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Elementos da narrativa - O grosso da Teoria da Narrativa Antes de começar o estudo da teoria da narrativa (especialmente a partir de teorias textualistas) o melhor é revisar esse assunto em materiais de Ensino Médio. Neste material inclui um capítulo do livro do professor Ulisses Infante, Textos, leitura e escritas, um dos três melhores manuais de EM na minha opinião. Tão bom que alguns capítulos exigem um professor muito bem formado para acompanhar ou se tornam quase inaplicáveis em regiões de deficits de aprendizagem como a nossa amazônia-fronteira-de-mundo. Inclui também os Operadores de Leitura da Narrativa, de Arnaldo Franco Jr. Se você perder esse material sobre teoria da narrativa ou tiver que jogá-lo fora por qualquer motivo, guarde os Operadores, eles serão muito uteis por toda sua vida profissional. Em alguns tópicos sugiro que você vá primeiro a esses dois textos para depois iniciar o estudo do elemento da narrativa em questão. Elementos da narrativa - Narrador Teoria canônica – normalmente usada no Ensino Médio. Tipologia de Gerard Genette: Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: Narrador, 61; Tipologia narrativa, 95; Narrador autodiegético, 118; Narrador heterodiegético, 121; Narrador homodiegético; Nível extradiegético; Nível hipodiegético; Nível intradiegético; Nível narrativo; Nível pseudonarrativo. Ler os contos “O Espelho”, de Machado de Assis; “A conquista”, de Ribeiro Couto. Também poderão ser comentados nesta aula os 4 primeiros romances indicados para leitura. Ainda no DTN, veja também: Intrusão do narrador, 259. “Tipologia” de Óscar Tacca. Ver páginas 28 a 31 do capítulo 02 do livro Riscos no Barro. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios. pp. 25-70. 2. A tipologia de Norman Friedman Tentando sistematizar as diversas teorias resenhadas na primeira parte do seu ensaio, para chegar a uma tipologia mais sistemática, e, ao mesmo tempo, mais completa, Norman Friedman começa por se levantar as principais questões a que é preciso responder para tratar do narrador: 1) quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou terceira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? (Por cima? Na periferia? No centro? De frente? Mudando?); 3) que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor (palavras? Pensamentos? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação disso tudo?); 4) a que distância ele coloca o leitor da história (Próximo? Distante? Mudando?)? A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas questões em cada caso, mas vai basear-se também na distinção de Lubbock e de outros teóricos examinados anteriormente, entre cena e sumário narrativo. Segundo Friedman, [26] A diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e de uma variedade locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena. (Point of View, p. 119-20.)

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Elementos da narrativa - O grosso da Teoria da Narrativa

Antes de começar o estudo da teoria da narrativa (especialmente a partir de teorias textualistas) o melhor é revisar esse assunto em materiais de Ensino Médio. Neste material inclui um capítulo do livro do professor Ulisses Infante, Textos, leitura e escritas, um dos três melhores manuais de EM na minha opinião. Tão bom que alguns capítulos exigem um professor muito bem formado para acompanhar ou se tornam quase inaplicáveis em regiões de deficits de aprendizagem como a nossa amazônia-fronteira-de-mundo.

Inclui também os Operadores de Leitura da Narrativa, de Arnaldo Franco Jr. Se você perder esse material sobre teoria da narrativa ou tiver que jogá-lo fora por qualquer motivo, guarde os Operadores, eles serão muito uteis por toda sua vida profissional.

Em alguns tópicos sugiro que você vá primeiro a esses dois textos para depois iniciar o estudo do elemento da narrativa em questão.

Elementos da narrativa - Narrador � Teoria canônica – normalmente usada no Ensino Médio. � Tipologia de Gerard Genette: Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: Narrador, 61; Tipologia narrativa, 95; Narrador autodiegético, 118; Narrador heterodiegético, 121; Narrador homodiegético; Nível extradiegético; Nível hipodiegético; Nível intradiegético; Nível narrativo; Nível pseudonarrativo. � Ler os contos “O Espelho”, de Machado de Assis; “A conquista”, de Ribeiro Couto. Também poderão ser comentados nesta aula os 4 primeiros romances indicados para leitura. � Ainda no DTN, veja também: Intrusão do narrador, 259. � “Tipologia” de Óscar Tacca. Ver páginas 28 a 31 do capítulo 02 do livro Riscos no Barro. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios. pp. 25-70.

2. A tipologia de Norman Friedman

Tentando sistematizar as diversas teorias resenhadas na primeira parte do seu ensaio, para chegar a uma tipologia mais sistemática, e, ao mesmo tempo, mais completa, Norman Friedman começa por se levantar as principais questões a que é preciso responder para tratar do narrador: 1) quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou terceira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? (Por cima? Na periferia? No centro? De frente? Mudando?); 3) que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor (palavras? Pensamentos? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação disso tudo?); 4) a que distância ele coloca o leitor da história (Próximo? Distante? Mudando?)?

A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas questões em cada caso, mas vai basear-se também na distinção de Lubbock e de outros teóricos examinados anteriormente, entre cena e sumário narrativo. Segundo Friedman, [26]

A diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário

narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e de uma variedade locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena. (Point of View, p. 119-20.)

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Essa distinção, como dissemos, vai nortear a tipologia de Friedman, organizada do geral para o

particular: “da declaração à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da idéia à imagem”. (Op. Cit., p.119.)

Friedman chama a atenção, logo de início, para a predominância da cena, nas narrativas modernas, e do SUMÁRIO, nas tradicionais.

Mas é bom lembrar que, para a CENA e o SUMÁRIO, bem como para os diversos tipos de NARRADOR que estudaremos a seguir, a partir da sua tipologia, trata-se sempre de uma questão de predominância e não de exclusividade, já que é difícil encontrar, numa obra de ficção, especialmente quando ela é rica em recursos narrativos, qualquer uma dessas categorias em estado puro. Autor onisciente intruso (Editorial omnisciente)

É a primeira categoria proposta por Friedman. Haveria aí uma tendência ao sumário, embora possa também aparecer a cena. Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou, como quer J. Pouillon, por trás, adotando um ponto de vista divino, [27] como diria Sartre, para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada.

Os exemplos de Friedman para esse tipo são Fielding, em Tom Jones, e Tolstoi, em Guerra e Paz, pois ambos intercalam capítulos inteiros de digressões à narração da história, como se fossem verdadeiros ensaios à parte. [28] (...) [29]

Muito comum no século XVIII e no começo do século XIX, o narrador onisciente intruso saiu de moda a partir da metade deste século, com o predomínio da “neutralidade” naturalista ou com a invenção do indireto livre por Flaubert que preferia narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as ações e as personagens, como se a história se narrasse a si mesma. [30] (...) [32] Narrador onisciente neutro (Neutral omisciente)

A segunda categoria de Friedman, o narrador onisciente, ou narrador onisciente neutro, fala em 3ª pessoa. Também tende ao sumário embora aí seja bastante freqüente o uso da cena para os momentos de diálogo e ação, enquanto, freqüentemente, a caracterização das personagens é feita pelo narrador que as descreve e explica para o leitor. As outras características referentes às outras questões (ângulo, distância, canais) são as mesmas do autor onisciente intruso, do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora a sua presença, interpondo-se entre o leitor e a história, seja sempre muito clara. [33] (...) [37] “Eu” como testemunha (“I” as witness) Seguindo na classificação de Friedman, o narrador-testumunha dá um passo adiante rumo à apresentação do narrado sem a mediação ostensiva de uma voz exterior. Ele narra em 1ª pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal. No caso do “eu” como testemunha, o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, não [38] consegue saber o que se

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passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham ido cair em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa, quanto a apresenta em cenas. Neste caso, sempre como ele as vê. Memorial de Aires, de Machado, pode ser, à primeira vista, um bom exemplo de NARRADOR-TESTEMUNHA. [39] (...) [43] Narrador-protagonista (“I” as protagonist) Podemos escolher Riobaldo, em Grande Sertão: veredas, como representante desta quarta categoria de narrador. Aí também desaparece a onisciência. O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um ponto fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Como no caso anterior, ele pode servir-se seja da cena seja do sumário, e, assim, a distância entre história e leitor pode ser próxima, distante ou, ainda, mutável. Em Grande Sertão: veredas, é do ponto de vista de Riobaldo que tudo é visto e narrado, sendo ele e seu misterioso amigo, Diadorim, personagens centrais.[44] O mistério de Diadorim (homem de maneiras femininas por quem Riobaldo se apaixona platonicamente) existe como tal, porque é Riobaldo quem narra. Só ficamos sabendo a verdade quando ele próprio a descobre, no final. Antes, como não há nenhum narrador onisciente que nos revele o segredo, tanto Riobaldo como os leitores vivemos numa ambigüidade estranha em relação a Diadorim. Sentimos algo esquisito, diferente, nele, mas não sabemos identificar o que é. [45] (...) [47] Onisciência seletiva múltipla (Multiple selective ominiscience)

O quinto tipo, chamado por Friedman de ONISCIÊNCIA SELETIVA MÚLTIPLA, ou MULTISSELETIVA, é o próximo passo, nessa progressão rumo à maior objetivação do material da história. Se da passagem do narrador onisciente para o narrador-testemunha, e para o narrador-protagonista, perdeu-se a onisciência, aqui o que se perde é o “alguém” que narra. Não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Há um predomínio quase absoluto da cena. Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O que predomina no caso da onisciência múltipla, como no caso da onisciência seletiva que vem logo a seguir, é o [48] discurso indireto livre, enquanto na onisciência neutra o predomínio é do estilo indireto. Os canais de informação e os ângulos de visão podem ser vários, neste caso. Um bom exemplo é Vidas secas, de Graciliano Ramos, que começa com Fabiano e sua família (mulher, dois filhos e uma cachorra), fugindo da seca do Nordeste, em busca de uma terra menos inóspita. Depois de uma longa caminhada, sob o sol escaldante, encontram uma fazenda para trabalhar, e, a partir daí, o romance passa a enfocar sucessivamente cada personagem, dedicando-lhes alternadamente os capítulos em que nos são transmitidos seus pensamentos e sentimentos. Sonhos, frustrações, medos e lembranças aparecerem de forma um tanto fragmentária, através do indireto livre. [49] (...) [54] Onisciência seletiva (Selective oniscience) Esta é uma categoria semelhante à anterior, apenas trata-se de uma só personagem e não de muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e

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os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. Virgínia Woolf e, entre nós, Clarice Lispector são duas mestras no estilo indireto livre e na onisciência [55] seletiva, com todas aquelas mulheres com quem a narração se identifica, a quem perscruta nos mínimos detalhes e de onde o mundo é perscrutado. Pense-se em Virgínia, de Mrs. Dalloway, ou em Clarice, já no seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, em boa parte dominado pela mente da personagem central, Joana. [56] (...) [58] Modo dramático (The dramatic mode) Agora que já se eliminou o autor e, depois, o narrador, eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação ao que as personagens falam ou fazem, como no teatro, com breves notações de cena amarrando os diálogos. Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos e palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entra a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas. Os exemplos de Friedman são “Tha Awkward Age”, de Henry James, e Hemingway, em alguns contos. Na ficção de James, como diz Lubbock, essa foi a experiência talvez mais radical em matéria de tratamento dramático; trata-se de uma técnica dificilmente sustentável em textos longos. [59] Talvez por isso mesmo seja nos contos que ela funcione melhor. E, neles, Hemingway continua sendo o grande exemplo, assim como no Brasil, o nosso contemporâneo, Luiz Vilela, em livros como Tremor de terra, onde há contos inteirinhos em diálogo. [60] (...) [62] Câmera (The camera)

A última categoria de Friedman significa o máximo em matéria de “exclusão do autor”. Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. No exemplo de Friedman, de Goodbye to Berlin, romance-reportagem de Isherwood (1945), o próprio narrador, desde o início, se define como tal: “Eu sou uma câmera”. O nome dessa categoria me parece um tanto impróprio. A câmara não é neutra. No cinema não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, existe alguém por trás dela que seleciona e combina, pela montagem, as imagens a mostrar. E, também, através da câmera cinematográfica, podemos ter um ponto de vista onisciente, dominando tudo, ou o ponto de vista centrado numa ou várias personagens. O que pode acontecer é que se queira dar a impressão de neutralidade. Cristopher Isherwood, que é um repórter, descreve no livro citado por Friedman, com minúcia e exatidão, as suas experiências de Berlim, mas são as suas impressões da cidade. A exatidão não apaga, embora possa disfarçar, a subjetividade. O noveau roman francês também se adequaria a esse estilo de narração tão afim ao cinema, não pela neutralidade, mas pelos cortes bruscos e pela montagem. [63] (...) [66] ���� Focalização � Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: Focalização, 246; Focalização externa, 249; Focalização interna, 251; Focalização Onisciente, 254;

Elementos da narrativa – Narratário � Ler todo o ensaio 3 do livro Riscos no Barro; � Verbete do Dicionário de Teoria da Narrativa: Narratário, 63.

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LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre : L&PM, 2009.

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Elementos da narrativa - Personagens � Comece o estudo deste tópico com a leitura das páginas referentes a este assunto no capítulo “Para ler a prosa de ficção”, de Ulisses Infante, depois faça o estudo do texto de Mario Newman, em seguida leia as páginas referentes a este assunto no “Operadores de Leitura da Narrativa”, de Arnaldo Franco Jr. Agora podemos começar! � Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: Personagem, 215; Personagem Plana, 218; Personagem Redonda, 219. Teoria greimasiana: Actante, 144; Adjuvante/oponente, 146; Destinador/destinatário, 155; Sujeito/objeto, 186. CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva. 1992. (Coleção Debates, volume 01)

A Personagem do Romance Antonio Candido

(pag. 51)

Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enrêdo, e de personagens que vivem êstes fatos. É uma impressão pràticamente indissolúvel: quando pensamos no enrêdo, pensamos simultâneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultâneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino — traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. O enrêdo existe através das personagens; as personagens vivem no enrêdo. Enrêdo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dêle, os significados e valores que o animam. “Nunca expor idéias a não ser em função dos temperamentos e dos caracteres”1. Tome-se a palavra “idéia” como sinônimo dos mencionados valores e significados, e ter-se-á uma expressão sintética do que foi dito. Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enrêdo e a personagem, que representam a sua matéria; as “idéias”, que representam o seu significado, — e que são no conjunto elaborados pela técnica), êstes três elementos só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bens realizados. No meio dêles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enrêdo e as idéias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de Gide: “Tento enrolar os fios variados do enrêdo e a complexidade dos meus pensamentos em tômo destas pequenas bobinas vivas que são cada uma das minhas personagens” (ob. cit., p. 26). Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura dêste dependa bàsicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que nós perdoamos os mais graves defeitos de enrêdo e de idéia aos grandes criadores de personagens. Isto nos leva ao êrro, freqüentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do romance é a personagem, — como se esta pudesse existir separada das outras ralidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e comêço do XX; mas que só adquire pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção estrutural é o maior responsável pela fôrça e eficácia de um romance. A personagem é um ser fictício, — expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No

1 1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.me édition, Gallmard, Pule 1927, p. 12.

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entanto, a criação literária repousa sôbre êste paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização dêste.

Verifiquemos, inicialmente, que há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança. Tentemos uma investigação sumária sôbre as condições de existência essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados fundamentais do

problema é o contraste entre a continuidade relativa da percepção física (em que fundamos o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepção, digamos, espiritual, que parece freqüentemente romper a unidade antes apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivência espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vêzes contraditórias. A primeira idéia que nos vem, quando refletimos sôbre isso, é a de que tal fato ocorre porque não somos capazes de abranger a personalidade do outro com a mesma unidade com que somos capazes de abranger a sua configuração externa. E concluímos, talvez, que esta diferença é devida a uma diferença de natureza dos próprios objetos da nossa percepção. De fato, — pensamos — o primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domínio finito, que coincide com a superfície do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige a um domínio infinito, pois a sua natureza é oculta à exploração de qualquer sentido e não pode, em conseqüência, ser aprendida numa integridade que essencialmente não possui. Daí concluirmos que a noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é sempre incompleta, em relação à percepção física inicial. E que o conhecimento dos sêres é fragmentário.

Esta impressão se acentua quando investigamos os, por assim dizer, fragmentos de ser, que nos são dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos, uma afirmação, uma informação. Cada um dêsses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total, não é uno, nem contínuo. Êle permite um conhecimento mais ou menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num juízo sôbre o outro ser; permite, mesmo, uma noção conjunta e coerente dêste ser; mas essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua. Os sêres são, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Daí a psicologia moderna ter ampliado e investigado sistemàticamente as noções de subconsciente e inconsciente, que explicariam o que há de insólito nas pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua área de essência e de existência.

Esta constatação, mesmo feita de maneira não-sistemática, é fundamental em tôda a literatura moderna, onde se desenvolveu antes das investigações técnicas dos psicólogos, e depois se beneficiou dos resultados destas. É claro que a noção do mistério dos sêres, produzindo as condutas inesperadas, sempre estêve presente na criação de forma mais ou menos consciente, — bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas só foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico dos sêres, seja o mistério metafísico da própria existência. A partir de investigações metódicas em psicologia, como, por exemplo, as da psicanálise, essa investigação ganhou um aspecto mais sistemático e voluntário, sem com isso ultrapassar necessàriamente as grandes intuições dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visão na literatura. Escritores como Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily Bronte (aos quais se liga por alguns aspectos, isolado na segregação do seu meio cultural acanhado, o nosso Machado de Assis), que preparam o caminho para escritores como Proust, Joyce, Kafka, Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros, a dificuldade em descobrir a coerência e a unidade dos sêres vem refletida, de maneira por vêzes trágica, sob a forma de incomunicabilidade nas relações. É êste talvez o

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nascedouro, em literatura, das noções de verdade plural (Pirandello), de absurdo (Kafka), de ato gratuito (Gide), de sucessão de modos de ser no tempo (Proust), de infinitude do mundo interior (Joyce). Concorrem para isso, de modo direto ou indireto, certas concepções filosóficas e psicológicas voltadas para o desvendamento das aparências no homem e na sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com relação ao seu meio. É o caso, entre outros, do marxismo e da psicanálise, que, em seguida à obra dos escritores mencionados, atuam na concepção de homem, e portanto de personagem, influindo na própria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro. Essas considerações visam a mostrar que o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza. Assim, em Fogo Morto, José Lins do Rêgo nos mostrará o admirável Mestre José Amaro por meio da côr amarela da pele, do olhar raivoso, da brutalidade impaciente, do martelo e da faca de trabalho, do remoer incessante do sentimento de inferioridade. Não temos mais que êsses elementos essenciais. No entanto, a sua combinação, a sua repetição, a sua evocação nos mais variados contextos nos permite formar uma idéia completa, suficiente e convincente daquela forte criação fictícia.

Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de- -ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável, que é a lógica da personagem. A nossa interpretação dos sêres vivos é mais fluida, variando de acôrdo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser. Daí ser ela relativamente mais lógica, mais fixa do que nós. E isto não quer dizer que seja menos profunda; mas que a sua profundidade é um universo cujos dados estão todos à mostra, foram pré-estabelecidos pelo seu criador, que os selecionou e limitou em busca de lógica. A fôrça das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua complexidade é máximo; mas isso, devido à unidade, à simplificação estrutural que o romancista lhe deu. Graças aos recursos de caracterização (isto é, os elementos que o romancista utiliza para descrever e definir a personagem, de maneira a que ela possa dar a impressão de vida, configurando-se ante o leitor), graças a tais recursos, o romancista é capaz de dar a impressão de um ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza; mas nós apreendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a personagem como um todo coeso ante a nossa imaginação. Portanto, a compreensão que nos vem do romance, sendo estabelecida de uma vez por tôdas, é muito mais precisa do que a que nos vem da existência. Daí podermos dizer que a personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo. O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais êsse sentimento de dificuldade do ser fictício, diminuir a idéia de esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista. Isto é possível justamente porque o trabalho de seleção e posterior combinação permite uma decisiva margem de experiência, de maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com um mínimo de traços psíquicos, de atos e de idéias. A personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas.

Quando se teve noção mais clara do mistério dos sêres, acima referido, renunciou-se ao mesmo tempo, em psicologia literária, a uma geografia precisa dos caracteres; e vários escritores tentaram, justamente, conferir às suas personagens uma natureza aberta, sem limites. Mas volta sempre o

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conceito enunciado há pouco: essa natureza é uma estrutura limitada, obtida não pela admissão caótica dum sem-número de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados segundo uma certa lógica de composição, que cria a ilusão do ilimitado. Assim, numa pequena tela, o pintor pode comunicar o sentimento dum espaço sem barreiras.

Isso pôsto, podemos ir à frente e verificar que a marcha do romance moderno (do século XVIII ao comêço do século XX) foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia das personagens, dentro da inevitável simplificação técnica imposta pela necessidade de caracterização. Ao fazer isto, nada mais fêz do que desenvolver e explorar uma tendência constante do romance de todos os tempos, acentuada no período mencionado, isto é, tratar as personagens de dois modos principais: 1) como sêres íntegros e fàcilmente delimitáveis, marcados duma vez por tôdas com certos traços que os caracterizam; 2) como sêres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério. Dêste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enrêdo complicado com personagem simples, para o enrêdo simples (coerente, uno) com personagem complicada. O senso da complexidade da personagem, ligado ao da simplificação dos incidentes da narrativa e à unidade relativa de ação, marca o romance moderno, cujo ápice, a êste respeito, foi o Ulysses, de James Joyce, — ao mesmo tempo sinal duma subversão do gênero.

Assim, pois, temos que houve na evolução técnica do romance um esfôrço para compor sêres íntegros e coerentes, por meio de fragmentos de percepção e de conhecimento que servem de base à nossa interpretação das pessoas. Por isso, na técnica de caracterização definiram-se, desde logo, duas famílias de personagens, que já no século XVIII Johnson chamava “personagens de costumes” e “personagens de natureza”, definindo com a primeira expressão os de Fielding, com a segunda os de Richardson: “Há uma diferença completa entre personagens de natureza e personagens de costumes, e nisto reside a diferença entre as de Fielding e as de Richardson. As personagens de costumes são muito divertidas; mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial do que as de natureza, nas quais é preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do coração humano. (...) A diferença entre êles (Richardson e Fielding) é tão grande quanto a que há entre um homem que sabe como é feito um relógio e um outro que sabe dizer as horas olhando para o mostrador”2. As “personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Êstes traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um dêles. Como se vê, é o processo fundamental da caricatura, e de fato ele teve o seu apogeu, e tem ainda a sua eficácia máxima, na caracterização de personagens cômicos, pitorescos, invariàvelmente sentimentais ou acentuadamente trágicos. Personagens, em suma, dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo revelada.

As “personagens de natureza” são apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica, não pitoresca. Traduzindo em linguâgem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista “de costumes” vê o homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão normal que temos do próximo. Já o romancista de “natureza” o vê à luz da sua existência profunda, que não se patenteia à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações.

Em nossos dias, Forster retomou a distinção de modo sugestivo e mais amplo, falando e pitorescamente em “personagens planas” (flat characters) e “personagens esféricas” (round characters). “As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no século XVII, e são por vêzes chamadas tipos, por vêzes caricaturas. Na sua forma mais pura, são construídas em tôrno de

2 Cit. por Walter Scott, ap. Minam AIlott, Novelists on the Novel, Routledge and Kegan Paul, London, 1960, p. 276.

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uma única idéia ou qualidade; quando há mais de um fator nêles, temos o comêço de uma curva em direção à esfera. A personagem realmente plana pode ser expressa numa frase, como: ‘Nunca hei de deixar Mr. Micawber’. Aí está Mrs. Micawber. Ela diz que não deixará Mr. Micawber; de fato não deixa, nisso está ela.” Tais personagens “são fàdilmente reconhecíveis sempre que surgem”; “são, em seguida, fàdilmente lembradas pelo leitor. Permanecem inalteradas no espírito porque não mudam com as circunstâncias”3.

As “personagens esféricas” não são claramente definidas por Forster, mas concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em conseqüência, capazes de nos surpreender. “A prova de uma personagem esférica é a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente. Se nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, — traz a vida dentro das páginas de um livro” (Ob. Cit., p.75). Decorre que “as personagens planas não constituem, em si, realizações tão altas quanto as esféricas, e que rendem mais quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica arrisca tornar-se aborrecida” (Ob. cit., p. 70). O mesmo Forster, no seu livrinho despretensioso e agudo, estabelece uma distinção pitoresca entre a personagem de ficção e a pessoa viva, de um modo expressivo e fácil, que traduz râpidamente a discussão inicial dêste estudo. É a comparação entre o Homo fictus e o Homo sapiens.

O Homo fictus é e não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme avaliação também diferente. Come e dorme pouco, por exemplo; mas vive muito mais intensamente certas relações humanas, sobretudo as amorosas. Do ponto de vista do leitor, a importância está na possibilidade de ser ele conhecido muito mais cabalmente, pois enquanto só conhecemos o nosso próximo do exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem, “porque o seu criador e narrador são a mesma pessoa” (Ob. cit., p. 55). Neste ponto tocamos numa das funções capitais da ficção, que é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos sêres. Mais ainda: de poder comunicar-nos êste conhecimento. De fato, dada a circunstância de ser o criador da realidade que apresenta, o romancista, como o artista em geral, domina-a, delimita-a, mostra-a de modo coerente, e nos comunica esta realidade como um tipo de conhecimento que, em conseqüência, é muito mais coeso e completo (portanto mais satisfatório) do que o conhecimento fragmentário ou a falta de conhecimento real que nos atormenta nas relações com as pessoas. Poderíamos dizer que um homem só nos é conhecido quando morre. A morte é um limite definitivo dos seus atos e pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma interpretação completa, provida de mais lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória, embora as mais das vêzes arbitrária. É como se chegássemos ao fim de um livro e apreendêssemos, no conjunto, todos os elementos que integram um ser. Por isso, em certos casos extremos, os artistas atribuem apenas à arte a possibilidade de certeza, — certeza interior, bem entendido. É notadamente o ponto de vista de Proust, para quem as relações humanas, os mais íntimos contatos de ser, nada mostram do semelhante, enquanto a arte nos faz entrar num domínio de conhecimentos absolutos.

Estabelecidas as características da personagem fictícia, surge um problema que Forster reconhece e aborda de maneira difusa, sem formulação clara, e é o seguinte: a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um universo dc ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na vida. Poderia então a personagem ser transplantada da realidade, para que o autor atingisse êste alvo? Por outras palavras, pode-se copiar no romance um ser vivo e, assim, aproveitar integralmente a sua realidade? Não, em sentido absoluto. Primeiro, porque é impossível, como vimos, captar a totalidade do modo de ser duma pessoa, ou sequer conhecê-la; segundo, porque neste caso se dispensaria a criação artística; terceiro, porque, mesmo se fôsse possível,

3 E. M. Forster, Aspects of the Novel, Edward Arnold, London, 1949, pp. 66-67.

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uma cópia dessas não permitiria aquêle conhecimento específico, diferente e mais completo, que é a razão de ser, a justificativa e o encanto da ficção. Por isso, quando toma um modêlo na realidade, o autor sempre acrescenta a êle, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à qual procura revelar a incógnita da pessoa copiada. Noutras palavras, o autor é obrigado a construir uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é uma interpretação dêste mistério; interpretação que elabora com a sua capacidade de clarividência e com a onisciência do criador, soberanamente exercida. Voltando a Forster, registremos uma observação justa: “Se a personagem de um romance é, exatamente, como a rainha Vitória, (não parecida, mas exatamente igual), então ela é realmente a rainha Vitória, e o romance, ou tôdas as suas partes que se referem a esta personagem, se torna uma monografia. Ora, uma monografia é históriá, baseada em provas. Um romance é baseado em provas, mais ou menos x; a quantidade desconhecida é o temperamento do romancista, e ela modifica o efeito das provas, transformando-o, por vêzes, inteiramente” (Ob. cit., p. 44).

Em conseqüência, no romance o sentimento da realidade é devido a fatôres diferentes da mera adesão ao real, embora êste possa ser, e efetivamente é, um dos seus elementos. Para fazer um último apêlo a Forster, digamos que uma personagem nos parece real quando “o romancista sabe tudo a seu respeito”, ou dá esta impressão, mesmo que não o diga. É como se a personagem fôsse inteiramente explicável; e isto lhe dá uma originalidade maior que a da vida, onde todo conhecimento do outro é, como vimos, fragmentário e relativo. Daí o confôrto, a sensação de poder que nos dá o romance, proporcionando a experiência de “uma raça humana mais manejável, e a ilusão de perspicácia e poder” (Ob. cit., p. 62). Na verdade, enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação, dos sêres, no romance êstes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jôgo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito.

Estas considerações (baseadas em Forster, ou dêle próprio) nos levam a retomar o problema de modo mais preciso, indagando: No processo de inventar a personagem, de que maneira, o autor manipula a realidade para construir a ficção? A resposta daria uma idéia da medida em que a personagem é um ente reproduzido ou um ente inventado. Os casos variam muito, e as duas alternativas nunca existem em estado de pureza. Talvez conviesse principiar pelo depoimento de um romancista de técnica tradicional, que vê o problema de maneira mais ou menos simples, e mesmo esquemática. E o caso de François Mauriac, cuja obra sôbre êste problema passo agora a expor em resumo . Para êle, o grande arsenal do romancista é a memória, de onde extrai os elementos da invenção, e isto confere acentuada ambigüidade às personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas nascem delas. Cada escritor possui suas “fixações da memória” que preponderam nos elementos transpostos da vida. Diz Mauriac que, nêle, avulta a fixação do espaço; as casas dos seus livros são pràticamente copiadas das que lhe são familiares4. No que toca às personagens, todavia, reproduz apenas os elementos circunstanciais (maneira, profissão etc.); o essencial é sempre inventado. Mas é justamente aí que surge o problema: de onde parte a invenção? Qual a substância de que são feitas as personagens? Seriam, por exemplo, projeção das limitações, aspirações, frustrações do romancista? Não, porque o princípio que rege o aproveitamento do real é o da modificação, seja por acréscimo, seja por deformação de pequenas sementes sugestivas. O romancista é incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na coletividade dos grupos. Ele começa por isolar o indivíduo no grupo e, depois, a paixão no indivíduo. Na medida em que quiser ser igual à realidade, o romance será um fracasso; a necessidade de selecionar afasta dela e leva o romancista a criar um mundo próprio, acima e além da ilusão de fidelidade.

Neste mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria. São mais nítidas, mais conscientes, têm contôrno definido, — ao contrário do caos da vida — pois há nelas uma lógica préestabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes. Todavia, segundo Mauriac, há uma

4 François Mauriac, La Romancier et ses Personnages, Éditions Corrêa, Paris, 1952.

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relação estreita entre a personagem e o autor. Este a tira de si (seja da sua zona má, da sua zona boa) como realização de virtualidades, que não são projeção de traços, mas sempre modificação, pois o romance transfigura a vida.

O vínculo entre o autor e a sua personagem estabelece um limite à possibilidade de criar, à imaginação de cada romancista, que não é absoluta, nem absolutamente livre, mas depende dos limites do criador. A partir de tais idéias de Mauriac, poder-se-ia falar numa “lei de constância” na criação de um novelística, universo pois inicial as (as personagens saem do necessàriamente possibilidades romancista, a sua natureza humana e artística), que não apenas as limita, mas dá certas características comuns a tôdas elas. O romancista (diz Mauriac) deve conhecer os seus limites e criar dentro dêles; e isso é uma condição de angústia, impedindo certos vôos sonhados da imaginação, que nunca é livre como se supõe, como ele próprio supõe. Talvez cada escritor procure, através das suas diversas obras, criar um tipo ideal, de que apenas se aproxima e de que as suas personagens não passam de esboços.

Baseado nestas considerações, Mauriac propõe urna classificação de personagens, levando em conta o grau de afastamento em relação ao ponto de partida na realidade: 1. Disfarce leve do romancista, como ocorre ao adolescente que quer exprimir-se. “Só quando

começamos a nos desprender (enquanto escritores) da nossa própria alma, é que também o romancista romancistas memorialistas.

2. Cópia fiel de pessoas reais, que não constituem prõpriamente criações, mas reproduções. Ocorrem estas nos romancistas retratistas.

3. Inventadas, a partir de um trabalho de tipo especial sôbre a realidade. É o caso dêle, Mauriac, segundo declara, pois nêle a realidade é apenas um dado inicial, servindo para concretizar virtualidades imaginadas. Na sua obra (diz êle) há uma relação inversamente proporconal entre a fidelidade ao real e o grau de elaboração. As personagens secundárias, estas são, na sua obra, copiadas de sêres existentes.

É curioso observar que Mauriac admite a existência de personagens reproduzidas fielmente da

realidade, seja mediante projeção do mundo íntimo do escritor, seja por transposição de modelos externos. No entanto, declara que a sua maneira é outra, baseada na invenção. Ora, não se estaria ele iludindo, ao admitir nos outros o que não reconhece na sua obra? E não seria a terceira a única verdadeira modalidade de criar personagens válidas? Neste caso, deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras. Além disso, convém notar que por vêzes é ilusória a declaração de um criador a respeito da sua própria criação. Êle pode pensar que copiou quando se configurar em nós” (Ob. cit., p. 97). Tais personagens ocorrem nos inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, quando se confessou. Uma das grandes fontes para o estudo da gênese das personagens são as declarações do romancista; no entanto, é preciso considerá-las com precauções devidas a essas circunstâncias.

O nosso ponto de partida foi o conceito de que a personagem é um ser fictício; logo, quando se fala em cópia do real, não se deve ter em mente uma personagem que fôsse igual a um ser vivo, o que seria a negação do romance. Daqui a pouco, veremos como se resolve o problema aparentemente paradoxal da personagem-ser-fictício, mesmo quando copiada do real. No momento, assinalemos que, tomando o desejo de ser fiel ao real como um dos elementos básicos na criação da personagem, podemos admitir que esta oscila entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos, ou é uma invenção totalmente imaginária. São êstes os dois limites da criação novelística, e a sua combinação variável é que define cada romancista, assim como, na obra de cada romancista, cada uma das personagens. Há personagens que exprimem modos de ser, e mesmo a aparência física de uma

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pessoa existente (o romancista ou qualquer outra, dada pela observação, a memória). Só poderemos decidir a respeito quando houver indicação fora do próprio romance, — seja por informação do autor, seja por evidência documentária. Quando elas não existem, o problema se torna de solução difícil, e o máximo a que podemos aspirar é o estudo da tendência geral do escritor a êste respeito. Assim, diremos que a obra de Émile Zola, por exemplo, parece baseada em observações da vida real, mesmo porque isto é preconizado pela estética naturalista que ele adotava; ou que os romances indianistas de José de Alencar parecem baseados no trabalho livre da fantasia, a partir de dados genéricos, o que se coaduna com a sua orientação romântica. Além daí, pouco avançaremos sem o material informativo mencionado acima. E é justamente esta circunstância que nos leva a constatar que o problema (que estamos debatendo) da origem das personagens é interessante para o estudo da técnica de caracterização, e para o estudo da relação entre criação e realidade, isto é, para a própria natureza da ficção; mas é secundário para a solução do problema fundamental da crítica, ou seja, a interpretação e a análise valorativa de cada romance concreto. Feitas essas ressalvas, tomemos alguns casos de romancistas que deixaram elementos para se avaliar o mecanismo de criação de personagens, pois a partir dêles podemos supor como se dá o fenômeno em geral.

Veremos uma gama bastante extensa de invenção, sempre balizada pelos dois tipos polares acima referidos, que podemos esquematizar, entre outros, do seguinte modo:

1. Personagens transpostas com relativa fldelidade de modelos dados ao romancista por experiência direta, — seja interior, seja exterior. O caso da experiência interior é o da personagem projetada, em que o escritor incorpora a sua vivência, os seus sentimentos, como ocorre no Adolfo, de Benjamin Constant, ou do Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo, para citar dois exemplos de natureza tão diversa quanto possível. O caso da experiência exterior é o da transposição de pessoas com as quais o romancista teve contato direto, como Tolstoi, em Guerra e Paz, retratando seu pai e sua mãe, quando moços, respectivamente em Nicolau Rostof e Maria Bolkonski.

2. Personagens transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente, — por documentação ou testemunho, sôbre os quais a imaginação trabalha. Para ficar no romance citado de Tolstoi, é o caso de Napoleão I, que estudou nos livros de história; ou de seus avós, que reconstruiu a partir da tradição familiar, e são no livro o velho Conde Rostof e o velho Príncipe Bolkonski. A coisa pode ir muito longe, como se vê na extensa gama da ficção histórica, na qual Walter Scott pôde, por exemplo, levantar uma visão arbitrária e expressiva de Ricardo Coração de Leão.

3. Personagens construídas a partir de um modêlo real, conhecido pelo escritor, que serve de eixo, ou ponto de partida. O trabalho criador desfigura o modêlo, que todavia se pode identificar, — como é o caso de Tomás de Alencar n’Os Maias, de Eça de Queirós, baseado no poeta Bulhão Pato, bem distante dêle como complexo de personalidade, mas reconhecível ao ponto de ter dado lugar a uma violenta polêmica entre o modêlo, ofendido pela caricatura, e o romancista, negando tàticamente qualquer ligação entre ambos.

4. Personagens construídas em tôrno de um modêlo, direta ou indiretamente conhecido, mas que apenas é um pretexto básico, um estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de maneira que os traços da personagem resultante não poderiam, lògicamente, convir ao modelo. No caso da exploração imaginária de virtualidades, teríamos o célebre Mr. Micawber, do David Copperfield, de Dickens, relacionado ao pai do romancista, como êste próprio declarou, mas afastado dêle a ponto de serem inassimiláveis um ao outro. No entanto, sabemos que o velho Dickens, pomposo, verboso, pródigo, estóico nas suas desditas de inepto, bem poderia ter vivido as vicissitudes da personagem, com a qual partilha, inclusive, o fato humilhante da prisão por dívidas, que marcou para todo sempre a sensibilidade do romancista. Mas noutros casos, o ponto de partida é realmente apenas estímulo inicial, e a personagem que decorre nada tem a ver lògicamente com êle. É o que ocorre com o que há do seminarista Berthet no Julien Sorel, de Stendhal, em O Vermelho e o Negro; ou, na Cartuxa de Parma,

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do mesmo escritor, com as sementes de Alexandre Farnésio que, extraídas de crônicas do século XVI, compõem o temperamento de Fabrizio del Dongo.

5. Personagens construídas em tôrno de um modêlo real dominante, que serve de eixo, ao qual vêm juntar-se outros modelos secundários, tudo refeito e construído pela imaginação. É um dos processos normais de Proust, como se verifica no Barão de Charlus, inspirado sobretudo em Robert de Montesquiou, mas tcebendo elementos de um tal Barão Doazan, de Oscar Wilde, do Conde Aimery de La Rochefoucauld, do próprio romancista.

6. Personagens elaboradas com fragmentos de vários modelos vivos, sem predominância sensível de uns sôbre outros, resultando uma personalidade nova, — como ocorre também em Proust. É o caso de Robert de Saint-Loup, inspirado num grupo de amigos seus, mas diferente de cada um, embora a maioria de seus traços e gestos possam ser referidos a um dêles e a combinação resulte original (modelos identificados: Gaston de Caillavet, Bertrand de Fénelon, Marquês de Albufera, Georges de Lauris, Manuel Bibesco e outros).

7. Ao lado de tais tipos de personagens, cuja origem pode ser traçada mais ou menos na realidade, é preciso assinalar aquelas cujas raízes desaparecem de tal modo na personalidade fictícia resultante, que, ou não têm qualquer modêlo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor. Em tais casos, as personagens obedecem a uma certa concepção de homem, a um intuito simbólico, a um impulso indefinível, ou quaisquer outros estímulos de base, que o autor corporifica, de maneira a supormos uma espécie de arquétipo que, embora nutrido da experiência de vida e da observação, é mais interior do que exterior. Seria o caso das personagens de Machado de Assis (salvo, talvez as d’O Memorial de Aires), — em geral homens feridos pela realidade e encarando-a com desencanto. É o caso de certas personagem de Dostoievski, encarnando um ideal de homem puro, refratário ao mal, — ideal que remonta a uma certa visão de Cristo e que o obcecou a vida tôda. Neste grupo estariam, talvez, já o Devúchkin, de Pobres Diabos; certamente Aleixo Karamázov e, sobretudo, o Príncipe Muichkin, — além de tantos “humilhados e ofendidos”, que parecem resgatar o mundo pela sua condição, e que têm, no campo femnino, a Sófia Marmeládova, de Crime e Castigo.

Em todos êsses casos, simplificados para esclarecer, o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais. O próprio autor seria incapaz de determinar a proporção exata de cada elemento, pois êsse trabalho se passa em boa parte nas esferas do inconsciente e aflora à consciência sob formas que podem iludir. O que é possível dizer, para finalizar, é que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. Quando, por exemplo, êste está interessado em traçar um panorama de costumes, a personagem dependerá provàvelmente mais da sua visão dos meios que conhece, e da observação de pessoas cujo comportamento lhe parece significativo. Será, em conseqüência, menos aprofundado psicològicarnente, menos imaginado nas camadas subjacentes do espírito — embora o autor pretenda o contrário. Inversamente, se está interessado menos no panorama social do que nos problemas humanos, como são vividos pelas pessoas, a personagem tenderá a avultar, complicar-se, destacando-se com a sua singularidade sôbre o pano de fundo social.

Esta observação nos faz passar ao aspecto porventura decisivo do problema: o da coerência interna. De fato, afirmar que a natureza da personagem depende da concepção e das intenções do autor, é sugerir que a observação da realidade só comunica o sentimento da verdade, no romance, quando todos os elementos dêste estão ajustados entre si de maneira adequada.

Poderíamos, então, dizer que a verdade da personagem não depende apenas, nem sobretudo, da relação de origem com a vida, com modelos propostos pela observação, interior ou exterior, direta ou indireta, presente ou passada. Depende, antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior.

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Assim, a verossimilhança prôpriamente dita, — que depende em princípio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o mundo real (ficção igual a vida), — acaba dependendo da organização estética do material, que apenas graças a ela se torna plenamente verossímil. Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que fôr organizada numa estrutura coerente. Portanto, originada ou não da observação, baseada mais ou menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do livro, da sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, idéias. Daí a caracterização depender de uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência. “Uma personagem deve ser convencionalizada. Deve, de algum modo, fazer parte do molde, constituir o lineamento do livro” . A convencionalização é, bàsicamente, o trabalho de selecionar os traços, dada a impossibilidade de descrever a totalidade duma existência. É o desejo. de só expor o que Machado de Assis denomina, no Brás Cubas, a “substância da vida”, saltando sôbre os acessórios; e cada autor, diz Bennett, possui os seus padrões de convencionalização, repetidos por alguns em tôdas as personagens que criam (o “limite”, assinalado por Mauriac). José Lins do Rêgo, em Fogo Morto, descreve obsessivamente três famílias, constituídas cada uma de três membros, com três pais inadequados, três mães sofredoras, tudo em três níveis de frustração e fracasso; e cada família é marcada, sempre que surgem os seus membros, pelos mesmos cacoetes, palavras análogas, pelos mesmos traços psicológicos, pelos mesmos elementos materiais, pelas mesmas invectivas contra o mundo. Trata-se de uma convencionalização muito marcada, que atua porque é regida pela necessidade de adequar as personagens à concepção da obra e às situações que constituem a sua trama. Fogo Morto é dominado pelo tema geral da frustração, da decadência de um mundo homogêneo e fechado, localizado num espaço físico e social restrito, com pontos fixos de referência. A concentração, limitação e obsessão dos traços que caracterizam as personagens se ordenam convenientemente nesse universo, e são aceitos pelo leitor por corresponderem a uma atmosfera mais ampla, que o envolve desde o início do livro. Quando, lendo um romance, dizemos que um fato, um ato, um pensamento são inverossímeis, em geral queremos dizer que na vida seria impossível ocorrer coisa semelhante. Entretanto, na vida tudo é pràticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida. Por isso, traduzida criticamente e posta nos devidos têrmos, aquela afirmativa quer dizer que, em face das condições estabelecidas pelo escritor, e que regem cada obra, o traço em questão nos parece inaceitável. O que julgamos inverossímil, segundo padrões da vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro. Se nos capacitarmos disto — graças à análise literária — veremos que, embora o vínculo com a vida, o desejo de representar o real, seja a chave mestra da eficácia dum romance, a condição do seu pleno funcionamento, e portanto do funcionamento das personagens, depende dum critério estético de organização interna. Se esta funciona, aceitaremos inclusive o que é inverossímil em face das concepções correntes.

Seja o caso (inviável diante delas) do jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa. O leitor aceita normalmente o seu pacto com o diabo, porque Grande Sertão: Veredas é um livro de realismo mágico, lançando antenas para um supermundo metafísico, de maneira a tornar possível o pacto, e verossímil a conduta do protagonista. Sobretudo graças à técnica do autor, que trabalha todo o enrêdo no sentido duma invasão iminente do insólito, — lentamente preparada, sugerida por alusões a princípio vagas, sem conexão direta com o fato, cuja presciência vai saturando a narrativa, até eclodir como requisito de veracidade. A isto se junta a escolha do foco narrativo, — o monólogo dum homem rústico, cuja consciência serve de palco para os fatos que relata, e que os tinge com a sua própria visão, sem afinal ter certeza se o pacto ocorreu ou não. Mas o importante é que, mesmo que não tenha ocorrido, o material vai sendo organizado de modo ominoso, que torna naturais as coisas espantosas.

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Assim, pois, um traço irreal pode tornar-se verossímil, conforme a ordenação da matéria e os valores que a norteiam, sobretudo o sistema de convenções adotado pelo escritor; inversamente, os dados mais autênticos podem parecer irreais e mesmo impossíveis, se a organização não os justificar. O leitor comum tem freqüentemente a ilusão (partilhada por muitos críticos) de que, num romance, a autenticidade externa do relato, a existência de modelos comprováveis ou de fatos transpostos, garante o sentimento de realidade. Tem a ilusão de que a verdade da ficção é assegurada, de modo absoluto, pela verdade da existência, quando, segundo vimos, nada impede que se dê exatamente o contrário.

Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade que o material bruto da observação ou do testemunho, é porque a personagem é, bàsicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade. Portanto, está sujeita, antes de mais nada, às leis de composição das palavras, à sua expansão em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos coerentes, que permitem estabelecer uma estrutura novelística. O entrosamento nesta é condição fundamental na configuração da personagem, porque a verdade da sua fisionomia e do seu modo-de-ser é fruto, menos da descrição, e mesmo da análise do seu ser isolado, que da concatenação da sua existência no contexto. Em Fogo Morto, por exemplo, a sola, a faca, o martelo de Mestre José ganham sentido, referidos não apenas ao seu temperamento agressivo, mas ao cavalo magro, ao punhal, ao chicote do Capitão Vitorino; ao cabriolé, à gravata, ao piano do Coronel Lula, — os quais, por sua vez, valem como símbolos das respectivas personalidades. E as três personagens existem com vigor, não só porque se exteriorizam em traços materiais tão bem combinados, mas porque ecoam Os umas às outras, um articulando-se num romancista escolhe nexo para expressivo. apresentar a elementos que personagem, física e espiritualmente, são por fôrça indicativos. Que coisa sabemos de Capitu, além dos “olhos de ressaca”, dos cabelos, de “certo ar de cigana, oblíqua e dissimulada”? O resto decorre da sua inserção nas diversas partes de Dom Casmurro; e embora não possamos ter a imagem nítida da sua fisionomia, temos uma intuição profunda do seu modo- de-ser, — pois o autor convencionalizou bem os elementos, organizando-os de maneira adequada. Por isso, a despeito do caráter fragmentário dos traços constitutivos, ela existe, com maior integridade e nitidez do que um ser vivo. A composição estabelecida atua como uma espécie de destino, que determina e sobrevoa, na sua totalidade, a vida de um ser; os contextos adequados asseguram o traçado convincente da personagem, enquanto os nexos frouxos a comprometem, reduzindo-a à inexpressividade dos fragmentos. Os romancistas do século XVIII aprenderam que a noção de realidade se reforça pela descrição de pormenores, e nós sabemos que, de fato, o detalhe sensível é um elemento poderoso de convicção. A evocação de uma mancha no paletó, ou de uma verruga no queixo, é tão importante, neste sentido, quanto a discriminação dos móveis num aposento, uma vassoura esquecida ou o ranger de um degrau. Os realistas do século XIX (tanto românticos quanto naturalistas) levaram ao máximo êsse povoamento do espaço literário pelo pormenor, — isto é, uma técnica de convencer pelo exterior, pela aproximação com o aspecto da realidade observada. A seguir fêz-se o mesmo em relação à psicologia, sobretudo pelo advento e generalização do monólogo interior, que sugere o fluxo inesgotável da consciência. Em ambos os casos, temos sempre referência, estabelecimento de relação entre um traço e outro traço, para que o todo se configure, ganhe significado e poder de convicção. De certo modo, é parecido o trabalho de compor a estrutura do romance, situando adequadamente cada traço que, mal combinado, pouco ou nada sugere; e que, devidamente convencionalizado, ganha todo o seu poder sugestivo. Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende, sob êste aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos sêres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios sêres vivos. � Infelizmente as indicações intermediárias das páginas se perderam na transcrição, mas você pode citar o capítulo como um todo.

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Elementos da narrativa – Personagens – O Herói

� Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: Herói, 210; Anti-herói, 192.

DUTRA, Robson Lacerda. Pepetela e a elipse do herói. Tese de doutoramento em Literatura Portuguesa apresentada ao Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.

1. O ROMANCE E O HERÓI 2.1. Reflexões sobre o gênero e o herói romanesco Muito embora o vocábulo romance tenha surgido para designar a língua do povo, a concepção

literária do termo distanciou-se de tal origem. Etimologicamente derivada do advérbio do latim tardio romanice, cujo significado remete “à maneira dos romanos”, essa palavra sofreu alterações significativas ao longo dos tempos, representando também aquilo ou aquele proveniente de Roma. Do século XII até o final do século XVI, o vocábulo rommant foi usado para designar não apenas as línguas românicas, mas também a composição literária escrita na variante vulgar, em prosa ou em verso.

A partir do século XVII, passa a ser escrito como roman e a originar os seguintes adjetivos: romanesque (romanesco) e romantique (romântico). Essas palavras derivam do adjetivo inglês romantic, designando, desde o início do século XVII, a produção feita nos moldes “dos antigos romances”. Tal termo é então usado para predicar uma paisagem, uma cena ou um monumento. Nesse período, esses adjetivos eram empregados, na Inglaterra, para classificar o discurso fantasioso, ridículo e absurdo que [20] se opunha à concepção clássica. Nesse mesmo país, durante o Iluminismo, além do sentido pejorativo – que caracterizava tudo o que era produto de uma imaginação desordenada e irregular –, começou a surgir uma outra conotação: romântico era aquilo que se ligava à imaginação, que despertava o sonho e a comoção. Tal sentido evoluiu e passou a significar a designação de uma nova tendência artística que, mais uma vez, se opôs à tradição clássica. Na França, o adjetivo romantique ganhou preferência em relação a romanesque e pittoresque, correspondendo, tal qual na Inglaterra, a um discurso que se associava à fantasia e ao rebuscamento. A partir de Rousseau (1712-1778), o termo se consagrou para definir tudo que se associava à imaginação e à emoção. É, contudo, com Stendhal (1783-1842) que, definitivamente, passou a designar uma nova tendência artística que se colocou frontalmente contra os ideais clássicos. Stendhal é, por sinal, o primeiro escritor a se denominar romântico: Sou um romântico furioso, quer dizer, sou por Shakespeare, contra Racine e por Lord Byron, contra Boileau (1984, p. 137).

É no Romantismo que o romance desponta como gênero literário, originando novas formas de concepção do mundo. Uma delas se expressa através de uma nova visão do herói, cujo processo de individualização será causa dos conflitos do homem com o mundo. O amor e as aventuras se tornaram temas dominantes desse novo gênero em que o herói passou a ser aquele que confronta a ordem social estabelecida, signo dos novos tempos.

Essa premissa remete a questões levantadas por Georg Lukács na Teoria do romance, obra publicada 1916, em que o autor percebe a busca de uma analogia entre o mundo descrito pela ficção literária e aquilo que nela se representa. A obra em questão é fundamentada numa perspectiva histórica e marxista e, mesmo ao estabelecer uma [21] tipologia do romance, não perde de vista as transformações ocorridas no tempo, em decorrência de alterações sociais e conjunturais.

Por essa razão, Lukács diferencia a épica do romance a partir das relações que o homem passa a ter com seu meio. Mais especificamente, aponta que o surgimento de novos tempos caracterizados pela industrialização incrementada em fins do século XIX e pelo capitalismo rompem definitivamente o universo harmônico e unitário em que o homem se integrava à natureza e à coletividade, tal qual na Grécia antiga. Desse modo, o autor atribui à sociedade moderna burguesa a fragmentação e a hiância surgidas entre sujeito e objeto que resultaram no estabelecimento de uma tipologia do romance, cujo paradigma se revela por novas relações entre o indivíduo e a sociedade; idealização e ação; alienação e

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compromisso. É a partir deste sistema que Lukács redimensiona os laços entre civilização e arte, explicando como as formas artísticas se estruturam em momentos históricos distintos e que resultam no fato de James Joyce, por exemplo, ao escrever sua versão do mito de Ulisses que serve de epígrafe a esse capítulo, optar por fazê-lo sob influxos romanescos, deslocando a ação da Hélade antiga para a Irlanda do início do século XX, reduzindo, de igual modo, os muitos anos que Ulisses esteve distante de Ítaca, sua ilha natal, para as poucas horas que o romance descreve. Essa também é a razão por que, na primeira cena do romance, o autor alegoriza a cisão do sentido de totalidade atribuído ao círculo representado pela tigela. Ao cindi-lo com a navalha e o espelho, Joyce redimensiona e atualiza conceitos outrora imutáveis como os de história, herói e mito, apontando, assim, para sua fragmentação.

É no decorrer do processo de afirmação do romance que se dá a articulação da vertente lúdica e de entretenimento que o novo público leitor passara a demandar com [22] formas moralistas e didáticas tão ao gosto do Iluminismo. Por isso, obras como Agathon, de Wieland (1766-1767) e Wilhelm Meisters Lehrjahre (Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister) (1795-1796), de Goethe, corroboram uma tipologia de romance de viés antropológico. Ademais, ao centrar o processo de desenvolvimento interior do protagonista no confronto com acontecimentos que lhe são exteriores e ao evidenciar o conflito entre o eu e o mundo, o romance assume um caráter pedagógico e formativo, a apprenticeship novel ou o Bildungsroman, segundo as terminologias inglesa e alemã, respectivamente, que dão voz ao individualismo, à preponderância da subjetividade e da vida privada perante a consolidação da sociedade burguesa, cuja estrutura sócioeconômica parece implicar uma redução drástica da esfera de ação do indivíduo. Essas características fazem com que, segundo enuncia Fernández Vázquez, professor e pesquisador da Universidade de Alcalá, o herói romanesco passe da ignorância ao autoconhecimento a partir de experiências afetivas que são expressas através de propósitos educativos que o afetam (2002, p. 53).

Talvez se deva a essa característica o fato de as narrativas centradas nessa temática nas chamadas literaturas emergentes, ou em seu momento histórico de emergência, tornarem-se obras canônicas em seus respectivos sistemas, o que faz com que, possivelmente, seus autores tenham usado a fórmula do Bildungsroman para a formação do herói associada à metáfora da construção de uma nova coletividade que dá sustentação a essa emergência literária. Partilhando o mesmo ponto de vista, Fernández Vázquez afirma que “esto supone que al escoger um género literario el escritor no se limita a dar forma a um contenido que há decidido previamente, sino que forja esse contenido al mismo tiempo que desarrolla las convenciones genéricas”1 (2002, p. 45). [23]

Tal pensamento pode ser articulado às teorias de Lukács na medida em que foi sob a influência confessa de Kant e Hegel que esse autor discutiu as duas dimensões caracterizadoras dos eixos denominados sujeito e mundo: a da tradição clássica, em que vigorou o sentido épico totalitário, no qual “os gregos só conheciam respostas, mas nenhuma pergunta” (2000, p. 27) e a da perspectiva burguesa do século XIX que se caracterizou pela fragmentação. A partir de um olhar hegeliano, Lukács aprofundou o sentido de historicização das categorias estéticas e a idéia imanente de superação da arte pelo espírito autoconsciente no movimento dialético do espírito de que Hegel se valera, redimensionando-o para uma compreensão temporal dos fenômenos literários. Foi nos desvãos entre a cultura clássica e a modernidade burguesa que o pensador húngaro contemplou a Idade Média como a época em que perduraram vestígios da união mítica entre os heróis com sua realidade, o que, de certo modo, prolongou a idéia de integralidade clássica. No que se refere ao século XIX, Theodor Adorno pondera que a burguesia usou como justificativa algumas argumentações filosóficas que davam como mito e falsificação todos os traços subjacentes de sociedades anteriores que, de algum modo, obstruíam seu desenvolvimento, tentando, assim, eliminar quaisquer reminiscências de atitudes que se mostravam irreconciliáveis com sua mundividência. Desse modo, o pensamento burguês abdicou da totalidade do conhecimento possível, dada a inviabilidade do projeto para, em troca, aprofundar a fração, única via tida como exeqüível para o progresso da ciência que passou a implementar (Adorno 1978, p. 97).

Entretanto, o imponderável na cultura grega serviu para ressaltar as formas do ser que não pode ser destruído, visto que a essência e a aparência que o constituem são indivisíveis e indissociáveis. De modo diferente, a liberdade que se uniu ao espírito moderno repeliu quaisquer modelos que pudessem

1 Isto supõe que, ao escolher um gênero literário, o escritor não se limita a dar forma a um conteúdo previamente delimitado, mas que o faz simultaneamente ao desenvolvimento de convenções deste gênero (tradução livre).

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cerceá-la sem, contudo, outorgar à [24] sua criação o mesmo tipo de acabamento que o mundo arquetípico auferira às suas produções. Segundo Lukács,

o nosso mundo tornou-se imensamente vasto e, em cada um dos seus recantos, mais rico em dons e em perigos que

o dos gregos; mas essa mesma riqueza faz desaparecer o sentido positivo no qual repousava a sua vida: a totalidade. Porque a totalidade, enquanto realidade primeira formadora de todo o fenômeno singular, implica que se possa realizar uma obra fechada sobre si mesma; perfeita porque tudo sucede nela sem que nela seja excluído ou remeta para uma realidade superior, perfeita porque tudo amadurecesse nela para a sua própria perfeição e, atingindo-se a si mesma, insere-se no edifício inteiro (2001, p.31).

Para Lukács, o sujeito do século XIX apercebeu-se de que não passava de “uma exigência infinita

inscrita no céu imaginário do dever-ser” (p. 33) e tornou-se criador de formas que desestabilizaram o paradigma da arte que aflorara do abismo da interioridade, a única essência possível. Em outras palavras, o indivíduo deu-se conta de que “o que possuía diante de seus olhos era a convicção de um espírito supremo e onipotente que presidia tanto o passado, quanto o presente e o futuro, dando-lhe uma dimensão anã que represava o gigantismo de seus projetos” (Lima Lins, p. 73), os quais, no tempo enunciado pelo romance, livram-no dos grilhões, fazendo-o conhecer sua real dimensão.

Os traços distintivos do herói são oriundos, portanto, do processo de ruptura: na antiguidade clássica ele se associava organicamente ao todo que constituía sua vida, seguindo um percurso pré-determinado que o conformava ao seu tempo. Diversos heróis da primeira geração romântica, como Ivanhoe, Eurico, Dom João de Portugal, por exemplo, tentam reassumir esse percurso em uma tentativa de retomada da circularidade dos tempos de outrora. No entanto, acabam por se defrontar com uma série de evidências que apontam, como Lukács define, para sua “problematização”. Data daí o início do processo de humanização do herói romanesco o que o fez envidar esforços [25] para elevar-se sobre as adversidades da vida e da simultaneidade que o romance passou a ter com o mundo exterior. Por essa razão, Lukács define o romance como a epopéia de um tempo em que “a totalidade extensiva da vida já não é dada de maneira imediata, de um tempo para o qual a imanência do sentido à vida se tornou problema, mas que, apesar de tudo, não cessou de aspirar à totalidade” (2001, p. 55).

Tal processo de individualização do herói deve-se ainda à nova concepção do “eu” da filosofia idealista alemã. Da leitura que os românticos fizeram das teorias surgidas no século XIX, por exemplo, decorreu a identificação do “eu” puro com o indivíduo que se dissocia do espírito de totalidade das “culturas fechadas” descritas por Lukács. Renovase nesse fato a contradição entre o anseio do absoluto pela via do amor e as contingências de um mundo hostil que se interpunha a obstáculos intransponíveis, tornando o percurso do herói romanesco um mar de dificuldades, diante do qual ele, contudo, não hesitava, muito embora suas atitudes lhe trouxessem contratempos e dissabores.

Desse modo, a ação dramática moderna se ampliou confrontando o modelo épico. O conflito do herói com seu tempo derivou para formas monológicas, por exemplo, visto que os vínculos que outrora o uniam ao universo se diluíram, fazendo com que ele se tornasse responsável pelo seu destino em um mundo caracterizado pela desigualdade e pela expressão da solidão:

O romance é a epopéia de um mundo sem deuses: a psicologia do herói romanesco é demoníaca, a objetividade do

romance, a viril e madura constatação de que nunca o sentido poderia penetrar de lado a lado a realidade e que, portanto, sem ele, essa sucumbiria ao nada e à essencialidade (Lukács, 2000, p. 31). [26]

Lukács ensina ainda que, ao falar do mundo da convenção e de relações contemporâneas, o

romance passou a se ocupar de um sistema de necessidades conhecidas pelo sujeito, mas que se revelou um “ossuário de interioridades mortas” (p. 63) por não fazer qualquer sentido. Essa noção assume contornos mais claros quando este ensaísta compartilha a idéia leninista de que o pensamento humano passou a retratar o universo objetivo e não um espaço circunscrito ao nosso aparato mental. Por isso, passou a defender em sua estética o realismo – e a cisão dele resultante – como a expressão artística que permitiu ao ser humano perceber o mundo conforme ele efetivamente é.

No texto intitulado O romance como epopéia burguesa (1999, p. 37), esse autor afirma que os homens modernos, diferentemente daqueles do mundo antigo, separam-se com suas finalidades e relações pessoais das finalidades resultantes de uma consciência de totalidade. Para ele, aquilo que o indivíduo faz com suas próprias forças o faz só para si e é por isso que ele responde apenas pelo seu

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próprio agir e não pelos atos da totalidade substancial à qual pertence. Essa incapacidade humana de se relacionar com a integralidade do mundo constitui a representação moderna de personagens cuja incapacidade de adaptação à realidade condena-as aos descaminhos que as rodeiam, visto que “a alma é mais ampla e mais vasta do que todos os destinos que a vida lhe pode oferecer" (p. 39).

O herói romanesco tornou-se, assim, um rebelde que por vezes se coloca contra as leis e os limites impostos pela sociedade. Em nome de ideais de liberdade e de valores morais, ele passou a desafiar a sociedade em nome do amor e daquilo que lhe parece verdadeiro e sincero. Revestido do “caráter demoníaco” descrito por Lucien Goldmann, [27] ele se lançou à “busca degradada e inautêntica de valores autênticos” (Goldmann, 1990, p. 9), num mundo caracterizado pela perda da fraternidade, em meio a um tempo fluido e desintegrador.

Por isso, é possível reafirmar que o romance mantém um olhar atento sobre o tempo e sua ação formadora, de modo que os diversos momentos da história pessoal do protagonista servem como representação de outros tantos níveis para a compreensão do mundo e de si mesmo. A dimensão histórica do tempo é interiorizada e mais importante do que o desenrolar da narrativa é o processo em que se revela a dimensão de acaso que regula a vida, sobretudo quando é confrontada com a rigidez de propósitos e as certezas que pareciam dominar o herói no início do percurso de aprendizagem.

Esses são os grandes pressupostos românticos que serviram de álibi para o surgimento de crenças como a liberdade e a bondade original que foram corrompidas pela sociedade. O espírito romântico fez também com que despontasse a suposição de que existiria uma espontaneidade criadora e inata na natureza humana que se manifestaria tanto no plano coletivo quanto individual. Desse modo, o povo – e não mais um único herói divinizado – tornou-se a manifestação nacional da genialidade em nível coletivo, do mesmo modo que o filósofo, o legislador, o estadista e o artista se revelaram a encarnação individualizada dessa característica.

Assim como Lukács, Mikhail Bakhtin dedicou grande parte de seus estudos ao gênero romanesco e aprofundou alguns conceitos luckasianos em seus escritos sobre o romance como um gênero em devir. Deve-se a Bakhtin o desenvolvimento de premissas estéticas oriundas do inacabamento composicional desse gênero literário, sobretudo as que se referem às diversas vozes por ele requisitadas. Ampliando a visão dos formalistas russos, Bakhtin contextualiza a obra literária na sua série sociológica, levando em conta [28]não apenas a forma e a aplicação do método formal na análise do texto literário, mas sim por saber que este é o resultado da interação verbal com outras linguagens.

Em sua teoria Bakhtin considerou a “incompletude” do romance como princípio construtivo de características, dentre as quais se destacam a literariedade, o plurilingüismo, a pluralidade de vozes e estilo que o romance, como metagênero, oferece e que lhe permite exercitar continuamente a avaliação crítica de suas estruturas. Isto se deve ao fato de que um gênero em florescimento constante não permite a sistematização dos aspectos que o compõem, tampouco a delimitação de suas características de modo idêntico ao estudo dos gêneros literários do passado. Para Bakhtin, o “devir” atribuído ao romance revelou-se como uma nova sensibilidade em relação ao tempo, visto que ele surgiu para representar o presente em sua evolução e instabilidade. Essa característica ímpar foi considerada um privilégio, pois, para Bakhtin, “somente o que evolui pode compreender sua evolução” (1993, p. 400). Tal representação do presente também se afastou de gêneros já consolidados e até mesmo extintos, em que não havia lugar para representações contemporâneas. Bakhtin comentou essa característica romanesca ao afirmar que (p. 419)

quando o presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo, o tempo e o mundo perdem seu

caráter acabado, tanto no todo como na parte. O modelo temporal do mundo modifica-se radicalmente: este se torna um mundo onde não existe a palavra primordial (a origem perfeita) e onde a última palavra ainda não foi dita. O tempo e o mundo tornam-se históricos pela primeira vez.

A principal decorrência desse processo é a possibilidade de o homem introduzir-se a si próprio

no romance, propiciando, assim, uma nova configuração da personagem: oser humano distanciou-se do padrão épico elevado e coeso das “culturas fechadas” para revelar-se tal como é: degradado, inacabado e em meio a um mundo corrompido. Assim, a “transparência luminosa”, referida por Staiger (1997, p. 83) ao comentar o [29]distanciamento do herói clássico e referenciar a aura de perfeição que envolvia a épica tradicional, se dissolveu na medida em que o homem aparente entrou em conflito com seu interior, passando a questionar sua condição, ou seja, quando o sentido de totalidade do passado se

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esvaiu, revelando a dimensão subjetiva que se tornou, no romance, objeto de experiência e representação. Logo, esse homem adquiriu uma iniciativa ideológica e lingüística que modificaram sua imagem e alteraram seu percurso e seu universo.

Tal mudança na representação da personagem foi percebida por Bakhtin na obra de Fiodor Dostoievski, cujas personagens deixaram de ser produto da consciência de um autor para se colocarem como seres plenivalentes capazes de engendrar seus próprios discursos. Bakhtin atribui ao escritor russo a gênese do romance polifônico, assim como do legado de sua tradição crítica.

Para demonstrar sua tese, Bakhtin considerou a obra de Dostoievski a partir do próprio Dostoievski, ou seja, analisou os meios de visão e figuração artística dentro do romance a partir da construção artística e não mais da cosmovisão ou das experiências pessoais do autor. Essa estratégia foi articulada pelo próprio Dostoievski que, em um de seus cadernos de notas, afirmou que seus romances procuravam “descobrir o homem dentro do homem” (Bakhtin, 1997, p. 51), procedimento que passou a empregar na construção de suas personagens.

Em seu livro Questões de literatura e de estética, Bakhtin destaca que houve forte tendência de a produção literária se comprometer com a palavra cultivada pelo meio social enobrecido, a que denominou “cultura oficial”. Afirma, igualmente, que apesar de no século XIX ter havido um renascimento do interesse pelas questões concretas da prosa na arte literária e pelos problemas técnicos do romance e da contemporaneidade, não houve, inicialmente, modificação nas questões concernentes à estilística discursiva, [30] predominando, então, “as mesmas observações valorativas e ocasionais sobre a língua que, por sua vez, se desvincularam inteiramente da verdadeira essência da prosa literária” (p. 72). Bakhtin ressalta também uma forte tendência na história do romance em absorver o padrão cultural e moral em vigor no século XIX, o que garantiu ao gênero a possibilidade de atuar como sofisticada manifestação da cultura letrada e fidedigna expressão do ideal burguês que o consagrou2.

A crítica bakhtiniana, no entanto, interpreta o romance como um processo interno de estratificação da linguagem em que a idéia de unicidade e de unilateralidade enunciadora é questionada pela visualização do movimento intersemiótico das produções culturais do século XIX que corroboram, mais uma vez, a fragmentação da totalidade clássica. Essa constatação faz com que o romance seja percebido como um gênero literário em prosa que se constrói a partir da multiplicidade discursiva de línguas e linguagens que se fundamenta nas raízes medievais e populares do gênero. Tais características, por sua vez, remetem mais uma vez à etimologia da palavra “romance” e na sua relação com manifestações que, igualmente, não se restringem apenas ao discurso da cultura oficial, tampouco a tempos pretéritos.

Além disso, muito embora alguns estudiosos percebam, inicialmente, o predomínio de uma linguagem unívoca associada ao sentido estrito de “verdade oficial”, Bakhtin questiona a noção de romance como representação de um discurso único elaborado pela língua culta. Sua concepção remete para um gênero literário em prosa que se constitui [31] da multiplicidade discursiva de línguas e linguagens, de formas menos sofisticadas e reverentes que após tornarem-se audíveis, deram origem a outras linguagens ou, de acordo com sua terminologia, “outros graus de polifonia”. Daí resulta, mais uma vez, oconceito de romance como representação do homem e de sua linguagem.

Ao estudar o romance diacronicamente, Bakhtin percebeu que, no século XVII, algumas vertentes expressivas do gênero prestigiavam a linguagem e estilos próprios da cultura letrada. Isso fez com que ele direcionasse sua pesquisa para a recuperação dos vínculos históricos com manifestações culturais ocorridas fora da esfera oficial e passasse a valorizar os gêneros ditos menores, como o cômico, por exemplo, que passaram a constituir o romance, descobrindo, em decorrência, as bases de seu hibridismo e de sua polifonia. Desse modo, sua teoria formula a hipótese de que o romance, mesmo como enunciação literária enobrecida e expressa na língua da cultura oficial, contém linguagens e manifestações dialógicas dela apartadas.

Bakhtin desenvolve a partir daí o conceito de literariedade que revela a imagem impressa pela língua culta ao discurso literário para que ele se constitua como representação enobrecida e distanciada 2 A este respeito, Regina Zilberman destaca, em estudo sobre o romance histórico luckasiano, uma tendência inicial do romance em retratar personagens históricas. Era em função delas que a obra se construía, uma vez que essas auferiam o sentido histórico do termo às narrativas. Ao fazê-las verdadeiras representantes da crise histórica, o romance se aproximaria do “enobrecimento” evidenciado por Bakhtin, já que sua figuração ressaltava o discurso da cultura oficial. (Zilberman, 2003, 119).

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do universo requisitado pela cultura oficial, cuja conseqüência inevitável é a hierarquização da linguagem. Considera, ainda, a literariedade uma categoria imprescindível para que haja a delimitação dos princípios que ligam o romance à linguagem da cultura oficial.

A hierarquia revelada pelo uso enobrecido da linguagem revela que a língua cumpre uma determinação ideológica precisa que coube ao romance difundir. Aprofundando sua pesquisa, Bakhtin voltou-se para a Idade Média, dedicando-se ao estudo dos romances de cavalaria e ao empenho neles contido na divulgação dos bons costumes sociais e ao [32] ideal de nobreza e distinção ali presentes. Fincadas na prosa expositiva do romance sofista3, essas gestas buscaram a linguagem como elemento neutro e agradável. Por isso, os heróis medievos utilizam o registro formal da língua, cujo resultado é o enobrecimento de sua figura e do gênero que representam, ainda que suas origens sejam plebéias. Tal característica demonstra que essas personagens criam que a fluência do estilo afastaria qualquer sinal de dissonância dialógica abrupta, além de evidenciar, mais uma vez, o uso exornado da linguagem4.

O princípio da literariedade permaneceu inalterado em diversas fases da prosa romanesca. O romance histórico, por exemplo, reencenou imagens do romance de cavalaria e dos heróis medievais, buscando reaver valores esgarçados no presente que enunciavam, tais como o espírito de nacionalidade, identidade e moralidade. Essa tipologia romanesca se tornou uma demonstração valiosa da linguagem porque nela se imprimiu todo o contexto de criação da língua e do imaginário cultural nacional, como se lê em escritos de Alexandre Herculano e Almeida Garrett, por exemplo. Logo, a retomada do romance histórico e de suas personagens “heróicas”, faz com que se perceba que estes definem muito mais a ideologia do século XIX do que a que vigorou na época de enunciação de suas narrativas, ou seja, ao longo dos diversos estágios de formação das nações e das línguas nacionais. Pondo em cena heróis com traços épicos clássicos, mas que habitavam o mundo degradado do século XIX, o romance histórico tentou esvair a contemporaneidade da prosa romanesca, fazendo valer, mais uma vez, o conceito bakhtiniano de plurilinguagem.[33]

O plurilingüismo, ou seja, o reconhecimento de outras vozes enunciadoras que se tornam o ponto de partida e o centro de uma interpretação ideológica do passado, é outro ponto capital do pensamento de Bakhtin. Se os protagonistas épicos clássicos apresentavam-se desprovidos de qualquer iniciativa ideológica, conhecendo apenas uma única e acabada concepção de mundo que os despojava de iniciativa lingüística, o plurilingüismo capacita o herói romanesco a seguir qualquer destino e figurar em qualquer situação. Para tanto, o fio condutor da linguagem literária pode ser o autor, aqui entendido como figura ficcional, o narrador e também o próprio leitor que passa a operar diversos modos de linguagem como a anedota, a confissão, a paródia, a história de aventuras e outros gêneros literários.

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituíram, como foi referido anteriormente, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski e que se tornaram objeto da pesquisa de Bakhtin. Esse plurilingüismo revela ainda a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo e à luz da consciência una do autor, se desenvolvem nos seus romances. É precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes – aquelas que participam do diálogo com as outras vozes em pé de igualdade, ou seja, sem perderem o seu ser enquanto vozes e consciências autônomas –, que se combinam numa unidade de acontecimentos que lhes mantém autênticos. Dentro do plano artístico de Dostoievski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente proferidos pelos seus próprios sujeitos sem se subjugarem a esquemas histórico-literários (Bakhtin, 1997, p. 5).

Em Problemas da poética de Dostoievski, Bakhtin aprofunda seus estudos sobre o romance e a voz, aplicando à literatura algumas idéias sobre interação verbal. Para ele, a [34] estratégia central do escritor russo não está em defender o poder dominador do argumento ou do discurso de uma das personagens, mas em catalisar a interação criativa dos discursos heteroglotas e plenivalentes das diferentes personagens. Logo, o que é posto em cena é a troca dialógica que essas personagens realizam sem perderem sua individualidade. Bakhtin rejeita, portanto, a noção unívoca ao defender idéias que

3 Coube aos sofistas a idéia de que o homem era a medida de todas as coisas, o que, por sua vez, resultou na atribuição de grande importância à linguagem e no desenvolvimento da gramática, da eloqüência e da retórica. 4 Aristóteles denomina linguagem exornada o uso eficaz da língua da cultura letrada através do emprego de ritmo, melodia e canto da tragédia e da épica. (Aristóteles, 1997, p. 24).

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atuam como eventos intersubjetivos elaborados no ponto de encontro, no diálogo entre as diversas consciências.

Tal concepção de diálogo se aplica à visão de Dostoievski sobre a relação entre autor e herói. No modelo polifônico, o herói romanesco é simultaneamente autoconsciente e desfruta de uma certa independência em relação ao autor. O herói romanesco se ilumina através de sua autopercepção enquanto emerge em diálogos explícitos e/ou implícitos com as demais personagens e se mira no espelho da consciência dessas outras personagens, assim como das palavras possíveis a seu respeito. Sua existência é marcada por inúmeros conflitos que lhe fazem perceber as fraturas do presente e do passado. Assim, destituído da curva heróica clássica por estar apartado da totalidade dos tempos de outrora, resta a esse herói do romance assumir-se como um ente degradado e, mais uma vez, “problemático”.

A concepção de Bakhtin sobre esse herói reflete também uma abordagem parodizante e carnavalesca que rejeita qualquer visão imperialista do autor em relação às suas personagens. Essas, por sua vez, não têm necessidade dele para serem (re)conhecidas, nem podem ser confinadas aos discursos que ele tece a seu respeito. É através deste pressuposto que Dostoievski põe em xeque a cultura oficial ao prezar o discurso dos vencidos sobre seus algozes e repudiar dicções finalizantes sobre o tema. [35]

Tais procedimentos são apontados no livro Questões de literatura e de estética, em que Bakhtin afirma os níveis de independência discursiva resultantes da polifonia. Dentre eles, o autor discorre longamente sobre o riso, afirmando ser ele uma das instâncias que destrói a distância clássica e subverte qualquer hierarquia de afastamento axiológico. Para a eclosão do riso, faz-se necessária, portanto, a proximidade da qual os gêneros elevados carecem. Ao contrário do que afirma Aristóteles, para Bakhtin, um objeto não pode ser cômico à distância posto que a comicidade reside na aproximação desse objeto à realidade vivida, à

zona do contato direto, onde é possível apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso,

examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade (1993, p. 413).

É pela via do riso e da dessacralização que o plurilingüismo torna-se mensurável, que o temor e

a veneração são destruídos e o objeto liberto. O ato de rir propicia a compreensão realista do universo e o faz pela subversão e total aniquilamento de valores totalitários característicos do universo retratado pela prosa romanesca e pelas múltiplas figurações de seu herói.

A carnavalização é uma das vias por que essa inversão de valores se dá e é, na teoria de Bakhtin, perceptível na obra literária de François Rabelais. Este escritor, segundo o teórico russo, não foi totalmente compreendido porque os especialistas deixaram de lado os profundos laços que o uniram à cultura popular, especificamente sob a forma de festividades do povo, como o carnaval, sem levar em consideração os gêneros literários associados a esses festejos, ou seja, a paródia e o realismo grotesco5. [36]

Ensina-nos ainda Bakhtin que, no despontar do Renascimento, o carnaval desempenhou um papel simbólico fundamental na vida das pessoas, já que, durante esses festejos, elas adentravam a esfera daquilo que se denomina “liberdade utópica”. O carnaval representava, nessa época, uma cosmovisão alternativa que se caracterizava pelo questionamento lúdico de quase todas as formas. Logo, o princípio carnavalizante abole as hierarquias, redimensiona as classes sociais e as restrições convencionais. Ao longo dessa festividade, tudo que se insere na marginalização, na exclusão, na insensatez, na profanação e no aleatório se apropria do centro, criando o que Bakhtin denomina explosão libertadora. Princípios corpóreos materiais como a fome, a sede, a copulação e a defecação tornam-se uma força positivamente corrosiva e o riso festivo celebra uma vitória simbólica sobre a morte e o que é considerado opressivo.

5 Alguns teóricos, como R. Hayman, observam que o realismo grotesco, que envolve o baixo material e corporal, tal como descrito por Bakhtin, constitui uma visão que necessita de complementação com os sentimentos descritos pela visão do grotesco romântico de Wolfgang Kaiser, para quem medo e terror são instâncias fundamentais. Bakhtin parece ignorar, ou pelo menos desvalorizar, o fato de que, a fim de provocar a sensação ambivalente carnavalesca, é preciso que o carnaval comporte também terror, repugnância e formas de medo que o riso aberto poderia dissipar. Em resumo, Bakhtin ressalta constantemente a ambivalência das imagens do realismo grotesco, mas é antes sobre os aspectos positivos que seu texto se detém, considerando a transformação, no período romântico, como uma degeneração e um enfraquecimento.

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A concepção que Bakhtin tem de Rabelais é a de um rebelde libertário, cuja vitalidade inexaurível se deve ao fato de ele nutrir a sua arte na raiz principal da cultura popular do seu tempo. Ao transpor para a literatura o espírito do carnaval, Rabelais reafirmou que este nada é mais que a própria vida transformada de acordo com um determinado modelo de ludismo e de brincadeira. Nenhum dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha pode conviver com a natureza não oficial, indestrutível que as imagens rabelaisianas suscitam. Por isso, Bakhtin faz um levantamento de várias manifestações de cunho popular que, durante a Idade Média, se opunham ao espírito feudal e eclesiástico: a “festa dos tolos” (festa stultorum), em que o Rei Momo reinava sobre a desordem cômica; a “ceia de Cipriano” (coena cypriani), em [37] que o texto bíblico era travestido segundo os princípios da carnavalização; a paródia sacra, na qual as liturgias católicas eram parodiadas, o “riso pascoal” (risus paschalis), que dessacralizava o sacrifício de Cristo e a “festa do asno”, uma comemoração cômica da fuga de Maria para o Egito, em que esse animal atua como protagonista. Obviamente, a igreja católica era o cerne da crítica veiculada por tais festividades, o que reforça a idéia de, no carnaval, as barreiras e distinções hierárquicas serem abolidas temporariamente para que um novo tipo de comunicação baseado no conto livre e familiar, as substitua.

Rir representa uma alegria cósmica e de âmbito universal que se dirige para tudo e todos. Esse riso se reveste de significados filosóficos ao exprimir um ponto de vista particular sobre a experiência e não menos profundo que a seriedade, o que representa uma vitória sobre o medo que torna comicamente grotesco tudo o que aterroriza e distancia. O riso popular, por essa razão, triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte, além de propiciar a queda simbólica da hierarquia sufocante e repressora. Em Rabelais, o riso assumiu uma nova dimensão que aponta para uma nova consciência crítica através da qual o dogmatismo e o fanatismo são ridicularizados.

Um dos loci de enunciação das imagens suscitadas por Rabelais está intimamente ligado à idéia de banquete enquanto transferência temporária para um mundo utópico de prazer e de abundância que é feito a partir de muitas alusões à comida e à bebida. Essa idéia de festejo se associa à heteroglossia festiva de elogios e insultos que acompanham esses festins e, obviamente, passa também a ser um dos elementos caracterizadores do herói romanesco totalmente integrado ao seu tempo. Nesse sentido, o corpo grotesco passa a agir como “local de vir-a-ser” e seus elementos-chave são aqueles que, igualmente, transgridem limites: os intestinos, falos e as convexidades [38] ressaltam para o mundo ou para aquilo que absorve o mundo. Ao focalizar a cópula, o nascimento, a defecação e a liberação de gases, a carnavalização mais uma vez oferece suspensão de tabus e imposições culturais, transportando tudo o que é espiritual, ideal e abstrato para o nível material da terra e do corpo. Os excrementos constituem o que Bakhtin denomina o estrato físico material mais baixo e sua figuração é sempre hiperbólica a ponto de a micção do gigante Pantagruel inundar cerca de dez léguas ao seu redor.

Outro aspecto relevante a ser ressaltado é o caráter multifacetado do carnaval bakhtiniano que se apresenta, simultaneamente, textual, intertextual e contextual. O carnaval não é apenas uma prática social específica, mas também uma espécie de reserva geral e perene de formas populares e rituais festivos. Para ele concorrem a valorização da força vital dos mitos perenes da natureza, a noção de bissexualidade e de travestimento como relaxamento aos papéis sexuais impostos socialmente; a celebração do corpo grotesco excessivo e dos órgãos sexuais como recusa a concepções morais; a noção de inversão social e subversão simbólica do poder estabelecido; a imagem do mundo social e político como coroamento e descoroamento, além da mudança perpétua como fonte da esperança popular; uma perspectiva em relação à linguagem polivalente e bivocal que valoriza o inusitado, o obsceno e o vulgar como expressão lingüística da criatividade popular. Todas essas características resultam na eliminação das barreiras que separam o espectador do espetáculo, propiciando ao carnaval um verdadeiro sentido de libertação que obviamente se associa à personagem romanesca.

As considerações levantadas até o momento tornam claro que estudar o herói romanesco implica um debruçar-se diacrônico sobre as diversas épocas da história e das [39] sociedades, o que faz com que essa personagem assuma contornos diversos, muitas vezes díspares e opostos entre si.

Nesse sentido, busco mais uma contribuição teórica capaz de revelar a complexidade e plurilinguagem relacionadas ao herói romanesco e, para tanto, convoco Hayden White. Os pressupostos da teoria apresentada por este autor contribuem para esse estudo na medida em que estabelecem taxonomias e tipologias universais que reconhecem diferenças localizadas e singulares que visam a

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identificar as figuras retóricas que comandam e constrangem todos os modos possíveis da narração romanesca que se pretende estudar.

Em Trópicos do discurso, White afirma que as narrativas históricas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos” (1994, p. 98); por isso, a confecção de um registro translada a herança cultural de quem escreve, ou seja, sua representação escrita. Se essa é representação, a narrativa não é seu ícone, porém passa a remeter para tal através da ficção que se faz a seu respeito. Se, de igual modo, a narrativa não revive o passado tal qual este se deu, a relação entre o passado e o enredo se revela paradoxal. Por isso, a fim de estabelecer um estudo de diferentes épocas, White propõe – a partir de postulados de Giambattista Vico, no século XVIII – quatro tropos clássicos a serem estudados que são, a saber: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e, com um estatuto particular, a ironia. Vico destaca apenas estas quatro figuras de linguagem por condensarem todas as demais.

Afirma ainda que o sistema de relações entre a metafísica – a ciência das coisas nas formas de seu ser – e a lógica – a das formas pelas quais essas coisas podem ser significadas –, é explicado pela filosofia da linguagem de que White se apropria para atualizá-la. Desse modo, a lógica poética atribuída ao homem “primitivo” difere da do [40] moderno devido às novas diretrizes assumidas pelo pensamento ao longo da evolução do pensamento humano.

Nos tempos de outrora, tal pensamento oscilava do familiar ao não-familiar e do concreto para o que se poderia denominar abstrato, de modo que as formas pelas quais as coisas eram então significadas devem ser sempre pensadas como a projeção do não-familiar de atributos que podem caracterizar o familiar. Sendo assim, as origens e a evolução do pensamento humano são sistematizadas nos poderes do homem primitivo e passam a denominar seu universo, ainda que através de onomatopéias, a fim de distinguir e dotar de características específicas os demais objetos que o integram. Aí se localiza a identificação de Vico ao sentido clássico do logos grego com a lógica, já que a dos homens primitivos se resumia a nomear e não a compreender integralmente seu espaço circundante. Vico ainda cria que a primeira linguagem não se coadunava com aquilo com que lidava concretamente, mas sim com sentidos e paixões dos mitos e fábulas que nos foram legados e que constituem nossas bases culturais.

São elas que definem as diversas épocas focalizadas pela literatura e os textos ali produzidos. Através, portanto, dos tropos literários, torna-se possível estudar essas diversas fases, definidas como a época dos deuses, a dos heróis, a dos homens e a da decadência. Essas formas tropológicas se combinam e se expressam através dos gêneros literários, permitindo uma leitura múltipla, como se verá adiante, das diversas épocas que se fazem coerentes com as figurações do herói pepeteliano.

Através de seus pressupostos, White não apenas atualiza o pensamento de Vico, mas busca novas constantes das bases temporais que engendram as estruturas temporais das experiências que regulam os modos de representação e de narração da história. Por isso, o título escolhido por White para sua obra, no caso a palavra “trópico”, [41] denota perfeitamente as variantes a que o herói romanesco se associa, posto que, etimologicamente, este vocábulo deriva do grego clássico tropikos, que significa “mudança” e “variação”. Desse modo, torna-se possível uma compreensão mais ampla dos discursos que são atribuídos ao herói romanesco, assim como os muitos outros que, na esteira do pensamento bakhtiniano, ele mesmo é capaz de tecer sobre si (White, 2001, p. 14).

A partir da metáfora, considerada um tropo primário, surgem a sinédoque e a metonímia que caracterizam cada uma das épocas citadas anteriormente. Tanto White quanto Vico consideram a ironia como refinamento dos tropos anteriores, o que faz com que ela se oponha aos demais, profanando, assim a sacralidade do fato histórico “pela desmontagem do caráter absoluto que a faz superar o fardo e o pesadelo da história” (Mata, 2003, p. 186).

Portanto, como a metáfora constitui a base do mito, a fuga da linguagem metafórica para uma outra notadamente figurativa torna-se possível pelo despontar da sensibilidade irônica que se torna perceptível na medida em que novas vozes discursivas questionam o status caracterizador das épocas anteriores. Através desses procedimentos, a dialética do discurso tropológico em si se torna concebível como meio pelo qual se pode explicar a evolução do homem, ou, como enuncia Walter Benjamin, constatar-se “a profunda perplexidade de sua existência” (1997, p. 201).

� É bem provável que as referências que o autor usou para escrever este capítulo de sua tese lhe interessem. Neste caso, recomendo o download do texto integral a fim de que você possa ter acesso às referências.

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Elementos da narrativa – Tempo

� Comece o estudo deste tópico com a leitura das páginas (21-22) referentes a este assunto no capítulo “Para ler a prosa de ficção”, de Ulisses Infante, depois leia as páginas (44-46) referentes a este assunto no “Operadores de Leitura da Narrativa”, de Arnaldo Franco Jr.

�Verbetes do Dicionário de Teoria da Narrativa: a. Tempo, 220, 294. b. Ordem temporal, 267; Anacronias, 229; Analepses, 230;

Prolepses, 283. c. Velocidade, 297; Isocronia, 262; Anisocronia, 232. d. Cena, 233; Pausa, 273; Sumário,293; Elipse, 242;

Extensão, 245; e. Frequência, 257.

Agora siga para os textos de Donald Schuller e Benedito Nunes.

SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 1986. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2ª Ed. São Paulo: Ática. 1995.

SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 1986.

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NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2ª Ed. São Paulo: Ática. 1995.

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3

2. O ESPAÇO

São relativamente recentes os trabalhos que objetivam o estudo do espaço

enquanto categoria da estrutura narrativa e diversas razões podem ser apontadas como

as causas da ausência de trabalhos sobre este assunto. A definição de seu objeto, o que

suscita considerações ainda um tanto vagas, pode ser a principal delas. Em áreas como

Geografia, Teoria da Arte, Física, Filosofia, Urbanismo e Semiótica, o termo espaço

assume diversas funções, além, naturalmente da importância teórica. No entanto, essa

multifuncionalidade e transdisciplinaridade do conceito de espaço, cria uma série de

dificuldades pela ausência de um significado único, além das diferentes funções que o

termo representa em cada uma das áreas citadas.

O ‘espaço literário’ ora é considerado como meio em que ação ficcional

acontece, ora como meio físico ou social em que os personagens interagem. Além

disso, boa parte dos estudos e análises críticas, detém o foco no tempo em detrimento

do espaço, deixando uma lacuna no entendimento dos textos literários.

No âmbito da Teoria Literária tais oscilações de significados são atribuídas às

diversas correntes do pensamento, originando diferentes concepções sobre o que seja

espaço. Citaremos aqui alguns destes conceitos visando dar uma noção de quão

abrangente é o estudo do espaço literário.

Conforme Massaud Moisés, o espaço

... constitui outro ingrediente em que deve atentar o analista de ficção. Como se sabe uma narrativa pode passar-se na cidade ou no campo, mas depende de seu caráter linear ou vertical a maior ou menor importância assumida pelo cenário. Na verdade, a freqüência e a intensidade e densidade com que o lugar geográfico se impõe no conjunto de uma obra ficcional está em função de suas outras características.(MOISÉS, 1999: 107)

MARTINS, Sandra Maria. "O Espaço em 'O Atirador' e 'O Primeiro Vôo' de Liam O'Flaherty". 2008. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Letras) - Universidade Federal do Paraná. Orientador: Luci Maria Dias Collin.

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4

Essas outras características a que Massaud se refere, podem ser o tipo de

narrativa – linear ou vertical -, bem como a forma literária – o conto, a novela ou o

romance. Segundo ele, em um romance linear – romântico, realista ou moderno – o

cenário funciona apenas como pano de fundo, estático e fora das personagens, descrito

como um universo de seres inanimados e opacos.

Na década de 1970, Osman Lins apresenta e publica sua tese de doutorado,

Lima Barreto e o Espaço Romanesco. Dos sete capítulos da tese, três (IV,V,VI) são

dedicados à análise do espaço, ampliando de forma significativa o entendimento

crítico sobre a referida noção. No capítulo IV, ele teoriza o espaço utilizando trechos

de inúmeros romances não sem antes esclarecer que espaço e tempo são

indissociáveis.

Move-se o homem e recorda o passado. Nada disso o pacifica ante o espaço e o tempo, entidades unas e misteriosas, desafios constantes à sua faculdade de pensar.(....). Não só o espaço e tempo, quando nos debruçamos sobre a narrativa, são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros. (...) Note-se ainda que o estudo do tempo ou do espaço num romance, antes de mais nada, atém-se a esse universo romanesco e não ao mundo. (LINS, 1976: 63)

Explicando e esclarecendo a distância que existe entre o espaço e a ambientação, Lins

prossegue:

O estudo de uma determinada personagem será sempre incompleto se também não for investigada a sua caracterização. Isto é: os meios, os processos, a técnica empregada pelo ficcionista no sentido de dar existência à personagem. Pode-se dizer, a grosso modo, que a personagem existe no plano da história e a caracterização no plano do discurso. A personagem diz respeito ao objeto em si, a caracterização, à sua execução. Essa é a distância que existe entre espaço e ambientação. (LINS, 1976:77).

Cabe aqui ressaltar que entendemos ambientação como o conjunto de processos

conhecidos ou possíveis, que provocam na narrativa o sentido de determinado

ambiente. Já a noção de espaço é entendida através de nossa experiência de mundo.

No que diz respeito à narrativa (narrador e personagem), LINS sistematiza três

tipos diferentes de ambientação: ambientação franca – onde o narrador (nomeado ou

não) observa o exterior e verbaliza-o; ambientação reflexa – característica das

narrativas na terceira pessoa, onde todas as coisas narradas são percebidas através da

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5

personagem; ambientação dissimulada ou oblíqua – exige a personagem ativa, criando

uma harmonização altamente satisfatória entre o espaço e a ação: os “atos da

personagem vão fazer surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus

próprios gestos.” (LINS, 1976: 83-4)

Para Lins, é importante notar que a rigor não se pode isolar num estudo, a

funcionalidade de um elemento espacial (assim como de uma personagem, de uma

estrutura temporal, etc.). Nesse capítulo ele estabelece quão importantes são as

relações personagem/espaço. Afirma, por exemplo, que o espaço caracterizador é em

geral restrito - um quarto, uma casa – e, dependendo de como os objetos escolhidos

são dispostos nesse espaço, ele refletirá o modo de ser da personagem. Se há espaço

que nos revela uma personagem, há também o que lhe fala ou lhe influencia.

Já Antonio Dimas em Espaço e Romance defende que a abordagem sobre o

tema vá além de estudos que propõem apenas uma “geografia literária”. Dedica o

segundo capítulo do livro à crítica de – Lima Barreto e o espaço romanesco, de

Osman Lins, afirmando ter sido esse trabalho, uma das mais concretas e especulativas

contribuições, que situam com maior clareza o assunto espaço, na narrativa.

Mais recentemente, o estudo do espaço literário, tem sido motivo de muitas

teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos em revistas literárias bem como

livros de Teoria da Literatura.1 Vale aqui destacar a Revista Aletria – revista de

estudos da literatura, organizada e editada pela Faculdade de Letras e pelo Programa

de Pós Graduação em Letras: estudos literários, da UFMG, tendo como um dos

organizadores o professor Luis Alberto Brandão Santos, que tem sua décima quinta

edição (Jan/Jun-2007), toda dedicada ao assunto em questão – o espaço. Diversidade e

riqueza são os ingredientes dos vinte e um artigos que abordam aspectos estéticos,

históricos, científicos, políticos, filosóficos, semiológicos. O conflito entre acepções

do termo espaço, é o que “revela a provocativa combinação – em diferentes arranjos –

de teoria, análise e escrita literárias”. (Editorial:7)

1 Exemplos de nossa argumentação são encontrados nos recentes trabalhos de Susan Blum Pessôa de Moura. Abrindo as portas para ir brincar: explorando os espaços de Final del Juego. Curitiba, 2004. 172p. Dissertação (Mestrado em Literatura), Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná e Paulo Astor Soethe. Ethos, corpo e entorno: sentido ético da conformação do espaço em Der

Zauberberg e Grande Sertão:veredas. São Paulo, 1999. 184p. Tese (Doutorado em Literatura Alemã), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

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6

Sujeito, Tempo e Espaço Ficcionais - Introdução à Teoria da Literatura,

escrito por Luis Alberto Brandão Santos e Silvana Pessôa de Oliveira2, se propõe a

introduzir questões fundamentais, para leitores iniciantes no pensamento teórico sobre

o texto literário, bem como, apresentando um caráter especulativo, aborda a teoria

como espaço de investigação, ao contrário de conceitos predeterminados.

Todos os autores acima citados, ao lado de outros como Gisela Pankow,

Mikhail Baktin, Antonio Candido, Gaston Bachelard, Simon Chama, Joseph Frank,

são de suma importância para o entendimento da evolução ocorrida nos estudos

teóricos sobre o espaço enquanto categoria narrativa, nos últimos quarenta anos. Deles

nos valemos para a elaboração deste trabalho, e mais especificamente ‘Espaço e

Literatura’ (capítulo três), em Sujeito, Tempo e Espaço Ficcionais de Luis Alberto

Brandão e Silvana Pessôa. (BRANDÃO e PESSÔA, 2001: 67).

Visando focalizar os procedimentos teóricos que darão base à nossa análise dos

contos de Liam O”Flaherty, a primeira observação que aqui gostaríamos de registrar é

a argumentação feita por Brandão de que, para SER, qualquer ente - humano ou não,

animado ou inanimado – necessita ESTAR. Imaginemos esse ente, um personagem

ficcional. Se ele é, significa que está, posicionado em relação a outros elementos, num

espaço que pode ser: físico (espaço geográfico), temporal (espaço histórico), em

relação a outras personagens (espaço social), em relação às suas próprias

características existenciais (espaço psicológico), em relação a formas como essa

personagem é expressa e se expressa (espaço de linguagem).

É o espaço que interfere na condução e no desenvolvimento da narrativa,

revelando o modo de ser da(s) personagem(ns), bem como influenciando seu

comportamento e a sua atuação. Assim, serão esses elementos, enumerados por

Brandão e Pessôa, que nortearão a análise dos dois contos selecionados para este

trabalho, “O Primeiro Vôo” e “O Atirador”3 do autor irlandês Liam O’Flaherty.4

2 Martins Fontes, 2001. 3 Estes contos aparecem na íntegra, no original e tradução nos Anexos 3 e 4. 4 Daqui para frente referido apenas como O’Flaherty.

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FRANCO Jr., Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Ozana. Teoria literária: abor-dagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Editora da UEM, 2003. p.33-56

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