóstico, sempre fiz bons diagnósticos, tudo. Porque sempre, sempre
procurei! Quer dizer, sempre fui procurar pra achar. Porque tem pessoas que
atendem, só pelo aspecto assim já fazer... O Zé Ramos nos orientava pra fazer tudo!
(doutor Sílvio)
Eu fazia clínica no INPS e o pessoal gostava muito de mim. A maioria me
procurava, queria consultar comigo. Clínica Médica. Então, cheguei a atender um
número enorme de pessoas por dia! Porque eles gostavam de mim. “Eu quero ir com
aquele lá! Aquele!” Indicavam lá pra atendente. E eu era obrigado a correr um
pouco. E eu não gostava. Eu gostava mais de ficar com o sujeito, ele contando a
história dele... Aquela história que você sabe! Como ele começou, como acabou, e tal,
ia indo até chegar o finzinho, o fio da meada. Então eu raciocinava, pedia um exame
subsidiário feito em laboratório de confiança – uma radiografia, uma coisa qualquer
– pra chegar à conclusão da doença do cara. E fazia bons diagnósticos!
Encaminhava ao cirurgião... Às vezes, diagnósticos excelentes! Que eles até me
davam os parabéns. “Como é que você chegou a essa conclusão?” “Vocês vão abrir
pra ver na laparotonomia”, eu disse. Bom aí eu cheguei por causa de raciocinar. (...)
Fazer diagnóstico não era tão difícil, não! Não era! Eu gostava mais! Intuição talvez!
É o que eu digo pra você: intuição!
(doutor Nélson)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 77 -
Todos entrevistados têm para relatar um caso “heróico” ou um diagnóstico
“fantástico” – um feito pessoal. Nesse período inicial de suas vidas, encontram na
presença da arte médica uma dimensão ainda muito relevante para o ato técnico. A
forte presença dessa arte evidencia-se no uso desse olhar científico que procura até
então pouco armado pelo equipamento, e que primeiro indaga, pra “ver” através do
sintoma, da queixa, da fala e da superfície do corpo. Por isso também esse período
pareceu representar da perspectiva da posição social do médico individualmente , um
“tempo melhor”, seja pelo domínio mais amplo que pessoalmente exerceu sobre seu
doente, seja porque consequentemente a essa dedicação, a esse bom discernimento e
por vezes ousadia, foi também para cada médico individualmente que se dirigiu o
valor e o prestígio da profissão. A confiança e o crédito não se destinavam apenas à
medicina, ao saber científico-tecnológico, mas à pessoa do médico, na figura daquele
individuo particular:
Naquele tempo, tudo era melhor porque... veja bem: em primeiro lugar,
você não tinha muitos recursos em termos de hospitais. Por exemplo, os recursos
hospitalares eram poucos! Havia alguns hospitais antigos como o Santa Catarina, o
Hospital Matarazzo... Eram hospitais aonde a gente podia internar nossos doentes.
Mas havia pouquíssimos hospitais! E pouco equipamento. Então, o que acontece? O
médico tinha um poder de discernimento, tinha conhecimentos tais que ele fazia
diagnósticos, independentemente de exames complementares. Os exames
complementares eram raros! Não se pedia com a freqüência que se pede hoje, como
raio X. O médico fazia um diagnóstico de pneumonia ou de broncopneumonia pela
percussão, pela ausculta, assim por diante. Não precisava de raio X. Quer dizer, não
como hoje em que um médico ouve a queixa o paciente e, imediatamente, pede
exames complementares antes de examinar o paciente. Isso é o que se verifica hoje.
Então, a medicina era melhor! O médico, ele tinha... estava muito mais ligado ao seu
paciente! Ele entendia o paciente, ele convivia com o paciente, sentia todos os
problemas o paciente... Às vezes, ia à casa do paciente sem ser chamado, por livre e
espontânea vontade dele, para verificar a situação do seu paciente. Então, era uma
medicina melhor! In-dis-cu-ti-vel-men-te!
(doutor Antônio)
A medicina que eu praticava no começo, na relação com os
pacientes, isso mudou. Eu freqüentava muito a casa das pessoas,
conhecia todo mundo... A gente não vai mais à casa do cliente, muito poucos ...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 78 -
daqueles clientes antigos que me dou, assim, mais, ou que eu freqüento a casa (...)
Hoje é diferente! Bem diferente! Hoje em dia os clientes são mais de consultório. Você
atende o cliente no consultório, o atendimento que eu dou sempre, mas parece que há
um hiatozinho aí entre o cliente e o médico, né? Então, eles vê procurar você no
consultório para atender a queixa, só aquilo que está necessitando. Mas não tem mais
aquela intimidade, não. Não dá mais pra fazer. (...) Sinto falta disso. Sinto! Um
agradecimento do doente é muito gostoso. Então você se adapta a ele e naturalmente
o relacionamento que você tem é grande, afetividade... Então, um agradecimento de
um doente te emociona. É muito gostoso! Me recordo muito disso. E hoje já é mais
distante. Bem mais distante.
(doutor Fábio)
Todavia, é preciso considerar que as mesmas condições objetivas que
possibilitaram a presença de uma ampla liberdade de decisões e desempenhos
concretos,circunscreveriam simultaneamente – para além dos valores de
responsabilidade e dedicação conformando a liberdade – os momentos, os espaços e
os modos socialmente viáveis de realização desse desempenho pessoal. Vale dizer que
é a organização social da produção de serviços médicos historicamente dada, que
determina quando, onde e como se poderá efetivar o “poder pessoal”. Tome-se por
exemplo, nesse sentido, o fato de que todos os entrevistados localizam o momento do
início de suas vidas profissionais como uma lembrança do tempo em que era possível
ser autônomo-independente, ser “livre”; era possível fazer uma “medicina pura”, sem
engrenagens comerciais na captação e fixação da clientela. A todos eles, pareceu que
poderiam ter feito apenas a clínica de consultório, embora de fato não tenham se
restringido a ela; como também pareceu que simplesmente “montaram suas tendas” e
aguardaram a demanda espontânea dos pacientes, o que tampouco foi exatamente o
que fizeram. Efetivamente essas possibilidades mais livres seriam mais próximas da
realidade concreta de uns e não de outros, diferenciados os médicos entre si, tanto da
perspectiva diacrônica quanto considerando os formados à mesma época.
Mesmo no interior do padrão relativamente mais homogêneo de
prática desse período, em contraste com o padrão tecnológico atual, são
criadas modalidades diferentes, técnica e socialmente, de exercício profissional. Por
outro lado, se a base material da prática possibilitava então esta apreensão
ideológica da clínica de consultório como uma estrutura bem sucedida
por meio da vontade e do empenho pessoal, as opções pessoais
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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significaram, de fato, atos socialmente definidos: comportamentos individuais em que
a forma social de organização do trabalho determina certo proceder, para que a prática
se realize como ação de base pessoal em seu caráter de prática “liberal”. Só uma
engrenagem social, mas que se realiza sobre ampla base de ação pessoal e que pode
passar a ser entendida, na aparência primeira, enquanto opção essencialmente pessoal,
é capaz de tornar bem-sucedida a forma historicamente possível, nesse momento, de
médico pequeno produtor privado e isolado de serviços.
OS REFERENCIAIS DA LIBERDADE
Pode-se dizer que há dois tipos de fatores limitantes para essa autonomia
individual. Eles, porém, não se apresentam de modo igual, porque apenas um deles
mostra ser mais evidentemente um obstáculo para a liberdade de ação. O primeiro tipo
é constituído por elementos estruturadores do desempenho pessoal, que
homogeneízam os procedimentos e aproximam os médicos de uma mesma identidade
profissional. Por isso mesmo, uma vez estruturando socialmente os comportamentos
pessoais, não parecem impedi-los, e ao uniformizá-los, não parecerão sequer seus
conformadores. A segunda ordem de fatores limitantes já diferencia e distribui os
médicos técnica e socialmente em situações de prática profissional bem diversas entre
si. Evidenciam-se de imediato, por isso, enquanto condições sociais limitadoras do
“poder pessoal”. Examinemos cada um deles.
a) a uniformidade
Podemos chamar o primeiro conjunto de fatores mencionado de
“estruturador do informal”, pois estes fatores, derivados da socialidade do
comportamento individual, dizem respeito a uma ordenação da prática clínica em
consultório privado, mediante a qual suas qualidades informais, na captação da
clientela ou no desempenho profissional do médico, ganham forma e sentido na
sociedade. Graças a essa ordenação é que o médico conseguirá implantar sua prática
com independência relativamente ampla dos aspectos mais diretamente econômicos,
políticos e sociais que se articulam à profissão, isto é, estabelecerá engrenagem de
razoável autonomia na produção de seu serviço, por referência às condições da vida
social em geral. Por isso parecerá muito mais ampla a liberdade no desempenho
pessoal, e o êxito da prática parecerá ancorado num esforço pessoal. Por
isso mesmo também será a prática de consultório identificada à própria
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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profissão: ser médico será fazer o consultório, isto é seguir estabelecer uma clientela
sua (do médico), e trabalhar “livre” , “solto”.
Como diz Doutor Carlos, ao relatar sua decisão de desistir de trabalhar em
sociedade com outros colegas como proprietário de um pronto-socorro: Então, eu vou
trabalhar sozinho pra mim! Foi o que eu decidi. Eu comecei a minha vida em 1960.
Comecei a trabalhar sozinho. Em março... maio de 60 montei o meu consultório. (...)
Então eu comecei o consultório, fiquei disperso...
Trata-se contudo de uma “dispersão” que se organiza em determinados
mecanismos sistemáticos de existência. Veja-se por exemplo o fato de que o local, a
forma, o anúncio e o horário da prática de consultório foram sendo consagrados por
uma dinâmica de captação da clientela que, de modo reiterado, “obrigará” a
disposições e procedimentos sempre assemelhados. São regras e normas apropriadas
de organização do trabalho sob determinadas maneiras de demarcar o espaço, o tempo,
a identificação do médico na constituição da prática profissional, e que se articulam à
própria medicina de consultório privado.
E depois fiquei só mesmo na Obstetrícia e na Ginecologia. E na parte
cirúrgica, por causa da especialidade. Esta escolha foi porque eu sempre gostei muito
de doenças de senhoras. Naquele tempo era “doenças de senhoras”. Até na placa
tina: “doenças de senhoras”. Nem era Ginecologista, nem Obstetrícia; era “doenças
de senhoras”. Ou colocava parteiro, de uma vez, ou então era “médico de senhoras”.
E eu gostava mais mesmo de lidar com o sexo feminino, certo? Não sei... A simpatia, a
própria especialidade me chamou mais atenção. A parte de Obstetrícia, então, achava
muito interessante, não é? E foi indo e fiquei só com as duas especialidades. No
começo, a placa que eu coloquei lá não fazia referência dessas especialidades. Foi
bem depois. No início era clínico geral de adulto e crianças. Hoje em dia não se faz
mais isso, né? colocar placa. Era uma placa maior e tinha uma placa menor na
entrada da porta, com o nome, a especialidade... “clínico geral”, “doenças de
senhoras”, às vezes colocava “parto”, ou então “doenças de crianças”, e
ficava nisto aí. Ah, e era iluminado! Esse detalhe era importante! Era
iluminado. À noite ficava acesa. E tinha uma de metal, pequenininha, na
porta. Essa maior era iluminada. Chegava seis horas, sete horas, acendia a
luzinha lá e aí iluminava. O meu consultório era em frente a um largo grande,
então o pessoal via de longe o anúncio, né? Esse era o jeito como as pessoas sabiam
que ali tinha um consultório. Era um local muito bom porque era uma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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praça e, em cima de uma padaria. Em geral os consultórios ou eram em cima da
padaria, ou em cima de farmácia. Antigamente os médicos gostavam muito mais em
cima de farmácia e os farmacêuticos davam uma mãozinha. Quando alguém chevava
e comprava qualquer espécie de produto lá, o farmacêutico dizia: “Não. }Tem doutor
aqui em cima, vai atender melhor, tudo, orientar melhor a compra do produto..” Ou,
então, em cima de padarias. Antigamente as padarias eram assim em prédio grande, e
eu tinha lá diversas salas. Então, ajudava bastante por causa do ponto. Sempre
escolhia-se um ponto também. E eu achava interessante que sempre eu via se colocar
um consultório ao lado, perto de outros médicos. Nunca ficar isolado. Eu tinha a
impressão que, isolado, ninguém dava muita atenção. Eu não sei porquê, qual o
motivo. Mas, outros médicos estando próximos, então as pessoas vinham justamente
onde tinha dois, três, quatro médicos.
(doutor Fábio)
A placa – a pequena, de metal, na porta; a maior, que se acendia à noite ou
ficava em destaque -; a proximidade da padaria ou da farmácia; uma praça ou os
prédios e locais “de médicos”; o discreto anúncio ocasional em jornal (médico), o
horário “nobre” que estabelece para o atendimento da clientela do consultório, são
formas de organizar a prática e de orientar a clientela. A placa, sobretudo, parece ser a
publicidade que médicos e pacientes aceitam e reconhecem:
O consultório, a vida clínica privada, vamos dizer, eu comecei
imediatamente após o término do curso, que foi mais ou menos em janeiro... Eu
terminei em dezembro e em janeiro eu comecei a minha atividade médica privada em
consultório. Então eu montei um consultório inicialmente no bairro onde eu morava,
que era o Brás. E fiquei lá durante quase um ano. O meu consultório era um
consultório de frente assim na Avenida Celso Garcia, com duas salas... E os primeiros
clientes – como tinha placa fora – os primeiros clientes foram aparecendo, de
passagem, foram aparecendo... devagarinho conseguindo a clínica privada.
(doutor Antônio)
Os pacientes vinham do próprio bairro. Eu tinha uma placa “Dr. Maurício.
Ginecologia e Obstetrícia”. “Doenças de Senhoras” eu punha, né? Então os
pacientes iam pingando.
(doutor Maurício)
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Os primeiros clientes foram os amigos, foram eles que começaram a vir.
Aqueles que me conheciam começaram a vir lá, apareciam. Depois deles é que
começou. Aí, depois, foi aumentando. Um avisava o outro, então ia... Nunca fiz
anúncio. Só tinha uma placa! Placa tinha, né? Placa lá no consultório tinha. Mas
anúncio eu nunca fiz, nunca fiz nada. A placa era só minha. Era minha, só! A placa
tinha o meu nome, o andar, a sala e o telefone. Eu não punha que era clínico geral.
Era só “médico”. E aí lá aparecia de tudo. Criança, adulto, homem, mulher...
(doutor Sílvio)
A clínica foi devagar, mas pouco devagar. Pouco! Menos devagar do que
seria se eu tivesse começado, talvez, como o rapaz que começa, né? Ainda com o
Salles Gomes, a clientela foi chegando porque eu tinha um anúncio no jornal.
Antigamente tinha a “Gazeta”. Eu anunciei na “Gazeta”. E eu continuei anunciando
na “Gazeta” muito tempo, na especialidade mesmo. E foi aparecendo devagar, sem
grandes dificuldades, sabe?
(doutora Emília)
Nesse tempo da “concorrência discreta” pela clientela, qualquer atitude que
assuma o caráter explícito de propaganda de massa será condenada:
Nós estávamos em outro mundo! Tudo era diferente! Tudo, tudo, tudo!
Impressionante! Não há possibilidade de agente imaginar o que era a vida naquela
época. Era simples, tranqüila, a cidade era pequena, tudo muito limitado... Eu tenho a
impressão que, inclusive, as complicações eram muito menores. Havia um único...
dois prontos-socorros em São Paulo: o Pronto-Socorro Municipal, que era
assistência pública, e um pronto-socorro particular que era famoso 7-7777. O telefone
era prefixo 7 seguido de quatro setes. Pertencia a um médico que fora amigo de meu
pai também, remador de um clube esportivo que existiu até há pouco tempo lá na
beirada do Tietê, que chamava Associação Atlética São Paulo. Ele era
remador. Chamava-se doutor Mário Tobrini Costa. Ele faleceu há pouco
tempo. Ele era um grande cirurgião e sempre foi muito mal contado no
meio mais elevado, mais acadêmico. E esse doutor Mário Tobrini Costa
teve o lampejo de criar o primeiro pronto-socorro particular de São Paulo.
Pronto-Socorro “Santa Inês”, se chamava. Mas como ele era um sujeito muito arro-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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jado, fazia coisas... que transpiravam facilmente, e aquilo... naquele ambiente
provinciano, repercutia malíssimo, né?, porque as pessoas eram muito empertigadas,
muito importantes. A moral era muito diferente do que é hoje. Muito diferente! Porque
ele anunciava até no rádio. O que era um escândalo! Então, tocava uma sirene e aí
vinha o anúncio: “7-7777! Pronto-Socorro ‘Santa Inês’...” Olha!... ele fazia uma
propaganda bombástica!
(doutor Carlos)
Conforme dissemos antes, quando tratamos no capítulo inicial do trabalho
com a memória, as recordações se articulam ao que o pensamento apreende hoje da
realidade, e é com base nessas questões do presente que se faz o trabalho de reflexão, a
recuperação do passado. A lembrança dessa “sirene no rádio” que marcou doutor
Carlos, contrasta de fato com aquela situação; não contrasta com o monumento atual,
em que a cada instante, entre os anúncios comerciais de televisão, aparecem os
anúncios de propaganda de tal ou qual serviço-médico ou seguro-saúde. É isso, porém,
que chama a atenção para o “escândalo” do procedimento que aparece no relato acima.
Veja-se o depoimento do doutor Nélson, por exemplo:
Sempre insisti! Sempre fui perseverante, paciente! Mas sem propaganda,
sem nada! E eu confiava nos clientes, que um indicasse o outro. Coisa que hoje já não
existe mais! Hoje é... precisa... a luta é na propaganda do serviço! Precisa fazer
propaganda! Como faz vários medalhões aí no jornal! A gente está a par disso.
Muitos medalhões, colegas, que fazem propaganda no jornal. Prometendo... fazendo
até... propaganda de curas difíceis mesmo, problemáticas... Mas fazem, né? Então, aí
é que está! Eu nunca fiz propaganda, praticamente nunca fiz. Esperando sempre da...
do cliente. E o cliente, infelizmente, nem todos são... são sinceros e bondosos. E muitos
são até... prejudicam a gente, passam o calote. Em todo caso, é água passada.
Por essa razão é importante situar o procedimento do anúncio “discreto”
como fator constituinte das condições objetivas da totalidade de que faz parte. Tal qual
relata doutor Antônio, aquilo que não se mostrava necessário, como o anúncio do
rádio, é taxado de “ato de exagero” e marginalizado pelos padrões dominantes. Estes
últimos pautam-se na base objetiva que subjaz à “discrição comercial”, porque esta é
necessária já pela própria quantidade limitada de oferta de serviços.
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A medicina era, como fonte de manutenção financeira, muito boa. Por uma
razão muito simples: porque não havia assistência médica especial, nem do INPS e
nem das sociedades de medicina em grupo. Então, o que acontece? O médico saía da
faculdade no dia seguinte montava o seu consultório – na sua casa ou em qualquer
outro lugar – um consultório mais rico ou menos rico ou mais pobre e já começava...
os clientes começavam a aparecer. E o indivíduo podia viver perfeitamente sem
nenhum emprego, só com a renda do consultório. Tanto que, na ocasião, até esta
época... de maneira geral, quase todos os médicos mais.... vamos dizer assim..., mais
atualizados... trabalhavam na Santa Casa pela manhã e no Hospital das Clínicas,
depois que foram estabelecidas as Clínicas. O Hospital das Clínicas foi inaugurado
em 1944. Antes disso, quem abrigava... todas as clínicas universitárias era a Santa
Casa. Então, os médicos – quase todos, pelo menos os melhores – eles prestavam
serviços, pela manhã, na Santa Casa, graciosamente. Ninguém tinha salário. E, à
tarde, das duas em diante, trabalhava no seu consultório, atendendo um número
razoável de clientes, e visitas domiciliares, etc. De modo que, até aquela ocasião, a
medicina poderia ser desenvolvida como profissão garantindo para o médico um
nível econômico e social muito bom.
(doutor Antônio)
Doutor Antônio relata aqui uma outra importante regra da profissão: a
repartição do tempo de trabalho. O “tempo da manhã” é reservado ao aprimoramento
da experiência clínica individual do médico, razão e viabilidade da filantropia, das
Santas Casas, dos serviços gratuitos. Esse “tempo da manhã” viria a ser
paulatinamente substituído pelo “tempo do emprego” q̧uando a própria instituição
filantrópica ou setor público passou a assalariar os médicos.
Logo que eu me formei eu fui trabalhar naquela Igreja da Avenida Rangel
Pestana, quinto andar. E eu ia atender de manhã lá na Igreja da Freguesia do Ó duas
vezes por semana e, à tarde, eu ia pro meu consultório. E ficava a tarde toda no
consultório.
(doutor Silvio)
De manhã, fui trabalhar em Ginecologia na Santa Casa, com uma
carta de recomendação trazida do Rio. Eu trabalhei durante quinze
anos, a manhã toda na Santa Casa. Era uma medicina social,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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que a gente fazia, não tinha INPS. Logo que me formei consegui um lugar no
Sindicato dos Condutores de Veículos e Anexos, na Praça João Mendes. Fiquei lá um
tempo também, à noite. De manhã eu fazia a Santa Casa, no almoço eu fazia
consultório em casa, à tarde fazia na Marques de Itu e à noite ia ao Sindicato... uma
sequência de atendimentos. Mas logo após saí do Sindicato e fui pro Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Transportes de Cargas, Rua Nove de Julho. Depois
houve a unificação da Previdência, em sessenta e pouco, e nessa unificação nós
passamos a pertencer ao INPS, atual INAMPS. Aí nós fizemos plantão de Obstetrícia
na Maternidade Matarazzo, depois no próprio hospital IAPETEC, no Ipiranga, e
também no Hospital Brigadeiro, na chefia da Obstetrícia, uma vez por semana. E
naquela sequência de vida normal de consultório, de manhã a Santa Casa, de tarde o
consultório, à noite os plantões, ficamos durante alguns anos.
(doutor Maurício)
O “tempo da tarde” é o tempo nobre da atividade de consultório,
provavelmente por sua possibilidade de prolongar a jornada do médico, o que se dá
com base em critério pessoal de ampliação ou restrição, conforme o necessário, do
horário de trabalho. E isso reflete a disponibilidade ampla que deve ter o médico para
dedicar-se a seus clientes, posto que a jornada “ilimitada” faz parte das regras da
liberdade. Assim também se apresenta a fácil localização do médico, e à qualquer
hora, o que tem a ver com a fixação do consultório como parte da casa, ou então morar
muito próximo dele:
Quando eu me casei, fui morar na Rua Oriente. Duas esquinas para lá era a
Rua Marcolina. Eu morava na Rua Oriente, então ia a pé pra lá. Era pertinho.
(doutor Silvio)
Mas eu sou desse tempo. Eu me formei, eu terminei o meu curso, montei
um consultório no bairro onde eu morava e abri meu consultório logo – um
consultório pobre, naturalmente, porque eu não tinha possibilidade – e
comecei a trabalhar. E fiquei neste bairro durante... creio que um ano mais ou
menos, um ano, um ano e pouco e, depois, mudei pra cá, onde estou. E até hoje eu
estou aqui. Eu me mudei com a família porque esse local era muito favorável
para mim. Todo esse pavimento superior aqui desse sobrado era minha
residência. Então, tinha aqui em cima o quarto dos meus filhos, mais para adiante era
o meu quarto, mais para adiante tinha uma sala e aqui – isto aqui – era
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uma cozinha. E o meu consultório era este aqui, mais este corredor e mais a sala, da
frente. Então, eu já vim pra cá e trabalhava aqui. Das duas em diante estava aberto o
meu consultório. Nada mais.
(doutor Antônio)
Há ainda um outro tempo que compõe o tempo de trabalho, não tão bem
localizado nas partes do dia ou da noite, ainda que tenha seu predomínio no período
noturno ou nos horários vagos da semana, como aos sábados ou aos domingos. É o
“tempo do chamado”, do atendimento na casa do doente, em uma medicina que se
apóia ainda em grande parte no domicílio. Esse tempo pode ser o da urgência, do
atendimento agudo e rápido na situação de emergência, e que por isso pode transpassar
os outros. Assim posto é o paradigma da disponibilidade plena do médico por
referência ao seu cliente, sobretudo nesse modelo em que não há quase formas
alternativas de outros tipos institucionais de assistência, tal qual ocorrerá quando da
constituição de forma ampliada dos serviços de pronto-socorro. Por essa razão a
prática de consultório é ainda a medicina dos “chamados”:
Nunca levantei, por exemplo, de noite, quando me chamavam de
madrugada: “Ai! Estou cansada! Ai!Ai! Que preguiça!” Tocava o telefone e eu já,
automaticamente, estava com os olhos acordados, o rosto acordado, já pulava da
cama, e já ia saindo. De maneira que eu estava ajustada dentro do meu trabalho. Isso
é uma grande coisa: a gente ter uma profissão que a gente sabe o que faz. E eu
gostava de fazer o meu trabalho! E, por exemplo, não era assalariada! Isso é uma
grande coisa! Nunca fiz a profissão pelo... salário. Porque o cidadão vai atender um
doente: “Ai, que coisa, né? estou cansado hoje. Ai, que coisa! Que chateação! Agora
vou sair” Isso eu nunca tive na minha vida. Eu sempre trabalhei contente. Tem um
chamado e é isto que eu quero! Um chamado! Então, eu vou contente! De maneira
que eu sempre estive ajustada no meu serviço.
(doutora Emília)
No início da minha prática a gente atendia chamados. Eu tinha consultório
na Água Rasa e morava na Água Rasa. À noite eu levantava, às vezes duas, três vezes.
Casos diferentes! Então pr’um... abdômen agudo, ou por um caso de parto, ou por um
caso de uma infecção, temperatura alta em algum doente... chamavam mesmo! E eu
saía. Naquela ocasião não havia problema algum, a gente saía de casa...
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Eu tinha telefone mas, em geral, os clientes não tinham na casa deles, então eles
vinham me chamar. Mas eles me chamavam, iam embora, voltavam, e eu, então, ia a
pé. Andava a pé lá uns poucos quilômetros, uns quarteirões. E eu ia a pé, sem
problema algum, à noite; duas, três, quatro, cinco horas da manhã, sem nunca ter tido
problema nenhum conforme a hora, não tinha farmácia aberta, eles ficavam
esperando em casa ou, às vezes, trazia os doentes para o consultório, dava uma
olhadinha lá nas amostras, ou dava um produto particular indicado, até aguardar a
manhã seguinte, né:, no caso que comportava. Eu ajudava bastante. Isto mudou ao
longo do tempo. Não tem mais chamado! Longe que me procuram pra um chamado!
Hoje em dia procuram mais os prontos-socorros. A própria clientela já vai direto.
Depois que passa pelo pronto-socorro, então, no dia seguinte, às vezes, vem me
procurar.
(doutor Fábio)
A medicina do domicílio correspondeu a uma alternativa para a internação
não necessariamente quanto à urgência, mas também quanto à gravidade do caso. O
uso da hospitalização como meio terapêutico não foi inicialmente um fator que
uniformizasse a prática, sendo, ao contrário, diferenciador dos atos clínicos,
característica que se transforma quando ambas as formas de intervenção, a clínica e a
cirúrgica, encontraram no uso do hospital que se verifica na medicina tecnológica um
dos padrões de prática que as aproximará. No início da vida profissional dos nossos
entrevistados, porém, é uma forte presença do atendimento no domicílio que
caracteriza a medicina.
Até mesmo quando o doutor Carlos montou seu pronto-socorro, a
assistência prestada correspondia ao pronto-atendimento no domicílio:
Já existiam aqui em São Paulo, alguns prontos-socorros gerais. Existia já o
“Santa Inês”, famosíssimo, que era o 7-7777. Foi o primeiro pronto-socorro
particular de São Paulo, que era do doutor Mário Tobrini Costa e, depois,
criou-se o Pronto-Socorro “Santa Lúcia”. Esses dois continuaram em plena
vigência. E já existia, na época, também, o que hoje é o Hospital “Santa Paula”,
que começou como sendo um pronto-socorro: Pronto-Socorro “Santa Paula”. Então
achamos que... E já havia um pronto-socorro de Pediatria, na Angélica.
Era o Pronto-Socorro Infantil Angélica. Então nós achamos que o interessante,
talvez, fosse fazer um pronto-socorro especializado, de ser só Cardiologia.
Eu tenho a impressão que o que predominou foi porque a maio-
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ria de nós fazia mais medicina interna em Cardiologia, Pneumologia... Então ficou
assim. A gente atendia, muito frequentemente, Cardiolgia. Mas se atendia de tudo! (...)
A gente atendia, ia com uma mala enorme, que tinha tudo dentro. Nós levávamos
oxigênio, levávamos o eletrocardiógrafo e fazíamos o atendimento em domicílio e já,
ali, resolvia o problema. Agora, era muito cansativo! Nós tínhamos muito serviço! Era
uma responsabilidade muito grande! E era sozinho! Tinha que resolver! Era o
motorista, o plantonista... Tinha, também, um outro plantonista. Nós éramos em dois
em determinadas circunstâncias mas, à noite, ficava um só. E não tinha jeito!
Esse “tempo de chamado”, atualmente desaparecido – o chamado
domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – era uma característica
importante do trabalho médico, e que viabilizava a identificação desse trabalho à
imagem do sacerdócio, de um servir desinteressado e de dedicação total. A esta
imagem, uma outra viria acoplar-se, a de transcendência relativamente à técnica,
fundada nos feitos heróicos mencionados. É tão relevante a medicina do domicílio,
que é eleita para simbolizar a “alma essencial” dessa profissão: Doutor, aqui está o seu
chapéu é o título-tema do discurso de formatura, como confidencia um dos
entrevistados. Evidencia-se, através dessa referência ao “chamado” e que assim o
homenageia no ritual de iniciação à vida profissional – as cerimônias de conclusão de
curso -, a exortação ao valor, máximo, concebido para esse trabalho. Nesta fala, que é a
da despedida do chamado, o personagem a quem o doente, agradecendo, prestativo e
gentil restitui o chapéu, não pode ser representado somente como mais uma dentre as
várias espécies de trabalhadores na sociedade. Por isso mesmo o “chamado”, tão
estreitamente vinculado à pessoa do médico, não apenas personaliza a medicina, senão
que também ao mesmo tempo a faz transcender o humano:
A consulta era feita da seguinte maneira. Raras pessoas tinha carro, mesmo
entre os médicos. Então, ao ser chamado um médico, ele ia atender a domicílio – o
chamado domiciliar famoso, que hoje todo mundo tem ojeriza – ela ia de táxi, o táxi
esperava, e por mais incrível que pareça, a família, além de... de depois servir um
porção de coisas pro médico, ele recebia a sua consulta, na hora, e, além do mais, o
chefe da família ou alguém ia até o motorista de táxi e pagava a viagem de ida e volta.
Então ele... o médico era uma pessoa aureolada, muito diferenciada.
(doutor Carlos)
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Na medicina tecnológica a prática perderá progressivamente essas
dimensões de personalização e de sacralização, à proporção que a medicina se
estrutura progressivamente sobre as bases impessoais e objetivas da tecnologia
material Por conseqüência, terá uma forma de organização social cuja demarcação dos
lugares e dos períodos já é mais típica do trabalho cooperativo da produção capitalista,
e com as separações que lhe são peculiares: tempo e espaço da vida pessoal, em
contraste com o do trabalho. O ponto de clivagem dá-se agora entre o individual-
privado e o trabalho coletivizado, fazendo divergir essas duas dimensões da vida
social. O espaço que cada um verá como o seu, tanto quanto o tempo que cada um
conceberá como dedicado a si mesmo – e são estes que, atualmente, as pessoas
concebem como valor positivo para se estar vivendo -, não é o do trabalho, mas o
outro.
A separação e oposição entre os momentos de trabalho e os outros (de não-
trabalho), bem como apenas a identificação deste último aos momentos de viver, tem
por raiz a própria alienação do trabalhador no trabalho, em que o produtor direto se vê
marginalizado da concepção de seu trabalho e não reconhece aquela atividade como
compondo também sua vida pessoal. Ao contrário, é a parte da vida que sente
apropriada por outros (o patrão, o empregador) e alienada de si próprio. Essas divisões
no viver e as representações correlatas têm por base as condições objetivas do trabalho,
quer através do horário fixo, quer através do local de trabalho separado dos lugares que
o trabalhador reconhece como seus, e sem qualquer identidade possível com os mais
pessoais, como seria o caso do domicílio, por exemplo. Essa forma de espacializar a
vida, ordenando seu tempo, não existe no modo artesanal de trabalho e são originadas
na forma capitalista de conceber e realizar a produção8.
A medicina de consultório que se encontra nas narrativas dos entrevistados,
ao compor com suas respectivas situações de trabalho assalariado, realiza-se em um
tempo de transição histórica, como vimos. E no emprego público ou privado, o médico
encontrará demarcações fixas de seus tempos e já independentes da atividade de
consultório. Assim sendo, dessa perspectiva a prática do consultório tem seus limites
impostos “de fora”, por aquelas outras situações de trabalho. Não obstante, ainda será
possível reconhecer nesta prática da “transição”, uma medicina “pessoal” e de grande
dedicação, seja pelos “chamados” que nos momentos iniciais dessa prática são ainda
freqüentes, seja pela forma concreta de configurar os espaços da prática e um “tempo
de liberdade”:
Quando eu abri consultório pela primeira vez em Água Rasa, eu ficava lá
no período da tarde e de manhã no hospital. Pela manhã, sete e
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meia, oito horas, eu ia pro hospital, ficava lá até meio-dia, almoçava no hospital, e
depois ia para o bairro novamente, onde eu tinha o consultório e onde eu morava. E
lá dava consulta e ia até oito, nove, dez horas da noite. Enfim, a hora que parar! E
dormia lá; morava lá.
(doutor Fábio)
Por isso pode-se dizer que, na transição para a medicina tecnológica,
também o “tempo de trabalho” neste caso se reparte, quando a atividade do consultório
( o tempo de consultório) é o que sobretudo significa o tempo da profissão. Eis porque
a prática de consultório deve ser iniciada precocemente, e porque é seu início a marca
do próprio início da vida profissional, tal qual reflete doutor Carlos, para quem
começar “tardiamente” o consultório, após alguns anos de formado, significou ter
atrasado o começo da vida.
A escolha do local e as formas mais ou menos isoladas de se instalar o
consultório também obedecem ao critério que permite combinar, de um lado, o fácil
acesso e sua rápida identificação, o que ocorre por meio do estabelecimento do
consultório em espaços já comercialmente bem caracterizados, como a praça do
comércio, a padaria ou a farmácia, inserindo o consumo do serviço médico entre
outras situações de consumo e até certo ponto aproximando o trabalho do médico de
“algo comercializável”. De outro lado, porém, também é mister diferenciar-se e
separar-se de um comércio “comum”, de um consumo qualquer, buscando formar
conglomerados próprios ou “espaços privativos”, na identificação de um local
exclusivamente apropriado para tais serviços, sempre contudo mantendo o caráter de
individualidade dos consultórios: estabelecem-se os “territórios médicos”, mas não
“sociedades médicas” – são consultórios próximos, ou na mesma instalação predial,
porém o importante aqui, ainda, é “trabalhar sozinho”.
Acontecia com outros e acontecia comigo também, não é? De forma que
isso era muito comum: os médicos não se importavam de estar perto assim de outros
médicos. Não! Não tinha essa vaidade, não! Eu gostava. Sempre ficava mais... De
fato, tinha mis dois colegas, próximos, bem perto. Nunca fiquei isolado, não! Mas o
consultório era só meu. Só meu.
(doutor Fábio)
Além da Cruz Azul, assim que me formei, eu logo abri o meu consultório,
também. Eu me formei e fui procurar um consultório pra dar
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consulta. E, naturalmente, não podia gastar muito. E o Sales Gomes disse: “Olha, eu
tenho um consultório aí. Se quiser vir, você aluga a sala.” Então eu fiquei no
consultório como Sales Gomes. Mas, aí, mais ou menos uns dois anos depois, eu
transferi pro meu consultório, na Senador Feijó. Mas lá no consultório dele eu tinha
uma sala onde u dava as minhas consultas. Quer dizer, ele dividia só o espaço, ele me
alugava essa sala. Mas eu não tinha nada a ver com o serviço dele. Quer dizer que os
dois primeiros consultórios eu alugava. O terceiro consultório eu alugava também,
mas depois foi vendido pra quem estivesse lá, né? pros inquilinos próprios
comprarem. E u comprei o consultório. E eu fiquei sempre sozinha! Sempre sozinha!
Algumas vezes tinha algum colega novo, que queria começar a clínica, então queria
alugar, por uns tempos, um consultório ao lado que não era o meu, e ele ficava.
(doutora Emília)
Essas formas comuns com que os médicos organizavam o trabalho no
consultório apontam para o homogêneo, para a existência de uma só identificação,
quer no modo de anunciar-se para o público, quer na escolha do local, ou ainda na
demarcação do horário de trabalho. Contudo, tais uniformidades estão subordinadas a
elementos diferenciadores da prática desses médicos e desses trabalhadores entre si,
compondo aquele segundo conjunto de fatores mencionado que irá distribuí-los em
distintas posições na organização técnica e social da produção dos serviços.
b) a diferenciação
A possibilidade maior ou menor que cada médico pessoalmente poderia
encontrar para delimitar um campo mais restrito de atuação, uma prática mais
especializada, ou para demarcar um horário mais fixo e limitado no consultório, ou
então para usar dispositivos mais ou menos comerciais situando seus serviços no
mercado, são gamas de variações possíveis dentro de um mesmo modelo. Elas
distinguem os médicos entre si pela produção de serviços mais identificados ao
popular, ou mais às elites.
Um dos elementos nesse sentido nos conduz à localização do cônsul-
tório, no interior de uma territorialização do urbano em que o centro da
cidade corresponde ao espaço das elites e das camadas mais ricas da população,
e a periferia da cidade, ao espaço de moradia, circulação e consumo dos
mais pobres: os operários, os chacareiros, os pequenos comerciantes.
Morar no centro ou na periferia especifica socialmente o cidadão;
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ser médico do centrou ou médico de bairro separa e distingue a medicina dos mais
ricos, da medicina dos mais pobres; e o médico elitizado e prestigiado, daquele “mais
comum”.
Dois aspectos chamam muito a atenção por referência a esse modo de
diferenciar a prática profissional. O primeiro deles diz respeito ao fato de se constituir
essa geografia social em elemento nuclear da diferenciação. Tendo em vista as formas
mais atuais de diferenciação dos serviços, em estreita articulação com as modalidades
de organização institucional do trabalho, não deixa de ser contrastante a referência a
médico de bairro, médico de centro, que os entrevistados fazem, com esta pela qual é
substituída na medicina tecnológica mais adiantada: médico de convênio, médico de
hospital particular, médico do INSPS, e assim por diante. Essa transformação que viria
ocorrer no modo de designar a situação profissional, podemos sentir já na nomeação
de “médico de instituto” que começa a surgir nas falas dos próprios entrevistados,
convivendo com as formas anteriores.
A disposição geográfica como discriminador da posição social do médico
significa que o lugar em que este instalou seu consultório tornou-se o correspondente
simbólico de um conjunto maior de atributos da prática, como, por exemplo, a
qualificação técnica do trabalho, as características sociais da clientela e mesmo a forma
global de organizar a produção, individual dos serviços. Assim, os entrevistados, ao se
identificarem como médicos “de centro” ou “de bairro”, já supunham ter expressado
tudo a seu próprio respeito, ao a respeito dos outros:
Aí, então, trabalhei na perícia médica desde fevereiro, que eu fiz o estágio. A
partir de março eu fiquei credenciado, eu recebia por uma verba que ninguém
entendia! Pelo Ministério do Trabalho. Eu fiquei até... 1963. Mas o que aconteceu de
interessante foi que, quando eu cheguei lá, encontrei um monte de colegas – colega de
turma, de época, daqui... Bom, falei¨”Poxa! Mas é... é o ... Era o ambiente melhor
possível!” E o chefe do negócio simpatizou muito comigo, e eu com ele, morava na
Aclimação... E ficamos muito amigos! Inclusive ele gostava muito de
eletrocardiografia. Ele vivia lá ensaiando aprender eletrocardiografia e eu comecei a
mostrar pra ele, levava os gráficos, tudo isso, e tal... Ele simpatizou muito comigo e ele
me ajudou muito! E ele é uma pessoa muito boa, formado em... 39, por aí. Ele é um
clínico-cirurgião-de-bairro, um sujeito muito bom, humano!
(doutor Carlos)
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Era só Clínica pura, e pequenos abscessos, e curativos... Essa coisa aí!
Alguma massagem... massagem na próstata de alguém, devido a uma gonococcia.
Pois é! Eram essas coisas mesmo! Coisinha de bairro. E como eu fazia Clínica Geral,
de queixa aparecia tudo! Clínica Geral, era tudo! Era clínica... Até Pediatria! Era
obrigado a fazer tudo! Tanto que muita gente gostava também que tratasse das
crianças – e havia pediatra já em Pinheiros – mas eles vinham comigo. Então, muitas
vezes eu dizia: “Vai no pediatra pra ele encaminhar melhor, fazer regime e tudo.” E
também Ginecologia. Aparecia bastante.
(doutor Nélson)
O segundo aspecto que chama a atenção está no fato de que esse símbolo de
identificação do trabalho profissional assume tal relevância que é através dele que, em
primeiro lugar e espontaneamente, os entrevistados discorrem sobre suas vidas de
trabalho: por meio do relato da sucessão de ruas, bairros u locais da cidade onde
fixaram seus consultórios é que esses médicos encontram o modo adequado – e
suficientemente explícito, segundo o específico entendimento que têm acerca do viver
– para qualificarem suas próprias vidas profissionais.
Começamos nossa clínica particular. Meu consultório foi na Conselheiro
Crispiniano, perto do consultório do Schor. Naquele tempo ainda havia condições de
fazer medicina privativa como não se tem mais hoje. Foi lá que começamos.
Depois, em 1947, achei por bem arranjar uma namorada. Nos conhecemos no
casamento de um amigo, de um ex-colega lá no Rio, que trabalhava conosco na
Santa Casa, faleceu há pouco tempo. E, então, resolvemos alugar uma casa e, aí,
começamos nova clínica. Fazia a clínica na Conselheiro e em casa, na Rua
Anhaia, esquina com Sólon. E lá nós começamos os primeiros anos de casamento.
Depois acabei mudando para um apartamento que eu comprei e passei com a família
para a Rua Sólon, e fiz consultório lá em casa também. Eu já tinha mudado o
consultório da cidade para a Rua Marquês de Itu. Depois com o tempo, nós fomos nos
limitando e passamos a ficar fixados ao consultório do bairro. Aí mudamos para a
Rua Três Rios, fiquei médico de bairro. Foi então que tive a ocasião de conviver com
vários colegas, tinha um... que fumava muito... faleceu de tanto fumar... fomos medi-
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cos de bairro, no Bom Retiro. Nós nos tornamos um centro médico, um agrupamento
médico... sentimos que o ambiente médico estava lá mais ou menos no mesmo nível
que o do centro. Trabalhei trinta anos como médico de bairro, no Bom Retiro, que se
tornou, digamos, um centro médico diferenciado. Naquela ocasião alguns colegas que
estavam lá no Bom Retiro, estavam preocupados com a chegada de maior número de
médicos. Eu dizia o contrário: quanto mais médico chegasse melhor, mais
diferenciada a medicina se tornaria. E realmente foi o que aconteceu. O Bom Retiro
se tornou um centro médico de diferenciação mais ou menos no nível do centro.
(doutor Maurício)
Entre a “clínica de bairro” e a “clínica do centro”, pelo menos duas
medicinas se realizavam. A de bairro, pela própria escassez de médicos, tinha que ser
uma prática não especializada, com parcimônia no uso dos recursos materiais e
serviços complementares de diagnóstico ou terapêutica então existentes. Por isso
mesmo, também correspondia às possibilidades de um início mais rápido de obtenção
de renda pessoal na profissão, para os médicos que dispunham de poucos recursos.
Destinava-se sobretudo, então, aos que encontravam dificuldades, seja para
combinarem atividades remuneradas com aquela voluntária nas Santas Casas ou
instituições similares, para um maior aprimoramento técnico ou para especialização,
seja para selecionarem clientela na observância a uma atuação mais especializada. A
“clínica de centro”, ao contrário, permitia maior independência de uma “propaganda”
pessoal, já por estar situada na “área dos especialistas, dos professores e da clientela
diferenciada”:
Naquela época a gente costumava dizer que ficava caçando mosquinha;
ficava estudando e, enquanto isso, iam chegando os pacientes. Então, assim, fomos
criando a nossa clínica... recomendados por um colega ou outros... e assim fomos...
No centro era diferente. Os pacientes vinham de outros bairros procurar os
consultórios médicos pela lista telefônica ou por indicação, recomendação. A maioria
dos consultórios ficava no centro. Os consultórios considerados diferenciados eram
sempre na Rua Marconi, na Conselheiro Crispiniano, Xavier de Toledo, aquelas
bandas lá do centro; as pessoas mais ricas eram atendidas aí.
(doutor Maurício)
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O consultório só teve alguma clientela para sobrevivência depois que eu
vim da América. Antes, não. Eu não cheguei a fazer propaganda do consultório nesse
começo, antes de ira pra América. Isso eu nunca fiz, nem faço hoje, e nem pretendo
fazer, viu? Montar consultório naquela época não era tão difícil, mas ter clientela era.
Ninguém procura um médico recém-formado. Procura por indicação um médico que
tenha experiência, que já tenha alguma fama, mais conhecido, não é? Médico recém-
formado tem algo contra ele, que é a suposta falta de experiência. Mas, aí, quando eu
vim da América aí as coisas mudaram. Aí as coisas mudaram porque aí eu era o tal,
né? As pessoas ficaram sabendo porque eu... Um falava pro outro e indicavam. Os
próprios colegas indicavam. Eu tive consultório em bairro por pouco tempo. Inclusive
tive um colega que tinha consultório lá no Bom Retiro e ele me cedeu umas horas lá
de manhã e eu fui lá uns tempos. E também no Brás eu tive, mas também não fiz muito
progresso lá. Eu só fiz clientela particular lá mesmo, como eu disse, depois que eu
voltei da América, depois da bolsa de estudo, viu? Clínica aqui no centro, clínica de
gente mais qualificada. Aí é uma clínica diferente, naturalmente. Porque é uma
clientela mais exigente, clientela mais esclarecida, que aos primeiros sintomas ou
sinais de qualquer coisa já procura o médico. E não como os outros que deixam a
doença evoluir, vão tentando com os antitérmicos ou remédios caseiros, e só depois
que a doença evolui bem, aí que procuram o médico. A diferença é essa, né?
(doutor Paulo)
A clínica de centro, porém, ao contrário da do bairro, para o recém-formado,
como profissional ainda de pouca autoridade técnica em razão da pouca experiência
clínica pessoal, quase significava a necessidade de iniciar-se na profissão de forma
associada a um colega mais velho, mais experiente, mais renomado, e não de forma
independente:
A clientela... nesse começo, não era minha... eu pegava o que chegava, né?,
porque... primeiro a gente... não era muito moda, naquele tempo, porque não era
muito ético, você fazer grandes propagandas, né? Depois praticamente todo mundo
começava assim. Quer dizer, você ou ia pr’um hospital, ou ia pr’um bairro, alugava
uma sala, punha uma placa na porta e ficava esperando alguém entrar. Você não
tinha assim um... Evidentemente, tinha encaminhamento de algum colega, ou
você se juntava a um colega mais idoso, ou um parente, ou uma instituição, um
hospital, qualquer coisa, e... e ia cobrindo as horas do outro que
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estava, vamos dizer, tentando fazer horário mais lógico. Então eu passei a atender
mais chamados, visita mais fora de hora papai me mandava, ele não ia... Quer dizer,
você ia fazendo uma... você ia funcionando mais ou menos. Você começava quase
sempre... mais ou menos como assistente de alguém. A não ser que tivesse – vamos
dizer – ir pr’um lugar mais longe onde não tivesse um outro médico. Praticamente
não existiam convênios, nem credenciados. Você já tinha INPS, mas você não tinha...
que eu lembre, nenhum seguro saúde. Nem mesmo, que lembre, nenhuma medicina de
grupo funcionando. Então, a pessoa ou era do INPS, ou era... hã... clínica privada.
(doutor Luís)
Além desse há outros elementos que diferenciam os serviços médicos entre
si. De um lado, a experiência pessoal, de outro, as especificidades da qualificação
técnica, que no início do período considerado ainda se resume à formação escolar em
geral, como conta doutor Paulo à propósito de sua viagem aos Estados Unidos ou
como aponta Eduardo Etzel: Foi a época em que os médicos tinham em seu
receituário e nos anúncios a sugestiva e convidativa frase “dos hospitais de Paris,
Londres e Berlim”, sem especificação alguma por possível falta de títulos, mas que
impressionava e atraía clientes.9
Será mais ao final do período considerado (ao final dos anos 50), que ser
especialista e incorporar mais tecnologia material ao cuidado médico surgirá como
importante elemento para distinguir a prática profissional. Esse fato aponta para as
transformações da medicina em que progressivamente tanto os equipamentos quanto a
organização institucional correlata da produção de serviços, virão substituir, como
valor maior na qualificação da prática, a experiência clínica pessoal ou o local de
fixação do consultório. Com isso se deslocam para os especialistas, para os médicos
novos e atualizados, para os técnicos antes mais hábeis que observadores pacientes,
para o hospital e todos os seus equipamentos, e para a empresa médica e todas as suas
“facilidades”, os fatores que comporão o critério principal na diferenciação dos
serviços. As pessoas cedem lugar ao instrumental é às engrenagens, pois como diz
doutora Emília, heróicos, agora, serão a penicilina e a sulfa.
Todos os médicos entrevistados reformularam suas práticas nesse
sentido da medicina tecnológica, desenvolvendo-a por estratégias às
vezes mais próximas entre si, às vezes mais particulares, em função das
peculiaridades de cada situação de trabalho já constituída. Diante desta, nem
todos os aspectos que de fato se transformam serão exatamente percebidos
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como alterações ou como se a prática tivesse substantivamente mudado, ao passo que
outros logo serão compreendidos como visivelmente diversos. Na totalidade do
exercício profissional, porém, todos sabem que refizeram os espaços, os momentos e
as formas de realização da liberdade de ação pessoal, liberdade que lhes caracteriza as
b ases de sua autonomia enquanto profissionais.
A LIBERDADE REFEITA
a) a atualização necessária
Esse problema é – se a gente quiser – um problema de evolução. Problemas
de evolução são todos iguais, né? Quer dizer, num determinado momento um
aparelho é aperfeiçoado para tal coisa e nós, que temos esse aparelho, vemos o
aperfeiçoamento e adquirimos aquele outro. Uma determinada técnica... Então, tudo
isso são coisas que vão surgindo e a gente vai incluindo na nossa evolução. Quer
dizer, nós sempre fomos... permeáveis a toas idéias justas, modernas, boas... Sempre
fomos! Há, evidentemente, conquistas que são gerais, que todo mundo... Porque você
sabe, naquela época não havia nenhum antimicrobiano. O primeiro que apareceu foi
as sulfas, os derivados da sulfona. Então, todo mundo usava sulfa em qualquer
doença infecciosa. Depois que surgiu a penicilina, foi absorvida por todo mundo. A
estreptomicina aí vem... Depois veio a tetraciclina; idem. E, evidentemente, essas
novas drogas foram... produzindo mudanças no panorama clínico. Claro!
Antigamente, naquela época, a gente há sessenta, setenta anos atrás, como é que a
gente tratava pneumonia lobar? Era com cataplasma de linhaça! Hoje não se
conhece; nem se chega a ver. Então estas coisas produziram modificações grandes.
Isso aí era... era normal! Na medida que nós dispúnhamos de uma conquista, ela era
usada, a gente verificava que havia melhora, as coisas corriam melhor... Isso... não
tem nada, não há nada que possa espantar a gente, não há nada de espantar. Parece
que tudo é uma rotina que vem caminhando, né? caminhando normalmente. Então,
quando surgiram aqueles monitores, a gente colocava o monitor e achava muito
interessante que você podia ver a pressão arterial do indivíduo sem medir,
sem nada. Tudo isso eram conquistas que a gente gostava de ter porque
isso dava imediatamente uma série de informações para a gente, né? Mas isso...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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isso produziu as modificações que eram possíveis; que eram possíveis na... na época,
né?
(doutor Antônio)
À proporção que os novos recursos tecnológicos foram aparecendo, como
também à proporção que correlatamente se foram estabelecendo as especialidades
médicas, ambos foram incorporados à prática profissional. Ocorre uma polarização
positiva por referência a essas características em função do próprio conceito de
“inovação”. Inovar é entendido como sinônimo de estar mais atualizado relativamente
ao desenvolvimento científico-tecnológico, absorvendo os avanços diagnósticos e
terapêuticos. A atualização é tão importante para qualificar o desempenho do médico
que parecerá igualar, pela inserção na medicina tecnológica, práticas antes
diferenciadas:
Eu trabalho hoje num bairro; o hospital fica num bairro. Eu não diria que
faço medicina de bairro. Talvez, não. Porque nós temos todo conforto, nós temos toda
a atualização médica no hospital... Então, não vejo. Acho que é a mesma medicinal
Tanto faz o hospital do Brás, como o “Santa Catarina”, como outro hospital assim
deste tipo. Podia-se tirar uns dois ou três hospitais de São Paulo, esses que estão mais
bem aparelhados. Aí, sim! Mas, em geral, não. São a mesma coisa.
(doutor Fábio)
A incorporação de tecnologia pode significar uma circunscrição da atuação
clínica a áreas mais específicas da medicina e aprofundar os conhecimentos científicos
correspondentes. Atualizar-se seria, dessa perspectiva, para os que ainda não eram
especialistas como clínicos ou cirurgiões de bairro, efetivamente se aproximarem da
especialização. Isso representará uma forma de melhorar seu desempenho e, por
conseqüência, captar e manter a clientela, sendo a ausência de movimento na direção
da especialização conotada de forte sentido negativo:
No comecinho do consultório eu fazia também pequenas cirurgias. Um
pouquinho de abscesso, fimose, sempre fazia no consultório. Mas todas as cirurgias
um pouquinho maiores eu mandava para o hospital do Brás, onde o Arion me dava
uma mãozinha lá. E depois é que eu fui me habituando e estudando um pouco mais e
entrei na Ginecologia e Obstetrícia. Aí comecei a fazer as duas especialidades e fui
deixando a Clínica – Clínica Médica, propriamente dita – e me dedicando mais
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na parte ginecológica e obstetra. Eu atendia criança, também, Pediatria, naquele
começo. Porque a gente lá atendia tudo! Consultório de bairro, né?, a gente atendia
tudo: Pediatria, Clínica, Ginecologia, Obstetrícia... Naquele tempo, apesar de não
fazer as especialidades, a gente sempre aceitava os casos e tentava resolver, não é?
Resolvendo da melhor maneira possível, me interessando mais pela parte
ginecológica/obstétrica e fui deixando a Pediatria que, de fato, abandonei logo, já que
não era pediatra mesmo – apesar de gostar muito de criança. Talvez se eu fizessse
Pediatria eu faria bem, mas, passou, deixei. E fui deixando os adultos e até hoje –
apesar de já ter deixado há muito tempo – tenho clientes do início do meu trabalho
que procuram ainda na parte clínica.
(doutor Fábio)
Assim, a especialização que aparece no início de suas práticas com uma
relativa importância para qualificar o desempenho pessoal, a partir da plena
configuração da medicina tecnológica, principalmente como decorrência da presença
do equipamento, mostra-se como única via que o médico tem para firmar-se
profissionalmente, deslocando definitivamente o não-especialista do mercado. E como
bem descreve doutor Nélson, esse deslocamento é também, simultaneamente, uma
revisão do valor do consultório, perante o hospital:
Eu, por exemplo, tinha muito chamado domiciliar. Coisa que hoje é muito
raro! Muito raro por causa desses prontos-socorros. Porque eles telefonam, vem a
ambulância, e o sujeito já é visto lá... A equipe é boa. Hoje as equipes médicas estão
bem formadas! Porque, no meu tempo, se o sujeito me chamava, eu ia na casa dele
com o esteto e com o aparelho de pressão. Só com isso eu vou, se me chamar agora!
Com o abaixador de língua e uma lâmpada para ver a garganta. E o resto é na
percussão que você aprendeu, e tudo na ausculta, e tudo direitinho...
Agora, naturalmente, hoje a turma chama o pronto-socorro. É melhor!
Eles já chegam na tua casa com a ambulância, chega um colega junto... E é
interessante! Quando precisar, chama! Como eu já chamei! E chega o sujeito
com toda a ... eles vêm com um laboratório inteiro lá dentro. Vem com uma coisa...
Parafernália! Tiram a pressão, tiram... fazem eletro, fazem ecocardiografia...
Fazem tudo! Inclusive a medicação! Já vem com uma bateria de remédios,
injeção de todo jeito... Quer dizer, é muito mais interessante do que você chegar lá, um
médico simples, chega a pé porque é perto do consultório... Você vai
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ver lá: “Como é que é? O que é?” “Pois não! Vamos entrar.” E a família... fica lá
arrumando depressa a cama, tal, e coisa... No meu tempo a gente freqüentava a casa
do paciente, ficava o médico da família... E geralmente a pessoa dizia: “Não! O
senhor venha conversar. Pode voltar quando quiser.” E isso era interessante porque a
gente tinha uma idéia do doente, da evolução dele... A passagem, assim, pro pronto-
socorro já mudou essa relação. Eu acho que mudou. Eles preferem o pronto-socorro
porque porque o pronto-socorro chega, já dá o remédio, já faz o que precisa, remove
pro hospital... Se a pessoa perguntar: “O senhor indica algum hospital?” “ Eu
indico.” “Qual é que é o melhor nesse caso pra levar meu pai?” “Pra mim, eu acho
que o Hospital X!” “Por que o senhor acha?” “Ah, porque é um hospital que tem
cinco mil médicos e (uma hipótese) um aparelhamento ultra-moderno.” Pronto!
Basta falar isso que a pessoa fia impressionada! Aparelhagem ultramoderna! Os
hospitais chamam mais a atenção por serem mais aparelhados. Agora não tem mais
aquilo do camarada chamar a gente em casa, ficar mais a domicílio... Acabou! Hoje
só tem conveniados! Eles já tem os seus hospitais e os seus prontos-socorros! Acabou
a clientela! Porque hoje em dia o pessoal já está mais esclarecido. A não ser na...
acredito que na periferia. O pessoal está esclarecido hoje. Porque eles raciocinam
assim: “O que que adianta eu chamar esse médico? Eu vou chamar o doutor Nélson
pra vir aqui, ele não é cardiologista, ele é clínico geral. O caso de papai me parece
coração porque ele já teve um infarto... Ah! Vamos chamar já o pronto-socorro
cardiológico!” O sujeito já parte desse princípio. “Se tiver que pagar o doutor Nélson,
eu prefiro pagar o pronto-socorro cardiológico, que já vem com a bateria de
remédios aí. E já remove pro hospital também!” Entendeu como é? Pra nós, clínicos
velhos, piorou muito! E pr’um médico que saiu agora da faculdade vai ser a mesma
coisa. Agora é tudo na base da especialidade. Você não pode ser clínico sozinho. Hoje
você tem que fazer especialidade se você pretende viver da medicina. E nessa
especialidade se puder, pegar um hospital. Fica num hospital lá, de plantonista! Por
exemplo, você é parteiro. Fica no hospital lá, no teu plantão. Caso de parto que
aparecer você pega no teu plantão!
Eu acho que a medicina hoje está assim! Quando eu me formei
não era assim, não se fazia tanta especialidade! Aqui no bairro eram
poucos os especialistas, tinha o parteiro, tinha o ginecologista... E as pessoas
vinham primeiro pro meu consultório. Quer dizer, a gente era o “ai,
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Jesus”! Tinha placa assim, era o meu nome, Clínica Geral, né?, só! Mais nada! E
vinha moléstia de senhora, vinha de tudo... “Então eu vi a placa aí, gostei, estava
passando de bonde...” Eu passei aí e vi o senhor... O senhor entende de criança?”
“Entendo. Vamos ver.” “Chegava outro aí: “O senhor entende de pele?” Eu não era
dermatologista, mas eu era obrigado a entender. “Então deixa eu ver isso aí! Isso
eczema, uma micose... passa isso aqui!” Era assim! Estava muito melhor! Naquele
tempo havia médico! Naquele tempo era mais difícil ser especialista porque clínico
resolvia muita coisa. Isso começou a fiar assim agora, todo mundo especialista.
Embora reconhecendo a importância da especialização para caminhar para
se manter atualizado, esta nem sempre será alternativa compatível com o exercício
profissional já estabelecido. Assim sendo, a forma de atualizar a prática
preferencialmente adotada dar-se-á através da introdução do uso mais sistemático dos
equipamentos diagnósticos – representado pelo uso direto dos aparelhos ou pelo uso
dos recursos de serviços de terceiros (laboratórios clínicos, os serviços radiológicos), e
também através da introdução do uso de instrumentos terapêuticos novos, sejam eles
equipamentos, fármacos industrializados ou mesmo o hospital. Este último deslocará o
consultório e o domicílio definitivamente, como forma mais apropriada de espaço
terapêutico.
Hoje você não faz uma consulta de Gineco que o cliente saia satisfeito se
você não pedir, pelo menos, um ultra-som, uma colpocospia e um papanicolau. Quer
dizer, isso... você tem que pedir... não que você... a não ser que você acha
absolutamente que não precisa e se o cliente concordar com a sua idéia de que ele
não precisa. Se não você vai ter que pedir isso.
(doutor Luís)
Na área de medicamentos, ou na área de exames diagnósticos, recurso
diagnóstico, quando aparece uma inovação eu gosto de incorporar, desde que ofereça
vantagem. Sem dúvida nenhuma! Estou pronto a incorporá-la, viu? Desde que haja
necessidade, que haja vantagem, seja do meio diagnóstico e ajude o
diagnóstico correto e uma terapêutica mais adequada, né? Naturalmente,
nessa parte, por exemplo, de tomografia – tomografias computadorizadas –
isso contribui muito para melhorar o diagnóstico. Não só melhorar o diagnóstico
como também diminuir a exposição do paciente a raio X. Eu senti isso
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 102 -
na minha clínica pediátrica. Eu uso bastante. Em termos de medicamento, quando
surgiram os antibióticos, mudou radicalmente a terapêutica. Nós, antigamente,
quando me formei, a gente tratava broncopneumonia com injeção de óleo canforado.
Ou então, ainda se usava o abscesso de fixação, coisa desse tipo. Então estávamos
praticamente desarmados. Depois surgiram as sulfas. Foi um progresso grande! E
depois vieram os antibióticos.
(doutor Paulo)
Naquele tempo os clientes não aceitavam muito os exames de laboratório.
Precisava insistir muito, sabe? Não sei se pesava um pouquinho assim na parte
financeira, mas a gente tinha um olho clínico maior do que o atual. Eu sempre ia bem!
E fazia os diagnósticos com a Clínica. Só com a Clínica, viu? Não tínhamos assim
muitos recursos como a penicilina, sulfa, mas mesmo assim a gente conseguia
resultados bons. Quando era necessário, a gente pedia exames laboratoriais, raios X...
Não os mais sofisticados, mas os mais comuns, mais de rotina, que a gente fazia
quando pedia os exames de laboratório. E existiam laboratórios no Brás. Por lá na
Água Rasa, Avenida Celso Garcia. Laboratórios que para exames de rotina, simples,
resolvia. Eu tive resultados bons. Era mais freqüente eu pedir exames de fezes,
principalmente; urina... E raio X – estômago, parte renal, vesícula - ... Eu ficava por
aí! Já era raio X contrastado. Não tínhamos ultra-som, não tínhamos endoscopia –
não existia ainda, não é? Hoje em dia nós estamos aí com toda essa maravilha.
(doutor Fábio)
Inovar, simultaneamente, resultou em dar novas diretrizes ao trabalho do
consultório, que ultrapassam os limites “internos” a esse trabalho e sobretudo alteram
as regras das relações com seu “exterior”. Assim, a inovação será também outro modo
de articular-se com os outros serviços e com a clientela. Este aspecto, contudo, já não
receberá a mesma valorização positiva, isto é, será tomado como o lado mais
“negativo” das transformações na prática. A qualidade negativa, no caso, significa a
necessária reordenação do que é “interno” e sob seu controle pessoal, em razão do que
é o novo “externo”, dizendo respeito, pois, diretamente à posição de autonomia
profissional: às bases mais pessoais de organização da prática e à auto-suficiência já
construída do exercício profissional.
Essa necessária alteração das relações entre o trabalho do consultório
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 103 -
privado e outros serviços, ou entre o trabalho do consultório privado e a clientela, dá-se
por razões de ordens diversas, alguns das quais serão concebidas como produtos mais
próximos da incorporação da tecnologia material; outras, pelo contrário, parecerão
injunções exteriores à medicina. Ambas, porém, apresentam-se como impondo uma
redefinição da capacidade resolutiva do ato isolado de cada médico individual, que
escapará ao controle pessoal daquele médico. Valer-se mais dos especialistas ou pedir
mais exames é depender mais de serviços de terceiros e onerar mais a clientela,
embora vá ao encontro das novas exigências técnicas, qualificando melhor o
desempenho do médico e sobretudo vá também ao encontro das próprias expectativas
do paciente, que agora se manifesta ativa diretamente sobre a conduta médica:
E esse exame, comecei a fazer, assim, de rotina, desde que... acho que desde
formado! Já era moda! Já se usava papanicolau. Só que agora ele ficou bem rotina!
Então você pode... frequentemente... Isso é outra coisa! É a tal história: do progresso
da atenção à saúde e das campanhas que se faz, às vezes. Frequentemente passa
cliente de convênio. Às vezes: “Ah, faz um ano que eu fiz papanicolau. Então eu vim
pro senhor examinar e pedir o exame.” Isso já entrou na cabeça da maioria das
pessoas que em cada ano, ano e meio, o pessoal vai pedir o exame. “Ah! Esqueci de
pedir! Não fiz o ano passado, mas precisa fazer!” Precisa mesmo, né? Então isso
entrou direito... Então eu mano colher. Porque eu mando pro laboratório! Eu nem
olho! Prefiro mandar pro laboratório fazer tudo. Quer dizer, não tenho aparelhos
instalados no consultório. Não tenho nada! Não tenho! Só faço o pedido e encaminho.
Bom, tem colegas que preferem eles colherem. Isso varia. Às vezes você manda pra
um laboratório... sério, um laboratório de confiança, já fica tudo por conta do
laboratório. Aquela história de vai, o laboratório acha que você colheu mal, ou então
fica na dúvida, se acontece qualquer coisa você que deu... culpado... Então, acho que
se dá responsabilidade toda pro laboratório. Eu acho mais prático. Têm colegas que
preferem eles colherem. Isso eu acho que ou você pode e faz, ou você deixa outros
colherem porque se não é a mesma coisa que você vai inventar de ficar colhendo
sangue pra saber que colheu na hora certa ou do jeito que ele queria, né? (...)
Na minha opinião a novidade é a ultra-sonografia também, e a endoscopia.
As endoscopias, de maneira geral. Eu acho que foi um progresso muito
grande, indiscutivelmente! A endoscopia ficou para mim como uma espécie de
substituição do raio X contrastado. Mais frequentemente. Hoje eu peço
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 104 -
muito raramente raio X contrastado. Só se doente for muito medroso de... endoscopia.
Mas a grande maioria das pessoas aceita. É outra coisa que está mais ou menos
popularizada. Você nem precisa explicar muito. Acho que já todo mundo já tem
alguém que já fez e que já não se queixou muito. Então... hã... o pessoal aceita... Vem...
quando já não vem com o pedido: “Não é bom fazer uma endoscopia?”.
(doutor Luis)
Para o doutor Fábio a atualização significou incorporar diretamente os
equipamentos e para tanto também transformou sua prática, relativamente isolada e
independente, em trabalho coletivizado, dividindo suas atribuições pessoais com
outros dois colegas mais jovens e inserindo seu próprio consultório no interior do
hospital:
Em termos de aparelhagem, teve diferença ter mudado para dentro do
hospital. De fato teve porque no hospital tinha raio X, tinha laboratório, tinha todos os
especialistas que, naturalmente, se houvesse necessidade, encaminhava. Então,
facilitou muito para chegar ao diagnóstico, claro. E com esses aparelhos de outros
colegas, também. Porque em meu consultório sempre foram mais ou menos os
mesmos, lá. Depois que nós viemos para o hospital – mudamos – ficamos com a parte
de G.O., com esses dois colegas. Aí mudou porque nós conseguimos diversos
aparelhos da especialidade, né? Mas até então, não! Tinha consultório, mas um
consultório simples. Não tinha muito aparelho, não. Quando tiveram esses dois
colegas, eu incorporei o colposcópio, ultra-som, sonares... São mais ou menos esses aí
que o nosso consultório incorporou. O trabalho com dois colegas e a incorporação
desses novos aparelhos aconteceram juntos. Então nós adquirimos, fizemos a junção,
fizemos um conveniozinho aí, uma clínica. Eles queriam usar os aparelhos todos e
ficamos com o consultório montado para atender a especialidade. A minha decisão de
compartilhar com eles minha clientela pesou na incorporação da aparelhagem. Se eu
continuasse sozinho, provavelmente eu teria melhorado também. Porque eu
freqüentei um pouquinho a Maternal lá no Brás e a Maternal tinha mais recurso. E a
gente então ia se entrosando, e eu iria adquirir alguma coisa. Mas a presença
deles facilitou porque eles eram formados mais recentemente e eu estava
mais afeto ao consultório. Eu não freqüentava hospital nenhum. Estudava,
claro! Mas eu tinha assim um meio melhor para atualização e
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 105 -
eles já vieram atualizados, de freqüência em hospitais, de plantonistas lá da
Maternal. Então, já vieram com uma formação mais... Não digo mais adiantada, mas
mais aprimorada, a respeito do uso da aparelhagem. Então, nós conversamos e
resolvemos comprar esses aparelhos que nós temos.
(doutor Fábio)
Contudo, mesmo sendo mais problemáticas que apenas o especializar-se, as
associações entre colegas ou a necessidade de usar mais intensivamente serviços
complementares, enquanto medidas de maior dependência do “exterior” por parte de
cada médico isolado, foram recebidas como problemas ainda menores e muito menos
graves que o redimensionamento daquilo que consideravam como o âmbito “interno”
à prática de consultório. Trata-se, este último, do aparecimento das novas situações de
trabalho, novas modalidades de captação da clientela e novos padrões de organizar a
produção dos serviços, que constituem formas, sob vários aspectos, socialmente mais
viáveis e alternativas reais ao consultório mais tradicional. E se as primeiras alterações
foram tomadas como mudanças que derivaram da incorporação tecnológica, a
diversificação institucional que se estabelece já não é tomada tão consensualmente
como produto direto da tecnologia, mas, de modo mais freqüente, como uma forma
“exterior” de tratá-la. Assim, se a inovação tecnológica é tida como parte da medicina
e a atualização de suas práticas como necessidade técnica de mesma espécie, o mesmo
não ocorre com a nova organização social da produção dos serviços.
Mas não foi o equipamento! A distorção foi na evolução da política,
econômica e científica do país. O equipamento é uma conquista moderna que a
gente... que todos têm que aceitar. Porque, você sabe muito bem, que existem...
lugares, serviços médicos, que têm um equipamento. Não usam o equipamento e o
equipamento se estraga e se perde. Mas realmente, não é o equipamento. Não são os
exames que vieram contribuir... Não! O que contribui para isso foi a evolução!
(doutor Antônio)
Esta nova organização produz a diversidade de formas institucionais
da produção dos serviços, no que diz respeito tanto à qualidade técnica dos
padrões de serviços produzidos, quanto à inserção dos médicos no merca-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 106 -
do de trabalho e de organização formal da clientela. A diversidade significará uma
necessária mudança nas regras das relações entre o médico e seu paciente e também
entre os serviços, pois a produção destes agora se dá organizada sobre bases mais
formais e menos pessoais:
(...) eu atendi um camarada, mas eu mano chamar o pronto-socorro pra
remover lá pro hospital. Então não indicando ninguém, vai pro hospital que eles
escolhem. Mas eu dizia: “Vai pro Hospital Samaritano, vai pro Hospital Sírio-
Libanês, vai...” “Esse é caro!” “Vai pro Albert Einstein´”. “Também é caro!” “Mas
lá tem gente boa.” “O senhor indica alguém lá?” “Não! Não precisa indicar. Lá tem
gente muito boa. Tanto clínico, como pediatra, tanto como otorrino... Tudo
direitinho!” Quer dizer, eu não... eu não sei direitinho quem são os especialistas
desses hospitais, mas eu não vou ter tempo de ligar pro “Albert Einstein” e perguntar:
“Faz favor! Quem é o otorrino que vocês chamam no caso de otite pergurada?”. (...)
No começo da minha clínica era mais fácil pedir exames. Muito mais fácil!
Porque os colegas... eles eram... eles se abriam com a gente. “Não! Se o sujeito não
puder pagar o exame de fezes que eu cobro, eu faço o preço que você mandar fazer.
Eu faço! Se você pedir pra eu fazer por 59, eu faço!” Quer dizer , havia esta
facilidade! Hoje já não tem isso aí! Hoje já... Eu já paguei médico pra minha senhora,
já paguei ecocardiografia e eletrocardiograma. Paguei! E é um dinheirão. E sem
abatimento nenhum! Quer dizer, antes tinha mais assim relacionamento com os
colegas, antigamente tinha muito. Mais camaradagem! Agora, eu, por exemplo,
telefonava pr’um colega e dizia: “Olha, eu vou te mandar um caso cirúrgico, um
apêndice, mas você, faz favor, é gente de família pobre. Vê se você interna num
hospital mais ou menos de preço acessível e, faz obséquio, não sei quanto você cobra,
mas faz um preço bom na sua cirurgia. E fala pro anestesista também.” Quer dizer,
essa coisa havia muito mais... entrelaçamento! Hoje é difícil encontrar um
“gentleman”, verdadeiros “gentlemen”. Era gente que te tratava com... uma gentileza
fantástica! A gente ficava até encabulado com tanta delicadeza.
(doutor Nelson)
Tem uma série de coisas que hoje a gente não faz mais, né? Não
faz mais uma versão, não faz... Essas coisas não faz mais, né? De maneira
que o desenvolvimento que deu a segurança no nosso trabalho, foi
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 107 -
dando uma... uma ligeireza do doutor nas coisas, mas não no seu doente, né? Não sei
se eu me expresso bem. Quer dizer, assim: ao mesmo tempo contribui, mas, ao mesmo
tempo, tem uma série de outras desvantagens. Desvantagens pequenas que o médico
quase não se apercebe. Mas, sem querer, ele vai ficando mecanizado no seu trabalho
porque tem quem está trabalhando no outro pedaço. Então ele está fazendo o seu. De
maneira que dá uma segurança pra ele e ele trabalha mais tecnicamente mesmo, né?
Pro paciente isso representou a perda do contato médico e doente, que é tão
contagiosa! E a gente vê, às vezes, dizer isso, que os médicos confundem os pacientes,
não prestam atenção direito ao caso e até trocam o tratamento. Às vezes, pode-se
fazer o exagero de umas... chacotas nessas coisas... que, às vezes, acontecem mesmo e,
infelizmente, a gente tem tido essas coisas aí nos jornais, né? Porque já não tem... o
médico já não tem aquele aprimoramento de crer no pessoal. “Eu sou eu, eu vou fazer
eu, e vou ver eu, eu vejo o sangue, eu ponho a chapa lá, eu estou vendo ela, vou ver o
que faço...” Não! “Qual é? É esta aqui, sim senhor! É isso, né? Pronto! Então está
bom!” Então é mais... ficou um pouco mais prático, um pouco mais mecanizado, um
pouco mais habilidoso na sua técnica, mas deixou um pouco do médico, né?
(doutora Emília)
A própria doutora Emília, por exemplo, aponta o mesmo aspecto no
aparecimento progressivo do pronto-socorro como forma alternativa ao chamado
médico, até mais adequada aos tempos modernos e mais confortável mesmo para o
médico, porém mais despersonificador da prática profissional:
Então essas coisas foram mudando também. O médico já não foi atendendo
os chamados longe, né? Fica mesmo pras ambulâncias e os prontos-socorros e – que
são múltiplos e que não justificam mais o médico sair de noite. A gente chama o
pronto-socorro e o pronto-socorro vai... levando o paciente. E, depois, o médico vai
onde o paciente foi, né? Já não existe aquele... Isso despersonificou o médico! Ele vai
no hospital e aceita o médico que está de plantão! O que ele não aceitava no meu
tempo! No meu tempo, se a gente perdesse o parto - a gente ficava escravo, mesmo! –
porque se a gente perdesse a hora do parto, a paciente que não fosse atendida... Ah!
Aquilo era uma coisa séria! O paciente fazia a sua propaganda!
(doutora Emília)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 108 -
Entendendo esse processo de reestruturação global da organização da
assistência médica como derivado sobretudo da forma pela qual o Estado resolveu o
problema do custo relativo ao consumo dos serviços na medicina tecnológica, esses
médicos viram na participação do Estado, por via da Previdência Social, o fator
“externo” interferente nas regras que definem o acesso da clientela aos diversos
serviços e mesmo ao consultório privado, ou nas regras da articulação entre os vários
serviços médicos.10
A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (1966), simboliza o
auge de uma reorientação, desvirtuando o processo “natural e correto” dos jovens
recém-formados de participação na vida profissional, qual seja, o de se estabelecer no
mercado por via do esforço e desempenho pessoais do médico na “prática liberal” do
consultório privado. Ao oferecer a facilidade de remuneração fixa e garantida, mesmo
que menor do que a obtida na situação de trabalho no consultório particular, a condição
de emprego aparece como alternativa complementar à difícil situação de clínica
privada, para depois assumir proporções e aceitações muito maiores:
Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante, particularizada;
quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico mão tem chefe, não tem patrão,
ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos! Os empregos
surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! Fantástica! E, depois, a
formação da medicina de grupo.
(doutor Antônio)
Quando eu me formei não tinha muito... muito emprego médico, não. Mas
havia já uma certa... uma certa inclinação pro cidadão arranjar emprego. Pelo menos
um emprego para garantir o... o mínimo indispensável pra ele viver. Então ele já
procurava um encosto. É muito razoável isso. Não tem problema! Então você sai da
escola agora, por exemplo, e aparece uma oportunidade de ser assistente do professor
lá, tal. Então, você... “É agora!” Você ganha lá um ordenado que dá pra você se
defender, solteiro... Você pega o emprego! Mas não fica... fica só pensando naquilo! É
assim o médico! Eu aceitava aquilo, aquelas duas, três horas, ver aquela meia dúzia
de sujeitos que você lá... outra coisa qualquer. E depois o sujeito ia pro consultório
dele receber os seus clientes. Agora, ser franco-atirador é o que seria o ideal pro
médico! Mas era difícil! Agora, piorou, né? Naquele tempo já era difícil!
(doutor Nélson)
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 109 -
De outro lado, a criação do INPS teria desvirtuado as regras do exercício
autônomo-independente e, portanto, também sua qualidade, ao abir formas alternativas
de acesso a serviços médicos de baixo custo para a clientela, com as quais o trabalho
do consultório privado é obrigado a compor:
Eu peguei, talvez, o finzinho da clínica particular... em que você ainda
conseguia formar uma clínica particular. Eu não cheguei a... vamos dizer, a minha
clínica aumentou durante um certo período e, agora, ela tem diminuído. Tem
diminuído pra todo mundo. A clínica privada pura, né?, que a gente vai lá, paga a
consulta, e se precisar uma cirurgia, vai, paga a cirurgia, paga o hospital. Ou seja...
um ou outro de clínica particular. Em geral, os serviços mais caros a pessoa não tem
condição de fazer. Então acaba indo pro INPS, e acaba voltando. Então o que você
faz é diagnóstico, indicação terapêutica, ele vai fazer a terapêutica- se é cirúrgica –
fora, e depois volta pra você fazer, vamos dizer, pós-operatório e continuar
orientando. Isso é relativamente comum hoje, pelo menos comigo. Então, alguém que
chega... vamos dizer, com uma úlcera de estômago, você trata, não melhora, precisa
operar. “Tudo bem! Quanto vai ficar?” “É tanto. Vai gastar mais ou menos isso.” “É
muito. O que eu faço?” “Procura um... o INPS.” Leva... faz uma cartinha qualquer
encaminhando, leva os exames, ele vai, opera, depois volta, e você acaba controlando
depois, dieta... É alguma coisa que está acontecendo com bastante freqüência agora.
Tenho impressão que no nosso esquema a clínica privada praticamente vai
desaparecer porque a medicina está ficando um pouco cara. Então o cliente vai ter
condições de pagar a consulta, vai ter muito pouco condições de pagar exames mais
sofisticados e condições nenhuma de enfrentar cirurgia, ou UTIs, ou coisa desse tipo.
Antigamente não, o cliente fazia tudo com a gente... mas a gente também fazia mais...
(doutor Luís)
Além disso, sendo também por meio da Previdência Social que inicialmente
passam a se estabelecer as medicinas de grupo e as empresas médicas, as
transformações na organização social da produção de serviços significaram uma perda
efetiva da clientela tradicional, isto é, captada pelos antigos mecanismos difusos, o que
obrigou esses médicos à adoção de medidas que romperam com seus isolamentos:
alguns, como já vimos, inseriram ou consolidaram o consultório dentro do hospital,
onde a captação da clientela garante-se pelos mecanismos e atrativos do próprio hos-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 110 -
pital, e outros vincularam-se aos mecanismos formais dos convênios e
credenciamentos. Mas para todos a nova forma de organização social da produção dos
serviços significou a perda da clientela própria e exclusiva:
No meu tempo era mais fácil ser médico de consultório. Eu comecei a
trabalhar numa época em que começou a socialização da medicina. Então começou a
aparecer esses negócios que o Getúlio Vargas inventou. Quer dizer, socializar às
custas do médico. Ele começou a fazer todo o benefício pro povo, mas às custas do
médico. Antigamente o médico atendia de graça na Santa Casa, mas depois tinha o
consultório dele que contava como renda, né? Depois quando chegou o INPS, então
aí é de graça quase o dia inteiro. Porque, daí, as pessoas já pagavam o INPS e não
pagavam nenhumm outro médico. Então começou a degringolar tudo. Foi a
socialização da medicina às custas do médico! E no meu consultório isso deu um
impacto forte, também. Diminuiu bem o número de clientes. Quando eu fechei o
consultório em 65 já estava com uma clientela diminuída. Porque aí só que pode, né?
Ou então, quem queria saber o diagnóstico mais certo. Porque tem isso: esse negócio
do doente chagar lá no INAMPS, o médico só olha e, às vezes, faz o diagnóstico de
olhar. Não dá, né? Então, às vezes, o doente quer saber um diagnóstico melhor, quer
saber mais um pouco, ser bem atendido, então ele vai no consultório particular, vai
pagar, né? Muitos colegas fizeram convênio no próprio consultório. Eu nunca tive! Aí
precisava ter mais um ou dois colegas junto, né? Nesse caso é mais difícil trabalhar
sozinho. Então, dois ou três, faz o convênio, abre uma empresa... Aí precisa atender o
dia inteiro. É difícil sozinho.
(doutor Silvio)
Então, o INPS tinha um determinado número de hospitais que não dava pra
atender todo o pessoal. Então, o pessoal de medicina de grupo começou a montar
hospitais nos bairros e fazer convênio com o INPS, vivendo à custa do INPS. E hoje
todos os hospitais de São Paulo, com duas ou três exceções, vivem à custa do INPS.
Bom, então o que acontece é o seguinte: que em função do crescimento do INPS e do
crescimento das empresas de medicina de grupo, das sociedades de pré-pagamento,
como é o caso do Hospital São Luís, não sei o quê, que o indivíduo compra o título e
ele... então recebe assistência grátis, tudo isso, é claro que a clínica privada começou
a sofrer, começou a diminuir. E vem diminuindo gradativamente até hoje, em que a
clínica privada hoje está praticamente abandonada. É essa a situação que nós
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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vivemos hoje! Em termos de medicina capitalista ou de medicinal... vamos dizer, de
autônomo, é isto! Quer dizer, os médicos de mais idade já, aposentados, etc., não têm
mais clínica suficiente para mantê-lo. Absolutamente não! E os novos, também não
têm! Porque não sobra cliente do INPS, das sociedades de grupo; não sobra clientes
para manter o... o consultório de um indivíduo... de um indivíduo autônomo. E isto
está acontecendo com outras áreas paramédicas: isto vai acontecer com os dentistas,
com... com todos... todos eles, né?
(doutor Antônio)
Uma outra repercussão das alterações efetuadas significou discriminar
dimensões “exteriores” ao exercício profissional também por referência a aspectos
ligados à pessoa do paciente. Portanto, igualmente aparece como efeito desse processo
de atualização da prática profissional a retirada para o exterior do ato técnico dos
aspectos sociais da vida pessoal do doente, mesmo os que se relacionam mais
diretamente ao cuidado médico. Estes eram anteriormente objeto do controle técnico
do médico, uma vez que ele tomava a si a responsabilidade sobre todos os aspectos da
assistência. Essa total responsabilidade significava assumir o controle das formas
concretas de viabilizar a conduta técnica, ou seja, o médico tomava a si, sob seu
cuidado pessoal, também a resolução das dificuldades sociais na consecução das
medidas terapêuticas preconizadas. A perda do controle pessoal sobre essa dimensão
do paciente virá se agregar aos demais fatores de transformação já referidos da relação
médico-paciente.
Como você não tinha muita previdência funcionando, no fim todo mundo
fazia previdência. Então se... vamos ver: chegava lá, chegava lá, sábado à tarde, uma
apendicite aguda, tem que operar. Você faz o quê? “Ah! Não tenho! Porque eu faço...
eu trabalho na feira, mas não sou o dono da barraca, sou empregado. “O dono foi
que... que levou junto... Então você fazia aquela história: o hospital fazia um desconto,
a gente cobrava pouco... Você chegava a meio termo razoável. A gente vamos dizer, a
própria estrutura de atendimento da medicina privada dava uma cobertura. Às vezes
chegava alguém... entrava um pobre qualquer com criança com dor de barriga, você
acabava dando o remédio mesmo. Ia lá pra ver e... ia buscar a irmã da farmácia,
abria a farmácia, vê se lá tinha amostra, pegava um remédio e dava. Então você fazia
desde a assistência gratuita até a assistência bem remunerada, dependendo da pessoa
que você atendesse. Era o que você tinha que fazer! Não tinha outro esquema, né? Se
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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você não atendesse, não tinha ninguém mais pra atender! Se o hospital não facilitasse
um remédio qualquer pra você dar, a pessoa não ia ter o remédio e não ia ter o
dinheiro pra comprar, também. Então você fazia uma assistência que, hoje, o Estado
teoricamente faz, né? Com isso também você tinha uma clientela diversificada...
(doutor Luís)
Então, naquela época, o médico não tinha emprego. Então, ele trabalhava
durante... a manhã nos serviços universitários para manter o seu aperfeiçoamento. E
à tarde, depois do almoço, no seu consultório, das duas ou da uma até às oito, nove ou
dez horas da noite, atendendo os seus pacientes e, depois, ainda visitava os pacientes
em casa, tudo isso. Então, era uma aproximação muito unida. Um paciente não tinha
– como hoje – o convênio donde ele trabalha, a sociedade de medicina da qual ele
comprou o título de pré-pagamento... Não havia nada disso! Então, ele tinha que se
servir do médico particular. E o médico particular era um indivíduo liberalíssimo!
Quantos médicos atendiam os seus pacientes de graça no consultório! Iam até visitá-
los em casa, de graça, e não cobravam um vintém do indivíduo. Ih! Era um número
muito grande! Porque o médico, vivendo esse relacionamento razoavelmente estreito
com o paciente, ele podia se dar a esta característica de favorecer o paciente... Então,
quantos pacientes eram atendidos graciosamente? Muitos! E esta forma de relacionar
era importante!
(doutor Antônio)
Até onde e como o serviço centrado no consultório seria capaz de cobrir
satisfatoriamente a demanda do paciente eram atribuições pessoais do médico e que
passam agora a se definir pela tecnologia e pelas formas de acesso do doente aos vários
serviços. Assim sendo, muda o caráter da dependência do paciente relativamente ao
médico, pois o paciente agora pode, por si só, sugerir ou encontrar as soluções
concretas do encaminhamento da conduta formulada pelo médico. A forma de
utilização dos serviços de pronto-socorro, por exemplo, quando contrastada à medicina
“dos chamados” mostra bem a autonomia que o paciente adquire, de um lado, e, de
outro, a necessária adaptação do médico a essa interrupção de seu controle.
Ou então, como relata doutor Luís, sobre o consumo de medicamentos:
Agora, alguns remédios... foram ótimos, importantes. Chegavam
a mudar completamente a terapêutica, né? Algumas doenças deixaram de
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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ser problema sério. Igual a gonorréia, né? Acabou... praticamente acabou a Urologia
até começar aqueles doentes de cirurgia de rim de novo, né?, porque... noventa por
cento das uretites gonocócicas iam pra estenose e, então o sujeito ficava tratando
daquela uretite o resto da vida com dilatação de uretra, com não sei o quê, lavagem...
Apareceu a penicilina, acabou, né? Ou seja, nem vai no médico. Ele já vai direto na
farmácia e compra... nem pergunta pro farmacêutico!
A medicina do servir, do assistir, do aconselhar ou orientar o paciente parece,
pois, ter cedido definitivamente seu lugar a uma medicina em que tratar, medicar, curar
ou recuperar, sob qualquer base de intervenção, isto é, seja ela associada ou não a uma
assistência “global” destinada ao doente, são os novos referenciais de valor. E com tais
paradigmas parece não haver mais espaço na prática para que o cuidado relativo aos
sentimentos pessoais – da alegria ao sofrimento – siga pertencendo à totalidade do
assistir.
A prática que se está construindo parece implicar a presença de outro tipo de
interesses e envolvimentos pessoais, de ambos os lados.
b) conservando o essencial
A maior utilização dos recursos diagnósticos, a utilização dos medicamentos
industrializados, a hospitalização, a utilização dos especialistas ou outros serviços
médicos e os demais procedimentos adotados para atualização da prática profissional
relativamente à medicina tecnológica, são todos eles, então, uma readaptação do ato
técnico, obrigando a uma redefinição dos referenciais do plano mais pessoal. Mas uma
redefinição que a incorporação de tecnologia será sempre perpassada pelas decisões e
procedimentos que buscam preservar aqueles espaços nos quais a base mais pessoal
pode ser ainda mantida.
Se, por exemplo, a presença de novos equipamentos diagnósticos é ampliada
por referência à prática anterior, tanto essa presença deve manter-se dentro dos limites,
evitando os “exageros”, quando deve manter a característica de apresentar-se como
sento ainda disciplinada pela anamnese e pelo exame físico. Importará, por
conseqüência, a preservação do espaço da anamneses, pois esta aparece como o
símbolo da personalização da prática. O sinal que basicamente a identifica – o tempo
de conversa na consulta ou o próprio tempo de consulta – logo aparece, portanto,
como o “ponto de honra” da busca em se preservar uma autonomia de prática no
exercício profissional.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 114 -
E tem outra, hoje ninguém mais tem tempo. Por exemplo, a consulta desde o
meu início de prática, sempre foi uma consulta, assim, muito demorada. No doente
novo, nunca menos de uma hora. A primeira vez que... que eu entro em contato com
ele, nunca menos de uma hora. O paciente que eu já... mais antigo, aí a coisa é mais
simples porque eu já tenho uma visão boa do indivíduo e, além disso, eu me considero
privilegiado porque eu tenho uma memória muito boa – ainda tenho! – então eu
conheço todos os doentes.
(doutor Carlos)
A duração da consulta é muito importante. É muito importante porque,
desde o início, eu nunca fiz questão de tempo. Como eu já disse, eu fui sempre muito
afetivo, muito... Eu nunca me preocupei com o tempo. E minhas consultas, desde as
primeiras, sempre foram consultas completas. Se um cliente queixava da parte
ginecológica, eu fazia em “check-up” geral. Não uma coisa profunda, mais fazia um
“check-up” geral, me aprofundando mais na queixa. Eu tenho notícias de que o
doente se queixa, hoje em dia, de um sintoma e o colega só verifica essa parte, pronto,
vai embora. Eu não! Eu fazia “check-up”: tirava a pressão, olhava a garganta,
ouvido, tudo! Eu fazia um “check-up” geral, me aprofundando mais na queixa do
doente. E não tinha isto do tempo” Isto era dez, quinze, meia hora, quarenta minutos.
O tempo, pra mim, não era importante. Eu tenho a impressão que com isso eu mesmo
criava mais, ficava mais a par da queixa do doente, do passado, me orientava melhor.
Mantendo essa estrutura até hoje!
(doutor Fábio)
Eu ainda acho que, se examinar com calma, se tirar uma história um pouco
sossegado... Não precisa ser consulta de uma hora! Você dirigindo bem dez, quinze
minutos, depois que dá pra fazer bem o exame e tendo certeza que o cliente volta...
(doutor Luís)
É importante observar que o tempo de consulta é mais do que mero aspecto
da consulta, pois ele e a conversa simbolizam não apenas a essência de uma liberdade
de ação da prática liberal, mas a própria essência de sua possibilidade técnica, em que
se articulam a atenção, a observação paciente do caso e o instrumento maior que é a
anamnese, no período em que o saber foi o principal meio de trabalho. A ausência de
recursos materiais que prolongassem os sentidos humanos e pudessem poupar a
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 115 -
história e o exame clínico, diminuindo a conversa e o tempo de consulta, obrigou a
uma ampliada anamnese. Na ausência do raio X, uma pneumonia é a tosse com o
catarro cor de ferrugem quando se tem febre, e que dói a dor que “tem” posição, o que
pode diferenciar da dor enjoada e “sem” posição da cólica renal. Por isso cada sintoma
relatado ou sinal observado é preciso circunstanciar, qualificar e explorar. A medicina
tecnológica ao mesmo tempo que prolonga o “tempo tecnológico”, como por exemplo
o do ato cirúrgico, encurta o tempo desarmado: tempo mais simples tecnologicamente,
mais barato e mais pessoal; tempo da conversa e da consulta, que restrito, permite
maior produtividade do médico.
Por outro lado, para o paciente a conversa simboliza a possibilidade de uma
participação que, se na prática liberal restringe-se ao relato, na medicina tecnológica
poderá abranger um envolvimento com a própria formulação da conduta, já que o
doente por meio da tecnologia também pode objetivamente ter acesso aos dados dos
exames. Esse envolvimento seria agora possível, não fosse o fato de que exatamente
pela presença da tecnologia material objetivadora, a conversa termina por se encurtar.
O tempo dedicado ao doente na consulta e sobretudo o tempo da conversa são,
portanto, as características que esses médicos buscam preservar, representando, por seu
intermédio, a permanência da “essência” do caráter liberal de suas práticas.
De mesma forma salientam os médicos o fato de que a tecnologia deve,
mesmo que presente rotineiramente, encontrar no raciocínio proveniente da anamnese
e do exame físico, bem como encontrar no saber clínico operante que pessoalmente
desenvolve o médico, suas justificativas. Assim, o limite ao “exagero”, ao possível
abuso que vêem na medicina tecnológica, parece reger-se pelos mesmos princípios
que marcaram suas atuações iniciais: o mesmo raciocínio e ainda, até certo ponto, a
mesma experiência clínica pessoal, é o que deve nortear o momento, a forma e a
intensidade do uso da tecnologia:
É verdade que a medicina hoje é sofisticada! As ultra-sonografias, as
tomografias, as ressonâncias magnéticas, a ecografia... Mas tudo isso tem que ser
complemento, não primeiro passo. Eu mantendo a minha forma de clínica
como sempre fiz. Quando eu vejo um paciente, faço acompanhamento pré-natal,
muitas vezes ela diz: “Como é? O senhor não vai fazer ultra-sonografia?” Eu digo:
“Não. No momento, não. Só vou fazer quando o caso é necessário.” E tem
muitos colegas que pedem cinco ou dez ultra-sonografias durante a gestação.
Eu acho importante quando você, clinicamente, sente que a gravidez não está
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1993. 229 páginas.
O cotidiano profissional - 116 -
evoluindo normalmente, que o útero não está crescendo de acordo com a evolução
normal, ou está havendo algum outro problema. Os exames que eu mais peço são os
pré-operatórios: hemograma, coagulograma, urina, fezes... Quando é o caso, peço
também dosagens hormonais. Mas não sou de pedir muito exame, não. É verdade que
exame de laboratório, pedindo amplamente, impressiona bem o paciente. Mas às
vezes se gasta mais dinheiro com exames do que seria necessário. Ainda me preocupo
com a parte econômica do paciente... Com a evolução da medicina, nós usamos
alguns recursos sofisticados. Temos a ultra-sonografia, por exemplo. Quando é
necessário não há dúvidas que pedimos, mas procuramos evitar o excesso, e também
encaminhar para serviços que não onerem muito o paciente. Na Previdência, às
vezes, recebe pacientes encaminhadas de colegas da especialidade, jovens
naturalmente, com pedidos de exames que eu, muitas vezes, só com o exame clínico
resolvo. Muitas vezes eu não peço exames se eles não tem razão de ser, mesmo para a
Previdência, oneram inutilmente a Previdência. Às vezes um fibroma... então pediram
uma tomografia... quer dizer, é tão oneroso que eu acho que não tem razão de ser. Às
vezes dosagens hormonais de alta sofisticação sem maior indicação. Acho que é uma
questão de foro íntimo. O instrumento mais valioso para o diagnóstico é a anamnese,
aquela conversa em que você gasta mais uns dois, três minutos com o paciente, que às
vezes penetra um pouquinho mais na intimidade... e, naturalmente, certos exames
complementares, quando bem indicados, um exame mais aprofundado.
(doutor Maurício)
Nessa mesma direção, como aponta doutor Maurício, o tecnológico de sua
prática não substitui a característica permanente do aconselhamento:
Uma marca da minha clínica de consultório, ao longo desses anos é o
aconselhamento, três, cinco minutos de conversa já são muito importantes. Eu tenho
tido diversos casos que mostram isso. A paciente diz: “Olha, doutor, eu já fiz vários
exames, mas às vezes nem me examinavam e já me davam a receita. O senhor foi o
único que conversou comigo e me ensinou uma porção de coisas”.
Da mesma forma com o que ocorre na incorporação dos recursos
diagnósticos, o uso de instrumentos terapêuticos mais atualizados também
deve reger-se pela cautela e pela parcimônia. Deve-se considerar, dentro
de novos limites, as possibilidades efetivas da realização pelo paciente da
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O cotidiano profissional - 117 -
terapêutica proposta, por referência aos custos envolvidos ou a dificuldades de outras
ordens. Manter-se dentro desses princípios de uso do instrumento terapêutico aparece
também como procedimento da preservação das dimensões mais pessoais de atuação
da prática profissional.
Eu costumo dizer pro cliente que não se afobe com remédio porque remédio
só fez bem pro dono do laboratório. Pra eles sempre fez bem! Pro paciente, às vezes
ajuda. Por isso é importante sentir o paciente. Isto sempre foi feito!
(doutor Carlos)
Eu procurava não fazer uma farmácia, dar uma receita muito grande, não
é? Ficava mais ligado ao exame com o doente para ver se conseguia dar menos
remédio possível, menos produtos possível. Eu não gostava de dar muito, quatro,
cinco, seis produtos numa receita só. Quer dizer, fazer um cerco, vamos dizer assim,
como existe e acontece, né?
(doutor Fábio)
A formulação de uma terapêutica ainda, em parte, personaliza, aparece
também como a mesma tentativa de preservar as bases mais pessoais da ação. Assim,
doutor Carlos, por exemplo, faz questão de frisar seu uso de fórmulas sempre
individualizadas de certas medidas terapêuticas como as de dietética, em combinação
com os fármacos industrializados.
O doutor Nélson, por sua vez, ainda guarda consigo as orientações do
formulário clínico e quando julga necessário não hesita em fazer uso prioritário desse
procedimento:
Eu, frequentemente, eu reviso. Então, um hiperglicêmico, um diabético e, às
vezes, um obeso – que é muito freqüente também eu atender – e que está
correlacionado com algum fator cardiovascular, eu... insisto pra que ele... que ele
faça... um determinado regime. E eu vou... vou fazer o regime personificado pra ele.
Eu digo: “Olha, não é um... um impresso simplesmente, não; que a gente podia tirar
um xerox e te entregar. Eu estou montando um regime de acordo com as
suas características. O senhor vai perder peso... vai voltar aqui daqui quinze
dias pra pesar. Isso aí não é consulta nova. O senhor vem aqui simplesmente,
entra num determinado horário, pesa, a gente verifica, conversa...” E
assim por diante. Eu sempre gostei muito de nutrição. E... e tenho... tudo o
que sai publicado, tudo o que eu encontro, eu guardo. E teve...
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 118 -
até em... em revista feminina. Tudo isso eu anoto, vejo, curiosidades... Tenho vários
tratados, alguns já não tão recentes, mas coisas muito interessantes. Então eu monto o
esquema pra pessoa.
(doutor Carlos)
Mas eu estava falando que gostava mais de formular, que era mais
interessante. Era mais interessante porque formulando – quando a farmácia era
direita – eu tinha certeza que aquela dose.... o sujeito ia tomar aquela dose. Ao passo
que o remédio pronto, às vezes o laboratório não... não coloca a quantia certa. A não
ser grandes laboratórios honestos, certo? Mas também existe m.. Eu vou contar outra
história. Eu recitava muito produto de um laboratório suíço. Era umas gotinhas pra...
Codeínado, pra tosse, tudo. Numa ocasião fui ver um velhinho, e vi tudo aquilo lá, tal,
o velhinho tinha medo de injeção, eu receitei tudo por boca, inclusive este produto
deste laboratório suíço. E o velhinho... foi embora. Eu recebi e ele foi embora.
Passaram uns três dias e o filho dele me chamou outra vez. “A tosse de papai não
passa, uns acessos muito fortes”. Bom, voltei lá, olhei outra vez, percuti, auscultei.
“Tem que continuar isso aqui. Não posso modificar esse remédio codeinado.
Continua dando isso e mais aqueles outros que estão lá.” Mas continuava se
queixando de acessos fortes. Então precisava dar um negócio pro acesso. Foi embora
outra vez. Me chamou, depois, a terceira vez. Ah!, então eu perdi a paciência!
Formulei! Diolina – lembro como se fosse hoje – água de louro – cereja. “Manda
fazer no Veado d´Ouro, na cidade, lá na São Bento.” Foi fazer essa poção, esse
remedinho, gotinha, começou a tomar diolina, passou os acessos.
(doutor Nélson)
A preservação do interesse e da dedicação por referência ao passado, ou a
extensão de um mesmo comportamento pessoal a quaisquer tipos de clientela são
alternativas também apontadas em direção da manutenção dos procedimentos
“nobres” da profissão:
Quer dizer, lá no meu consultório, eu trabalho com os clientes com o mesmo
interesse, a mesma dedicação. Seja ele um modesto funcionário do Banco do Brasil
ou da Sul da América – que de vez em quando me aparece um ali – ou um ... da
CETESB, por exemplo, que... que de vez... ou da COMGÁS, por exemplo, o chefe
médico era o meu companheiro, me inscreveu lá. Então, de vez em quando, vem assim
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 119 -
uma meia dúzia de casos por ano. A mesma coisa, o mesmo interesse que eu tenho
por eles, o mesmo horário... Não tem discriminação nenhuma. Ele é atendido, eu
marco horário, ele é atendido no mesmo horário, se tiver uma consulta particular vai
ser atendido no horário seguinte... Não tem problema nenhum! Ele não é abandonado
simplesmente porque passou uma particular e... então ele é substituído pelo... Não! De
jeito nenhum! Ele é atendido dentro da cronologia das possibilidades. Se tiver que
ficar duas horas com ele, fico duas horas.
(doutor Carlos)
Quando a perda da forma tradicional de captar a clientela é inevitável,
também na opção pelo credenciamento ou convênios adotados para o consultório
busca-se privilegiar mecanismos mais próximos ao tradicional para a vinculação da
clientela. Como diz doutor Carlos, mesmo que o contrato entre o médico e o paciente
não se paute mais pela relação interpessoal por referência à remuneração do médico ou
ao conjunto de procedimentos possíveis, os convênios que permitem a “livre-escolha”
são os únicos que podem interessá-lo:
Alguns pacientes meus são de credenciamento. Hoje ninguém pode
sobreviver se não tiver. A não ser raros indivíduos na clínica particular. Eu tinha uns
clientes, que moravam perto da minha casa, e que eram funcionários do Banco do
Brasil, que eu os atendia. Então, um dia, um deles chegou pra mim e me disse: “Olha,
o Banco do Brasil vai abrir o credenciamento e se não houver nenhum... nenhuma
contra-indicação eu vou colocar o seu nome lá como credenciamento.” Falei: “Ah,
pra mim, tanto faz!” Então ele me colocou. E eles mesmos começaram a divulgar o
meu nome lá dentro: “Vai, tal, é um clínico, tal... E eu comecei a formar uma clínica.
Então, isto começou em 1970 ou 71. Foi o primeiro credenciamento. Depois, um ou
outro, e tal... E o da Sul América, que eu me... que não era Sul América na época, era
uma... uma outra entidade, não me recordo exatamente o nome. Eu entrei porque eu
queria ver como é que funcionava um serviço de livre escolha, assim de caráter... de
caráter... de credenciamento, né? mas com livre escolha.
A incorporação da tecnologia, portanto, residiu em um comportamento
no qual se combinaram a ousadia e a cautela. De um lado, a cautela diante
do novo, mostrando a decisão de se tentar manter a prática profissional
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 120 -
dentro de parâmetros de ação e de efeitos já conhecidos, além do quê, sob controle do
médico. De outro lado, a ousadia do desconhecido e o entusiasmo pelo novo
mostrando a decisão de se buscar inovar a prática profissional, colocando-a nos marcos
da atualização diagnóstica e terapêutica. Alguns depoimentos mostram o duplo
referencial na incorporação tecnológica com muita clareza:
Agora, eu devo confessar que.. que sou... muito tradicionalista em termos de
medicação. Por exemplo, eu nunca uso o último antibiótico que entra no mercado.
Nunca! Só depois de algum tempo da existência dele ou, então, quando há uma
indicação precisa, muito específica... Mas, de maneira geral, eu, por exemplo, sou, até
certo ponto, um tradicionalista, um indivíduo cauteloso. O meu comportamento
terapêutico é muito limitado. Eu não uso muito medicamento assim livremente.
(doutor Antônio)
Quando aparecia assim uma novidade, sempre não fosse raio X, eu não me
incomodava de ver. Uma vez que o custo, também, para o doente não
sobrecarregasse. Naturalmente ela ia ter restrições de uma medicação porque tem
que fazer um exame que podia ser dispensado. Fazer os exames sempre que
necessário, né? E, sem dúvida nenhuma esses exames são progresso e tiram muita
morbidade e mortalidade do feto e materno mesmo. Porque não tem mais... tem umas
deformações, essas coisas, que são previstas, vistas com antecedência, não? A
penicilina é um antibiótico que sempre se usou sem medo. E a restrição dele foi em
virtude dos choques. Porque a penicilina foi a grande medicação, né?, que não tinha
conseqüências para o feto, e tal. Mas, depois, os outros antibióticos são.. dão
coloração nos dentes, dão depósito de cálcio nos ossos, essas coisas. De maneira que
a gente era parcimonioso. E ainda a hidroestreptomicina que se usou no início,
quando entrou esse antibiótico, que também foi deixada de lado porque era mais
alergizante do que a própria penicilina. Quer dizer, eu também tive muito cuidado no
uso desses outros antibióticos. Porque quando entraram os antibióticos,
sistematicamente – por assim dizer – dá à luz, toma antibiótico! Era a garantia! Era o
pavor! Porque só quem viu, como nós vimos mulheres jovens no primeiro filho
morrerem de infecção puerperal, é que ficava apavorado num negócio desse. E a
gente sabia das novidades, das mudanças, porque a gente vai em
congressos está sempre atualizado, vai sempre em congresso lá no estran-
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geiro ou aqui mesmo, pela leitura... De maneira que a gente está sempre na ordem do
ia, né?
(doutora Emília)
Permeadas pela simultaneidade desses procedimentos polares na atualização
do exercício profissional, as práticas são reconstruídas. Assim, a conversa, a dedicação,
a disponibilidade, a anamnese ou o exame clínico, articulados agora com novos
elementos de consulta, e fora dela, já não se podem dispor do mesmo modo que se
colocavam na ausência relativa da tecnologia material: a atenção, a conversa, ou
qualquer outro elemento de caráter mais pessoal e subjetivo, refazem seu espaço e seu
momento e consideram outras formas de obter dados ou informações dos quais não se
podem abstrair enquanto constituintes de sua própria dimensão particular. Além disso,
a prática profissional trata agora de novas realidades clínicas, realidades que a própria
tecnologia material faz aparecer, alterando radicalmente o tempo, a forma e o espaço
das manifestações do sofrimento do doente.
Contudo, essa prática profissional reconstruída, ao mesmo tempo em que se
insere na medicina tecnológica, permite a seu agente, exatamente pela coexistência dos
procedimentos polares relativamente à incorporação do novo, concebê-la como tendo
preservado “em essência” a mesma qualidade do exercício autônomo anterior. A
prática médica muda, mas a clínica e o seu objeto de prática parecem permanecer:
Algumas coisas ficaram muito mais fáceis de fazer diagnóstico, né? Tipo
prenhez ectópica, por exemplo, diagnóstico ginecológico perdeu a graça hoje... Você
tinha que usar mão e cabeça. Hoje se usa uma maquininha que você passa na barriga
do doente pra gente fazer o diagnóstico, né? Algumas coisas mudaram muito!
Esse é um exemplo dentro da minha área. Recursos terapêuticos, tenho a impressão
que na área que eu estou o que mudou muito foi a anestesia. Você passa a ter
uma anestesia... você faz uma cirurgia mais sossegado! Eu cheguei a pegar um
pouco de cirurgia ainda feita ou com anestesia local – que você não tinha
confiança nas outras anestesias – ou com máscara aberta, né? Você nem sabe o que
é, hoje. Você tem uma... ocultando o nariz... é tipo... anestesia de seqüestro, né? um
algodão praticamente no nariz do camarada com... e ficar gotejando éter ou
cloreto de etila ou as misturas dos dois, ou umas misturas já prefabri-
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cadas... Então você sabe como é que era. Anestesia era melhor você fazer com
anestesia local, né? Isso mudou também! Brutalmente! O grande progresso da
cirurgia acho que se deve muito mais à anestesia em si do que à técnica cirúrgica
mesmo. Tirando a cirurgia cardíaca – que também se faz porque você tem recursos
para deixar o sujeito vivo enquanto você corta e costura o coração. O “corta e
costura” não mudou muito. Mudou o resto. Também a patologia, eu acho que não
mudou muito. Tenho a impressão que não. A cirurgia ginecológica, as mesmas coisas
de agora, né? Fibromas, cistos de ovário... Você tem umas coisas que ficam moda e,
depois, saem de moda.
(doutor Luís)
Eu tenho uma rotina que sigo há muitos anos. Por exemplo meus
procedimentos clínicos são os mesmos de há... há... 40 anos atrás. Talvez um ou outro
sinal... Porque não há... não houve mudança nenhuma. Em termos de laboratório,
sim; porque os laboratórios foram criando novas... Por exemplo, até há uns trinta ou
quarenta anos atrás nós não fazíamos determinação de “T-3”, “T-4”, “TSH”, tudo
isso, para insuficiência tiroideana ou de... de pituitária, né? Não fazíamos. Agora a
gente faz quando há suspeita de hipotireoidismo ou hipertireoidismo. Mas, em termos
de laboratório, existem exames... hã... mais modernos que foram sendo introduzidos. É
o caso, por exemplo, da tomografia computadorizada que nós não usávamos antes; é
o caso da ecografia, que também nós antes não usávamos, e assim por diante. Quer
dizer, em termos de laboratório, existem algumas coisas, algumas conquistas que
foram incorporadas, né? Mas em termos clínicos, não! A medicina do consultório é
mais clínica. Depende muito mais do exame e da anamnese. Veja bem, por exemplo, o
exame clínico,em tudo ele é importante, desde a postura do paciente, a medida da
pressão arterial, até o exame do olho, até o exame de tudo. A inspecção do paciente é
importante. Então, o exame todo – todos eles são iguais. Agora, a anamnese está
muito relacionada com uma doença, né? Por exemplo, vamos supor, chega uma
criança aqui com... por exemplo, com um pouquinho de febre, um pouquinho pálida, a
mãe diz que está urinando escuro... Então isso começa a levar a gente para um
caminho de uma possível hepatite. Então aí você vai fazer as perguntas que podem
levar a esse resultado. Perguntar se as fezes delas são coradas, se ela teve contato
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 123 -
com alguma criança com hepatite – isso noventa dias – e assim por diante. Quer
dizer, está muito relacionado ao tipo de patologia, né? Mas também na anamnese não
existem procedimentos especiais! São todos iguais! A anamnese você vai perguntar
para a mãe, você vai fazer todas as perguntas. Então... tudo é importante. Se você não
souber a idade, a procedência, tudo isso é importante, né? E isso é assim há... um
século, não mudou nada.
(doutor Antônio)
Mudar sem mudar essencialmente, constituir um movimento de
transformação mas buscando fixar padrões de atuação e fixar identidades: assim é
pretendida a atualização dessa prática profissional por seus agentes. Seu princípio
transformador parece reger-se pela busca de re-produzir o mais próximo possível a
identidade inicial de suas vidas profissionais. Esses médicos, no entanto, por meio do
conjunto de procedimentos acima examinados de fato refazem suas “liberdades”,
reorientando seu exercício. Todavia, o que percebem da mudança, o que entendem
eles do movimento particular que promovem e da história da medicina que, por meio
desse movimento, são eles também criadores, é a reconstrução de suas “liberdades”
pessoais de atuação como um movimento de continuidade, em razão do caráter
“liberal” de seus trabalhos de consultório privado que segundo suas avaliações teriam
conseguido manter.
Não obstante, seguem também percebendo de modo bastante claro que no
conjunto da prática médica eles constituem apenas um segmento, e de peso muito
relativo. Por isso é que, considerando a própria identidade profissional que buscam
preservar, esta forma de participar do conjunto da prática, e então constituir com todos
os demais a totalidade da medicina, lhes parecerá não uma inserção mas um
deslocamento, uma situação até “estranha” à medicina contemporânea. Será dessa
percepção e deste modo particular com que tomam o histórico que trataremos a seguir.
SINAL DOS TEMPOS
“Curiosa é a expressão meu tempo usada pelos que recordam. Qual é o meu
tempo, se ainda estou vivo e não tomei emprestada minha época a ninguém, pois ela
me pertence tanto quanto a outros meus coetâneos?”11
. De mesmo modo, poderíamos
também em nosso estudo indagar sobre o sentido dessa expressão “meu tempo”,
“minha época” que aparece nas narrativas.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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O cotidiano profissional - 124 -
Aprender o tempo e identificar-se com esse tempo requer, antes de tudo, que
se marque seus limites. Para o doutor Nélson: todo tempo oi um tempo! E para todos
os entrevistados há o “naquele tempo”, em que nada ou quase nada é como hoje, “esse
tempo”. Os limites que circunscrevem cada um dos tempos não são, para cada pessoa,
necessariamente precisos ou exatamente iguais, mas há ao longo de suas experiências
pessoais de vida os marcos que a ordem social, através de seu tempo, articula aos
vividos singulares. Assim, se individualizam certos momentos vividos como um
tempo: o tempo do chapéu ou o tempo do automóvel; o tempo da “medicina do
chamado” e o tempo do pronto-socorro; o tempo antes e depois da penicilina.
No movimento do social, que continuamente fornece e fornecerá o novo,
forma-se, de um lado, a percepção clara de movimento, processo irreversível. Ao
mesmo tempo há, de outro lado, uma percepção que corta e estanca o movimento,
uma percepção estática, da estrutura, que fixa momentos de vida. Trata-se de uma
percepção que identifica determinados conteúdos por meio do repetitivo, do
acontecimento cíclico que reitera a experiência, cristalizando e individualizando
identidades de vividos12
. O tempo é, portanto, algo concreto e social cujo conteúdo se
dá através da vida socialmente experimentada. O que marca o centro desse conteúdo
ou como se dá a percepção das passagens de um a outro conteúdo ao longo do tempo
que flui, ou ainda como se singularizam “tempos” no vivido, são criações sociais
correlatas ao modo de se estruturar a vida em sociedade. Uma estruturação que
permitirá e definirá afinal, uma e não outra concepção do objeto de trabalho e
consequentemente da modalidade de intervenção médica; ou então, uma e não outra
identidade da profissão e do que significa ser médico:
No meu tempo não se tinha essa visão tão material, assim, do corpo, da
intervenção, quer dizer, de abrir, de mexer... Hoje por exemplo, o cidadão abre uma
barriga. Um tumor “tomado”. Eu já vi, né? Abria e, no final, a gente fechava. E
deixava o cidadão viver sem saber. Hoje não! O cidadão vai, tira tudo, leva um tumor
bonito pra casa. De maneira que se pensava muito nisso, sabe? Se pensava muito
nisso. De maneira que essas coisas todas modificaram muito as condutas médicas e o
coração do médico mesmo, o indivíduo médico.
(doutora Emília)
Era uma medicina, vamos dizer assim, profissionalizante,
particularizada; quer dizer, não a medicina empregatícia. O médico não tem
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chefe, não tem patrão, ele é o seu próprio patrão! Não havia empregos para médicos!
Os empregos surgiram depois, com a hipertrofia terrível do INAMPS! (...) Então, eu
não vejo nenhuma possibilidade de voltar ao passado mas, se houvesse essa
possibilidade, eu acho que o paciente ganharia muito. Eu sou desse tempo!
(doutor Antônio)
Porque recém-formado, a gente tinha receio... o curso médico, hoje, está
muito diferente do que foi na minha época (...) Hoje, o aluno de segundo ano, a gente
encontra dando plantão por aí. Então o Fulano, já dá palpite... Quer dizer, nós
nunca... tivemos coragem de fazer uma coisa dessas! Nunca! Nunca! Também a
clínica no meu tempo era muito diferente. Não precisava de tanta coisa, nem se pedia
tantos exames, como eu nem peço até hoje.
(doutor Carlos)
Na sociedade capitalista moderna o trabalho é reconhecido como referência
para a notação do tempo, e por isso mesmo, como já examinamos, é capaz de separar e
individualizar no cotidiano vários tempos: a vida passa a ser concebida como
composta do tempo de trabalho e de tempos que são o seu outro.
Também por isso o trabalho individualiza na vida de cada pessoa o que está
antes ou depois, dentro ou fora da vida de trabalho, passando cada um dos conteúdos
singularizados a ser reconhecido como distintas identidades de vividos, “tempos”
diversos. A passagem, por exemplo, da identidade social de “dependente” para
cidadão “produtivo eficaz” tem um forte sentido na sociedade contemporânea, e
sinaliza para todas as pessoas uma ruptura, no tempo da vida, que marca
profundamente. No presente caso essa passagem corresponde ao início da vida
profissional do médico, corresponde aos momentos em que essas pessoas concebem e
executam seu projeto particular: o de serem médicos.
No planto formal, o momento da formatura escolar na faculdade materializa
esse trânsito para a nova identidade. Contudo, não será somente a partir daí que se
constrói o significado desta outra situação social, a de ser médico. E porque em sua
identificação reside a notação de um tempo, para conhecê-lo e apreender seu sentido,
não poderíamos marcá-lo de modo assim tão pontual. Por isso dissemos que, dentro
dos referenciais do tempo histórico, o tempo cronológico que corresponde a esse
período da vida não tem limites precisos ou iguais para todas as pessoas, mas
tem para todas elas a mesma identidade: o tempo em que são médicos. Tam-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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bém por isso incluímos como fazendo parte do “ser médico” as experiências
correspondentes à própria escolha da profissão e à formação escolar, já que estas são
constituintes da passagem para a identidade de trabalhador. Movimentos, portanto, do
mesmo empreendimento.
É preciso considerar, ainda, que exercer a medicina é desenvolver uma
prática que se transforma continuamente. É claro que cada indivíduo exercerá a
profissão por tempo variável, ao longo do qual poderá assumir – como o faz, de fato –
várias identidades de profissão.
Trata-se, como vimos, de uma variabilidade decorrente da criação e re-
constituição das características dessa prática no transcurso da sua própria história.
Assim sendo, mesmo que possamos individualizar momentos na dinâmica de
transformação dada, aquele indivíduo continua sendo, em todos os momentos, médico,
exercendo a profissão.
No entanto, na passagem para a constituição do que se apresenta como algo
radicalmente novo e desconhecido, isto é, o ser da profissão, é o empreendimento
primeiro e sua correlata identidade que parecem cristalizar as concepções e as noções
que a partir dali, deste momento inicial, servirão de referência como algo então
conhecido, mesmo que esse empreendimento inicial vá se realizar, de fato, apenas
dentro de certos limites e tão-somente de certo modo. Vale dizer que, fazendo-se
médico, as transformações que se sucedem passam a ser contrastadas e comparadas a
uma particular identidade: a identidade que se forma nos momentos iniciais em que o
indivíduo constitui a situação do “ser médico”.
De um lado, é a noção contemporânea de que a “vida passa”, ou seja, que o
tempo flui de modo progressivo – “que não se repete, algo como um rio”13
– o que faz
das primeiras experiências uma figura mítica, um símbolo que cristaliza o ideal. De
outro lado, a própria concepção do caráter universal da medicina, tal como é a noção
dominante acerca dessa prática, faz com que o ideal estatuído assuma a qualidade de
ideal ontológico atemporal. Será por isso também que a concepção referida à
universalidade, de movimento do real como transformação em continuidade e
evolução, engendra a imagem de que apenas os momentos iniciais sejam algo
“original”, sem passado, sem raízes históricas e primeiro. Algo a que tudo o mais
sucederia, aprimorando-o em certo sentido, mas também fazendo-o perder qualidade,
ao desestruturar e substituir aquilo que em sua criação mostrou-se, do ponto de vista
daquele indivíduo e de seu específico coletivo-social, vantajoso e adequado
socialmente. A ambivalência demonstrada, por exemplo, diante das inovações e das
mudanças é significativa neste sentido.
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A expressão naquele tempo corresponde, pois àquele algo e seu momento, o
“primeiro”, o do “início”. Também é o momento no qual cada um se dedica
plenamente ao empreendimento, apropriando-se desse tempo, que assa a ser “seu”. É
meu tempo porque é também o tempo da plena esperança, da coragem total no
empreendimento. Força que cada indivíduo retira do entendimento dessa situação,
porque o início é a situação em que ele se reconhece sujeito pleno. Ali é senhor da
história, até porque este é exatamente o momento no qual se dá a constituição do
domínio de um saber-fazer que permitirá ao médico o exercício pleno da
subjetividade.
É o momento em que, com toda força, se apresenta sua utopia, seu ideal: o
projeto que concebe e acredita poder realizar totalmente14
, mas que o transcurso da
história terminará por re-situar, no plano da materialidade da prática e no plano do
próprio ideal. Por isso, o tempo restante por referência ao do início da profissão, tempo
que progressivamente evidenciará e fará com que ele, até certo ponto, reconheça o
determinismo social relativo que conforma seu desempenho pessoal, passa a significar
uma espécie de oposição ao tempo que é “seu”. Constitui um tempo no qual ele não
mais se reconhece, não lhe pertencendo porque não mais pertence a ele. Não é mais o
“meu tempo”, porque agora as concepções e os empreendimentos está já re-feitos,
tensionando a utopia e fragilizando a esperança.
Eu não sei, exatamente porque eu digo assim, no meu tempo... Acho que
quando eu falo, eu me reporto ao tempo em que eu entrei na faculdade. Aquilo foi
para mim, uma grande mudança porque – sei lá! – a gente era muito ingênuo, muito
ingênuo! E quando eu entrei na faculdade mudou muito... Abriu a cortina e eu pude
ver as coisas de um outro jeito, ter outros horizontes... sei lá... é como se tivessem
descoberto, levantado o pano... sobre o mundo. Quando termina eu não sei, eu ainda
estou aqui, né? Não sei... mas acho que quando falo é dos médicos daquela época...
eram diferentes... Tudo era diferente.... Diferentes no trajar... na postura... os
professores... Esses eram inatingíveis, você vê como eram os anfiteatros?
Eles perderam aquela aura, eram cultos, musicistas, filósofos, sabiam muito...
Hoje, não! Se rebaixaram, o que é que eles estudam hoje? Isso aí, que
todo mundo sabe... Mas acho que é tudo assim, está tudo diferente... Não
há dúvidas! Hoje sabe-se muito mais... Ah, não sei... não sei... Sabe,
quando a gente é moço, acha que a medicina vai fazer
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tudo, que a gente vai salvar, vai ajudar, vai... A gente é muito ingênuo... Você vê, até
ontem eu assisti um programa na televisão em que o sujeito se disse materialista! Que
nada! Espera só ter uma dor de barriga... Eu não sei... Eu acredito em Deus, eu não
sou essas coisas... materialista... Mas eu não consigo me conformar com a morte, com
o sofrimento do paciente até a morte. Você vê, eu tive um caso de um paciente que
ficou anos e anos na cama só mexendo os olhinhos... Isso aí não pode, eu não aceito.
Você vê, a medicina aí não faz nada, não consegue nada com o canceroso, com a
arteriosclerose... Agora tem a AIDS... A medicina ainda é muito frágil nisso, não tem
nada pra fazer aí, está muito no início, mal conseguiu controlar as doenças
infecciosas... Está muito no começo. Ainda vai se desenvolver muito... Eu acho que ela
ainda vai conseguir atuar... Deverá ocorrer isso, as doenças degenerativas, quando a
medicina descobrir... quando sua etiologia for descoberta, a medicina deverá
melhorar muito as coisas... é... mas também não vai adiantar muito, não vai resolver
nada... Porque de alguma coisa se morre, né?...
(doutor Carlos)
Liberdade plena mas transitória; sujeitos temporariamente plenos e então
agentes temporariamente sujeitos: esta é a imagem dominante que detêm esses
profissionais de sua relação com a história. Alienados da relativização do técnico
diante do social posto sua absoluta socialidade enquanto ser, assim é que nós os
encontramos.
É preciso considerar, todavia, que não é de modo homogêneo que todas as
pessoas se apropriam dessas concepções sobre o tempo. E muito embora estas sejam
as concepções dominantes, nem todas as pessoas a elas aderem. A própria situação
concreta de vida congrega-se de dimensionar o grau de proximidade ou
distanciamento entre o momento original e os outros, ou entre os ideais que são
reconstruídos.
Além disso, há sempre aquelas pessoas para as quais os vários tempos são
também continuamente “seus”, já que se reconhecem como permanentemente
sujeitos: ao invés de tomarem certas transformações como um a história da qual
independeriam, vêem a mudança como história que se faz exatamente por suas
presenças, reconhecendo a si mesmos na contínua reconstituição do social. E através
desta noção de que são “permanentes”, reconhecem o tempo como sempre lhes
pertencendo. Porque, afinal, sendo História, são também e sempre movimento.
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1 Conforme os critérios de editoração e publicação das narrativas os nomes dos entrevistados
são fictícios, assim como evitamos identificar precisamente situações em que pudessem vir a
ser reconhecidos. Veja-se Lilia B. Schraiber – Medicina liberal e incorporação de
tecnologia..., op.cit., pp.1 a 4 do volume II. 2 Eudardo Etzel, op.cit., p. 111 e pp. 129-130 3 Eduardo Etzel, op.cit., p. 118 4 E. Etzel, op.cit., cap. III – Vida de medico: cirurgia na década de 30, pp. 113-120. 5 Idem, idem, p.127 6 Cf. Cid de A. Leme – A história da eletrocardiografia no Brasil, in Revista Paulista de
Medicina, 99 – Suplemento Cultural no. 11, São Paulo, jan.-fev. 1982; e Stans Murad Netto – Evolução e avanços em cardiologia, in J.Bras. Med. (JBM), vol.46, no. 3, 1984, pp.70-89 7 Cf. também Eduardo Etzel, op.cit., pp. 126-127 8 P. Thompson – Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism, in Past and Present, no. 38, dez. 1967, pp. 56-97; Teresa P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., pp. 114-119, que
analisa a noção de tempo de o cotidiano entre moradores de um bairro da periferia de São
Paulo, no estudo que faz sobre o cotidiano e as representações acerca da política. 9 Eduardo Etzel, op.cit., p. 172. 10 A importância que assume a presença do Estado na assistência médica como fator
interferente evidencia-se também na temática que aparece trabalhada nos “textos de época”
(textos sobre a profissão), conforme apurado no levantamento que realizamos, no já referido
Capítulo 1. A pesquisa bibliográfica acerca das publicações de 1930 e 1955 mostra 27 das 66
publicações coletadas tratando especificamente da socialização da medicina, na forma de opiniões favoráveis ou desfavoráveis. A questão da interferência do Estado estabelece-se,
portanto, como tema de debate importante para o período, ainda mais se considerarmos que será após 1955 que o impacto dessa interferência se fará sentir mais intensamente. 11 Ecléa Bosi, op.cit., p. 342 (grifos no original). 12 Determinadas práticas na sociedade colaboram significativamente nesse sentido. São vivências socialmente dirigidas para marcar a passagem de um a outro “estágio” social e
conhecidas como os “ritos de passagem”. O modo de se marcar o tempo e as representações
sobre o tempo, com base nessas práticas sociais conceituadas como “ritos de passagem”, são
objeto de consideração em E.R. Leach – Two Essays Concerning the Symbolic Representation
of Time, in Rethinking Antropology, Londres, University of London, The Athlone Press, 1963,
pp.124-137. Veja-se também sobre as formas de notação do tempo socialmente adotadas e determinadas, Paul Thompson, Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism..., op.cit. 13 Thereza P. do R. Caldeira – A política dos outros, op.cit., p. 117. 14 “Guardar intacta no plano da ação essa esperança, que um exame crítico mostra ser quase
sem fundamento, aí está, para Simone Weil, a própria essência da coragem.” Ecléa Bosi, op. Cit., p. 344.