13
Avenida Presidente Vargas, 417/9º. andar, sala CEP 20071-003 - Rio de Janeiro – RJ CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected] GT 08 A luta pela terra e a política fundiária Quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes: fumicultura e acesso à terra Maurício Schneider¹ Renata Menasche² 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas PPGA/UFPel. 2 Doutora em Antropologia Social / Professora do Curso de Bacharelado em Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGA/UFPel; Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul PGDR/UFRGS. Resumo: O presente trabalho se propõe a refletir sobre as diferenciadas formas de acesso à terra de quilombolas e pomeranos na região da Serra dos Tapes, Rio Grande do Sul. Enquanto os pomeranos chegaram à região por meio de um processo de colonização incentivado pelo Estado, as comunidades quilombolas conformaram-se na resistência ao regime escravocrata. Nesse sentido, percebe-se que os diferentes percursos históricos levaram a diferenciadas formas de acesso à terra, o que se reflete no presente. Mesmo com o reconhecimento de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombo, nem todas possuem territórios demarcados. Os colonos pomeranos, bem como aqueles de outras etnias presentes na Serra dos Tapes notadamente descendentes de alemães, italianos e franceses , vivem em pequenas propriedades, sendo que nas últimas décadas têm se dedicado, sobretudo, à produção de fumo. Desse modo, percebe-se que o acesso diferenciado à terra configura, no presente, um quadro de relações de patronagem: os pomeranos, proprietários, empregam os quilombolas como diaristas. A pesquisa de campo tem lugar na localidade de Colônia Triunfo, interior do município de Pelotas, onde também se situa a Comunidade Quilombola do Algodão. Palavras-chaves: campesinato; relações interétnicas; relações de patronagem.

2014 Quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes: fumicultura e acesso à terra

Embed Size (px)

DESCRIPTION

SCHNEIDER, Maurício; MENASCHE, Renata. Quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes: fumicultura e acesso à terra. In: VI Encontro da Rede de Estudos Rurais, 2014, Campinas. VI Encontro da Rede de Estudos Rurais. Campinas: Rede de Estudos Rurais, 2014.

Citation preview

  • Avenida Presidente Vargas, 417/9. andar, sala CEP 20071-003 - Rio de Janeiro RJ

    CNPJ: 10.269.919/0001-39 Email: [email protected]

    GT 08 A luta pela terra e a poltica fundiria

    Quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes: fumicultura e acesso terra

    Maurcio Schneider

    Renata Menasche

    1 Mestrando pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade

    Federal de Pelotas PPGA/UFPel. 2 Doutora em Antropologia Social / Professora do Curso de Bacharelado em

    Antropologia e do Programa de Ps-Graduao em Antropologia PPGA/UFPel; Professora do Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Universidade

    Federal do Rio Grande do Sul PGDR/UFRGS.

    Resumo:

    O presente trabalho se prope a refletir sobre as diferenciadas formas de acesso terra

    de quilombolas e pomeranos na regio da Serra dos Tapes, Rio Grande do Sul.

    Enquanto os pomeranos chegaram regio por meio de um processo de colonizao

    incentivado pelo Estado, as comunidades quilombolas conformaram-se na resistncia ao

    regime escravocrata. Nesse sentido, percebe-se que os diferentes percursos histricos

    levaram a diferenciadas formas de acesso terra, o que se reflete no presente. Mesmo

    com o reconhecimento de comunidades negras rurais como remanescentes de quilombo,

    nem todas possuem territrios demarcados. Os colonos pomeranos, bem como aqueles

    de outras etnias presentes na Serra dos Tapes notadamente descendentes de alemes, italianos e franceses , vivem em pequenas propriedades, sendo que nas ltimas dcadas tm se dedicado, sobretudo, produo de fumo. Desse modo, percebe-se que o acesso

    diferenciado terra configura, no presente, um quadro de relaes de patronagem: os

    pomeranos, proprietrios, empregam os quilombolas como diaristas. A pesquisa de

    campo tem lugar na localidade de Colnia Triunfo, interior do municpio de Pelotas,

    onde tambm se situa a Comunidade Quilombola do Algodo.

    Palavras-chaves: campesinato; relaes intertnicas; relaes de patronagem.

  • 1 INTRODUO

    O presente trabalho se prope a refletir sobre as diferenciadas formas de acesso

    terra de quilombolas e pomeranos na regio da Serra dos Tapes, Rio Grande do Sul.

    Enquanto os pomeranos chegaram regio por meio de um processo de colonizao

    incentivado pelo Estado, as comunidades quilombolas conformaram-se na resistncia ao

    regime escravocrata. Nesse sentido, percebe-se que os diferentes percursos histricos

    levaram a diferenciadas formas de acesso terra, o que se reflete no presente. Mesmo

    com o reconhecimento das comunidades negras como remanescentes de quilombo, nem

    todas possuem territrios demarcados. Os colonos pomeranos, bem como aqueles de

    outras etnias presentes na Serra dos Tapes notadamente descendentes de alemes,

    italianos e franceses , vivem em pequenas propriedades, sendo que nas ltimas dcadas

    tm se dedicado, sobretudo, produo de fumo. Desse modo, percebe-se que o acesso

    diferenciado terra configura, no presente, um quadro de relaes de patronagem: os

    pomeranos, enquanto proprietrios, empregam os quilombolas como diaristas.

    Este trabalho um recorte da pesquisa de mestrado do primeiro autor, em curso,

    que tem por objetivo refletir sobre as redes formadas entre quilombolas e pomeranos na

    Serra dos Tapes. Tal pesquisa insere-se no quadro de pesquisas realizadas pelo Grupo

    de Estudos e Pesquisas em Alimentao e Cultura (GEPAC), vinculado ao Laboratrio

    de Estudos Agrrios e Ambientais, da Universidade Federal de Pelotas (LEAA/UFPel).

    A partir da agenda de pesquisa nominada Saberes e Sabores da Colnia, o GEPAC vem

    desenvolvendo pesquisas na regio da Serra dos Tapes, iniciativas em que se articulam

    estudos vinculados Antropologia da Alimentao, do Consumo e do Rural1.

    A pesquisa de campo tem lugar na localidade de Colnia Triunfo, interior do

    municpio de Pelotas, onde tambm se situa a Comunidade Quilombola do Algodo.

    Como mtodo de campo, vem sendo utilizado o mtodo etnogrfico, com o emprego da

    observao participante, do registro em dirio de campo e a realizao de entrevistas.

    Procura-se acompanhar o cotidiano das pessoas no apenas nas atividades estritamente

    ligadas esfera do trabalho, como tambm nas relaes familiares, nos rituais

    religiosos, dentre outros, produzindo, aps a convivncia e troca com os interlocutores,

    registros no dirio de campo. Alm disso, tm sido realizadas entrevistas

    semiestruturadas junto s famlias e produzido registro imagtico, sobretudo fotografias.

    1 Para acessar os trabalhos desenvolvidos pelo GEPAC, ver: http://www.ufrgs.br/pgdr/gepac/.

  • 2 PERCURSOS HISTRICOS E ACESSO TERRA

    2.1 Os processos de ocupao

    At o sculo XIX, a Serra dos Tapes constituiu-se como territrio dos ndios

    Tapes, pertencentes famlia lingustica Tupi Guarani, de onde se deriva sua

    denominao, conforme apontam Salamoni e Waskievicz (2013). A partir de 1779, teve

    incio na regio Sul do Rio Grande do Sul um importante ciclo econmico fruto da

    produo de charque, que movimentou a regio at seu declnio, em meados do sculo

    XIX (MAGALHES, 1993). Os charqueadores, de origem luso-brasileira, instalaram-

    se em grandes propriedades s margens dos rios, na plancie costeira do que hoje o

    municpio de Pelotas. Como a produo de charque era realizada por mo de obra

    escrava, o desenvolvimento dessa indstria trouxe grande nmero de escravos para a

    regio. Ainda que ocupando posio secundria durante o perodo colonial e imperial,

    quando comparado regio nordeste do Pas, onde se instalou o regime da plantation, o

    Rio Grande do Sul contou com expressiva presena de escravos, conforme observam

    Rubert e Silva (2009).

    Nos perodos de entressafra da produo charqueadora, entretanto, os escravos

    eram levados Serra dos Tapes vizinha plancie em que se instalaram as

    charqueadas , a fim de extrair madeira e cultivar alimentos (SALAMONI;

    WASKIEVICZ, 2013). Segundo Rubert e Silva (2009), destaca-se tambm que a

    propriedade de escravos no era exclusiva dos grandes estancieiros e charqueadores,

    estando bastante disseminada entre a populao livre rural, sobretudo entre lavradores

    aorianos que habitavam a Serra dos Tapes. Desse modo, embora a escravido

    estivesse, a princpio, associada atividade charqueadora, situada na plancie costeira, a

    regio da Serra dos Tapes integrava o circuito escravagista. Com a fuga das

    charqueadas, os escravos, buscando estrategicamente por lugares mais ngremes e

    distantes, passaram a ocupar a Serra dos Tapes. Posteriormente, com a abolio da

    escravatura, outras comunidades quilombolas foram se constituindo nessa regio

    (RUBERT; SILVA, 2009).

    A partir do incio do sculo XIX, a imigrao de famlias oriundas de pases

    europeus no ibricos passou a ser incentivada no Rio Grande do Sul. Conforme aponta

    Giralda Seyferth (2002), entre os motivos principais da poltica de imigrao estavam as

    preocupaes em substituir o trabalho escravo, aumentar a produo de alimentos e

  • defender as fronteiras nacionais, bem como promover o branqueamento da populao.

    Acreditava-se, segundo a autora, que com a chegada dos europeus, a mestiagem, que

    cada vez mais tornava a populao mulata, tomaria o rumo inverso o que no se

    concretizaria, devido ao fechamento das comunidades de imigrantes, principalmente

    alems, em casamentos endogmicos. Assim, o projeto de colonizao tomou reas

    tidas como devolutas (efetivamente vazias ou ocupadas por grupos indgenas) e que no

    eram prprias para a atividade pecuria, dividindo-as em pequenos lotes de terra,

    destinados aos colonos.

    Cabe notar que o termo colono tem sua origem no projeto Estatal de

    colonizao, sendo posteriormente apropriado pelos imigrantes como categoria genrica

    de identificao. Como aponta Seyferth (1992, p.80), para o Estado, eram colonos

    todos aqueles que recebiam um lote de terras em reas destinadas colonizao.

    Segundo a autora, a categoria colono passa, assim, a designar todo imigrante europeu

    no ibrico e a servir como elemento de diferenciao em relao aos demais grupos.

    Na Serra dos Tapes, os primeiros projetos de colonizao estabelecem-se a partir

    de 1848. Desses, alguns eram de iniciativa do Governo Imperial, outros do Governo

    Provincial e alguns, ainda, eram particulares. Como apontam Salamoni e Waskievicz

    (2013), os projetos de colonizao no eram, a princpio, bem vistos pelos

    latifundirios, porm, com o tempo, muitos desses proprietrios perceberam na

    iniciativa uma oportunidade potencialmente lucrativa, parcelando suas prprias pores

    de terra para assentar famlias de imigrantes. Desse modo, por diferentes iniciativas, so

    criadas as colnias, com imigrantes de origem alem, pomerana, italiana, francesa e

    irlandesa (SALAMONI; WASKIEVICZ, 2013). Algumas famlias luso-brasileiras

    tambm foram assentadas nessas colnias e, mesmo no sendo imigrantes, assumiram a

    identidade de colonos. Nesse sentido, pode-se sugerir que, na Serra dos Tapes, com toda

    a diversidade de etnias presentes no processo de colonizao, constitui-se o que

    Seyferth (1992), em estudo realizado no Vale do Itaja (Santa Catarina), denominou

    cultura camponesa compartilhada.

    Em 1856, o empresrio alemo Jacob Rheingantz funda a colnia de So

    Loureno, no atual municpio de So Loureno do Sul, estabelecendo o primeiro ncleo

    de colonizao pomerana na Serra dos Tapes (SALAMONI; WASKIEVICZ, 2013).

    A Pomernia era uma regio da Europa, prxima ao mar Bltico, que esteve sob

    domnio da Prssia at a instituio do Imprio Alemo, quando ento teve seu

    territrio dividido entre os domnios da Alemanha e da Polnia (WILLEMS, 1946 apud

  • THUM, 2009). No Brasil, alm da colnia de So Loureno do Sul no Rio Grande do

    Sul , Santa Catarina e Esprito Santo tambm receberam imigrantes oriundos da

    Pomernia (WILLEMS, 1946 apud THUM, 2009). Segundo Carmo Thum (2009,

    p.146), a busca por pomeranos para formar a colnia foi realizada de modo consciente,

    pois, alm de estarem acostumados s lides agrcolas, viviam uma situao de

    dependncia, de longo prazo, na Pomernia. poca da imigrao, a Pomernia ainda

    vivia sob um regime feudal e a maior parte dos imigrantes que vieram para So

    Loureno estava subjugada a uma situao de servido.

    Depois de assentados na colnia de So Loureno, os pomeranos e seus

    descendentes foram se distribuindo por toda a regio da Serra dos Tapes, ganhando

    outras localidades. Na atualidade, os processos de ocupao por colonos alemes,

    pomeranos, italianos e franceses, dentre outros, bem como por luso-brasileiros e

    comunidades negras rurais, criaram um complexo de relaes na Serra dos Tapes. Os

    casamentos intergrupos colonos de diferentes etnias, luso-brasileiros e negros so

    cada vez mais frequentes. Em algumas localidades, possvel presenciar pomeranos em

    rodeios e parelhas de cavalos, prtica comumente atribuda cultura gacha2, bem

    como afrodescendentes vivendo em pequenas propriedades e identificando-se

    igualmente como colonos. Ao mesmo tempo, persiste a pluralidade, manifesta a partir

    das prticas, dentre elas as diferentes religies, lnguas e cozinhas.

    2.2 Quilombolas e pomeranos na Serra dos Tapes

    A Colnia Triunfo se situa no interior do municpio de Pelotas, distante cerca de

    60 quilmetros da sede do municpio. L tambm se situa a Comunidade Quilombola do

    Algodo. Conforme relata o presidente da Comunidade Quilombola, a ocupao da

    regio onde hoje tem lugar a localidade Colnia Triunfo comeou com a instalao, h

    cerca de 150 anos, de famlias negras. Essas famlias se estabeleceram em pequenos

    ncleos separados uns dos outros. Apenas depois que os quilombolas j habitavam a

    regio, chegaram os colonos pomeranos.

    Segundo o presidente da Comunidade Quilombola, os colonos pomeranos

    dividiram a terra em lotes e ocuparam todo o territrio em torno dos ncleos da

    2 Associada a luso-brasileiros, que tinham na criao de gado, sobretudo em grandes propriedades, sua

    principal atividade econmica, bem como um dos principais elementos de seu modo de vida.

  • comunidade, deixando apenas as reas das casas dos quilombolas, que ficaram

    praticamente sem terra para produzir. Sem terra, os quilombolas no puderam cultivar

    lavouras ou criar animais, restando apenas cuidar de pequenas hortas, que, como ele

    relata, eram insuficientes para suprir suas necessidades alimentares. Assim, desde cedo

    alguns quilombolas passaram a trabalhar em propriedades de colonos pomeranos.

    Tambm eram frequentes, segundo ele, casos em que quilombolas roubavam alimentos

    de lavouras de colonos pomeranos.

    Olha, assim , como que era chamado antigamente, as comunidades

    quilombolas? Eram chamados dos negro ladro. Porque, na realidade, as

    comunidades quilombolas roubavam para comer. Porque a gente no ia estar

    em casa vendo os filhos passar fome, l na lavoura do vizinho tinha laranja,

    tinha bergamota, tinha batata, ento acabava indo, buscando l, pra dar

    comida pros filhos. Na verdade, era a nica sada que tinha. No tinha uma

    outra sada.

    O reconhecimento enquanto comunidade quilombola recente. Como relata seu

    presidente, o processo comeou em 2010, com o pedido de reconhecimento junto

    Fundao Cultural Palmares, com o intuito de se tornarem beneficirios de programas

    do Governo Federal. Como no possuem a escritura da terra, sem o reconhecimento

    como comunidade quilombola no podiam se inscrever nesses programas. Atualmente,

    tendo sido reconhecida pela Fundao Palmares, a comunidade passou a ter a acesso a

    programas e polticas pblicas do Governo Federal, como luz para todos, minha

    casa, minha vida e bolsa famlia, sendo que o ltimo assegura uma renda mensal

    para as famlias.

    Quando os colonos pomeranos chegaram localidade, estabeleceram-se em

    pequenas propriedades policultoras. Assim como em outras localidades da Serra dos

    Tapes, produziam alimentos que abasteciam as cidades prximas, sobretudo Pelotas.

    Ainda, alguns colonos assumiram a profisso de ferreiro ou de moleiro como atividade

    principal, a fim de atender a necessidades complementares da colnia. O

    beneficiamento de gros e sua transformao em farinhas, bem como a produo de

    equipamentos agrcolas, tais como os arados, constituam-se como atividades comuns

    na Serra dos Tapes. A partir dos anos 1960, entretanto, observa-se um processo de

    modernizao que transformou esse contexto, sendo que o padro de consumo passou a

    ser de produtos industrializados, tanto no que se refere s prticas agrcolas como

    alimentares.

  • Atualmente, as relaes entre quilombolas e pomeranos aparecem de forma

    ambgua. De ambas as partes, comum escutar expresses como: aqui no existe

    conflito ou somos todos amigos, ao mesmo tempo em que eles na deles, e ns na

    nossa. Quando se aprofundam, nesse tema, as questes junto aos interlocutores,

    percebe-se que a complexidade de tais relaes ainda maior. Muitos quilombolas

    afirmam que h preconceito e discriminao dos pomeranos em relao a eles. Dizem

    tambm que, para os pomeranos, os quilombolas s so bons para trabalhar, para as

    outras coisas, no presta. Os pomeranos, por sua vez, reclamam que os quilombolas

    no os reconhecem como brasileiros, tratando-os por alemo batata, alemo sujo ou

    alemo de merda.

    Ao mesmo tempo, observa-se que os dois grupos estabelecem inmeras formas

    de relao, no se configurando como grupos distantes ou fechados sobre si mesmos.

    Quilombolas e pomeranos convivem na esfera do trabalho nas pequenas propriedades

    agrcolas, nas festas, nas escolas e igrejas, partilham espaos e estabelecem vnculos

    entre si. Tambm os casamentos entre afrodescendentes e pomeranos tornam-se cada

    vez menos incomuns.

    Daros et al. (2007) observam que, na localidade de So Roque, no Vale do

    Taquari, Rio Grande do Sul, as relaes entre quilombolas e colonos (alemes e

    italianos) tambm so marcadas pela proximidade e complexidade. Segundo os autores,

    afrodescendentes casam-se com alemes e italianos e alguns tambm estabelecem

    relaes de compadrio. Ainda, muitos quilombolas adotam hbitos alimentares

    caractersticos dos colonos alemes e italianos, como a preparao da cuca e da polenta.

    Os autores apontam, ainda, para relatos de discriminao dos colonos em relao aos

    quilombolas. Conforme descreve uma de suas interlocutoras, nas festas de comunidade,

    as mulheres quilombolas ficam restritas a atividades de limpeza do salo, no podendo

    cozinhar junto com as mulheres colonas.

    Na Serra dos Tapes, os pomeranos lanam comentrios sobre a suposta falta de

    empenho dos quilombolas no trabalho, alm de criticarem alguns de seus hbitos.

    Dizem que os quilombolas no tm religio e que fumam e bebem em demasia. Pode-se

    sugerir que tal estigmatizao esteja associada a uma viso de mundo prpria do colono,

    fundada no ethos do trabalho como valor. Por outro lado, essas avaliaes tambm

    podem estar vinculadas a uma tica puritana, advinda do luteranismo (religio a que

    pertence a maioria desses descendentes de imigrantes), que v como vcios a bebida e o

    cigarro, recriminando-os. Conforme aponta Nei Clara de Lima (1996), as religies

  • protestantes, entre elas o luteranismo, tm seus valores marcados pelo ideal do

    ascetismo, isto , de uma separao entre os domnios do corpo e do esprito e um

    consequente desprezo por tudo que supostamente sirva apenas ao corpo, como a

    comida, a bebida e o sexo.

    Quilombolas e pomeranos tambm partilham, na localidade, os mesmos

    equipamentos pblicos, como o posto de sade e a escola. interessante notar que, com

    o reconhecimento da comunidade quilombola pela Fundao Cultural Palmares, os

    programas e polticas pblicas dos quais a comunidade passou a ser beneficiria tm

    abarcado tambm os pomeranos. A escola da localidade j recebe verba extra para a

    merenda escolar, por estar inserida em rea de quilombo; e o posto de sade passar a

    ser atendido pelo programa sade da famlia, uma vez que atende a rea de quilombo.

    Outro espao de convivncia diz respeito esfera das religiosidades, o que pode

    ser observado em festas de comunidade e prticas de benzeo. Nas festas realizadas na

    duas Igrejas Luteranas da localidade3, alm das Igrejas de outras localidades e de

    moradores da cidade muitos dos quais migraram da Colnia Triunfo , tambm

    participam os quilombolas. Mas diferentemente do que ocorre nessas festas de

    comunidade, que possuem um carter mais aberto os quilombolas queixam-se por no

    serem convidados em outros tipos de festas promovidas pelos pomeranos. Nas festas de

    aniversrio, de confirmao e de casamento, os convites so feitos direcionadamente

    para aquelas famlias que se deseja se faam presentes. Esses convites incluem, em

    geral, pessoas pertencentes s redes de parentesco e vizinhana, colonos pomeranos,

    deixando de fora os quilombolas, que trabalham para eles.

    Nos dois grupos existem benzedeiras, apesar de os pomeranos alegarem que, na

    atualidade, j no h tantas benzedeira pomeranas como antigamente. Apesar dos

    pastores das Igrejas Luteranas condenarem tais prticas, a maioria das famlias admitem

    acreditar nos efeitos das benzees para problemas de sade, assim como admitem j

    terem visitado benzedeira ao menos uma vez. Joana Bahia (2011), em etnografia

    realizada junto a camponeses pomeranos do Esprito Santo, comenta que magia e

    religio fazem parte da religiosidade cotidiana, sendo comuns a prtica da benzeo e a

    crena na bruxaria. Muitos pomeranos, quando necessitados, procuram benzedeiras

    quilombolas.

    3 Na localidade, h uma Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil (IECLB) e uma Igreja

    Evanglica Luterana do Brasil (IELB), tambm chamada de igreja independente, por no seguir a mesma

    estrutura hierrquica da de Confisso Luterana, tendo maior autonomia. Ambas as igrejas promovem uma

    festa de comunidade uma vez ao ano.

  • As relaes entre quilombolas e pomeranos no se restringem localidade de

    Colnia Triunfo, ao contrrio, encontram-se capilarizadas por toda a Serra dos Tapes.

    Como apontam Patrcia Weiduschadt et al. (2013), nessa regio, muitos quilombolas

    falam a lngua pomerana e alguns so adeptos do luteranismo. Esses autores relatam o

    caso da criao, na dcada de 1920, de uma congregao luterana negra no interior do

    municpio de Canguu vizinho a So Loureno do Sul , inclusive com a presena de

    pastores negros ordenados. Contudo, apesar que marcadas pela proximidade, pode-se

    sugerir que as relaes entre os dois grupos so muito complexas. O acesso diferenciado

    terra configura, no presente, um quadro de relaes de patronagem. Os pomeranos

    constituem-se enquanto possuidores de pequenas propriedades rurais, enquanto que os

    quilombolas vendem sua fora de trabalho.

    2. 3 Fumicultura: patres e diaristas

    Nas ltimas dcadas, a fumicultura vem se apresentando como principal

    atividade produtiva da Serra dos Tapes. A maioria das famlias de colonos reduziu

    significativamente a produo de alimentos para passar a produzir fumo.

    Em Pelotas, a implantao do cultivo do fumo ocorreu na dcada de 1960,

    bem como nos municpios de Canguu e So Loureno. A dificuldade em

    comercializar produtos tradicionalmente cultivados, como a cebola, a batata

    inglesa e o milho (e mais recentemente isso tambm se aplica ao pssego) estimulou o crescimento da fumicultura. (AGOSTINELLO et al., 2000 apud

    Pinheiro, 2010, p.167).

    Cabe notar que o fumo possui caractersticas especficas para ser produzido. Por

    um lado, em uma pequena poro de terra possvel cultivar milhares de mudas e, por

    outro, necessita-se de grande quantidade de mo de obra para realizar o plantio e a

    colheita, bem como para classificar e estocar as folhas antes de envi-las para a empresa

    compradora. Por esses motivos, as pequenas propriedades familiares se tornam ideais

    para desenvolver a atividade de produo de fumo (PINHEIRO, 2010).

    Na Serra dos Tapes, observa-se que alm da mo de obra da famlia nuclear,

    comum ocorrer trocas de servios entre parentes e vizinhos. Nos perodos em que as

    atividades ligadas produo de fumo demandam mo de obra superior quela

    disponvel no grupo domstico, sobretudo na poca de colheita das folhas do fumo,

  • costuma-se solicitar o auxlio de parentes e vizinhos. Tal ajuda ser retribuda quando

    esses demandarem auxilio em suas propriedades. Alm disso, nas propriedades dos

    colonos, tambm empregada a mo de obra de quilombolas, que trabalham como

    diaristas. Se antes a produo de alimentos era realizada quase que exclusivamente por

    trabalho familiar, a fumicultura necessita muito mais intensamente de mo de obra

    externa, seja no sistema de troca de servio, seja via contratao de diaristas.

    Na Colnia Triunfo, as duas estratgias so comuns. Muitos quilombolas

    trabalham como diaristas em propriedades de colonos pomeranos, sobretudo no perodo

    entre novembro e maro, poca de plantio e colheita de fumo, atividades que demandam

    mo de obra intensivamente. No restante dos meses do ano, na fumicultura, a atividade

    consiste em lidar com as folhas do fumo, classificando-as e estocando-as em fardos,

    trabalho que realizado quase que exclusivamente por mo de obra familiar.

    Como j mencionado, a grande maioria das famlias pomeranas da Colnia

    Triunfo trabalha atualmente com a produo de fumo. Ainda que muitos reconheam os

    efeitos prejudiciais dos agrotxicos empregados nessa produo para a sade dos

    agricultores e mesmo do tabaco para a sade dos consumidores e ainda que alguns

    admitam que prefeririam produzir alimentos, quase que consenso, tanto entre

    pomeranos quanto entre quilombolas, a importncia econmica do fumo para a regio.

    Os colonos pomeranos costumam ressaltar que, com a fumicultura, no apenas

    as condies econmicas das famlias melhoraram, mas que sem ela no haveria

    alternativa de produo que trouxesse renda suficiente. Como observa um interlocutor,

    colono pomerano:

    Com 5 hectares pode plantar fumo. Porque em um hectare cabe, me parece

    que 17 mil ps de fumo. E se tem uma famlia que quer plantar 30 mil ps, ou

    40, eles precisam de pouco... pequena propriedade. (...) E se no fosse esse

    fumo... Naquele tempo, eu me lembro, quando foi aberto esse... agora supermercado, naquele tempo se chamava de boteco, bolicho, essas coisas

    assim... ento, naquele tempo no tinha fumo. Aquilo era ano aps ano, ms

    aps ms, os mais pobres, tanto brancos, quanto meia cor, como pretos,

    aquilo era fiado na venda, caderno cheio, ano aps ano. Depois que entrou o

    fumo, todo mundo pode comprar a dinheiro. Naquele tempo, muitos no

    podiam comprar carne, ento compravam os midos dos animal: cabea, o

    fgado, a parte inferior do animal, porque no podia comprar a carne. Agora

    isso ningum mais come. Aquilo tudo vai... eles buscam aqui dos aougue e

    vai pra cidade. Todo mundo tem condies de comprar um pedao de carne.

    Todo mundo tem carro, quem planta fumo. Geralmente tudo tem carro novo.

    Esses mais fortes tem carro novo, os outros... s vezes tem dois, um, dois trator. Tem gente que tem at trs trator. Tem tudo dentro de casa, tudo

    digital dentro de casa. Tudo moderno.

  • Para os quilombolas, a atividade fumicultora representa oportunidade de

    trabalho como diaristas. comum escutar tambm dos quilombolas discurso semelhante

    ao proferido pelos pomeranos: que se no fosse o fumo no haveria nada na regio

    (referindo-se, sobretudo, a condies materiais). Como relata o presidente da

    comunidade, apesar da comunidade quilombola ter o reconhecimento da Fundao

    Cultural Palmares, eles optaram por no abrir o processo de reconhecimento do

    territrio junto ao INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria).

    Segundo acreditam, esse processo levaria muitos anos para ser concludo e desalojaria a

    maior parte dos colonos pomeranos de suas propriedades. Segundo eles, uma vez

    iniciado o processo e enquanto ele no se conclusse, os quilombolas ficariam sem os

    empregos de diaristas e sem o territrio prprio que o reconhecimento do INCRA lhes

    traria, o que representaria, para a comunidade, a perda completa das oportunidades de

    trabalho.

    Ainda, preciso mencionar que quilombolas e pomeranos no ficam restritos s

    condies descritas acima, apesar desse quadro constituir-se como predominante. Por

    no possurem terras ou capital para investir na produo de fumo, tambm alguns

    pomeranos, trabalham como diaristas em propriedades de outros colonos. Pode-se ainda

    observar que, na Colnia Triunfo, os casamentos entre quilombolas e pomeranos so

    cada vez mais frequentes, o que leva muitos pomeranos a morarem na comunidade

    quilombola. Alguns quilombolas, seja ou no a partir de casamento com pomeranos,

    tambm se mudam para pequenas propriedades, tornando-se produtores.

    3. CONSIDERAES FINAIS

    Na Serra dos Tapes, quilombolas e pomeranos tiveram modos de acesso terra

    muito diferenciados. Os pomeranos chegaram regio por meio de processo de

    colonizao incentivado pelo Estado. Apesar dos colonos terem encontrado uma

    realidade muito diferente da que lhes fora prometida quando aliciados em seus pases

    na medida em que tiveram que demarcar seus prprios lotes em reas de florestas

    nativas, muitas vezes endividados com a compra de terras e instrumentos de trabalho ,

    a colonizao constituiu-se, no Brasil, como projeto oficial (SEYFERTH, 1992). Em

    contrapartida, as comunidades originadas a partir da resistncia ao sistema escravocrata

    foram inicialmente perseguidas e posteriormente negligenciadas pelo Estado. Apenas

  • muito recentemente algumas aes tm passado a buscar atender a esse grupo, tais como

    o reconhecimento e a demarcao de terras de comunidades quilombolas e o acesso a

    programas e polticas pblicas (RUBERT; SILVA, 2009).

    Percebe-se, assim, que os diferentes percursos dos dois grupos na regio esto

    refletidos em suas respectivas condies de acesso terra no presente. Enquanto

    colonos pomeranos vivem em pequenas propriedades familiares produtivas,

    quilombolas conformam comunidades e possuem pouca ou nenhuma terra produtiva.

    Contudo, pode-se sugerir que a produo de fumo na regio da Serra dos Tapes,

    que nas ltimas dcadas vem se estabelecendo como principal atividade produtiva da

    regio, aproxima os dois grupos. Se antes a produo de alimentos era realizada quase

    que exclusivamente pelo trabalho familiar, a fumicultura necessita muito mais

    intensamente da contratao de diaristas, que, em sua maioria, so quilombolas. Tais

    relaes entre quilombolas e pomeranos, apesar de prximas, so bastante complexas.

    comum escutar trocas de acusaes de preconceito e discriminao de ambas as partes.

    Ao mesmo tempo, observa-se que os dois grupos estabelecem inmeras formas de

    relao, alm daquelas vinculadas estritamente esfera do trabalho, partilhando

    equipamentos pblicos, tais como escolas e postos de sade, convivendo nas festas e

    casando-se entre si.

    , assim, nesse contexto que, no caso da Colnia Triunfo, onde est situada a

    Comunidade Quilombola do Algodo, apesar do reconhecimento da Fundao Cultural

    Palmares obtido, os quilombolas preferiram no abrir o processo de reconhecimento do

    territrio junto ao INCRA. Como j mencionado, segundo acreditam, esse processo

    levaria muitos anos para ser concludo e teria como resultado o desalojamento da maior

    parte dos colonos pomeranos de suas propriedades. Desse modo, os quilombolas

    acreditam que, uma vez iniciado o processo e enquanto no se conclusse, eles

    permaneceriam sem a ocupao como diaristas e, ao mesmo tempo, sem o territrio

    prprio que o reconhecimento do INCRA lhes traria, o que representaria para a

    comunidade a ausncia de oportunidades de trabalho.

  • 4. REFERNCIAS

    BAHIA, Joana. O tiro da bruxa: identidade, magia e religio na imigrao alem. Rio

    de Janeiro: Garamond, 2011.

    DAROS, Alexandre; KRONE, Evander Elo; MUNDELESKI, Everton; MENASCHE,

    Renata. Agriculturas familiares: prticas agrcolas, autoconsumo e modos de vida entre

    colonos e quilombolas In: MENASCHE. Renata (Org.). A agricultura familiar

    mesa: saberes e prticas da alimentao no Vale do Taquari. Porto Alegre: Ed. UFRGS,

    2007.

    LIMA, Nei Clara de. A festa de Babette: consagrao do corpo e embriaguez da alma.

    Horizontes Antropolgicos. Porto Alegre, v. 2, n. 4, p. 1-13, 1996.

    MAGALHES, Mario Osorio. Opulncia e cultura na Provncia de So Pedro do

    Rio Grande do Sul: um estudo sobre a histria de Pelotas (1860-1890). Pelotas:

    Livraria Mundial, 1993.

    PINHEIRO, Patrcia dos Santos. Saberes, plantas e caldas: a rede sociotcnica de

    produo agrcola de base ecolgica no sul do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:

    UFRGS, 2010. 199f. Dissertao (Mestrado em Desenvolvimento Rural) Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural. Faculdade de Cincias Econmicas.

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.

    RUBERT, Rosane Aparecida; SILVA, Paulo Srgio da. O acamponesamento como

    sinnimo de aquilombamento: o amlgama entre resistncia racial e resistncia

    camponesa em comunidades negras rurais do Rio Grande do Sul. In: GODOI, Emilia

    Pietrafesa; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Org.).

    Diversidade do campesinato: expresses e categorias: construes identitrias e

    sociabilidades. So Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 251-275.

    SALAMONI, Giancarla; WASKIEVICZ, Carmen Aparecida. Serra dos Tapes: espao,

    sociedade e natureza. Tessituras, Pelotas, v. 1, n. 1, p. 73-100, 2013.

    SEYFERTH, Giralda. As contradies da liberdade: anlise de representaes sobre a

    identidade camponesa. Revista Brasileira de Cincias Sociais, v. 7, n. 18, p. 78-95,

    1992.

    ______. Colonizao, imigrao e a questo racial no Brasil. Revista USP, So Paulo,

    n. 53. p. 117-149, 2002.

    THUM, Carmo. Educao, histria e memria: silncios e reinvenes pomeranas na

    Serra dos Tapes. So Leopoldo: Unisinos, 2009, 383 f. Tese (Doutorado em Educao)

    Programa de Ps-Graduao em Educao. Universidade Vale dos Sinos, 2009.

    WEIDUSCHADT, Patrcia; SOUZA, Marcos Teixeira; BEIERSDORF, Cssia Raquel.

    Afro-pomeranos: entre a Pomernia lembrada e a frica esquecida. Identidade!, So

    Leopoldo, v. 18, n. 2, p. 249-263, 2013.