3
  FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA  ANO LECTIVO DE 2013 /2014  Direito Penal II ano-noite 19 de Maio de 2014 Duração: 90m Cansada das constantes humilhações e agressões do marido, Bela arranjou um amante com quem se encontrava e partilhava as angústias da vida. O filho de 17 anos, Sandro, era ainda muito novo para ser confidente e Bela não queria envolvê-lo mais na triste história familiar. Em casa as relações deterioravam-se de dia para dia. Uma noite, depois do jantar, Celestino, o marido, armou uma violenta discussão e agrediu Bela na presença do filho. Ao fim de uns minutos interrompeu a agressão para atender um telefonema, mas fez questão de afirmar que se tratava de um intervalo. É então que Sandro disse à mãe que ela devia aproveitar a oportunidade para se livrar para sempre daquele inferno e entregou-lhe a caçadeira do pai. A mulher encheu-se de coragem e dirigiu-se ao quarto onde Celestino atendia o telemóvel. Aí chegada, verificando que Celestino terminava o telefonema, Bela disparou à queima roupa atingindo-o numa perna. O homem caiu no chão sangrando e gritando com dores. Bela e Sandro puseram-se imediatamente em fuga. Sem que Bela soubesse, o filho tinha fechado portas e janelas, tinha aberto os bicos do gás e tinha trazido o telemóvel do pai. Queria certificar-se de que o pai não escaparia daquela e decidiu nada dizer à mãe, não fosse ela arrepender-se. Bela pediu a Sandro que fosse para casa dos avós maternos, que ela haveria de ir lá ter mais tarde. Queria encontrar o amante, Tolentino, e contar-lhe o sucedido. No trajecto para casa de Tolentino decidiu telefonar ao 112, pedindo que socorressem o marido que se encontrava ferido em casa. Há vários dias que Tolentino não recebia notícias de Bela e, receando o pior, decidiu procurá-la em casa. Premiu diversas vezes o botão da campainha e, como ninguém atendeu, arrombou a porta da entrada. Pareceu-lhe que não estava ninguém em casa e verificou que havia um forte cheiro a gás. Abandonou o local tendo deixado a porta aberta. Isso permitiu que o gás saísse por ali, o ar se renovasse e Celestino recuperasse os sentidos. Estava bastante enfraquecido e procurava arrastar- se até à porta para pedir socorro quando ouviu passos apressados aproximando-se. Pensando tratar-se da mulher, que voltava para se assegurar de que o havia morto, Celestino pegou na caçadeira que estava no chão perto de si e mal o vulto se assomou à porta disparou atingindo-o mortalmente. Era o médico do INEM que se dirigia ao local na sequência do telefonema de Bela. Apesar da ocorrência, Celestino teve melhor sorte do que o médico, tendo sobrevivido. Aprecie a responsabilidade criminal dos vários intervenientes.

2014 PII - Maio - Teste e grelha de correção.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA ANO LECTIVO DE 2013/2014

    Direito Penal II

    3 ano-noite 19 de Maio de 2014 Durao: 90m Cansada das constantes humilhaes e agresses do marido, Bela arranjou um amante com quem

    se encontrava e partilhava as angstias da vida. O filho de 17 anos, Sandro, era ainda muito novo

    para ser confidente e Bela no queria envolv-lo mais na triste histria familiar. Em casa as relaes

    deterioravam-se de dia para dia. Uma noite, depois do jantar, Celestino, o marido, armou uma

    violenta discusso e agrediu Bela na presena do filho. Ao fim de uns minutos interrompeu a

    agresso para atender um telefonema, mas fez questo de afirmar que se tratava de um intervalo.

    ento que Sandro disse me que ela devia aproveitar a oportunidade para se livrar para sempre

    daquele inferno e entregou-lhe a caadeira do pai. A mulher encheu-se de coragem e dirigiu-se ao

    quarto onde Celestino atendia o telemvel. A chegada, verificando que Celestino terminava o

    telefonema, Bela disparou queima roupa atingindo-o numa perna. O homem caiu no cho

    sangrando e gritando com dores.

    Bela e Sandro puseram-se imediatamente em fuga. Sem que Bela soubesse, o filho tinha fechado

    portas e janelas, tinha aberto os bicos do gs e tinha trazido o telemvel do pai. Queria certificar-se

    de que o pai no escaparia daquela e decidiu nada dizer me, no fosse ela arrepender-se. Bela

    pediu a Sandro que fosse para casa dos avs maternos, que ela haveria de ir l ter mais tarde.

    Queria encontrar o amante, Tolentino, e contar-lhe o sucedido. No trajecto para casa de Tolentino

    decidiu telefonar ao 112, pedindo que socorressem o marido que se encontrava ferido em casa.

    H vrios dias que Tolentino no recebia notcias de Bela e, receando o pior, decidiu procur-la em

    casa. Premiu diversas vezes o boto da campainha e, como ningum atendeu, arrombou a porta da

    entrada. Pareceu-lhe que no estava ningum em casa e verificou que havia um forte cheiro a gs.

    Abandonou o local tendo deixado a porta aberta. Isso permitiu que o gs sasse por ali, o ar se

    renovasse e Celestino recuperasse os sentidos. Estava bastante enfraquecido e procurava arrastar-

    se at porta para pedir socorro quando ouviu passos apressados aproximando-se. Pensando

    tratar-se da mulher, que voltava para se assegurar de que o havia morto, Celestino pegou na

    caadeira que estava no cho perto de si e mal o vulto se assomou porta disparou atingindo-o

    mortalmente. Era o mdico do INEM que se dirigia ao local na sequncia do telefonema de Bela.

    Apesar da ocorrncia, Celestino teve melhor sorte do que o mdico, tendo sobrevivido.

    Aprecie a responsabilidade criminal dos vrios intervenientes.

  • Cotaes: Celestino, 5 v.; Bela, 5 v.; Sandro 4 v.; Tolentino, 4 v.; clareza, sistematizao das respostas e correco da escrita, 2 v.

    TPICOS DE CORRECO

    1. Responsabilidade criminal de Celestino

    - Celestino realiza o facto tpico de violncia domstica (art.152 do CP) ao agredir Bela

    daquele modo. O facto tpico, ilcito e culposo.

    - Pratica tambm um homicdio doloso (art.131 do CP) ao matar o mdico do INEM.

    Celestino pensava, todavia, que os passos eram da mulher e que esta vinha terminar a

    tarefa. Pensava por isso que estava perante uma agresso actual quando disparou sobre o

    vulto. O eventual erro sobre a identidade da vtima, que irrelevante, coincide com um erro

    sobre a existncia de uma agresso actual, que constitui pressuposto da legtima defesa. O

    erro sobre pressupostos da legtima defesa est previsto no art.16 n2 do CP e afasta a

    imputao dolosa. Celestino poderia incorrer em responsabilidade criminal por homicdio

    negligente.

    2. Responsabilidade criminal de Bela

    - Bela pratica tentativa de homicdio (art.131/art.22 do CP) ao disparar sobre Celestino. O

    facto est, no entanto, coberto pela legtima defesa (art.32 do CP). Primeiro a agresso

    permanecia actual pois Celestino anunciara que ia fazer apenas um intervalo. A agresso

    no cessou e seria retomada a qualquer instante, mal terminasse o telefonema. Por outro

    lado, dada a desproporo de foras entre agredido e agressor e a recorrncia das agresses,

    no pode afirmar-se que o disparo tenha sido um meio excessivo.

    - Ao abandonar Celestino gravemente ferido, Bela no comete nem tentativa de homicdio

    por omisso, nem to pouco omisso de auxlio. No comete tentativa de homicdio por

    omisso porque no tem posio de garante. Na verdade, o tiro na perna no corresponde a

    uma ingerncia ilcita porque est coberta pela legtima defesa. Alm disso, no faz sentido

    afirmar que a vtima da violncia tem uma posio de garante por especial funo de

    proteco dos bens jurdicos do agressor. Por outro lado, Bela no realizou omisso de

  • auxlio por ter cumprido o dever de socorro ao ter telefonado para o 112 e ter pedido uma

    ambulncia para o marido.

    3. Responsabilidade criminal de Sandro

    - Sandro instigador e cmplice material na tentativa de homicdio. H um concurso

    aparente entre ambas as formas de participao sendo a cumplicidade consumida pela

    forma mais grave: a instigao. Todavia, o seu comportamento constitui um contributo

    acessrio realizao de um facto tpico mas justificado. Nos termos da teoria da

    acessoriedade limitada (art.29 do CP a contrario), a legtima defesa exclui igualmente a

    ilicitude do contributo de Sandro.

    - Sandro autor singular de uma tentativa de homicdio do pai (art.131/art.22 do CP). Na

    verdade, ele serve-se de um meio adequado para matar (abre as torneiras do gs) e elimina

    as condies que possibilitariam o socorro do pai (leva consigo o telemvel). Este facto

    tentado no est coberto pela legtima defesa, como bvio, pois no se destina a repelir a

    agresso. Esta h muito que havia terminado.

    Por outro lado, no h co-autoria de Bela nesta tentativa por no ter existido uma deciso e

    execuo conjuntas.

    4. Responsabilidade criminal de Tolentino

    - Tolentino comete violao de domiclio com arrombamento (art.190 n3 do CP). Verificam-

    se no caso os elementos objectivos do direito de necessidade (art.34 do CP), mas Tolentino

    no tem disso conhecimento. Ele no sabe que Celestino se encontra em perigo de vida por

    inalao do gs. Age, pois, com desconhecimento da situao justificante. Aplica-se assim o

    art.38 n4 do CP que comina a aplicao das regras de punibilidade da tentativa. Como a

    tentativa de violao de domiclio no punvel, por fora do art.23 n1 do CP, aquela

    consequncia no aplicvel aqui. Tolentino no tem responsabilidade criminal.