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Antes e depois da Arqueologia da Arquitectura: um novo ciclo na investigação da mesquita-catedral de Idanha-a-Velha PAULO ALMEIDA FERNANDES Introdução Uma parte substancial deste texto foi concebida como relatório prévio ao programa de leitura de paramentos / arqueologia da arquitectura, realizado sob coordenação de Luís Caballero Zoreda e integrado no projecto Arqueologia de Ia Arquitectura Altomedieval en Extremadura, Asturias y Portugal, finan- ciado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia de Espanha 2 . Pretendia ser um contributo que reflectisse a herança historiográfica de meio século de investi- gação arqueológica e artística sobre a controversa mesquita-catedral de Idanha- -a-Velha, onde, simultaneamente, se elencassem as principais conclusões dos autores que, até à data, se haviam dedicado a este monumento e se expusessem os múltiplos problemas de interpretação e de conclusão com que se haviam defrontado, os «becos sem saída» que tanto contribuem para o fascínio com que esta obra é encarada por todos que a pretendem compreender. Uma dominante comum à investigação produzida sobre o conjunto egita- nense reside no constante recurso ao método comparativo como forma de ultra- passar os impasses interpretativos. A aplicação desta metodologia, mais carac- terística da História da Arte, foi a tentativa de superação da comunidade cientí- fica de lacunas de índole arqueológica, sentidas desde, praticamente, os anos 50 do século XX e, infelizmente, de uma flagrante actualidade nos dias de hoje. Fernando de Almeida, escavando ao longo de quase duas décadas, deixou-nos a principal herança historiográfica do local, mas as preocupações metodológicas que nortearam a sua acção e a estratégia de publicação de resultados que seguiu revelam-se, hoje, insuficientes perante os problemas que qualquer estudo sobre 1. Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR). [email protected]. 2. A análise estratigráfica do edifício de Idanha-a-Velha foi possível pela inclusão do monu- mento num projecto de investigação coordenado por Luis Caballero Zoreda e que contou com o apoio da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova (que proporcionou o alojamento e alguns aspectos logís- ticos). Os trabalhos de campo e de gabinete decorreram em Setembro e Outubro de 2004, repartidos entre Idanha-a-Velha e Madrid. Uma primeira versão da Memória desse contributo foi concluída em Maio de 2005 e os primeiros resultados começam, agora, a ser publicados (CABALLERO, 2006). Aguarda-se, todavia, que seja possível reunir toda essa informação num volume único. ARTIS - REVISTA DO INSTITUTO DE HISTÓRIA DA ARTE DA FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA, n." ã (2006) JH-72

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Antes e depois da Arqueologia da Arquitectura:um novo ciclo na investigação

da mesquita-catedral de Idanha-a-Velha

PAULO ALMEIDA FERNANDES

Introdução

Uma parte substancial deste texto foi concebida como relatório prévio aoprograma de leitura de paramentos / arqueologia da arquitectura, realizadosob coordenação de Luís Caballero Zoreda e integrado no projecto Arqueologiade Ia Arquitectura Altomedieval en Extremadura, Asturias y Portugal, finan-ciado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia de Espanha2. Pretendia ser umcontributo que reflectisse a herança historiográfica de meio século de investi-gação arqueológica e artística sobre a controversa mesquita-catedral de Idanha--a-Velha, onde, simultaneamente, se elencassem as principais conclusões dosautores que, até à data, se haviam dedicado a este monumento e se expusessemos múltiplos problemas de interpretação e de conclusão com que se haviamdefrontado, os «becos sem saída» que tanto contribuem para o fascínio com queesta obra é encarada por todos que a pretendem compreender.

Uma dominante comum à investigação produzida sobre o conjunto egita-nense reside no constante recurso ao método comparativo como forma de ultra-passar os impasses interpretativos. A aplicação desta metodologia, mais carac-terística da História da Arte, foi a tentativa de superação da comunidade cientí-fica de lacunas de índole arqueológica, sentidas desde, praticamente, os anos 50do século XX e, infelizmente, de uma flagrante actualidade nos dias de hoje.Fernando de Almeida, escavando ao longo de quase duas décadas, deixou-nos aprincipal herança historiográfica do local, mas as preocupações metodológicasque nortearam a sua acção e a estratégia de publicação de resultados que seguiurevelam-se, hoje, insuficientes perante os problemas que qualquer estudo sobre

1. Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR). [email protected]. A análise estratigráfica do edifício de Idanha-a-Velha foi possível pela inclusão do monu-

mento num projecto de investigação coordenado por Luis Caballero Zoreda e que contou com o apoioda Câmara Municipal de Idanha-a-Nova (que proporcionou o alojamento e alguns aspectos logís-ticos). Os trabalhos de campo e de gabinete decorreram em Setembro e Outubro de 2004, repartidosentre Idanha-a-Velha e Madrid. Uma primeira versão da Memória desse contributo foi concluída emMaio de 2005 e os primeiros resultados começam, agora, a ser publicados (CABALLERO, 2006).Aguarda-se, todavia, que seja possível reunir toda essa informação num volume único.

ARTIS - REVISTA DO INSTITUTO DE HISTÓRIA DA ARTE DA FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA, n." ã (2006) JH-72

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o monumento enfrenta. Intervenções mais recentes, que acompanharam os res-tauros do edifício e que actuaram sobre uma significativa parcela da suaenvolvência, não foram, até ao momento, publicadas, à excepção de algumasnotas de José Cristóvão (2002).

Face a este panorama, e na impossibilidade de contar com outros contri-butos metodológicos, a constante busca de paralelos estilístico-tipológicos foiuma das poucas opções que diversos autores tiveram para melhor contextualizaro edifício numa Alta Idade Média peninsular plena de problemas e de debates, amaioria bastante mais profundos que a actual capacidade de resposta por parteda comunidade científica.

É desta forma que, meio século depois das primeiras escavações arqueoló-gicas na tradicionalmente chamada «Catedral visigótica de Idanha-a-Velha»,não existe ainda consenso acerca da cronologia e funcionalidade originais doedifício. Por paradoxal que possa parecer a quem não conheça os múltiplosproblemas que o monumento suscita, até ao momento não foi possível concluiracerca de aspectos tão fundamentais como a época em que foi construído ou osobjectivos que presidiram à sua edificação. Debate-se, ainda, se esta obra seficou a dever à iniciativa cristã, como durante tantos anos se pensou, ou se, pelocontrário, é o produto de um desconhecido estabelecimento islâmico, ou, ainda,se se trata de um templo sincrético, próprio de uma região de fronteira, marginale periférica, distante de qualquer dos centros civilizacionais da denominada«Reconquista». Paralelamente, questiona-se a sua relação com os níveis de ocupa-ção sobrepostos no local e com outros edifícios, que as ruínas nas imediaçõesdeixam antever.

1. A inconclusiva herança historiográfica

Em Setembro de 1955, quando Fernando de Almeida iniciou os trabalhosarqueológicos na Egitânia, a antiga Igreja de Nossa Senhora de Idanha-a-Velhae, então, cemitério da aldeia, surgia como a mais monumental referência de umpassado glorioso, que tinha elevado a localidade a cidade romana e a diocesesuevo-visigótica. Abundantes vestígios materiais da época romana, e numerosasreferências documentais dos inícios da Idade Média, faziam deste monumento osímbolo e o centro da investigação arqueológica que então se iniciava.

À distância de meio século, a avaliação das conclusões de Fernando deAlmeida pode parecer redutora, tendo em conta quer o ambicioso programa deintervenção por si delineado quer as actuais exigências da investigação arqueo-lógica. A verdade, porém, é que, até essa data, nunca a Arqueologia da AltaIdade Média em Portugal havia conhecido um programa de intervenção coerentee definido a médio / longo prazo. E para a história de Idanha-a-Velha, o projectode intervenção de Fernando de Almeida invertia o inexorável abandono daaldeia, dotando-a, pela primeira vez, de uma perspectiva cultural de desenvolvi-mento. Perante estes dados, não restam dúvidas sobre o carácter pioneiro do

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seu trabalho, uma apreciação que o natural progresso da História da História daArte e da Arqueologia se encarregará certamente de confirmar.

1.1. Uma heterodoxa catedral de época visigótica

Fernando de Almeida nunca questionou a funcionalidade e a cronologiadeste monumento (pelo menos, os trabalhos publicados que nos deixou assim olevam a crer). É um facto que todas as indicações o conduziram «naturalmente»ao período visigótico. O momento historiográfico peninsular que se vivia, e doqual foi o herdeiro português directo, criara uma arte visigótica de excepcionalqualidade, onde se incluíam todas as grandes obras da Alta Idade Média, numagradação qualitativa progressivamente degenerativa, à medida que a Históriase afastava do império romano (FERNANDES, 2004). Por outro lado, a sólida pes-quisa documental por si efectuada, e que preparou a intervenção arqueológica,acentuava o carácter catedralício do monumento. Três séculos depois da trans-ferência da diocese para a Guarda, os visitadores da Ordem de Cristo nãodeixaram de evidenciar que a igreja, «ainda se chama Sée» (publ. BRANCO, 1998:13), sinal claro de uma ancestralidade diferenciadora face ao estatuto dos outrosedifícios religiosos da aldeia 3.

A consciência de que se trabalhava na Sé visigótica da Egitânia foi, assim,um ponto pacífico e perfeitamente (pré)assumido por Fernando de Almeida.Logo no primeiro trabalho por si publicado, relativo à intervenção arqueológica,refere-se ao «ressuscitar da velha catedral egitaniense» (ALMEIDA. 1957: õ),expressão que tem também significado no campo do restauro do edifício e darenovada atenção pela aldeia.

Catedral monumental visigótica, ao restaurado símbolo de Idanha-a-Velhafaltava uma cabeceira, elemento que Fernando de Almeida procurou nos toposSul e Norte da nave central, sem chegar a conclusões concretas ' (Figs. l e 2).Para além disso, a relativa desorientação canónica do templo (com uma ligeirarotação rio sentido NE.-SÓ.) foi desvalorizada, constituindo um facto não proble-matizado. De igual forma, a excessiva amplitude da nave central em relação às

3. Esta ancestralidade. reconhecida nos inícios do século XVI. dificilmente corresponderá à cons-ciência de que o edifício tinha sido a Catedral visigótica. Depois de reconquistada a região, a diocesefoi retomada em 1197. devendo o bispo ter-se instalado neste monumental edifício - o único que.naquele século XII, daria garantias de poder desempenhar as funções catedralícias. Com a trans-ferência do bispado para a Guarda, logo em 1199. terá ficado a memória desse efémero estatuto.

4. Em 1962. na altura da publicação da sua dissertação de Doutoramento, concluía por umacapela-mor única, de planta quadrangular. correspondente à largura da nave central e definida noprolongamento das arcarias que separavam o interior em três naves (1962: p. 175). Contudo, nessemesmo ano. a descoberta do baptistério (ALMEIDA, 1965) conduziu à rejeição desta proposta. Aoocupar parcialmente essa suposta capela-mor, o autor viu-se forçado a equacionar a sua existênciano topo oposto, do lado Norte. Infelizmente, nos quinze anos que se seguiram, nunca chegou a desen-volver trabalhos arqueológicos em profundidade nesta zona. pelo que a presumível capela-mor nuncafoi verdadeiramente identificada.

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Fig. l - Idanha-a-Velha. Plantada «catedral visigótica»,

segundo Fernando de Almeida. 1962

Fig. 2 — Idanha-a-Velha. Plantada «catedral visigótica».

segundo Fernando de Almeida. 1977

naves laterais, que lhe conferiam uma clara monopolização do espaço interior,foi também considerada normal. Para o primeiro arqueólogo da Idanha, o planobasilical assegurava a funcionalidade cristã catedralícia do monumento. E aabundante documentação relativa à diocese suevo-visigótica, a que se asso-ciavam os vestígios materiais identificados no interior do monumento (restos deescultura de mármore, um fragmento de uma gelosia e um triente do reinado deRecesvinto), confirmavam a cronologia visigótica da obra (ALMEIDA, 1962: 177).

Esta catalogação fez escola na historiografia peninsular. Nomes tão impor-tantes para as últimas gerações de investigadores, como Pere de Paiol (1968:132), Theodor Hauschild (1986, p. 160, com reservas) e Carlos Alberto Ferreirade Almeida (1986: 46, apesar de lamentar a falta de informação arqueológica),reafirmaram as conclusões de Fernando de Almeida e, gradualmente, ao longodas décadas de 70 e de 80, as obras de síntese sobre a Alta Idade Média consoli-daram a perspectiva de vima catedral de época visigótica.

A única voz discordante foi a de Jacques Fontaine. Adoptando uma posiçãoprudente em relação aos resultados das escavações, concluiu que a identificaçãodeste monumento como catedral visigótica era o resultado de «um excesso deentusiasmo» (1992: 436). No entanto, a pouca receptividade destas palavrasficou mais a dever-se à alternativa cronológica que apresentou: uma construçãode época quinhentista, relacionável com o reinado de D. Manuel (retomada

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muito recentemente por PEREIRA, 2001: 122-123), hipótese claramente rejeitadaface aos dados arqueológicos até então identificados.

Ao longo de mais de três décadas, assistimos, assim, a uma interpretaçãovisigotista do monumento, que constantemente reafirmou a relação do edifíciocom a primitiva diocese suevo-visigótica. Todavia, esta uniformidade historio-gráfica não foi suficiente para consolidar todas as opiniões expressas porFernando de Almeida.

As perspectivas de continuidade do monumento são o mais eloquente teste-munho das variantes interpretativas criadas. Pere de Paiol equacionou umasegunda capela quadrangular, em tudo semelhante à actual capela-mor, posi-cionada no lado oposto do edifício, no local da porta principal tardo-gótica 5.Carlos Alberto Ferreira de Almeida sugeriu que as estruturas do lado Norte,aparentemente na continuidade da nave central, fossem um narthex (ALMEIDA,1986: 45), proposta que pressupunha a existência de uma cabeceira a Sul, noexacto espaço onde a descoberta do baptistério havia invalidado esta hipótese aFernando de Almeida 6. E Theodor Hauschild, confrontado com as escassasrespostas das intervenções arqueológicas, lamentou a invisibilidade de uma«forma clara de igreja» (HAUSCHILD, 1986: 160).

Estas variantes, surgidas dentro do modelo interpretativo visigotista, pro-vam como as conclusões de Fernando de Almeida estavam longe de se conside-rarem definitivas. A datação e funcionalidade do edifício não eram colocadas emcausa, mas a interpretação de todos os seus elementos necessitava de novasabordagens arqueológicas (ALMEIDA, 1986: 43).

1.2. O avanço da cronologia. Novos dados e novos impasses

A grande ruptura conceptual acerca da suposta catedral de Idanha deu-sena década de 90 do século XX. Por essa altura, duas vias de interpretação (quemuito devem uma à outra), estavam em condições de assumir propostas alter-nativas em relação à tradicional catalogação visigótica. Ambas resultam donotável progresso dos estudos islâmicos no nosso país a partir de 1974. E ambas

õ. Com esta proposta (PALOL. 1968: 132). dotava-se o interior de uma maior simetria, visuali-zando-se um verdadeiro transepto. formado por duas câmaras quadrangulares. em relação espaciale funcional entre si.

6. Vislumbrando o sanctiiarim altaris em locais distintos do monumento. Paiol e Ferreira deAlmeida abriram a porta a uma interpretação espacial interior compartimentada, muito mais deacordo com o que a arquitectura religiosa de época visigótica nos legou. Este último deixou-nos,mesmo, uma primeira leitura do que poderia ter sido o espaço catedralício egitanense na segundametade do século VI. A verdade, porém, é que nunca se identificaram vestígios dessa maior compar-timentação interior; pelo contrário: a inexistência de pontos de apoio nas arcarias centrais (àexcepção do arco triunfal) é uma evidência e a sugestão volumétrica em três grandes naves, prati-camente à mesma altura e revelando as arcadas um certo ritmo em interligação, são dados estilís-ticos que inviabilizam essa perspectiva.

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coincidem num considerável avanço da cronologia para o edifício de Idanha,situando-o pelos finais do século IX ou inícios do século X. No entanto, divergemacerca do contexto e funcionalidade originais.

De maior impacto, porque incluída em obras de divulgação e de caráctermais generalista, foi a proposta de estarmos perante uma mesquita, relativa-mente heterodoxa (é certo), mas claramente conotada com esquemas planimé-tricos islâmicos (TORRES, 1992 e MACIAS, 1995; 1998 e 1999). Evidenciando aorientação pouco canónica da sua suposta capela-mor (que Ferreira de Almeidaassumira ser a capela quadrangular a meio da nave lateral nascente, e cujaidentificação passou ao ciclo historiográfico seguinte), Cláudio Torres sugeriutratar-se de uma mesquita, com base ainda em outros argumentos que nãointeressa, aqui, analisar em pormenor7.

Para o que pretendo abordar neste texto, com esta nova proposta dava-secorpo a uma leitura do imóvel que não necessitava de espaços em falta, àexcepção da demolida secção Sul da nave nascente, reconhecidamente o únicotroço original identificado por todos os autores. Com efeito, ao atribuir umacronologia posterior, Cláudio Torres autonomizava o baptistério e, eventual-mente, o suposto paço episcopal (conjunto de estruturas entre o edifício e amuralha), ao passo que a análise planimétrica conferia ao monumento umcarácter cronológico e funcional «fechado». Se, na fase historiográfica anterior, afalta de uma cabeceira tinha sido um dado difícil de ultrapassar, agora o edifícioera explicado por si só e tudo o que não estivesse na exacta conexão com as suasquatro paredes, corresponderia a outras épocas ou a outras realidades constru-tivas, eventualmente sincrónicas, mas funcionalmente distintas.

Foram várias as dúvidas e as incongruências desta nova atribuição cronoló-gico-cultural. Uma das mais discutidas (e mais importantes) foi a pretensarelação que o autor estabeleceu entre a suposta mesquita e a acção de IbnMarwan. De acordo com a perspectiva de Cláudio Torres, o percurso históricodeste rebelde explicaria o carácter heterodoxo da construção, estilisticamentemais próxima da igreja de São Pedro de Lourosa (então ainda não compro-vadamente vinculada ao Norte asturiano-leonês) que de outras mesquitas doSul peninsular.

i. Foram vários e de múltiplos sentidos os argumentos invocados por Cláudio Torres. Por umlado, a consciência de que a provável construção de época visigótica estaria sob os alicerces do actualedifício, uma vez que o baptistério (único elemento que provava a existência de uma fase dos séculosV-VII) não estava em conexão com o conjunto edificado que chegara até hoje. Por outro lado. aproposta de filiação do plano arquitectónico no modelo da Mesquita omíada de Damasco, argumentoestilístico reforçado pela posição interior do poço-cisterna, junto à parede ocidental do monumento,que o autor interpretou como um poço de abluções. Em termos cronológicos. Torres invocou a proxi-midade (também estilística) em relação à igreja de São Pedro de Lourosa (epigraficamente datadade 912) e. progressivamente, ao longo da década de 90 do século XX, tomou como certa a relação domonumento com a figura do rebelde Ibn Marwan. Este último argumento, como se verá, forneceampla matéria para debate e está longe de ser comprovado pelas fontes escritas da época.

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Em outro trabalho (FERNANDES, 2001: 45-53), tive ocasião de concluir que,na conturbada história de Ibn Marwan, apenas um autor — Ibn Khaldún — oreferencia em Idanha, em 884, ano em que outros autores localizam o violentoMarwan em territórios mais a Sul 8. Quer isto dizer que, ao contrário do quetanto se tem recentemente repetido, não está comprovada a associação destehomem a Idanha, entre o seu abandono das hostes de Afonso III (883-84) e apermissão para fundar Badajoz (888). Também não está provado que Marwantenha desenvolvido uma espécie de religião privada, ou selectiva, que fundiaIslamismo e Cristianismo, outro dos argumentos com que alguns autores preten-deram explicar o programa insólito da construção egitanense (Cfr. FERNANDES,2001: 58-63).

Em todo o caso, a análise funcional e planimétrica que Torres efectuourevelou-se decisiva, provando como o projecto materializado em Idanha temmuito pouco de igreja e muito mais de mesquita, com as suas naves transversais,orientação do presumível mirhab para Meca e longas arcarias dispostas trans-versalmente em relação ao ponto fundamental de religiosidade. A consciência deque o edifício dificilmente será contemporâneo do baptistério, implantando-se acotas diferentes, permanece como evidência por demais válida em relação à realdatação do conjunto.

Paralela às conclusões de Cláudio Torres, uma outra via sugeria uma inter-pretação diferente para o monumento. Falo de Manuel Luís Real e dos seustrabalhos sobre a visibilidade construtiva e artística dos moçárabes. Adoptandouma atitude mais prudente em relação a um edifício tão incomum e tão desco-nhecido, mas baseando parte da sua argumentação nos dados históricos invo-cados por Cláudio Torres (em particular sobre o percurso de Ibn Marwan), Realequacionou uma «reconstrução» de base cristã pelos finais do século IX ou iníciosdo X, altura em que Afonso III terá conquistado a cidade e em que a documen-tação revela a existência de um bispo de Idanha, presente na sagração da reno-vada Catedral de Santiago de Compostela (REAL, 2000: 42 e 45).

Ver-se-á, adiante, como não se encontra provada a conquista e efectiva inte-gração de Idanha na esfera de poder asturiano. Seguindo o pensamento desteúltimo investigador, a «reconstrução» assumiria, assim, um retorno à velhaordem diocesana altimedieval, tentada no período de maior expansão do reinoasturiano, mas o próprio autor não assume inteiramente a ligação às Astúrias,sugerindo como mais provável tratar-se de uma «basílica moçárabe», eventual-

8. Entre os anos de 884 (ano em que Marwan se instala novamente numa fortaleza de Badajoz)e 888 (data em que o emir lhe permite fundar a cidade de Badajoz), dois outros autores localizam aacção do rebelde a Sul do Tejo: Ibn al-Qútiya situa-o em Esparragosa, praça-forte de onde empre-ende ataques a Sevilha e Ossónoba (cf. COELHO, vol. 2, 1989: 149); Al-Bakrí, por seu turno, admiteque o refúgio de Marwan tenha sido uma localidade conhecida como Murnit (cf. PlCARD, 1981: 223).Acresce, a esta dúvida, o facto de o lapso temporal em que Marwan terá feito de Idanha uma praçade guerra (posição duvidosa até pelas condições naturais do terreno que circunda a antiga cidaderomana) se limitar a escassos quatro anos, período em que praticamente nunca terá abandonadouma posição agressiva face aos poderes islâmicos do Ocidente peninsular.

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mente devida a Ibn Marwan, cujo projecto passaria por uma aliança entre Cris-tianismo e Islamismo (REAL, 1995: 66; 2000: 38 e 42). Neste sentido, a relativahibridez que o autor identifica (ainda que, na sua opinião, a forma se assemelhemais a um edifício cristão), poderá vir a ser justificada pela influência do Islão(REAL, 1995: 67), tão geograficamente próximo e tão culturalmente presente noespírito de Marwan.

Ao contrário da perspectiva estritamente islâmica (ou relativamente sincré-tica) de Cláudio Torres, as propostas de Manuel Luís Real deixam em abertohipóteses de continuidade do edifício original. Ainda que o que até agorapublicou diga respeito apenas ao edifício que actualmente existe, o autor deu-nosamavelmente a conhecer outras propostas de estudo e de interpretação doconjunto que mantém inéditas, algumas das quais incidindo sobre dependênciasque se poderão ter perdido. Admite que a actual capela central nascente fosse acapela-mor original, e o simples facto de considerar o monumento uma cons-trução religiosa cristã (inserida no complexo jogo de volumes e de compartimen-tações internas da liturgia pré-românica hispânica), conduz a uma perspectivade estudo mais abrangente em termos espaciais. Esta perspectiva de interpre-tação - com um pendor mais local que aquele que Real assume - foi seguidamuito recentemente por José Cristóvão (CRISTÓVÃO, 2002: 15).

No processo de avanço da cronologia deste monumento, importa aindareferir a análise que Mário Barroca efectuou do fragmento de gelosia identifi-cado no local9. Este é o único fragmento escultórico que se encontra devidamenteenquadrado pela mais recente historiografia, faltando estudos semelhantes paraas restantes peças resgatadas no interior do monumento por Fernando deAlmeida (e outras entretanto surgidas a nascente da ábside, em escavações deque se aguarda publicação). Barroca evidenciou analogias para com peças seme-lhantes do mundo tardo-asturiano, em particular uma gelosia de San Salvadorde Priesca, igreja rigorosamente datada dos inícios do século X (BARROCA, 1990:134-135).

2. Urna igreja à maneira islâmica, ou uma mesquita à maneira cristã?O iiiconclusivo ponto terminal de uma investigação

A investigação que desenvolvi a respeito da mesquita-catedral de Idanha-a-Velha (assim prudentemente designada para evitar conclusões abusivas deíndole cronológico-cultural) foi subsidiária das sugestivas linhas de investi-gação de Cláudio Torres e de Manuel Luís Real. Interessou-me, num primeiromomento, aprofundar alguns argumentos invocados por aqueles investigadores,em particular os que relacionavam a construção do monumento com a figura deIbn Marwan. As conclusões, apresentadas em 2001, contrariaram essa relação,

9. Fernando de Almeida pretendeu preencher o janelão da fachada Sul com um desenho pétreobaseado neste elemento, mas a proposta foi rejeitada pelos restauradores (FERNANDES, 2000: 45-46).

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ainda que não de forma conclusiva. A principal questão que separava os autores,contudo, permaneceu por esclarecer: estar-se-á perante uma mesquita ou umaigreja? Isto é: o monumento de Idanha-a-Velha é o resultado de um impulsoconstrutivo de índole religiosa islâmica ou cristã?

Ao longo da investigação, os indícios de cariz islâmico foram sendo maisefectivos que os de natureza cristã, apesar da diametralmente oposta relaçãocom eventuais poderes muçulmanos, em particular com Ibn Marwan. O aprofun-damento de alguns argumentos de Cláudio Torres foi, assim, o caminho naturalpara uma investigação que, confrontada com a escassez de dados arqueológicose de peças decorativas devidamente contextualizadas, privilegiou, necessaria-mente, os aspectos tipológicos do edifício, com especial destaque para a plantae a organização de alçados e de volumes (aspectos que, notoriamente, têm nacivilização islâmica interessantes paralelos estilísticos).

A continuidade da investigação, todavia, realçou aspectos parciais contradi-tórios entre si e conduziu a um inevitável ponto terminal inconclusivo. Se, porum lado, a análise tipológica levou a um aprofundamento de relações com omundo islâmico, a inclusão dos parcos elementos decorativos numa correnteartística classicista de índole maioritariamente cristã e regional foi um dado queaproximou este monumento da esfera cristã asturiana ou moçárabe. Final-mente, um mais cuidado estudo da envolvência urbana em que o conjunto seinscreve (ainda que limitado pela inexistência de dados provenientes da arque-ologia) conduziu à reactivação de uma «suspeita» funcional de carácter civil,integrando o edifício num mais vasto complexo palatino.

2.1. Ainda os argumentos (e tão poucos factos). As relações com oSul islâmico e o Norte cristão

Inviabilizada, por agora, a ligação da mesquita-catedral com a emblemáticafigura de Ibn Marwan (em boa verdade a única referência personalizada num«deserto» documental de praticamente quatro séculos), nem por isso os argu-mentos que relacionam este monumento com soluções islâmicas perdem vali-dade. Com efeito, subsistem, ainda, suficientes analogias com construçõesmuçulmanas para que se volte ao assunto.

Um facto sobrepõe-se a tudo o mais: a orientação da ábside para Sudeste(TORRES, 1992: 172-173 e 177). Esta disposição planimétrica apresenta apenasum ligeiro desvio para Norte em relação à orientação da mesquita de Mértola,construída mais de dois séculos depois e dentro de um marco político estável(perfeitamente inserido no contexto civilizacional islâmico ocidental). As analo-gias de plano e de volume com outras mesquitas da Península Ibérica e doMagrebe, designadamente Tinmal e Almería (TORRES e MACÍAS, 2002: 21 e 30),foram importantes argumentos para situar a obra de Mértola na evolução arqui-tectónica dos derradeiros tempos da presença islâmica no ocidente peninsular.Mais recentemente, identificaram-se quatro pequenas mesquitas na Ponta daAtalaia (Arrifana, Aljezur), conjunto que Mário Varela GOMES e Rosa Varela

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GOMES. 2005 atribuem ao ribat de Ibn Qasi (século XII). Com maior ou menordesvio, e apesar das irregularidades construtivas próprias do contexto utilitárioem que surgiram, todas seguem uma orientação comum para Sudeste. É umfacto que, deste restrito conjunto, o monumento de Idanha é o que possui umaorientação mais setentrional, mas não restam dúvidas de que, mesmo no séculoXII, reconhecem-se ligeiras diferenças que, ainda assim, não colocam em causaa atribuição funcional das realizações de Mértola e da Ponta da Atalaia.

No campo da aproximação tipológica (portanto, da argumentação), umaoutra circunstância aproxima o monumento egitanense do mundo islâmico: aorganização em amplo salão de três naves, seccionadas por duas arcarias de setearcos, sendo o médio de maior amplitude e com pilares de reforço que separamestes vãos médios das triplas arcarias que compõem as restantes sequências.Esta é uma solução que se encontra nas primeiras mesquitas omíadas do MédioOriente e é flagrante a semelhança entre o plano do monumento de Idanha--a-Velha e o das mesquitas de Bosrã (Fig. 3) e de Qasr al-Hayr ash-Sharqi

Fig. 3 - Bosrã. Corte da mesquita omíada(publ. Creswell, 1969).com indicação de um compartimento mais baixo do lado esquerdo

(Fig. 4) 10, analogia reforçada ainda pelo facto de os pilares que enquadram osarcos médios das arcarias ajudarem a estabelecer o eixo espacial entre a portaprincipal e a suposta capela-mor. Os posteriores exemplos deste modelo dearcaria interior não deixam dúvidas sobre o sucesso que teve em mesquitas dedimensões reduzidas (sete naves de três tramos) e em comunidades de recursoseconómicos relativamente modestos.

Se uma significativa parte das perspectivas de interpretação inauguradaspor Cláudio Torres permanecem válidas e são, até, reforçadas por novoselementos, outras características da construção remetem para o mundo cristão

10. Qasr al-Hayr ash-Sharqi (Iraque) data de 728/29. Em Bosrã (primeiros anos do século VIII).existiu um longo narthex porticado do lado Norte, que se adossava à totalidade da fachada, perspec-tiva também em aberto para o caso de Idanha-a-Velha. a avaliar pelas estruturas postas a desco-berto nesta secção do conjunto arqueológico. Sobre estes dois monumentos (que adaptam modelosdas primeiras basílicas paleocristãs). veja-se CRESWELL, 1969.

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Fig. 4 - Qasr al-Hayr ash-Sharqi. Corte da mesquita (publ. Creswell. 1969)

vinculado às Astúrias. Neste contexto explicativo, e não obstante as dúvidas quese manifestam a respeito de uma efectiva conquista e organização de cariz astu-riano, existe um evidente ar de família entre o monumento de Idanha e a igrejade São Pedro de Lourosa (TORRES, 1992: 177; REAL, 1995: 66; FERNANDES, 2001:63-70; 2005), ao abrigo de um processo artístico de pendor classicizante que

Fig. õ - São Pedro de Lourosa. Vista geral do interior, no sentido O-E. (publ. Barreiros. 1934)

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.r J

Fig. 6 - Idanha-a-Velha. Vista geral do interior na actualidade, no sentido SO-NE.

percorre outros edifícios peninsulares altimedievais. Tal como em Lourosa(Fig. 5), também em Idanha (Fig. 6) houve um reaproveitamento sistemático epropositado de materiais romanos (silhares almofadados; silhares de talheperfeito; colunas, bases e capitéis toscanos; aduelas; etc.) e uma clara intençãode recuperar uma estética classicizante (em particular o friso que percorre astrês faces interiores da ábside e, de uma certa forma, o próprio programa basi-lical do monumento, com a sua austeridade estética) n.

Por esta proximidade estilística, Idanha e Lourosa pertencem a um mesmomomento da arte peninsular, que teve no retorno a um ideal clássico de extremasobriedade o seu denominador comum. É um facto que o Islão não passou ao ladodeste fenómeno de recuperação da Antiguidade como marca de prestígio e dequalidade artística, mas é no Norte cristão peninsular que este processo melhor

11. Agradeço ao Dr. Pedro Salvado a apreciação crítica deste texto e as sugestões de leituramais profunda de reutilização de materiais romanos, em particular os de contexto religioso, identi-ficando-se, pelo menos, três aras dedicadas a Marte. Júpiter e Vénus. Este facto é mais um indicadora ter em conta para a ancestral sacralidade do local onde se implanta o monumento.

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se regista (REAL, 1995: 66; 1999; FERNANDES, 2005), reflectindo-se particular-mente no Ocidente peninsular, uma faixa de território aparentemente perifé-rica, mas cujo melhor conhecimento, nos últimos anos, veio provar a relevânciaartística das construções aqui edificadas. Neste sentido, Idanha relaciona-se,muito mais de perto, com a arte que o avanço asturiano-leonês criou, na viragempara o século X e no entre-Tejo-e-Douro ocidental, do que, propriamente, com osmodelos islâmicos meridionais emirais ou já califais.

Ora, se a inclusão do monumento de Idanha numa corrente artística perfei-tamente reconhecível no ocidente peninsular cristão não levanta grandes dúvi-das, o mesmo não se pode dizer das motivações que estiveram na origem da suaadopção. Manuel Luís Real tem insistido na possibilidade de Afonso III terconquistado a cidade e, de alguma forma, tê-la integrado na estrutura de poderasturiano (REAL, 2000: 42 e 45). O facto de, pouco depois, aparecer um bispoegitanense na sagração da catedral compostelana é um forte indicador nessesentido, mas sabe-se, também, que existem muitos casos de bispos que ostentamo título de algumas cidades e que não vivem nelas, mantendo assim um quadrodiocesano artificial na perspectiva de novos avanços militares ditarem a reins-talação dos prelados e de uma estrutura de poder vinculada à corte asturiana.A principal fonte que refere uma acção de Afonso III dirigida a Idanha (a Cró-nica Albeldense) está longe de esclarecer a natureza incorporadora da antigaurbe. Parece-me, de resto, que o passo cronístico distingue entre as cidades queforam «povoadas» (efectivamente integradas na coroa asturiana), segundo umahierarquia pouco perceptível, e as que foram destruídas, para criar uma zona detampão entre os dois mundos civilizacionais que protagonizaram a Reconquista,ao mesmo tempo que se diferenciam os territórios de influência de Coimbra e deMérida (pertencendo Idanha a este último): «son pobladas por los cristianos Iasciudades siguientes: Ia primera Braga, Ia segunda Oporto, Ia tercera Ourense, Iacuarta Eminio, Ia quinta Viseo, y Ia sexta Lamego. Su victoria [de Afonso III]asoló y destruyó, consumiéndolas por Ia espada y por el hambre, Coria, Idanhay los demás confines de Lusitânia hasta Mérida y Ias orillas dei mar» (CrónicasAsturianas, ed. 1985: 251).

2.2. O complexo urbanístico em que se inscreve a mesquita-catedralde Idanha-a-Velha

Deixando as quatro paredes do monumento egitanense, e alargando o campode análise às imediações do edifício, facilmente se percebem múltiplos indíciosde continuidade construtiva do conjunto por uma ampla área circundante.À excepção da face voltada a nascente, cujo conhecimento do sub-solo nãopermitia, até há pouco tempo, qualquer visibilidade de estruturas anexas 12, as

12. Na última fase de restauro, o projecto de arquitectura e de arranjo da envolvencia impôs umassinalável rebaixamento do solo junto à fachada nascente. Os trabalhos de arqueologia (2005)foram entregues a uma empresa e o relatório não se encontra, ainda, acessível à consulta pública.

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Fig. 7 - Idanha-a-Velha. Planta do edifício principal(publ. Alexandre Alves Costa. 2002), ainda sem indicação do segundo baptistério,

mas com marcação dos testemunhos de continuidade do conjunto

Fig. 8 — Idanha-a-Velha. Panorâmica das ruínasdo lado Norte do edifício principal, em 1998

(ainda sem indicação do segundo baptistério)

restantes três fachadas mantêm abun-dantes vestígios de dependências quese ligavam ao monumento que hoje sub-siste (Fig. 7). A intervenção arqueoló-gica realizada por José Cristóvão forne-ceu numerosos dados dessa realidadeurbanística mais vasta. Infelizmente, anão publicação de todo esse material(em particular da planta que o autorrealizou das estruturas por si identifi-cadas e possíveis relações estratigrá-ficas) impedem-me de adiantar algu-mas das interpretações acerca dessacontinuidade. Limitar-me-ei, neste mo-mento, a realçar alguns aspectos fun-damentais para perceber como a mes-quita-catedral de Idanha-a-Velha, longede ser um edifício individualizado numtrecho urbanístico da cidade altime-dieval, fazia parte de um complexo mo-numental bem mais vasto, por agoraainda escassamente explorado.

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O principal conjunto de estruturas localiza-se junto da fachada Norte(Fig. 8), onde parece formar-se um espaço tripartido, que tem correspondênciacom a divisão interior em três naves: ao centro, no prolongamento da navecentral, define-se um espaço quadrangular mais amplo, que é ladeado, anascente e a poente, por outros dois, mais pequenos e onde se conservam impor-tantes elementos litúrgicos: a nascente, ainda se conserva o pavimento originalde opus signinum, com um orifício no centro onde poderá ter estado uma mesade altar, ou qualquer outro elemento desconhecido; do lado oposto, as escavaçõesrevelaram a existência de um segundo baptistério 13. É possível que estes trêscompartimentos fossem acompanhados por outros, uma vez que são visíveisbases de colunas pelo lado exterior de algumas paredes (dando a impressão depequenos arcos de passagem entre espaços também eles diminutos) e os alicer-ces continuam claramente por baixo do muro limitador da antiga propriedade dafamília Marrocos.

Esta disposição tripartida foi a que José Cristóvão genericamente encontroudo lado Sul: três compartimentos de planimetria tripartida e harmónica, quecontinuam, mesmo, para nascente 14. Uma tal inusitada continuidade do monu-mento para Sul tem um último e surpreendente dado no cunhal Sudeste doedifício conhecido como Lagar de Varas. Durante recentes beneficiações, foipossível perceber que o seu alicerce não só é escalonado (alargando-se no sentidoocidental, tal como as fiadas subsistentes da secção Sul da nave nascente domonumento principal), como está disposto na exacta linha de continuidade dessadesaparecida nave da mesquita-catedral, o que pressupõe uma relação física atéagora insuspeita.

Infelizmente, pouco se pode adiantar a respeito da funcionalidade destasdependências. A Norte, o espaço central foi interpretado como narthex (ALMEIDA,1986: 45; CRISTÓVÃO, 2002: 15), embora a arqueologia da arquitectura tenhaprovado algumas contradições, como o facto de as paredes que limitam estesespaços apenas encaixarem com o aparelho de grandes silhares do monumento

13. Este segundo baptistério foi interpretado por CRISTÓVÃO, 2002: 14-15 como parte de umedifício religioso dos séculos IV-V, ainda antes de Idanha aparecer como cidade episcopal e, também,anterior ao baptistério do lado Sul. Esta cronologia não está, todavia, suficientemente provada, e éde presumir (pelo menos, sem que novos dados sejam apontados) que possa ser de época mais tardia,quando o baptismo por imersão deu lugar ao baptismo por aspersão. A sua implantação não estáinteiramente relacionada com os eixos de desenvolvimento da mesquita-catedral. mas tal observaçãonão implica uma necessária diferenciação em duas fases construtivas distintas, pois a própria plantado monumento de Idanha não é inteiramente regular. Permanecem, por isso, suficientes dados dediscórdia a respeito da cronologia deste segundo baptistério.

14. Como se disse, a escavação não foi, até ao momento, publicada, pelo que não avançarei muitomais acerca do que aquele autor identificou. Importa esclarecer, todavia, que os vestígios de prolon-gamento meridional há muito se encontram visíveis, tendo mesmo Fernando de Almeida começadopor aí a svia busca pela cabeceira visigótica. Em todo o caso, será de extrema importância a publi-cação dos resulados das escavações conduzidas por José Cristóvão, ainda que possam motivar maisperguntas que respostas. Em última análise, tudo o que não for publicado, não terá verdadeiraexistência para o debate acerca desta, ou de qualquer outra, realidade histórica.

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e não ao nível dos registos superiores (onde o aparelho construtivo é à base desilharia miúda), bem como a circunstância de não se detectarem pontos de apoiode cobertura nos alçados (CABALLERO, 2006: 269). Do lado Sul, a identificação demuros de excepcional robustez, ligeiramente descentrados da nave central(IDEM, 2006: 270). torna ainda mais difícil qualquer explicação.

Do lado poente, entre a longa fachada do monumento e a muralha, loca-liza-se uma série de construções identificadas por Fernando de Almeida comoPaço Episcopal visigótico (ALMEIDA, 1966; CRISTÓVÃO, 2002: 21). Aqui parece terexistido um pátio-corredor imediatamente anexo à fachada, de que é indicador omuro paralelo que limita a área atribuída ao paço (posteriormente cortado pelaconstrução da capela funerária privada de época moderna que se liga à naveocidental entre a porta principal manuelina e o cunhal Noroeste). A complexi-dade destas estruturas e a escassez de exploração arqueológica não permitemuma leitura coerente dos elementos, mas existem alguns dados que podem serrealçados. Em primeiro lugar, o facto de existirem vários arranques de arcos emforma de ferradura (Figs. 9 e 10), de amplitude e orientação distintas (um émaior e subordina-se ao eixo Este-Oeste, fazendo a comunicação entre dois desa-parecidos compartimentos a Sudoeste do monumento; outro dois, menores,

Fig. 9 — Idanha-a-Velha. Ruínas a poente do edifício principal. Arranques de arco em ferradurae relação com um sector planimétrico organizado em naves ou corredores

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Fig. 10 - Idanha-a-Velha. Ruínas a SÓ. do edifício principal.Vestígios de arranque de um grande arco. que faria a ligação entre compartimentosaparentemente quadrangulares, um deles (primeiro plano) com colunas aos cantos

encontram-se numa linha paralela à fachada poente do edifício principal, emconexão com o que aparenta ser uma sucessão de arcadas dispostas no sentidoSul-Norte). Depois, o facto de a maior parte dos muros ter clara correspondênciaentre si, bem como obedecerem a uma coerente forma de construir (à base degrandes silhares justapostos, recordando, em certa medida, a própria fornia deconstrução das secções inferiores da mesquita-catedral). Finalmente, a cons-ciência de que este amplo espaço é um sector urbanístico individualizado, limi-tado por duas poderosas estruturas: a muralha, que parece ter cortado parte dodesenvolvimento Este-Oeste das múltiplas dependências (o que pressupõe umadefinição espacial muito precoce na própria evolução urbana de Idanha-a--Velha), e a mesquita-catedral que, como se viu, constituía uma massa arquitec-tónica e volumétrica maior do que na actualidade.

Esta é uma análise preliminar de um complexo urbano que necessita deuma cuidada investigação arqueológica. Fernando de Almeida adulterou profun-damente o espaço entre o monumento e a muralha, com a sua escavação emgrande escala, executada por trabalhadores pouco preparados e, na maior partedo tempo, isolados e decidindo eles próprios como proceder. A tendência queainda hoje se sente para efectuar uma leitura num único plano estratigráfico éo resultado das suas intervenções, mas não pode, evidentemente, corresponderà realidade material subsistente. É natural que as estruturas do lado poente

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não sejam todas de um só período construtivo, ainda para mais contemporâneoda edificação da mesquita-catedral, questão de retórica esta que só uma cuidadainvestigação arqueológica, que todavia nunca se efectuou, poderá responder.O poço, cuja boca se encontra parcialmente integrada na parede poente domonumento pode ser um indicador dessa mais complexa realidade estratigrá-fica: não estando provada a sua função de poço de abluções em época islâmica(como sugeriu TORRES, 1992: 177), é bem possível que corresponda a uma ante-rior fase de ocupação da cidade, eventualmente durante o período romano (FER-NANDES, 2001: 37). Também aqui a arqueologia tem a única palavra a dizer.

Tendo em conta todos estes indicadores contraditórios, mantêm-se as dúvi-das quanto à exacta funcionalidade do monumento. A sugestão de mesquita éreforçada pelos exemplos atrás mencionados de Bosrã e de Qasr al-Hayr ash-Sharqi (para além do que já se disse em TORRES, 1992 e FERNANDES, 2001), maso pendor classicizante da construção é um forte indicador de sentido contrário.Finalmente, a evidência de que o edifício continuava em, pelo menos, trêsfrentes, inviabiliza uma conclusão definitiva, retomando-se a suspeita de umafunção civil, mais concretamente palatina. Em outro trabalho (2001: 33) deixeiexpressa a aproximação entre as arcarias das três naves de Idanha e as da naveúnica que é a sala nobre do palácio asturiano de Naranco. A coincidência deambas apresentarem sete arcos, sendo o central de maior amplitude e os lateraisformando quatro arcarias triplas de proporção escalonada (diminuindo do centropara a extremidade em Naranco e aumentando nesse sentido em Idanha) é umcaso único de proximidade estilística sem paralelo na restante península alti-medieval. Por outro lado, a progressiva falência de modelos interpretativos decariz religioso (catedral visigótica; basílica moçárabe e mesquita islâmica)reforça naturalmente uma leitura de âmbito civil e, particularmente, palatino lõ.

Em todo o caso, não devem também restar dúvidas de que o sítio onde seergue esta mesquita-catedral-palácio é um local de tradicional sacralidade nacidade (como nota CRISTÓVÃO, 2002: 14). Os dois baptistérios são os mais evi-dentes testemunhos desse conteúdo religioso, mas outros elementos existem. Járeferi a marca de um possível elemento litúrgico ao centro de um pavimento deopus signinum num compartimento do lado Norte. Na secção setentrional danave nascente, quando Fernando de Almeida rebaixou o nível de solo, identi-ficou-se uma mesa de altar (ALMEIDA, 1986: 46), incorporada nos alicerces, debase moldurada e com cavidade para lipsanoteca 16. O arco triunfal reutilizaimpostas de época visigótica e, ao longo dos anos, têm-se identificado outroselementos litúrgicos como pequenos pilares e pilastras de possíveis cancelas, que

15. Esta é, também, uma das conclusões para que aponta o estudo de arqueologia da arquitectura(CABALLERO, 2006: 271), que se baseia em dados metologicamente mais rigorosos que aqueles que,neste passo do texto, cito, os quais se limitam a análises tipológicas de âmbito comparativo.

16. Aguarda-se um estudo mais aprofundado desta peça por parte de Isaac Sastre (CSICde Mérida).

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seccionariam um espaço religioso de cariz cristão 17. Finalmente, sob o pavi-mento da mesquita-catedral antigas fotografias revelam um contexto urbanodiferente daquele que o monumento representa, concretamente uma forma queparece indicar uma ábside semi-circular anterior à construção do edifício, pré--existência de possível cronologia romana, cuja relação com os períodos suevo--visigótico e islâmico não está minimamente equacionada.

3. A arqueologia da arquitectura: uma revolução; um novo começo

O que se disse até aqui resume-se a algumas evidências (orientação plani-métrica do edifício e consciência de que, pelo menos, três das suas fachadas apre-sentam múltiplos vestígios de continuidade física) e muitas mais deduçõesargumentativas sobre um tão complexo monumento. Nos últimos parágrafos,todavia, deixei já expressas algumas das conclusões a que o estudo de arqueo-logia da arquitectura chegou a respeito dos espaços de continuidade a Norte e aSul do conjunto. Este estudo significou um novo ponto de partida para a inves-tigação sobre o complexo monumental egitanense e, finalmente, veio trazeralgumas certezas a respeito do edifício, em particular a sua primeira fase cons-trutiva, que aqui mais me interessa.

A arqueologia da arquitectura é uma especialidade que só agora dá osprimeiros passos em Portugal, apesar da sua forte implantação em meios cien-tíficos italianos e, sobretudo, espanhóis18. Tem como objectivo reconhecer as

17. São já em grande quantidade as peças de catalogação visigótica encontradas no local.ALMEIDA, 1962: 248-249 menciona o aparecimento de «três pequenas pilastras em mármore branco»e uma «placa rectangular», concebida como mesa de altar, igualmente dotada de cavidade para lipsa-noteca. Segundo a descrição do autor (confrontada com o que diz na p. 175), estes elementos apare-ceram no exterior do edifício, pelo lado Sul, onde Fernando de Almeida procurava encontrar asuposta ábside da catedral e, sintomaticamente, onde apareceu, pouco depois, o primeiro baptistério,podendo aqueles elementos escultóricos estar em relação com esta estrutura religiosa. Em Idanha--a-Velha, no depósito de materiais em que se encontra transformado o palheiro de São Dâmaso,conserva-se um pequeno pilar, aparentemente de decoração visigótica e, mais recentemente, temosnotícia de novas descobertas que aguardam publicação, em princípio identificadas no exterior doconjunto (secção nascente).

18. Foi no seio do IPPAR que a Arqueologia da Arquitectura deu os seus primeiros passos nonosso país, concretamente na igreja de São Gião da Nazaré (2000). O programa de~mvestigação paraeste templo foi exemplar, congregando equipas de distintas formações e vocações (recolha docu-mental, arqueologia da arquitectura e arquitectura convencional) para um integral estudo do monu-mento, prévio à futura intervenção de restauro. Ainda sob patrocínio do IPPAR, e aproveitando aestrutura especificamente direccionada para a arqueologia da arquitectura da Universidade doMinho, foi possível realizar projectos desta área nos mosteiros de Tibães e de Rendufe. Na actuali-dade, outras acções encontram-se em implementação ou preparação, o que faz com que o panoramacomece a ser mais diversificado, não só ao nível dos monumentos analisados, como dos investiga-dores envolvidos. Para uma compreensão da arqueologia da arquitectura em Portugal, vejam-se oscontributos de RAMALHO, 2002, 2004 e 2005 e FONTES, 2004. A bibliografia específica sobre a arqueo-logia da arquitectura na Europa é vastíssima, e o método dispõe mesmo de algumas publicações

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periódicas inteiramente dedicadas. Para uma primeira abordagem, vejam-se as referências biblio-gráficas de QUIRÓS CASTILLO, 1993 e Luis CABALLERO ZOREDA, 1995. entre muitos outros títulos quepoderia citar.

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diferentes fases construtivas por que passou determinado edifício, a partir daanálise estratigráfica dos seus alçados, utilizando, para tal. uma metodologiacaracterística da arqueologia, que consiste em desconstruir conceptualmenteos muros, isolando as unidades estratigráficas por meio de análises minu-ciosas do aparelho construtivo, para depois «remontá-las» segundo uma leituracoerente de anterioridade, contemporaneidade e posterioridade entre elas(Fig. 11).

A aplicação dos princípios de estratigrafia (segundo o método de Harris) aestas realidades construtivas tem conduzido a resultados surpreendentes, ultra-passando decisivamente conclusões por via de metodologias de análise maistradicionais (em particular as de âmbito estilístico-tipológico, que estão na basedas considerações estilísticas que suportam a História da Arte e na origem demúltiplas cronotipologias destituídas de proximidades geográficas ou temporaisprecisas).

Neste contexto metodológico renovador, a ambição da Arqueologia da Arqui-tectura é levar o debate sobre os edifícios para patamares mais seguros de cien-tificidade, na medida em que contrapõe às múltiplas argumentações e con-tra-argumentações factos transmitidos pelos próprios monumentos a respeito dasua história. Claro que, para a interpretação final, confluem dados de prove-niência distinta (onde, evidentemente, se incluem os de natureza estilístico-tipo-lógica), mas ganham natural preponderância os resultantes da análise directado monumento.

Em Idanha-a-Velha, e não obstante os vários constrangimentos à realizaçãodo estudo (concretamente o confronto com um restauro muito pouco cuidadoso,que incluiu, por exemplo, a mudança de pedras no aparelho construtivo)19, aarqueologia da arquitectura conseguiu ultrapassar algumas das questões comque gerações de investigadores se haviam defrontado sem resolverem satisfato-riamente. Paralelamente, inaugurou-se um novo ciclo de debate, motivandoessas conclusões novos problemas e impasses de interpretação. Assim, e limi-tando-me ao que o coordenador do projecto já publicou (CABALLERO, 2006), éfundamental ter em consideração que:

— os aparelhos de silhares e de silharia são contemporâneos entre si eresultam do primeiro momento de edificação do monumento — exceptuam--se as parcelas restauradas pela DGEMN e pelo IPPAJR (que genericamente

19. Este é um dos aspectos mais graves para a aplicação com sucesso da arqueologia da arqui-tectura: a prévia realização de restauros integrais, executados sem ter em conta que actuam sobrealçados estratigrafados, cujo potencial de informação, uma vez corrompido pela intervenção, é irre-mediavelmente perdido. RAMALHO, 2004. adverte para esta situação, que tantos problemas causouem Idanha-a-Velha. Não só o interior do conjunto se encontra quase integralmente revestido poruma camada homogeneizadora, como o aparelho exterior foi consolidado com uma argamassa quepraticamente unificou todo o conjunto. A não aplicação do método antes ou durante o restauro fezcom que se perdesse muita informação, alguma certamente irrecuperável, mesmo que um dia sedesfaça o que de errado se fez.

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correspondem às partes altas do monumento) e as reconstruções efec-tuadas na Baixa Idade Média, época manuelina e segunda metade doséculo XVI;

— a ábside quadrangular é contemporânea dos aparelhos, assim como dasduas séries de arcarias do interior — o que faz com que o edifício quechegou até aos nossos dias seja praticamente unitário nas suas grandeslinhas estruturantes;

- no sector Noroeste, voltadas para ambos os alçados, exitiram duas portaselevadas, posteriormente entaipadas — a sua existência motiva uma sériede problemas e de contradições, em particular no interior («invisibilidade»de um piso superior e rompimento da arcaria de estuque que decora a facepoente do monumento), que não cabe agora aqui aprofundar;

-o conjunto continuava em, pelo menos, três frentes (poente, Norte e Sul)20

— a arqueologia da arquitectura actuou sobre o edifício e, metodologica-mente, entendeu-se não se afastar dele, apesar da progressiva tendênciapara o esbatimento de fronteiras entre arqueologia convencional e arqueo-logia da arquitectura, com vista a uma leitura o mais globalizante possívelda obra.

Estas quatro conclusões são os pontos cardeais do estudo de arqueologia daarquitectura sobre a primeira fase do monumento, mas muitas outras existemque aguardam publicação coerente (a possível identificação da porta Norteoriginal; a posterioridade em relação ao baptistério localizado a Sudoeste e oreconhecimento, nesse sector de um compartimento de grande envergardura; aindividualização de várias etapas construtivas no sector setentrional da naveEste, uma delas seguramente altimedieval; a grande quantidade de destruiçõese reconstruções por que o conjunto passou; etc.). A sua aceitação pela comuni-dade científica impõe que o futuro debate tenha, finalmente, alguns pontos departida estáveis, para além das escassas evidências que deixei expressas noinício deste capítulo 3.

A arqueologia da arquitectura não resolveu, evidentemente, todas as ques-tões em torno deste monumento; pelo contrário, estou certo que motivou muitasmais perguntas que respostas. Mas, retomando uma terminologia utilizadarecentemente por CABALLERO, 2006 (e com isso revelando a minha sintoma paracom os seus pontos de vista) as questões a que respondeu ultrapassaram ocampo das «variáveis» argumentativas para se imporem como «constantes»factuais nas próximas abordagens ao monumento.

O trabalho (re)inicia-se agora.

20. Apesar das contradições que apresenta em alguns aspectos: por exemplo, como salientouCABALLERO, 2006: 269, qual a razão desta continuidade só ser visível ao nível do aparelho de grandessilhares e não no de silharia miúda? E porque não existem vestígios de pontos de apoio de coberturasnos alçados, para além dos quatro silhares na fachada Norte, cuja disposição, de resto, não pareceestar em conexão com os restos murários identificados em planta?

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N.° 5 - Dezembro de 2006

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