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Revista da AJUFERGS ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL 09 - 2016

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Revista da AJUFERGS

ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAISDO RIO GRANDE DO SUL

09 - 2016

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Diretor Cultural da RevistaLademiro Dors Filho

Conselho EditorialGerson Godinho da Costa

Lademiro Dors FilhoMarcel Citro de Azevedo

Assessoria EditorialJuliana Chaves Dias

Capa, Projeto GráficoHeadway Propaganda

RevisãoGisele Schmidt Moitoso

EditoraçãoFábio A. Teixeira dos Santos

CapaHeadway Propaganda

ImpressãoDatacerta Editora Ltda.

Revista da AJUFERGSPublicação oficial da ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES

FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL - AJUFERGS

As opiniões expressas nos trabalhos são de responsabilidade dos Autores.Não são devidos direitos autorais ou qualquer remuneração

pela publicação dos trabalhos nesta Revista.

Revista da AJUFERGS / Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul. – n. 01 (março 2003). – Porto Alegre: AJUFERGS, 2003- .

Irregular.

ISSN 1679-2262

1. Direito – Periódico. 2. Poder Judiciário – Brasil. I. Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul.

CDD 34.05 CDU 34(05)

(Bibliotecária responsável: Flavia H. S. Monte, CRB-10/1218)

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ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAISDO RIO GRANDE DO SUL

Fundada em 08 de dezembro de 2001

CONSELHOS

Conselho Executivo

PresidenteFÁBIO VITÓRIO MATTIELLO

Vice-presidente AdministrativoALEX PÉRES ROCHA

Vice-presidente de Patrimônio e FinançasALESSANDRO DUTRA LUCARELLI

Vice-presidente Cultural e da ESMAFEGERSON GODINHO DA COSTA

Vice-presidente de Assuntos InstitucionaisMARCIANE BONZANINI

Vice-presidente de Assuntos JurídicosFREDERICO VALDEZ PEREIRA

Conselho Fiscal

CARLA EVELISE JUSTINO HENDGESGIOVANI BIGOLINRICARDO NÜSKE

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Diretoria AJUFERGS

Diretor CulturalLADEMIRO DORS FILHO

Diretor Administrativo da ESMAFEGUILHERME MAINES CAON

Diretor de Ensino da ESMAFEEDUARDO RIVERA PALMEIRA FILHO

Diretora Social e de BenefíciosRAFAELA SANTOS MARTINS DA ROSA

Diretor de EsportesANDRÉ DE SOUZA FISCHER

Diretor de Assuntos do Interior do EstadoMARCELO FURTADO PEREIRA MORALES

Diretor de Assuntos LegislativosEDUARDO GOMES PHILIPPSEN

Diretoria ESMAFE

Diretor-Geral da ESMAFEGERSON GODINHO DA COSTA

Diretor AdministrativoGUILHERME MAINES CAON

Diretor de EnsinoEDUARDO RIVERA PALMEIRA FILHO

Diretor CulturalLADEMIRO DORS FILHO

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Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul

AJUFERGS

Biênio Jun/2014 - Jun/2016

Rua dos Andradas, 1001, conjunto 150390020-007 Porto Alegre, RS

(51) 3226.7057 - www.ajufergs.org.br

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SUMÁRIO

EL DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL EN EL PERúEdgardo Torres López ........................................................................ 13

CENTENÁRIO DO MINISTRO RODRIGUES DE ALCKMINCarlos Eduardo Thompson Flores Lenz............................................. 21

O ACESSO à JUSTIÇA: ENFOqUES TRADICIONAL E CONSEqUENCIALGerson Godinho da Costa .................................................................. 37

COMENTÁRIOS à LEI ANTICORRUPÇÃO – LEI Nº 12.846, DE 1º DE AGOSTO DE 2013Stefan Espirito Santo Hartmann ......................................................... 55

LIMITES SOCIOLÓGICOS AO USO INTENSIVO DO BACEN-JUD Marcel Citro de Azevedo ................................................................... 87

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADOAna Paula Martini Tremarin Wedy .................................................. 105

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADEAna Cristina Monteiro de Andrade Silva ......................................... 129

DIREITO FUNDAMENTAL à BOA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA, MORALIDADE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVASEduardo Kahler Ribeiro ................................................................... 157

qUADRO NORMATIVO INDIGENISTAAlexandre Gonçalves Lippel ............................................................ 179

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O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICAGabriel Wedy / Juarez Freitas .......................................................... 205

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EDITORIAL

Mais uma vez os nossos associados, juízes federais, apresentam notá-veis trabalhos para esta já tradicional revista associativa. E, em inestimável acréscimo, o periódico conta, nesta edição, com trabalho internacional. Neste nono volume, como sói ocorrer, dez textos lançam profundo debate sobre temas atuais de interesse de toda a comunidade jurídica.

A edição principia com o trabalho do eminente colega Edgardo Torres López, Presidente de la Sala Civil Permanente de la Corte Superior de Jus-ticia de Lima Norte, que trata do Direito Processual Constitucional no Peru.

Das terras brasileiras, de início, temos a oportuna lembrança do centenário de nascimento do eminente e saudoso Ministro Rodrigues de Alckmin que ocorre neste ano de 2015. quem nos apresenta os seus dados biográficos e alguns de seus julgamentos que entraram para a história do STF (como o seu pronunciamento no caso da Representação n. 961/RJ, firmando importante precedente quanto aos pressupostos do controle de constitucionalidade em abstrato) é o nosso eminente Desembargador Federal do TRF da 4ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.

Em seguida, há o trabalho sobre o acesso à Justiça do estimado Vice-presidente Cultural e da ESMAFE, Gerson Godinho da Costa. O eminente magistrado analisa a problemática do acesso à justiça não só sob o prisma tradicional, mas também considerado o enfoque consequencial.

Tão em voga nos dias de hoje, o assunto corrupção é tema de um excelente artigo no colega Stefan Espírito Santo Hartmann. O trabalho examina os dispositivos da Lei n. 12.846 de 1º de agosto de 2013, cha-mada Lei Anticorrupção (LAC).

Também nosso colega, ex-Diretor Cultural e escritor Marcel Citro Azevedo apresenta estudo sobre ferramenta usada diuturnamente pelos juízes: o BACEN-Jud. O autor tece considerações sobre o tema, enfati-zando a necessária moderação do uso de tal ferramenta, utilizada para o bloqueio de contas-correntes como modo de satisfazer o crédito, tendo em vista o conceito de Estado interventor e o do Estado liberal. Vale dizer, os limites sociológicos ao uso de tal procedimento.

Ana Paula Martini Tremarin Wedy nos traz considerações sobre a Responsabilidade Civil Objetiva, tendo em vista a nova sociedade e seu

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progresso social. Diante da nova realidade das inovações tecnológicas e dos direitos de massa, a ilustre magistrada analisa a responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico pátrio e no Direito comparado (alemão e francês).

Depois, Ana Cristina Monteiro de Andrade Silva faz uma análise sobre o Princípio Constitucional da Solidariedade. Após conceituar e invocar os fundamentos constitucionais de tal princípio, a eminente ma-gistrada nos mostra como se aplica tal preceito no Direito Previdenciário e no Direito Ambiental.

Em tempos de escândalos de corrupção na administração pública, nada mais oportuno que o estudo do Direito à boa administração pública, moralidade e improbidade administrativa. Sobre tais temas, enfatizando a moralidade administrativa como princípio que baliza os atos de toda a administração pública, Eduardo Kahler Ribeiro, aborda os pressupostos para a improbidade administrativa, com o exame da proporcionalidade e gravidade das condutas reputadas ímprobas.

Alexandre Gonçalvez Lippel traz assunto de efetivo interesse da Justiça Federal, falando sobre o quadro Normativo Indigenista. Partindo da Convenção n. 169 da OIT, o ilustre Magistrado Federal analisa também o Direito Indígena surgido após a promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como a aplicação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Por fim, nosso ex-Presidente da AJUFERGS e AJUFE, Gabriel Wedy e o eminente jurista Professor Juarez Freitas, abordam tema pouco ana-lisado na doutrina constitucional brasileira, o legado dos votos vencidos na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Algumas das mais famosas decisões judiciais da história norte-americana são avaliadas com o foco no conteúdo externado pelos votos vencidos.

Como visto, mais uma vez os juízes federais da 4ª Região, acompa-nhados de insigne magistrado peruano, mostram com grande desenvoltura intelectual suas teses jurídicas. Tratam-se de assuntos palpitantes, inte-ressando a todos os personagens atuantes no foro ou na academia. Vale dizer, resta mantido o alto nível dos debates que todo ano são travados nesta publicação. O que, verdadeiramente, é motivo de orgulho para nossa Associação que conta com juízes federais tão atentos e interessados no estudo do Direito.

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PALAVRA DA DIRETORIA

que sina esta a do ser humano! Transitar por incertezas em busca do absoluto, o qual, de resto, nada mais parece que uma utopia. quando cá se encontra, achando-se pleno de felicidade, absorto pela satisfação imediata e provisória do consumo, depara-se inevitavelmente com a indagação: de que vale tudo isso?! Estará certo Brás Cubas quando, em sua derradeira sentença, regozija-se por não ter legado a ninguém a miséria deste mundo?

Há ainda que se temperar esse caldo com as antes impensadas ou inéditas manifestações. Paris arde por obra do terrorismo. Não que ele não existisse, mas eram inauditas a crueldade, a covardia e a envergadura com que ora se manifesta. E o que haverá por trás disso? Política? Vingança? Clamor por justiça? Áreas da Terra, distantes culturalmente do mundo ocidental, por ele vilipendiadas ou abandonadas, estarão legitimadas a cobrar atenção a qualquer preço?

Ainda no terreno das incertezas, a resposta ao último questionamento parece ser negativa. Há exemplos de lutas por outros meios, as quais, apesar das dificuldades, apresentam vitórias. Lancemos nosso olhar aos irmãos peruanos. Haverá meio de compensar a flagrante injustiça decor-rente da destruição do Império Inca? E quanto aos nativos, peruanos ou brasileiros, haverá reparação pela violência dos conquistadores europeus? O Judiciário tem dito que sim. Esparsa e lentamente, sem recomposição do status quo. Todavia, alguma forma de justiça está acontecendo.

E será o progresso inevitável? Sendo, até onde nos levará? O celta de Llosa nos deu suas pistas. Coincidentemente no Peru, e também no Congo de Conrad. O capitalismo desregrado cobra solidariedade aos prejuízos privados, enquanto dogmas políticos, noutra ponta, cobram igualdade para uns ao custo da vida de muitos. A falta de ética não escolhe ideologia. Onde devemos pisar? O que ou a quem deveremos seguir?

É nesse cenário que se move o juiz, também vítima das incertezas do nosso tempo, também perplexo diante desses questionamentos. Entretanto, dele são exigidas respostas. Ponderadas, claro. Mas, ainda assim, respostas. Impositivas. Tem tempo para reflexão; contudo, não pode imergir na inércia. Isso torna seu agir mais difícil. É óbvio! Mas,

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então, qual a causa de ser tão incompreendido? Pelo motivo de errar e acertar? Por que sua decisão não pode ser um produto manufaturado? Por que tanta resistência à sua independência?

O quadro é sombrio? Sim. Não estamos decerto a contemplar a escuridão conradiana. Mas é necessário atenção. E é preciso se agarrar a algo: à fé; aos pequenos gestos; à amizade; à poesia; ao farfalhar das gotas da chuva nos ramos de uma folhagem. Assim demonstravam a al-tivez e a disciplina de Don Pepe, cujos ensinamentos transbordavam em terras incas para quem quisesse ouvir ou estivesse disposto a perceber. Assim revela a coragem de um Lewandowski, com o mesmo coração daquele Ricardo da mitologia britânica, a abraçar a causa dos seus, ao fim, nada mais nada menos, que a causa da independência judicial. Há, pois, esperança. É preciso investir nela. Seres humanos não magistrados e magistrados seres humanos. Todos!

E, no tocante a esse investimento, segue a Ajufergs seu caminho. Não sem óbices. Não sem conquistas. Sempre apostando no futuro; apostando numa nação mais justa e solidária; apostando na independência da ma-gistratura, convicta de que juiz independente é pressuposto do exercício de qualquer democracia e de consolidação do Estado de Direito. Assim, sigamos em frente; sigamos! Na busca do possível, mas também – por que não? – do irrealizável...

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EL DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL EN EL PERú

EDGARDO TORRES LÓPEZPresidente de la Sala Civil Permanente de la Corte Superior de Justicia de Lima Norte

I AntecedentesLa Constitución Política de un país es la norma rectora y base del

reconocimiento de derechos y deberes fundamentales; de la organización jurídica de la nación, y de las garantías esenciales, para el respeto de los derechos humanos; base de la paz, la libertad, la justicia y el desarrollo de las personas y de los pueblos.

Imaginémonos que no exista Constitución Política, o existiendo no se respete las garantías esenciales, de vida, libertad, justicia legal y debido proceso, en el marco del ordenamiento jurídico.

Las consecuencias serían sencillamente las siguientes: Injusticia, dictadura, desorden, abuso del derecho y la opresión de los débiles, por parte de los fuertes y los poderosos.

La Constitución Política del Estado, que contemplan las garantías mínimas en una sociedad civilizada, cabalmente tiene la finalidad de proteger a los ciudadanos de abusos y atropellos, brindándoles el dere-cho de usar recursos expeditivos, eficaces y efectivos para prevenir o reparar dichas injusticias.

Es el caso de los procesos constitucionales de habeas corpus que defiende la libertad y los derechos conexos; y el amparo, que protege los demás derechos previstos por la Constitución Política; el habeas data, que posibilita la obtención de información legal, salvo la que tenga un carácter íntimo, o involucre la seguridad del Estado.

II El control de la Constitucionalidad En la historia del derecho constitucional, la Declaración de Inde-

pendencia de los Estados Unidos de 1776; y la Declaración Francesa de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789, sustentan proba-

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blemente la 2 más grandes Constituciones que sirven de modelo en el mundo democrático.

La Constitución de Estados Unidos de América de 1787, que afirma el principio de respeto a la Ley de Leyes; y la Constitución Francesa de (1791), que propugna el principio de legalidad, limitando el poder de los jueces.

Respecto al principio de legalidad, en la Constitución Francesa se les advierte a los jueces, que no juzguen sobre cuestiones de gobierno y administrativas; que no intervengan en competencia del Poder Legislati-vo. Asimismo se les recuerda que serán supervisados por unos comisarios del rey, con facultades para denunciarlos ante el Tribunal de Casación, en caso de excesos de poder judicial; de allí viene la expresión que los jueces deben ser únicamente la “boca de la ley”.

En norteamericana con un mayor espíritu liberal, surge en 1803 el famoso caso que resolvió el Presidente del Tribunal Supremo John Mar-shall, William Marbury contra James Madison, que reafirmó el Control Judicial de Constitucionalidad de las Leyes.

Por el control constitucional se inaplican las normas que se oponen al texto claro o sentido de la Constitución Política; a esto se denomina el control judicial difuso; por el que todo juez tiene la facultad de no aplicar en todo o en parte una ley, que vulnera la Constitución Política del Estado.

En Francia, en cambio se consideró por varias decenas de años, que por respeto al principio de legalidad, las leyes no deberían estar sujetas a ningún control.

Sin embargo en la práctica se advirtió algunos casos de error o injusticia provenientes de normas del Poder Legislativo.

Es entonces que Hans Kelsen propone en Europa un control con-centrado de la constitucionalidad de las leyes.

En 1920 concibe un órgano de control con esa finalidad; surgen de ese modo los Tribunales Constitucionales, como órganos compe-tentes para interpretar la Constitución Política en forma concentrada; a diferencia del control difuso establecido en la Constitución de Estados Unidos de América.

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15EL DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL EN EL PERú

Con los nuevos conceptos de control de constitucionalidad, la posición de Francia cambia en 1958 y es a partir de allí que la ley se subordina a la Constitución; surge el control de constitucionalidad de las leyes, como competencia del Consejo Constitucional.

III El Derecho Procesal Constitucional

Es ampliamente conocido en el mundo jurídico, que el jus filosofo Hans Kelsen, sentó las bases de la nueva disciplina denominada derecho procesal constitucional; posteriormente los conceptos de Kelsen fueron seguidos y enriquecidos por grandes juristas como Piero Calamandrei, Francisco Carnelluti, Mauro Cappelleti, y Francisco Fernández Segado, entre otros.

La doctrina contemporánea coincide en afirmar que el uso específico del concepto de Derecho Procesal Constitucional surgió en la década de 1940, por estudios del jurista español Niceto Alcalá Zamora y Castillo, en diversas obras escritas durante su exilio en Argentina y México.

Años más tarde, y siguiendo éste criterio, el jurista mexicano Héctor Fix-Zamudio propuso la existencia del Derecho Procesal Constitucional como una disciplina jurídica especializada.

En su Tesis de Licenciatura en Derecho (1955) denominada “La garantía jurisdiccional de la Constitución mexicana (ensayo de una estructuración procesal del amparo)”, sostiene que: “Existe una disci-plina instrumental que se ocupa del estudio de las normas que sirven de medio para la realización de las disposiciones contenidas en los precep-tos constitucionales, cuando estos son desconocidos, violados o existe incertidumbre sobre su significado; siendo esta materia una de las ramas más jóvenes de la ciencia del Derecho Procesal, y por lo tanto, no ha sido objeto todavía de una doctrina sistemática que defina su verdadera natu-raleza y establezca sus límites dentro del inmenso campo del Derecho”;

IV El Derecho Procesal Constitucional en PerúLa Jurisdicción Constitucional está formada por el conjunto de me-

canismos procesales destinados a hacer cumplir la Constitución Política del Estado, en cuanto ordena que la defensa de la persona humana y el

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respeto a su dignidad son el fin supremo de la sociedad y el estado. Así como el respeto a los derechos y garantía fundamentales.

La experiencia jurídica orienta que la doctrina, normas y juris-prudencia sobre procesos constitucionales, tienen un objeto de estudio propio y constituyen una disciplina jurídica autónoma a las normas sustantivas y normas procesales de otras especialidades.

El ordenamiento procesal se relaciona al ordenamiento sustantivo; para cada código sustantivo, corresponde un código adjetivo; siendo que a las Garantías Constitucionales, es decir el Habeas Corpus, El Amparo, el Habeas Data; les corresponde un ordenamiento procesal constitucional.

Por eso en cumplimiento del artículo 200 de la Constitución Política de la República de Perú, de 1993, que ordena una ley orgánica regula el ejercicio de las garantías y los efectos de la declaración de inconsti-tucionalidad o ilegalidad de las normas; el año de 2004, se promulgó la Ley 28237 sobre Código de Derecho Procesal Constitucional del Perú considerado el primer Código Procesal Constitucional en Iberoamérica y el mundo hispánico.

V El Código Procesal Constitucional PeruanoEl anteproyecto de Código Procesal Constitucional Peruano, fue

propuesto por los reconocidos juristas Domingo García Belaúnde, Juan Monroy Gálvez, Arsenio Oré Guardia, Jorge Danós Ordóñez, Samuel Abad Yupanqui y Francisco Eguiguren Praeli.

En octubre de 2003, el Congreso lo convirtió en proyecto legislativo de amplia acogida, que en lo esencial fue aprobado.

El 31 de mayo de 2004, se promulgó la Ley 28237, Código Pro-cesal Constitucional Peruano, dando inicio a un nuevo periodo de la historia constitucional que ordena en forma sistemática, el conjunto de los procesos constitucionales y los principios y derechos procesales que los sustentan.

El nuevo Código Procesal Constitucional es un instrumento, que propone una cabal concepción para el ejercicio de los procesos consti-tucionales, sean estos de Garantía Constitucional (Procesos de Habeas Hábeas, Proceso de Amparo, proceso de Habeas Data, Proceso de Cum-

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17EL DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL EN EL PERú

plimiento) o de Control Constitucional (Proceso de Inconstitucionalidad, Proceso de Acción Popular y Competencial).

En el Título Preliminar, se establecen como principios procesales la dirección judicial del proceso, el impulso de oficio, la gratuidad, la economía, la inmediación y socialización procesales.

Se impone al juez y al Tribunal Constitucional la obligación de ade-cuar las formalidades al logro de los fines perseguidos por los procesos constitucionales; asimismo, se fijan criterios para el pago de costas y costos del proceso.

En el Código, se consagra la aplicación de principios específicos como de gratuidad en la actuación del demandante; dirección judicial del proceso; inmediación que significa que todas las actuaciones se realizan ante el juez, siendo indelegable esta función bajo sanción de nulidad; economía que implica que el proceso se realiza procurando que su desarrollo ocurra en el menor número de actos procesales; por dicho motivo en los procesos constitucionales no existe etapa probatoria y los plazos deben ser cortos.

Respecto a los medios probatorios proceden aquellos que no requie-ren actuación, salvo que el juez lo crea indispensable y siempre que no se afecte la duración del proceso.

En los procesos constitucionales sólo se adquiere la autoridad de cosa juzgada, la decisión final que se pronuncie sobre el fondo.

Son inadmisibles las defensas previas en el proceso de hábeas corpus y proceso de inconstitucionalidad.

Los jueces de paz, son competente para conocer los procesos de hábeas corpus cuando la afectación de la libertad se realice en lugar dis-tinto y lejano o de difícil acceso de aquel en que tiene su sede el juzgado donde se interpuso la demanda.

El juez constitucional puede dictar orden perentoria e inmediata, para que el juez de paz del distrito en que se encuentre el detenido, cumpla en el día, bajo responsabilidad, con hacer las verificaciones y ordenar las medidas inmediatas para hacer cesar la afectación.

El Código Procesal Constitucional considera que son derechos protegidos por el hábeas corpus no ser objeto de vulneración alguna a

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la libertad, prohibiendo terminantemente las prácticas de terrorismo de Estado o terrorismo de grupos subversivos; y garantizando los derechos constitucionales conexos a la libertad individual como el debido proceso y la inviolabilidad del domicilio.

El hábeas corpus, se puede interponer verbalmente, en forma in-directa o por correo, a través de medios electrónicos de comunicación o similares, cautelando el derecho a accionar en cualquier forma al alcance del agraviado o sus familiares.

Contra la resolución de segundo grado que declara infundada o improcedente la demanda, procede el recurso de agravio constitucional ante el Tribunal Constitucional, siendo ello en la denominación de dicho recurso, ya que anteriormente se denominaba recurso extraordinario.

Las sentencias del Tribunal Constitucional establecerán un prece-dente vinculante, siempre y cuando el Tribunal así lo disponga, pudiendo el propio Tribunal apartarse de dicho procedente expresando los funda-mentos justificativos.

Si la sentencia declara fundada la demanda, se ordenará las costas y costos que el Juez establezca a la autoridad, funcionario o persona demandada. Si el amparo fuese desestimado por el Juez, éste podrá condenar al demandante al pago de costas y costos cuando estime que incurrió en manifiesta temeridad. En los procesos constitucionales, el estado puede ser condenado al pago de costos.

Los jueces deberán de pronunciarse sobre el fondo del asunto en los procesos, aunque el daño devenga en irreparable de los derechos su-puestamente violados, si existen elementos de prueba de actos delictivos deberá de poner en conocimiento del Ministerio Público y pronunciarse sobre daños y perjuicios, precisando el alcance de su decisión.

El Código Procesal Constitucional introduce una novedad respecto a la finalidad de la acción de amparo.

Así, el amparo no sólo servirá para reponer las cosas al estado anterior a la amenaza o violación de los derechos constitucionales por acción u omisión de cumplimiento obligatorio.

Además será procedente en aquellos casos en que la agresión o amenaza cese después de presentada la demanda o cuando la agresión se vuelva irreparable.

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19EL DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL EN EL PERú

El amparo procede contra resolución judiciales firmes, cuando estas han sido dictadas con manifiesto agravio a la tutela jurisdiccional efectiva, que comprende el acceso a la justicia y el ejercicio pleno del debido proceso.

VI Deficiencias advertidas en el Código Procesal ConstitucionalEl balance de la vigencia del Código Procesal Constitucional en

el Perú, es favorable. Uno de los méritos principales es que se tiene un conjunto ordenado de normas que facilita la labor de la jurisdicción constitucional y posibilita la tutela jurisdiccional efectiva, la defensa de la Constitución y los derechos fundamentales.

Empero como toda obra humana el Código Procesal Constitucional Peruano tiene omisiones y deficiencias, de concepción y de aplicación, que pueden subsanarse.

En un estudio preliminar consideramos las siguientes:1. Las notorias demoras en la resolución de los procesos consti-

tucionales; como el habeas corpus y el amparo, que en deter-minados casos duran largos meses y hasta años; lo que a veces hace ilusoria la defensa del derecho constitucional.

2. Una de las razones de estas demoras, es que no existe una juris-dicción de primera y segunda instancia especializada en materia constitucional; los jueces penales (para el caso habeas corpus) y los jueces civiles, (para los amparos), son los encargados de dirigir y tramitar los procesos constitucionales.

3. Se ha dado momentos en que el Tribunal Constitucional, como máximo intérprete de la Constitución y máxima instancia de los procesos constitucionales, se ha visto sobresaturado de procesos; probablemente por este motivo, en la historia se registran casos de sentencias contradictorias, inconsistentes o que notoriamente invadieron competencia del Poder Judicial o del Jurado Nacional de Elecciones.

4. En sus inicios el Tribunal Constitucional Peruano, expedía sen-tencias, como recopilación de tratados o ensayos doctrinarios, que por su extensión y letra diminuta en el Diario Oficial, era

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Revista da aJUFeRGs / 0920

prácticamente difícil de leer. El Tribunal Constitucional del año 2015, ha superado en gran parte esta deficiencia. Las sentencias debería ser constitucionales, claras, concretas, congruentes y concisas.

5. En los juzgados, se presentan casos de uso de plantillas o mode-los preconcebidos, para rechazar en forma liminar los procesos constitucionales; solo para admitir a trámite y lograr el acceso a la justicia constitucional, en los casos que se justifica; se han dado casos de demoras mayores a los 6 u 8 meses.

6. No existe una legislación respecto al mal uso de los procesos constitucionales; por ejemplo el indebido uso del habeas cor-pus, para enervar o suprimir investigaciones sobre narcotráfico, lavado de activos u otros graves delitos; que en algunos casos lamentablemente han cumplido su ilegal propósito.

7. No existe una regulación expeditiva sobre los procesos cons-titucionales realmente urgentes, que bien podría reducirse en demanda, contestación y sentencia, en un plazo no mayor a los 30 días.

8. No existe una regulación sobre el uso del expediente electró-nico en los procesos constitucionales de amparo, que resulta necesario, a efecto de ampliar el acceso a la justicia y brindar mayores facilidades a las víctimas de agravios a sus derechos constitucionales.

9. No existe un registro procesal único, sobre demandas de habeas corpus y amparo; existiendo casos, en que la misma demanda, es presentada a varios juzgados y distritos judiciales de todo el país.

10. En casos excepcionales, para la defensa de los derechos cons-titucionales, se debería permitir el uso de formatos, y difundir las demandas electrónicas; con contestación y sentencia de la misma forma.

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CEntEnÁRIO DO MInIStRO RODRIGUES DE AlCkMIn

CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZDesembargador Federal do TRF da 4ª Região

“Como é do conhecimento da Casa, faleceu o nosso eminente e já tão saudoso Ministro Rodrigues Alckmin, que há um ano também desempenhava as altas funções de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Recentemente, completara seis anos de exercício entre nós, marcando sua atuação pela independência, inteligência, dedicação, alto preparo jurídico e profundo senso das elevadas funções de juiz, notadamente, desta Suprema Corte. Afável, compreensivo, carinhoso por vezes, era o amigo de todas as horas. Conviver com Alckmin era um privilégio e um prazer.

Foi, em tudo, um dos maiores entre os que por aqui passaram.”

Ministro Carlos thompson Flores

(In Relatório da Presidência Thompson Flores – 1978, p. 257)

Parafraseando ilustre diplomata brasileiro, a partida do Ministro Rodrigues de Alckmin, nas primeiras horas do dia sete de novembro de 1978, no apogeu da produtividade, pareceu um cruel desperdício, pri-vando a Suprema Corte de um dos juízes mais notáveis de sua História.1

Nos seis anos de sua fecunda judicatura no Supremo Tribunal Federal, legou-nos uma rica obra, composta de primorosos julgados, muitos convertidos em súmulas, somada à sua enorme qualificação intelectual.

Já foi dito, e não constitui originalidade, que se há setor em que os brasileiros não tenham por que se sentir inferiorizados a quaisquer outros

1 Merquior, José G. O Liberalismo Antigo e Moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações Editora, 2014. p. 19.

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povos é a Magistratura, bastando mirar no passado e veremos desfilar uma galeria de juízes notáveis que, honrando a toga, dignificaram a Justiça Brasileira.

Entre eles, avulta a figura do Ministro Rodrigues de Alckmin, cujo centenário de nascimento é comemorado no corrente ano.

Paulistano de nascimento, descendente dos velhos troncos do Brasil que remontam a Baltazar de Godoy, aristocrata castelhano que veio a São Paulo no final do século XVI, e cujo nome abre o título dos “Godoys” na já clássica Genealogia Paulistana, de autoria do Histo-riador Silva Leme.

O Ministro Rodrigues de Alckmin era filho do Professor André Rodrigues de Alckmin, educador emérito, até hoje reverenciado pelas suas altas qualidades morais e intelectuais.

Os homens deste país, disse-o Oswaldo Aranha, têm o traço da sua geografia natal.2

Esse torrão abençoado deu ao país, no Império e na República, figuras eminentes que, na política, na diplomacia, na magistratura e no clero tanto o enalteceram e honraram.

Obedecendo a esta destinação, o retraído e discreto José Geraldo Rodrigues de Alckmin, após realizados os seus primeiros estudos em sua terra natal, Guaratinguetá, em 1933, foi para a Capital do Estado, cursar Direito na tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, onde começou a dar mostras de seus dotes de inteligência e cultura.

Colou grau como bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na turma de 1937, da velha Academia.

Após breve período dedicado à advocacia, ingressa mediante con-curso na Magistratura Paulista, iniciando, em 1940, a sua notável traje-tória que culminaria, em 1972, com a cátedra de Ministro do Supremo Tribunal Federal.

2 Prefácio de Oswaldo Aranha à obra de Virgílio A. de Mello Franco, Outubro, 1930. 4. ed., Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1931. p. 13.

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O critério do merecimento, que sempre o distinguiu, levou Ro-drigues de Alckmin a percorrer todos os degraus da carreira como, na Capital, a Vara Privativa dos Feitos da Fazenda Nacional, os cargos de Juiz Substituto de Segunda Instância, Juiz e Presidente do Tribunal de Alçada, Desembargador do Tribunal de Justiça e Corregedor-Geral da Justiça.

Ao mesmo tempo, com a mesma maestria que dignificou a Ma-gistratura, seguiu o exemplo paterno, dedicando-se ao magistério, le-cionando as cadeiras de Direito Civil e Processo Civil nas Faculdades de Direito de Taubaté, de São Bernardo do Campo e da Universidade Mackenzie.

Ademais, em 1956, anota a edição brasileira dos volumes VIII, to-mos I e II, e XIII, tomo II, do “Tratado de Direito Civil”, do consagrado civilista português Cunha Gonçalves.

Em 1957, vêm à luz as suas anotações à obra “A Destinação do Imóvel”, do Ministro Philadelpho Azevedo, onde são revelados os seus profundos conhecimentos de Direito Civil e Registros Públicos, aproveitados pelo legislador, pois colaborou ativamente na elaboração do anteprojeto da nova Lei dos Registros Públicos, a Lei nº 6.015, pro-mulgada em 31 de dezembro de 1973.

Com a aposentadoria do Ministro Moacyr Amaral Santos, é nomeado Rodrigues de Alckmin, em 3 de outubro de 1972, ministro do Supremo Tribunal Federal, em vaga que desde 1927 vinha sendo preenchida por consagrados juristas paulistas.

Chegou ao Supremo Tribunal Federal com larga experiência na arte de julgar, sempre coroada do maior êxito, revelando alto valor intelec-tual e moral e que, na Suprema Corte, se consolidaria esplendidamente, impondo-se ao respeito e à admiração de seus pares e jurisdicionados.

Ao responder às homenagens que lhe foram prestadas quando de sua posse, disse Rodrigues de Alckmin estas palavras, verdadeira profissão de fé como Magistrado e que resumem o credo de sua vida:

“Da profunda introspecção com que procuro descobrir quais as razões que sensibilizaram e me fizeram largamente beneficiário de vossa bondade, nada colho senão dois pequenos méritos.

CENTENÁRIO DO MINISTRO RODRIGUES DE ALCKMIN

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Levado à magistratura paulista, atendendo ao apelo irresistível em que se consolidou a minha vocação, a ela dediquei o profundo respeito às funções e à devoção ao trabalho que só é exigir aos seus juízes.

Acabei por compreender, como o velho Ransson, que é o quotidiano que forma, pouco a pouco, a alma do juiz. É no contato das realidades profissionais que o magistrado aprende a vencer as tendências do temperamento, para que as decisões não pequem pela falta de serenidade; que o ânimo se enrijece, salvaguardando-lhe a independência, para que haja imparcialidade nos julgamentos; que o magistrado apreende e examina os vários matizes da realidade social, que não cabe, totalmente estruturada, nas leis.

Procurei, sempre, viver essas lições do quotidiano, e amar o trabalho, porque na frase de Soler, o trabalho que se faz sem amor tem todos os caracteres de uma vil escravidão.

É esse respeito, é esse amor pelas funções do Poder Judiciário que renovam o ânimo com que, já na altura da vida em que os marcos do caminho projetam sombras do poente, inicio a derradeira caminhada.” 3

No Pretório Excelso, o insigne juiz ratificou o alto conceito que des-frutava em seu Estado, ali permanecendo cerca de seis anos, com intensa dedicação à nobre causa da Justiça, sendo as suas decisões impregnadas de estudo, imparcialidade, experiência, guardando a fidelidade à Lei, atento à célebre advertência de Lord Devlin: “the discretion of the judge is the first engine of tyranny”. 4

Com efeito, na judicatura do Ministro Rodrigues de Alckmin o intérprete não cria prescrições, nem posterga as existentes, mas deduz a nova regra para o exame de um caso concreto do conjunto das disposições vigentes, consentâneas com o progresso geral da civilização, obedecendo ao preceito de Paulo no Digesto: non ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod est, regula fiat.

3 Homenagens prestadas aos Ministros que deixaram a Corte no período de 1977 a 2002. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2002. p. 50.4 Devlin, Patrick. The Judge. Chicago: University of Chicago Press, 1979. p. 201.

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Longo seria, nesse momento, arrolar os votos e intervenções mais importantes proferidas pelo Ministro Rodrigues de Alckmin, todos re-velando a sua cultura, a larga experiência e o descortino do magistrado exemplar.

Permito-me, aqui, reproduzir o depoimento do eminente Ministro Moreira Alves, quando da homenagem prestada pela Corte Suprema a Rodrigues de Alckmin, verbis:

“Chegava Rodrigues de Alckmin a este Tribunal precedido da fama de Magistrado notável que, em São Paulo, ao longo dos anos, conquistara por suas raras qualidades de inteligência, cultura, honradez e trabalho.

Aqui, desde logo, impôs-se à admiração de seus Colegas.Inteligência lúcida e lógica, aliada a sólidos conhecimentos

dos diferentes ramos de Direito e a ampla cultura humanística, possuía Rodrigues de Alckmin os dois atributos que distinguem o verdadeiro jurista: a capacidade de discernir, ainda nas questões mais intrincadas, os acidentes e o essencial, e a de, adstringindo-se a este, encontrar, no ordenamento jurídico, a norma adequada à justa composição da lide.” 5

Os votos que proferiu ao longo de seus anos no Pretório Excelso, pela riqueza de seu conteúdo, constituem uma antologia de lições esplêndidas, tanto na forma como no conteúdo.

Alguns poucos exemplos bastam para confirmar a verdade da asserção.Desde o início de sua magistratura em São Paulo, Rodrigues de

Alckmin já afirmava a tese da necessidade de o Poder Judiciário, ao proceder ao controle da legalidade dos atos administrativos, perquirir o motivos desses atos.

A propósito, ao relatar o Recurso Extraordinário nº 82.355-PR, discorreu, verbis:

“Eu diria, apenas, que, no caso, verificar se houve, ou não, o fato que constitui pressuposto da punição não é verificar se esta foi justa ou injusta; é verificar se foi, ou não, legal, porque a lei exige a existência do fato para a aplicação de sanção.

5 Op. cit., p. 50.

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Tenho, assim, como de absoluta legitimidade o exame, pelo Poder Judiciário, da prova dos fatos imputados ao funcionário, com a conclu-são de que a punição disciplinar, em face dessa prova, é legal, ou não. O exame da legalidade não se confunde com a apreciação das meras formalidades do processo administrativo. E no ato demissório, não há mérito excluído de apreciação judicial.” 6

De outra feita, discutia-se a legitimidade do § único do art. 187 do Código Tributário Nacional diante do art. 9º, I, da Emenda Constitucio-nal nº 1/69.

Eis como propugnou, nesse particular, o desfecho dessa intrincada questão constitucional, verbis:

“Este texto constitucional tem raízes no art. 1º, seção 9ª, da Con-stituição Norte-Americana, em que estipulava que ‘no preference shall be given by any Regulation of Commerce or Revenue to the Ports of one State over those of another: no shall Vessels bound to, or from, one State, be obliged to enter, clear or pay Duties in another’.

O texto constitucional brasileiro, de 1891, proposto, vedava ao governo federal criar, de qualquer modo, distinções e preferências em favor dos portos de uns contra os de outros Estados mediante regulamentos comerciais ou fiscais. Eliminou-se esta última cláu-sula. E os comentadores, no geral (Aristides Milton, A Constituição do Brasil, p. 43; Ruy Barbosa, Comentários à Constituição Federal Brasileira, ao art. 8º; Barbalho, Constituição Federal Brasileira; 2ª ed., p. 49) acentuaram que a proibição visava a assegurar a igualdade entre os Estados.

A Constituição de 1934 proibiu que se criassem preferências em favor de uns contra outros Estados. A Carta de 1937 proibiu que se criassem desigualdades entre os Estados e Municípios e a decretação, pela União, de impostos que importassem discriminação em favor dos portos de uns contra os de outros Estados.

Em 1946 e em 1967, as Constituições se referiram à vedação de serem criadas preferências em favor de uns contra outros Estados ou Municípios.

Mas a EC nº 1/1969 deu outra redação ao preceito. Dispôs:

6 In RTJ 81, p. 163.

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à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

I — criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra.

Daí a pretensão a que, já agora, proibidas preferências, os créditos da União, Estados e Municípios se satisfaçam igualmente, pro rata, no insuficiente patrimônio dos devedores.

Parece-me, com a devida vênia, que essa substancial mudan-ça de rumo na tradição de nosso direito (que não parificava tais créditos fiscais), não decorre da redação do art. 9º, inciso I, que foi tecnicamente menos preciso mas não visou a dilargar a área da igualdade dos Estados e dos Municípios, em tema de créditos fiscais, estendendo-a a todos e à União.

Aliás, proibindo se criem preferências entre essas pessoas de direito público, a lei, em sua letra, não abrangeria, como no caso, prioridade a favor de créditos de autarquia federal, a que se não refere.

Creio, pois, que o exato sentido da norma é o de impedir que se criem desigualdades entre o Distrito Federal e os Estados, ou desigualdade entre Municípios, favorecendo a alguns em detrimento de outros, colocados no mesmo plano em face da Constituição.

Dar-lhes, porém, prioridade em concurso creditório, dados os diferentes níveis em que se situam, no sistema constitucional, a União, os Estados e os Municípios, não põe em risco a igualdade na Federação, que o texto visa a preservar.” 7

Por outro lado, quando do julgamento da Representação nº 961-RJ, firmou importante precedente quanto aos pressupostos do controle de constitucionalidade em abstrato, verbis:

“quando o texto constitucional permite a Representação ou ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo ou lei fe-deral ou estadual estabelece a competência, tendo à vista o órgão (Poder Legislativo, Governador) que editou o ato, não a sede ou âmbito espacial de eficácia das normas. A não ser assim, quando se impugnasse ato praticado pelo próprio Poder Executivo, ou pelo Poder Legislativo do Estado, com eficácia restrita a um município,

7 In RTJ 80, p. 815-6.

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o Poder Judiciário do Estado seria o competente para apreciar-lhe a constitucionalidade. Mas é evidente que a Constituição não quis conceder ao Poder Judiciário do Estado apreciar a impugnação feita a leis e a atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo do mesmo Estado, por óbvias razões entre as quais figuram possíveis influências locais. Preferiu entregar essa apreciação ao Supremo Tribunal Federal. Assim, não é pela extensão da aplicação da norma, mas pelo órgão de que emana, que se estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal.” 8

Modelo de síntese e elegância encontra-se no voto que proferiu na Representação nº 927-SP, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal fixou a exata exegese da regra da paridade de vencimentos pre-vista nos artigos 98 e 108, § 1º, da Constituição de 1967, na redação da Emenda Constitucional nº 1/69.

Nessa ocasião, afirmou, verbis:

“A regra da paridade, inserta na Constituição é, sem dúvida, inspirada em alto sentido de Justiça. Era de todo desarrazoado que numerosos funcionários públicos, exercentes de funções de escritu-rário nos quadros do Executivo porque numerosos e mais afastados das fontes do Poder, percebessem vencimentos menores enquanto funcionários outros, de outros Poderes ou de corpos coletivos que tinham a iniciativa de propor-lhes a fixação de vencimentos, os recebiam muito maiores.

É certo que a diferença de retribuições procurava diferentes denominações, que as justificassem. Correspondia, entretanto, a um princípio de Justiça, quando não a uma imposição de caráter ético, fossem remunerados igualmente cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, nos quadros dos três Poderes.

Daí, estabelecer, a Constituição Federal, a regra da paridade.” 9

Finalmente, ocorre-me mencionar o pronunciamento histórico que fez no julgamento da Representação nº 881-MG, em 13 de dezembro de 1972, quando a Suprema Corte, ao dirimir relevante questão constitucio-nal, assentou que, para o efeito do acesso ao cargo de Desembargador, o

8 In RTJ 82, p. 666. 9 In RTJ 82, p. 39.

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advogado e o membro do Ministério Público componentes do Tribunal de Alçada conservam a mesma categoria que proporcionou o seu ingresso neste Tribunal.

O seu primoroso voto, após rememorar a história da criação do primeiro Tribunal de Alçada do Brasil, consignou, verbis:

“quando os que cuidaram de estruturar esse primeiro Tribunal de Alçada, tiveram de examinar os textos da Constituição, encon-traram apenas a autorização para que os Estados criassem Tribunais de Alçada inferiores. E o legislador constituinte não foi além. Não estruturou esses Tribunais. Não disse como se inseririam eles no quadro da organização judiciária dos Estados e deixou assim a critério do legislador estadual preencher essas lacunas.

Três hipóteses, então, se apresentaram. A primeira seria a de buscar a conciliação do texto constitucional que permite a criação de Tribunais de Alçada com o texto constitucional que estabelece uma carreira na magistratura vitalícia, com ingresso através de concurso, com promoção alternada por merecimento e antiguidade de entrância a entrância, até que, da mais alta entrância se seguisse ao Tribunal de Justiça. Pareceu que seria inadequado classificar Tribunais de segunda instância como entrância que, tradicionalmente, é a deno-minação com que se classificam Comarcas, e então se poderia — conciliação rigorosamente ortodoxa — chegar à conclusão de que os Tribunais de Alçada seriam fim de carreira. Nela ingressariam membros do Ministério Público e advogados, pelo quinto, e juízes em 4/5, e aí se encerraria a carreira desses magistrados, já que não haveria uma entrância para permitir acesso ao Tribunal de Justiça.

Esta solução, que nenhum texto constitucional repudia e ainda hoje poderá ser adotada, oferecia notáveis inconvenientes: levaria aos Tribunais de Alçada juízes desestimulados de promoção aos Tribunais de Justiça; levaria, também, aos Tribunais de Alçada, “juristas de menor tomo”, do Ministério Público e da advocacia; outros se recusariam a ingressar nos Tribunais de Alçada, porque aspirariam, como juristas melhores, o acesso ao Tribunal de Justiça. E esses Tribunais de Alçada, já, hoje, têm uma altíssima função, porque, embora na Organização Judiciária se considerem Tribunais inferiores aos Tribunais de Justiça, não são Tribunais que se limitam a julgar causas de pequeno valor. A autorização constitucional, hoje, permite que se lhes atribuam causas de altíssima relevância, como julgamentos de todas as questões fiscais e julgamentos de

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desapropriações. E, evidentemente, não poderiam ser Tribunais de qualificação inferior, constituídos de juízes desestimulados, ou por terem, seus membros, menores qualidades intelectuais.

A ideia, portanto, de transformar o Tribunal de Alçada em fim de carreira, não parecia muito feliz.

A outra, seria a de fazer com que os juízes do chamado “quinto constitucional”, que ingressassem no Tribunal de Alçada, passassem a pertencer à magistratura. Mas, aí, haveria texto da Constituição que se oporia a esse critério. Haveria algo de incon-ciliável em considerar que há uma carreira de magistratura, que 4/5 dos Tribunais devem compor-se de membros desta carreira da magistratura — e carreira pressupõe acesso de degrau a degrau — e considerar que nela ingressavam, pelo último posto, juízes que não tivessem participado da carreira. O cargo preenchido pelo quinto constitucional não era, evidentemente, um cargo de carreira. A ela não se chegava por ascensão de um posto inferior. Portanto, considerar que, no ingresso aos Tribunais de Alçada, ocorria ingresso na carreira, não parecia solução acertada, porque não se ajustava à ideia de promoção de entrância a entrância. E entrância — disse e repito — é denominação que se reserva à classificação de juízes e comarcas.

Pensou-se, então, numa solução que não repugnava ao texto constitucional e que parecia conciliar todas as dificuldades, fa-zendo que os Tribunais de Alçada fossem, realmente, Tribunais de alto nível e pudessem permitir o acesso ao Tribunal de Justiça. Fez-se, na interpretação da Constituição, possível a promoção dos juízes dos 4/5 do Tribunal, que são de carreira, por antiguidade e por merecimento ao Tribunal de Justiça. E, quanto aos juízes que vierem do quinto constitucional, juízes oriundos do Ministério Público e da advocacia, poderiam eles, a par de outros que têm a mesma experiência específica de advogados e promotores, galgar o Tribunal de Justiça, no quinto reservado aos membros da advocacia e do Ministério Público.

Esta solução afastava todos os outros inconvenientes. Esta solução recebeu apoio de advogados de São Paulo e, de larga data, vem sendo adotada, com gerais aplausos e com óbvia utilidade.” 10

10 In RTJ 66, p. 647-8.

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Muitos de seus votos se acham compendiados na Súmula e passaram a constituir a jurisprudência predominante do Pretório Excelso.

É o que ocorreu com a Súmula 562 que teve por precedente o Re-curso Extraordinário nº 79.663-SP (Pleno).

Nesse julgamento, prevaleceu o seu douto voto, publicado na RTJ 79/520-1, no qual refutou a tese dos que sustentavam que a atualização monetária na reparação do ato ilícito violava o princípio nominalista, face à ausência de lei, na época, que autorizasse o reconhecimento, nesses casos, da correção monetária.

Eis o seu pronunciamento, pleno de lições:

“Ora, a regra de direito manda reparar, e reparar é dar integral satisfação ao lesado. É recompor-lhe, com o pagamento da indeni-zação, o desfalque patrimonial que sofreu. Reparação total. Recordo que, antes da regra do art. 64 do C. Pr. Civ./1939, em sua primitiva redação, que estabeleceu a responsabilidade por honorários de advogado nas demandas procedentes, fundadas em dolo ou culpa, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal mandava pagar tal verba, sem cuidar da existência, ou não, de específico texto de lei relativo a tal sucumbência: bastava-lhe a consideração de que a indenização deve ser completa, e que não o seria se o prejudicado tivesse o dispêndio dessa verba.

Então, se por circunstâncias próprias dos tempos presentes, os valores de bens e serviços rapidamente acrescem, entender que o reparo somente é completo se se repuser, no patrimônio do lesado, o valor do momento da satisfação, em nada desatende a qualquer regra jurídica. Antes, a elas se amolda. É de lei, em casos análogos (C. Civ., art. 1.541, 1.543) o mandamento de reembolso de valor equivalente. É da lei que nas indenizações por fato ilícito prevalecerá o valor mais favorável ao lesado. Não encontro, pois, vulneração de texto legal algum com a consideração que a indenização dos danos materiais tenha em conta o valor deles quando do pagamento.

Essa atualização legítima do valor pode fazer-se com o deter-minar, a sentença, que na execução dela se estime novamente o já ultrapassado montante dos danos, ou que se atualize tal avaliação. E também pode fazer-se, vista a existência de estimativa nos autos, pelo mais simples meio de acolher a aplicação de índices de correção monetária para a atualização desse valor.

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Infringe, este critério, ao princípio nominalista? Desatende ao princípio da reserva legal para revalorização de dívidas?

Creio indisputável a negativa.” 11

São ensinamentos preciosos, que nos vêm desde o Direito Romano, fulcrados na melhor doutrina, recolhida por Fritz Schulz, em seu Clas-sical Roman Law, Oxford Clarendon Press, 1954, p. 610 e seguintes, bem como Rudolph Sohm, Mestre de Leipzig, em sua consagrada obra Lehrbuch Der Geschichte und Des Systems Des Römischen Privatre-chts, 7. Auflage, Verlag von Duncker & Humbolt, Leipzig, 1898, p. 395-411.

Integri Restitutio est Reditengrandae Rei, Vel Causae Actio (Paulo, Senten-tiae, 1, 7, 1).

As citações poderiam se multiplicar, pois extremamente rica e fe-cunda é a magistratura de Rodrigues de Alckmin, sendo extenso o elenco de matéria por ela versada.

A sua vida foi dedicada, até o último sopro de sua nobre existência, à magistratura.

Conhecedor como poucos dos problemas que afligem o Judiciário, empenhou-se decididamente em superar as falhas e deficiências do Poder Judiciário, de modo a que pudesse corresponder às altas funções que lhe cabem numa Democracia.

Eleito pelo Supremo Tribunal Federal, integrou a Comissão de Re-forma do Poder Judiciário, como relator, juntamente com os Ministros Thompson Flores (Presidente da Comissão), e Xavier de Albuquerque, encarregada de elaborar o célebre Diagnóstico do Poder Judiciário, até hoje considerado o mais completo estudo sobre o Poder Judiciário Brasileiro.

Esse trabalho notável, publicado na íntegra pela Revista Forense, v. 251, pp. 7 e seguintes, subsidiou o legislador constituinte quando da edição da Emenda Constitucional nº 7/77 que estabeleceu a Reforma do Judiciário.

11 In RTJ 79, p. 520-1.

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Para o devido registro da história do Poder Judiciário, convém re-cordar a introdução desse importante documento, verbis:

“A honrosa visita de cortesia do Sr. Presidente da República ao Supremo Tribunal Federal, no dia 16 de abril de 1974, revestiu-se do caráter de profícuo encontro entre o Chefe do Poder Executivo e a mais alta hierarquia do Poder Judiciário, para declarações con-cordantes dos dois Poderes, da maior relevância para a justiça e, portanto, para a Nação. Afirmaram-se naquele diálogo: a necessi-dade e oportunidade de reforma do Poder Judiciário; a disposição de fazer o Governo do Presidente ERNESTO GEISEL o que puder para o aprimoramento dos serviços da justiça; a conveniência de prévia fixação, pelo próprio Poder Judiciário, do diagnóstico da justiça, mediante o levantamento imediato dos dados e subsídios necessários.

Em decorrência do interesse do Governo, na reforma, o senhor Ministro ARMANDO FALCÃO entrou em entendimento com o eminente Ministro ELOY DA ROCHA, presidente do Supremo Tribunal Federal. Ficou assentado, nessa ocasião, que, inicialmente, o Poder Judiciário procederia aos imprescindíveis estudos, em cada área de atividade jurisdicional, na medida em que aos Tribunais parecesse recomendável a ação reformadora.

2. Para desempenhar-se do encargo, foram solicitadas às justiças especiais e à justiça comum estatísticas, informações e sugestões, bem como a contribuição de universidades, de associações de classe, de magistrados, advogados e outros juristas.

Os dados e as opiniões obtidos constam de noventa e quatro volumes anexos. Foram apresentados relatórios parciais, relativos à Justiça Federal, à Justiça Militar, à justiça do Trabalho, à justiça Eleitoral, às Justiças dos Estados e à Justiça do Distrito Federal, nos quais se encontram, a par de algumas observações de ordem geral, problemas específicos das respectivas áreas de exercício jurisdicional.

Esses relatórios parciais se consideram, pois, incorporados ao presente, que constitui uma visão resumida dos problemas mais graves do Poder Judiciário.

A pesquisa feita indica, sem que se precise descer a pormenores, que a reforma da justiça, ampla e global, sem prejuízo do sistema peculiar à nossa formação histórica, compreenderá medidas sobre

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recrutamento de juízes a sua preparação profissional, a estrutura e a competência dos órgãos judiciários, o processo civil e penal (e suscitará, mesmo, modificação de regras de direito material), pro-blemas de administração, meios materiais e pessoais de execução dos serviços auxiliares e administrativos, com aproveitamento de recursos da tecnologia. Avultarão, na reforma, ainda, problemas pessoais dos juízes, seus direitos, garantias, vantagens, deveres e responsabilidades. E visará a assegurar o devido prestígio à institui-ção judiciária, que, no regime da Constituição, se reconhece como um dos três Poderes, independentes e harmônicos.

3. A extensão da pesquisa realizada corresponde à ideia de que a reforma do Poder Judiciário deve ser encarada em profundidade, sem se limitar a meros retoques de textos legais ou de estruturas. quer-se que o Poder Judiciário se torne apto a acompanhar as exi-gências do desenvolvimento do país e que seja instrumento eficiente de garantia da ordem jurídica. quer-se que se eliminem delongas no exercício da atividade judiciária. quer-se que as decisões do Poder Judiciário encerrem critérios exatos de justiça. quer-se que a atividade punitiva se exerça com observância das garantias da defesa, com o respeito à pessoa do acusado e com a aplicação de sanções adequadas. quer-se que à independência dos magistrados corresponda o exato cumprimento dos deveres do cargo. quer-se que os jurisdicionados encontrem, no Poder Judiciário, a segura e rápida proteção a restauração de seus direitos, seja qual for a pessoa ou autoridade que os ameace ou ofenda.

4. Reforma de tal amplitude não se fará sem grandes esforços. Há dificuldades técnicas a resolver. Serão necessários meios para corresponder a encargos financeiros indispensáveis. E há interesses que hão de ser contrariados ou desatendidos.

Impor-se-á alteração de textos constitucionais e legais e será mister disciplina unitária de direitos e deveres de magistrados.

É certo que a reforma poderá implantar-se por partes. Mas determinadas medidas, que dizem com a essência dela, ou serão preferencialmente executadas, ou não haverá, na realidade, reforma eficaz.” 12

12 In Reforma do Poder Judiciário - Diagnóstico, Supremo Tribunal Federal, 1975, p. 11/5.

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A morte veio encontrá-lo na presidência do Tribunal Superior Elei-toral, em plena e fecunda atividade.

Respeitado e admirado, o seu súbito desaparecimento comoveu a todos.

O seu grande nome encontra-se, de forma indissociável, ligado à história judiciária nacional, não somente como um grande Juiz, mas como um magistrado exemplar, a quem devem as letras jurídicas nacionais notável contribuição.

Do Ministro Rodrigues de Alckmin pode-se dizer, com justeza, o que James Boswell, em sua consagrada biografia, concluiu da vida e obra de Samuel Johnson:

“A man whose talents, acquirements, and virtues, were so extra-ordinary, that the more his character is considered, the more he will be regarded by the present age, and by posterity, with admiration and reverence.” 13

Ao ensejo do centenário do seu nascimento, a vida e a obra do sau-doso Ministro Rodrigues de Alckmin merece ser estudada e reverenciada pelos brasileiros, sobretudo os juízes, pois à magistratura dedicou todas as suas forças, com independência, dignidade, altivez e imparcialidade, deixando, ainda hoje, passados tantos anos de seu falecimento, um vazio incomensurável na sua cátedra no Supremo Tribunal Federal, seja pelo exemplo edificante que deixou, seja pela lição do muito que pensou e realizou como Juiz exemplar que sempre foi.

Autêntico magistrado, dedicado como poucos ao cumprimento de sua apostolar missão, o Ministro Rodrigues de Alckmin seguiu à risca os ensinamentos de D’Aguesseau, notável Juiz de França:

“Pouvoir tout pour la justice, et ne pouvoir rien pour soi-même, c’est l’honorable mais pénible condition du magistrat.” 14

13 Boswell, James. Life of Johnson. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 1402.14 In Oeuvres Choisies Du Chancelier D’Aguesseau, Librairie de Firmin Didot Frères, Paris, 1863, p. 85.

CENTENÁRIO DO MINISTRO RODRIGUES DE ALCKMIN

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Só nos resta invocar, nesta oportunidade, o conhecido Salmo de David:

“Feliz daquele que cumpre o seu dever, porque ganha, sem dúvida, o reino do Céu e deixa, na estrada da vida, um exemplo de retidão aos que prosseguem na caminhada até serem chamados a prestar contas ao Senhor.”

Virtus Praestat Ceteris Rebus.

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O ACESSO à JUSTIÇA: ENFOqUES TRADICIONAL E CONSEqUENCIAL

GERSON GODINHO DA COSTAJuiz Federal

Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do RSProfessor da Escola Superior da Magistratura do RS

RESUMO: O presente ensaio apresenta uma abordagem crítica dos elementos identificados por enfoque tradicional do acesso à justiça. Posteriormente, partindo de uma conceituação ampla do princípio, são analisados alguns fatores que contribuem para o exame do seu nível de efetividade, no âmbito do sistema judiciário pátrio. Esse enfoque analítico será designado como consequencial.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Enfoque tradicional. 2. Enfoque conse-quencial. 2.1. A economia do litígio. 2.2. A intensidade recursal. 2.3. Acesso demasiado em prejuízo do acesso efetivo. 2.4. Desnivelamento da distribuição da competência. 2.5. Acesso amplo e industrialização da tutela. Conclusões. Referências bibliográficas.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso. Justiça. Enfoque. Tradicional. Conse-quencial.

IntroduçãoNão raro, quando se trata do tema referente ao direito de acesso à

Justiça, o problema é relacionado às variáveis concernentes à confluên-cia do cidadão ao Poder Judiciário, seja na condição de demandante ou na de demandado. Noutros termos, o assunto é tratado, sob o aspecto jurídico e/ou sociológico, simplesmente como as medidas necessárias para dispor o jurisdicionado do aparato necessário ao ingresso no Po-der Judiciário. Essa compreensão pode ser designada como enfoque tradicional da matéria.

Não obstante, é importante atentar para outra abordagem, igual-mente imprescindível para a adequada compreensão do que doravante será mencionado como acesso à justiça. É apropriado denominar essa reflexão de enfoque consequencial. Em vez de voltar-se para os critérios que determinam a distribuição da competência territorial, à instalação de novos juízos ou às ferramentas processuais disponíveis para facilitar

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o acesso, cuida de apreciar questões como a efetividade necessária da medida jurisdicional postulada ou a economia do processo, entendida esta como os custos inerentes ao litígio judicial. Não que esses assuntos sejam desconhecidos do profissional jurídico. Pelo contrário, alguns deles apresentam construções práticas e teóricas bastante elaboradas. A questão é que, embora diretamente relacionados ao problema do acesso à justiça, são tratados de maneira compartimentada, enquanto indispensável, para melhor entendimento, uma abordagem global ou concatenada.

De resto, ante a ausência dessa atenção, reputam-se superadas eventuais limitações de acesso – consideração essa que termina por se constituir em mera ficção – tão-somente pela criação e consequente instalação de juízos. Essa realização pode cumprir com os pressupostos do enfoque tradicional, mas permanecem longe de resolver as exigên-cias do enfoque consequencial. A impressão é que pouco se investe, em termos intelectuais, na intrínseca relação havida entre esses enfoques. E o primeiro (tradicional), exatamente por descuidar do segundo (conse-quencial), pode restar ele próprio esvaziado.

Destarte, é essa a tímida pretensão deste ensaio: tratar de modo correlacionado ambos os enfoques; procurar evidenciar que a adoção de providências que assegurem apenas e tão-somente o enfoque tradi-cional não cumpre com o preceito de acesso à justiça; esforçar-se por demonstrar que o descuido com políticas destinadas a atender o enfoque consequencial resulta em esvaziamento desse comando.

Evidentemente, inexiste o intuito de considerar o enfoque conse-quencial mais importante que o tradicional. Este, decerto, não prescinde daquele. Mas a recíproca também é verdadeira. O primeiro debita sua razão de existir ao segundo. Tais assertivas já denotam que o tratamen-to do enfoque tradicional, por sua relevância, também exige especial dedicação.

Nesse propósito, o ensaio principia com a análise crítica sobre a (in)consciente identificação do cumprimento da exigência de aces-so à justiça com a criação de órgãos jurisdicionais. Posteriormente, debruça-se sobre questões que apenas aparentemente orbitam o tema do acesso, mas que estão a ele diretamente vinculadas, contanto que se lhe atribua uma compreensão ampla, tais como os custos implicados no litígio e a necessária re-elaboração do sistema recursal, questões essas

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39O ACESSO à JUSTIÇA: ENFOqUES TRADICIONAL E CONSEqUENCIAL

mais diretas, a par de outras, indiretas ou reflexas, v.g., o ativismo e a contenção judicial.

1 Enfoque tradicionalConsoante ressaltado anteriormente, amiúde o tema do acesso à

justiça é relacionado à disponibilidade material de ingresso do inte-ressado no sistema judiciário, seja na condição de postulante, seja na de postulado. Nesse norte, as abordagens da matéria inclinam-se ao estudo e à construção de instrumentos que determinem a superação, ou pelo menos a amenização, das resistências que impedem ou dificultam esse exercício.

Observe-se, por exemplo, a chamada interiorização da Justiça Federal. Inicialmente concentrada nas capitais estaduais, concluiu-se – acertadamente – pela necessidade de sua aproximação ao jurisdicio-nado. Principiou-se, em resposta, o processo de capilaridade do órgão mediante criação e instalação de varas federais pelo interior dos estados federativos. No entanto, não houve – ou, em havendo, sem os necessários aprofundamento e divulgação – estudos pormenorizados sobre os critérios antecipadamente eleitos que determinaram as escolhas das localizações e se, a posteriori, esses critérios tenham se mostrado acertados.

Essa observação não se restringe à realidade da Justiça Federal. É apenas reflexo de critérios amplos que orientam a expansão material do Poder Judiciário em seus mais diversos órgãos e instâncias. Critérios que se aplicam tanto à criação de varas das justiças estaduais, do Trabalho, Eleitorais ou Militares, quanto à de tribunais de justiça descentralizados ou que se dedicam a determinadas causas pela divisão de competência, como nos casos dos tribunais de alçada1.

Um fator se destaca no que se refere às opções administrativas para sua expansão material, o geográfico em sentido estrito, considerando--se a distância a ser percorrida pelo jurisdicionado para acessar o órgão jurisdicional.

1 É cabível nesta oportunidade importante esclarecimento com relação aos exemplos tratados neste ensaio. A inclinação por situações específicas à Justiça Federal não decorre de outro propósito senão que da maior familiaridade do autor com esse órgão.

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Exemplificativamente, um dado bastante interessante condiz com a divisão nacional da Justiça Federal2. Compare-se a extensão territorial do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região com a dos demais Tribunais Regionais. As diferenças são inequívocas e literalmente imensas. O mesmo sucede com o que antes foi referido a propósito da interioriza-ção, a qual foi mais acentuada na 4.ª Região, que abrange os Estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, do que na própria 1.ª Região, integrada pelo Distrito Federal e pelos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.

A mera análise da distribuição dos Tribunais Regionais Federais pode conduzir a conclusões equivocadas. A princípio, afigura-se descabido que um Tribunal que alcance menor extensão territorial disponha de maior número de seções judiciárias. A referência apenas ao fator geográfico como parâmetro confiável, portanto, é suscetível a críticas pertinentes. Isso por que outros elementos interferem na divisão territorial do Poder Judiciário. Variáveis culturais, sociológicas, econômicas e geográficas, em sentido lato, devem ser consideradas.

O exame de informações estatísticas a respeito do índice de litigância pode indicar maior ou menor propensão de certas comunidades para o litígio. É provável que grupos sociais que disponham de maior acesso à educação e a informações jurídicas, e, em decorrência, qualificados em tese como mais esclarecidos, possam apresentar índice superior de demanda judicial do que outros a quem os serviços educacionais e informativos se afigurem impraticáveis ou falhos3.

2 Mesmo no que concerne aos Tribunais de Justiça, cuja instalação obedece ao critério lógico de que cada qual corresponde a um Estado da federação, o tratamento ora dispensado ao tema não é desinteressante, ante a possibilidade de criação de câmaras descentralizadas, nos termos do § 6.º do art. 125 da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitu-cional n. 45/2004. Idêntica afirmação é cabível com relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, em especial à Justiça do Trabalho (art. 115, § 2.º, da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004) e à própria Justiça Federal (art. 107, § 3.º, da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional n. 45/2004).3 Curioso é que se pode observar situação paradoxalmente inversa. Como atualmente o Poder Judiciário enfrenta severa crise no que concerne à efetividade e celeridade de sua atuação, é crível que setores sociais mais esclarecidos se acautelem mediante adoção de posturas e mecanismos que evitem ao máximo a judicialização do conflito. A inclinação para a arbitragem pode ser decorrência dessa realidade.

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Comunidades compostas por grupos étnica e sociologicamente hete-rogêneos também podem apresentar maior tendência ao litígio. quando o arcabouço jurídico volta-se para respostas sociais inclusivas, intensifica--se o número de demandas judiciais postulando esse tipo de atuação. Não haverá pretensões jurídicas por cotas étnicas, v.g., num grupo social homogêneo. Áreas menos infensas a movimentações demográficas estão sujeitas a maior nível de conflituosidade entre autóctones e migrantes.

Pode haver relação entre o critério econômico e o cultural. Em tese o maior desenvolvimento de um proporciona o aprimoramento do outro. Porém, o primeiro pode ser dissociado do segundo. No atual estágio do capitalismo, exacerbando-se a economia, proporcionalmente avança o consumo. E dessa relação havida entre tais atores – provedor e consu-midor – pode surgir inúmeros conflitos. Sob outro viés, é factível que, em locais onde a atividade econômica seja mais dinâmica e intensa, desinteligências sob a ótica trabalhista se apresentem em maior número.

Tomada a variável geográfica em sentido amplo, é correto afirmar que a simples análise da distribuição judicial por mapeamento desconsi-dera a distribuição populacional. É justificável, por conseguinte, que as regiões concentradoras de maior nível populacional contem com número maior de julgadores. Ainda que significativamente mais extensa a área territorial do Estado do Amazonas, decerto há maior número de órgãos judiciais no Estado do Rio de Janeiro, já que sua população é incompa-ravelmente superior.

Consideradas essas variáveis, há argumentos bastantes para funda-mentar as diferenças antes delineadas entre os Tribunais da 1.ª e da 4.ª Regiões. Problema é identificar se essas variáveis, quando da composição e da distribuição dos órgãos jurisdicionais, de fato orientaram ou orientam o administrador. Sob o manto delas, pode estar contido o indizível. Ou melhor, escolhas meramente subjetivas ou políticas4.

4 Essa suspeita, abstraída a situação concreta dos Tribunais Regionais Federais exempli-ficativamente referidos, é fomentada quando se considera a formação histórica do Brasil. Oculta sob a “cordialidade” subjaz a tendência de privilegiar o privado em detrimento do público (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997).

O ACESSO à JUSTIÇA: ENFOqUES TRADICIONAL E CONSEqUENCIAL

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Portanto, é desejável que a distribuição dos órgãos judiciais seja operada de forma racional5. Do contrário, de qualquer coisa poderá se tratar, menos de assegurar o amplo acesso ao jurisdicionado.

2 Enfoque consequencialO enfoque consequencial se debruça sobre o acesso à justiça pres-

supondo a plena disposição do aparato jurisdicional ao cidadão. Ou seja, sob essa ótica, o interessado tem franqueado o acesso físico ao órgão jurisdicional. Reputa-se vencida essa etapa6. O que se torna relevante considerar, doravante, são os obstáculos criados a partir desse acesso, os quais podem interferir no atendimento da sua pretensão7.

5 Paradoxalmente, mesmo a desejada racionalidade quando da distribuição dos órgãos judiciais pode não assegurar o amplo acesso. O intenso dinamismo das relações econômicas impõe sensíveis alterações de ordem geográfica. Os grandes centros populacionais de hoje podem não ser os de amanhã. A história é pródiga em exemplos, inclusive a brasileira, da qual se extraem os exemplos da ascensão e do declínio da produção cacaueira, no sul baiano, e borracheira, no noroeste do país. Nesse contexto, a correta distribuição havida no passado pode não corresponder à do presente. Por outro lado, o constante aumento populacional, e mesmo do acesso à educação e à informação, por camadas populacionais dele antes alijado, tem exi-gido a criação exponencial de órgãos judiciários. Por isso mesmo o tema do acesso é ainda bastante atual e desafiador.6 Revigora-se a ideia de que o acesso deve ser equiparado a um processo – tomado o termo em sentido amplo, e não técnico jurídico relacionado à ciência processual – com-posto por diversas etapas. Conforme anteriormente salientado, para o que se denominou enfoque tradicional, satisfaz-se o direito ao acesso ao Judiciário pela disponibilidade física ou virtual, como no caso do Processo Eletrônico, do órgão jurisdicional. O enfoque consequencial segue adiante como desdobramento daquele, mas ainda assim integrante de um mesmo processo.7 Permitindo-me uma breve digressão literária a fim de ilustrar a assertiva, suscito o personagem Josef K., de O Processo, de Franz Kafka (KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005). O acesso ao órgão lhe foi imposto; o problema maior foi alcançar a resposta sobre o que exatamente estava acontecendo.

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2.1 A economia do litígioEm regra, o litígio exige dispêndio financeiro, exceto nas situações

em que o patrocínio por profissional habilitado é dispensado, como nas causas de competência dos Juizados Especiais8. Assim, mesmo antes do ingresso em juízo o interessado deverá contar com a orientação e o auxílio de procurador, profissional que, por sua qualificação, deve ser adequadamente remunerado pelos serviços prestados. Por certo esse trabalho pode ser realizado por defensores públicos, o que dispensa o pagamento de honorários para o exercício da representação, mas apenas em situações específicas.

Além do profissional técnico, o interessado também precisa satis-fazer as despesas judiciais, as quais, em caso de necessidade, podem igualmente ser dispensadas. De todo modo, há despesas, v.g., com custas de distribuição, honorários periciais, o que pode tornar o litígio bastante oneroso. Ainda, ao final, sucumbente a parte, deverá arcar com as despesas adiantadas pelo vencedor da lide, inclusive os honorários advocatícios. Não se descura da possibilidade de concessão do benefício da assistência judiciária gratuita. No entanto, é pressuposto de deferimen-to que a parte se encontre em situação econômica que não lhe permita suprir tais despesas9.

Mas porquanto o acesso à jurisdição, enquanto direito fundamental do cidadão, implícito na garantia de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5.º, inciso XXXV, da Constituição Federal), constitui prestação essencial e indispensável ao lesado, na tentativa de recomposição ao estágio anterior à violação do direito, seria desejável que a atuação estatal correspondente fosse aces-

8 Na Justiça Estadual, consoante dispõe o caput do art. 9.º da Lei n. 9.099/95, há de ser observado o valor da causa de até vinte salários mínimos. Nos Juizados Especiais Federais, o limite é de sessenta salários mínimos, em conformidade à regra inscrita no caput do art. 3.º da Lei n. 10.259/2001. Na hipótese de recurso, contudo, é imperativa a representação por advogado (§ 2.º do art. 41 da Lei n. 9.099/95, preceito normativo este que se aplica também nos Juizados Especiais Federais por determinação do art. 1.º da Lei n. 10.259/2001).9 Em conformidade com o disposto no parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 1.060/1950, o qual encontra espeque constitucional no art. 5.º, inciso LXXIV, da Constituição Federal.

O ACESSO à JUSTIÇA: ENFOqUES TRADICIONAL E CONSEqUENCIAL

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sada gratuitamente. Essa orientação é escudada pelo legítimo discurso de que o acesso à Justiça deve ser universal, ademais enquanto serviço público já custeado pelos tributos integralizados pelos cidadãos. A tese é sedutora desde que acompanhada de medidas que evitem a utilização do processo como forma abusiva do exercício de um suposto direito. Certamente essa aspiração ainda se encontra longe de ser concretizada, não obstante algumas interpretações pretorianas se apresentem menos rigorosas na análise dos pedidos de concessão de assistência judiciária gratuita.

De qualquer maneira, instaura-se desde já um paradoxo: a possi-bilidade de litigar sob o amparo da assistência judiciária gratuita pode estimular o ajuizamento de demandas absolutamente infundadas ou mesmo a utilização do processo como mecanismo procrastinatório do cumprimento de obrigações. Daí o motivo da cautela antes externada sobre a aspiração de gratuidade. É fato que o interessado pode se en-contrar descompromissado de qualquer parâmetro ético, reputando-se amparado pela mais absoluta irresponsabilidade sob a ótica processual, ao interpor demandas naturalmente fadadas ao insucesso10 ou se opor injustificadamente ao cumprimento de postulações legítimas. São diversos os casos em que ferramentas processuais são empregadas vi-sando a não satisfação do direito, especialmente no caso de devedores que abusam desses instrumentos a fim de protelar o pagamento das respectivas dívidas11.

De todo modo, é provável que as situações abusivas antes aventadas terminem por se constituir em um dos principais fatores que determi-nam o monstruoso número de processos em tramitação no país. Há que se distinguir, por conseguinte, o amplo acesso do estímulo ao acesso. Aquele visa assegurar que o ofendido busque resguardo junto ao sistema judiciário, enquanto este proporciona a utilização desse mesmo sistema como instrumento refratário à solução da controvérsia.

10 Note-se que, assoberbado o Poder Judiciário, os mecanismos iniciais de controle, como a recomendada detida análise da vestibular, pode restar prejudicada.11 O fenômeno da elisão fiscal pode ser relacionado como exemplo prático.

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2.2 A intensidade recursalO enfoque tradicional ocupa-se basicamente do ingresso no sistema

judiciário, enquanto o consequencial trata do término do processo e da qualidade da resposta jurisdicional. Na atual conjuntura, a despeito dos esforços envidados no sentido de desburocratizar a prática processual – por vezes em risco da necessária ritualização de circunstâncias jurídicas específicas –, é fato que são excessivas as ferramentas disponíveis para prolongamento da lide, sem que paralelamente haja acréscimo de precisão na resposta jurisdicional.

São notórias as dificuldades para o interessado alcançar o julgado definitivo. O sistema processual é pródigo em mecanismos que possibi-litam ao desejoso em estender o andamento do processo alcançar esse objetivo. Todavia, há que se visualizar que essa situação não deve ser tributada apenas ao arcabouço legislativo. Inúmeros são os casos de construções pretorianas dispostas a acatar os mais diversos recursos, isso sem descartar hipóteses de soluções contra legem.

A questão, pois, parece beirar o condicionamento ideológico de grande parte dos operadores jurídicos. A crença em respostas perfeitas, ou pelo menos mais próximas dessa adjetivação, torna o processo pra-ticamente interminável. A ideia de falibilidade humana, e, portanto, dos juízos em geral, parece não ser admitida. Ora, não é suficiente dispor de mecanismo apto a receber postulações quando esse mesmo mecanismo não estabelece soluções definitivas para tais reivindicações. Nessa rea-lidade, o sistema judicial passa a ser um fim em si mesmo, quando em verdade deve ser um instrumento de realização da justiça.

O termo justiça, aliás, deve ser compreendido em seu sentido polissê-mico, nas mais variadas áreas em que é objeto de estudo (Filosofia, Teoria do Direito, Sociologia, Economia, etc.). É, como objetivo metafísico, inalcançável. Nada obsta, entretanto, que determinadas comunidades possam erigir consensos mínimos por intermédio dos quais o Direito se realize.

Assim, o processo deve iniciar já com vocação ao término, ainda que a resposta judicial por ele produzida não se constitua na mais adequada. Entretanto, observados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, é suficiente que essa resposta seja razoável, que man-

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tenha proximidade com os consensos mínimos da comunidade em que for proferida. Daí a necessidade de ampla revisão acerca do cabimento de inúmeros recursos.

É preciso esclarecer que essa revisão não deve se compadecer com juízos apressados. A reflexão, a partir da dialética processual, é intrínseca à atividade jurisdicional. O que não se admite é a perpetuação da dis-cussão, a pulular pelas mais diversas instâncias, não obstante analisada com a necessária acuidade em cada uma das etapas.

No atual contexto, a demora nas respostas termina por desacreditar a atividade jurisdicional. Injustificadamente, são proferidas algumas críticas públicas, as quais, sem conhecer a realidade do sistema judici-ário, generalizam a partir de defeitos e imprecisões pontuais. Em sua raiz, porém, essas críticas são pertinentes. Observe-se, por exemplo, na esfera penal, especialmente nos casos a envolver pessoas de categorias sociais privilegiadas.

Indubitavelmente, é equivocado atribuir única e exclusivamente ao infindável número de recursos os problemas inerentes à morosidade ju-dicial. Por outro lado, é inequívoco que contribui para essa situação. Isso além de colaborar para a ideia de que o acesso à justiça, compreendido em sentido lato pelo enfoque consequencial, seja visto como mero sofisma.

2.3 Acesso demasiado em prejuízo do acesso efetivoNotáveis fatores históricos determinaram sensíveis alterações de

matriz sociológica, desprendendo profundas e intensas movimentações no âmbito das relações sociais. Essa conjuntura passou a exigir atenção estatal para aspectos antes imprevistos ao modelo liberal, emergido em concomitância ao estado moderno. Em consequência, os ideais liberais preponderantes precisaram renunciar a espaços, ainda que parcialmente, e permitir transformações tanto na estrutura quanto nos objetivos do Estado, o qual passa a ser instado a suprimir demandas antes alheias ao exercício do poder político. Por conta dessa ampliação, e da consequente inclusão de segmentos sociais antes afastados do tablado deliberativo, a exigência de participação no debate público é acentuada. E o Direito, enquanto ciência social, decerto ressente-se dessas comutações, passando a refleti-las diretamente nos seus fundamentos.

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A ampliação dos objetivos do estado moderno, então, determina o incremento da constituição, a qual passa a se projetar não apenas sobre direitos fundamentais de cunho individual, mas também a alcançar aque-les de caráter social12, alargando significativamente o leque da atuação constitucional.

Decorrente desse fenômeno contemporâneo inscreve-se o chamado ativismo judicial. A semântica da locução é pródiga em definições. Pos-sivelmente a principal delas se relaciona à atuação do Poder Judiciário em áreas antes privativas aos outros Poderes republicanos, investindo contra a hígida tripartição.

Ante a franca omissão do Legislativo e do Executivo no cumprimento de suas atribuições, o sistema judiciário tem sido amplamente provoca-do a supri-la. Os efeitos decorrentes são o que se tem reconhecido por judicialização das políticas públicas e aparecimento de zonas de tensão entre os Poderes. O que cumpre ressaltar – nos estreitos limites deste ensaio, não obstante a relevância do tema – são os desdobramentos desse fenômeno frente às particularidades do sistema judiciário pátrio. Por conta de Constituição prolixa e de severas desigualdades sociais, o Poder Judiciário tem sido convocado a concretizar o extenso arcabouço normativo constitucional e a amenizar aquelas distorções. Por conta dessas singularidades, acentua-se sensivelmente o ativismo judicial.

Invocada a suprir os desacertos funcionais do Estado, exacerba--se a função jurisdicional pelo exame de atribuições que antes lhe eram alheias. A sociedade sente-se incentivada a solucionar questões, outrora sanadas em arenas eminentemente políticas, agora junto ao Poder Judiciário. De outro lado, essa situação cria para os demais entes públicos o conforto de não precisar deliberar sobre questões polêmi-cas, sensíveis ou prejudiciais a determinados segmentos, estimulando a inércia legislativa e administrativa. Em contrapartida, são incitadas novas demandas judiciais.

12 Os direitos fundamentais, ao longo da contínua e irreversível marcha da História, submeteram-se a modificações concernentes ao conteúdo, à titularidade, à eficácia e à efetivação. O conjunto de alterações tem sido designado como gerações ou dimensões dos direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Funda-mentais. 4.ed., rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 53).

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2.4 Desnivelamento da distribuição da competênciaA ampliação do espectro constitucional determinou a distensão do

horizonte de atuação do Supremo Tribunal Federal. Essa projeção é di-retamente proporcional à intensificação das disposições constitucionais, porque quanto mais minuciosa a Constituição, maior o alcance jurisdi-cional do órgão. Restará, consequentemente, alargada sua natural ascen-dência, desfocando a competência das demais instâncias judiciais, sejam monocráticas ou colegiadas. A aptidão de avocar a si o insustentável poder de judicar sobre qualquer tema, inclusive com atípico efeito normativo, praticamente exaure as atribuições das demais alçadas jurisdicionais.

A factibilidade dessa extrema concentração não é ensejada apenas pelas ações diretas de constitucionalidade e súmulas vinculantes, mas reforçada pela reclamação (art. 102, inciso I, alínea l) e pelo recurso ex-traordinário (art. 102, inciso III). Copiosa nessas ferramentas se encontra a especial coloração constitucional atribuível a qualquer matéria, que assim revestida ingressa na competência do Supremo Tribunal Federal. Nitidamente inexiste fórmula objetiva que assegure classificar determi-nada questão como constitucional ou despida desse especial significado. Subjetivismos que porventura adestrem essa deliberação são, portanto, latentes. A depender da qualidade da fundamentação, uma irrelevante briga de cães pode ser reputada constitucional, enquanto a incidência de um tributo federal pode receber outra qualificação. A vagueza da locução repercussão geral, enquanto pressuposto de admissibilidade ou de co-nhecimento do recurso extraordinário (§ 3.º do art. 103 da Constituição Federal) é permissiva de ilações imprevisíveis.

Efeito negativo colhido da concentração, estritamente relacionado ao acesso à justiça, é a restrição de ingresso e participação no palco da deliberação, o qual se desloca à Capital Federal. A participação das partes, enquanto elemento indispensável para correta apreensão da controvér-sia13, termina relegada. E é notória a indisponibilidade de significativa

13 É sempre almejada a maior intervenção possível das partes como mecanismo de fun-damentação democrática do Poder Judiciário. A propósito do assunto: COSTA, Gerson Godinho da. O princípio constitucional do contraditório como pressuposto de legitimação da atividade jurisdicional. In: HIROSE, Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso Modelar de Direito Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011, p. 14 et. seq.

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parcela populacional para se dirigir diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Tampouco institutos processuais como as audiências públicas ou o amicus curie – em outros contextos, de incriticável pertinência – são capazes de reverter essa insuficiência. O regular encaminhamento da demanda, mediante passagem pelas diversas instâncias componentes do iter formador do juízo natural, permite melhor amadurecimento da análise fática. Alcançando o Supremo, o colegiado disporá de todos esses elementos sem desmerecimento da necessária interação dos litigantes. Contudo, à medida que preconizado tratamento generalizado, será ine-gável o prejuízo sob essa ótica.

Acentua-se a possibilidade de indesejável tratamento generalizado a partir da repercussão geral, em conformidade com a sua sistemática proces-sual14. Com efeito, na hipótese em que “houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral”, será submetida à seleção pelos colegiados de origem (Tribunais, Turmas de Uniformização e Turmas Recursais) de “um ou mais recursos repre-sentativos da controvérsia” para encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, restando sobrestados os demais até resolução definitiva. Acaso não constatada a repercussão geral, os processos sobrestados deverão ser julgados nos respectivos colegiados de origem, porém, admitida a exis-tência de repercussão geral e julgado o mérito do recurso extraordinário, poderão ser considerados prejudicados ou submetidos à retratação.

Nessa linha, na hipótese de o Supremo admitir a repercussão geral sobre determinado tema, após seleção de representativos da controvérsia, exemplificativamente, pelo tribunal de um Estado da Federação, todos os demais deverão aguardar a manifestação daquela Corte. Se reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito do extraordinário, haverá indevida supressão de instância, posto que os demais pretórios serão alijados do processo decisório15. Eufemisticamente poderão até julgar os processos,

14 Art. 543-B do Código de Processo Civil, incluído pela Lei n. 11.418/2006.15 Com extrema acuidade, Oscar Vilhena Vieira propõe que a Corte dedique-se exclusivamente à jurisdição constitucional. Confere que tal “não significa adotar o modelo europeu de controle de constitucionalidade, mas sim dar seguimento a nossa experimentação institucional, que compõe o sistema difuso com o concentrado. Com a arguição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante, o Supremo terá condição de redefinir sua própria agenda e passar a utilizar do sistema difuso como

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cujo resultado, no entanto, será adiante adequado pelo Supremo a sua própria orientação.

Por derradeiro, não há que se descurar do princípio constitucional da celeridade processual (art. 5.º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal). O reconhecimento descomedido de repercussão geral pode congestionar a regular tramitação dos demais processos no Supremo Tribunal Federal. A propósito, cumpre notar que há razoável quantidade de temas com re-percussão geral reconhecida. Grosso modo, na suposição de que a Corte necessite de dia único para deliberar sobre cada assunto, a agenda deverá consumir pelo menos quinze meses, considerados finais de semana e fe-riados!16 Isso sem considerar suas demais atribuições. De qualquer modo, duas indagações se impõem. Primeiro, é preciso questionar se haverá de fato tantas matérias que dependam de solução universal. Em caso positivo, impende indagar se essa repercussão geral não recomendaria prévia atuação legislativa, pelo Poder constitucionalmente incumbido de estabelecer regras gerais. De todo modo, independentemente dessas inquirições, urge destacar a incongruência, no tocante ao preceito fun-damental da razoável duração do processo, havida em relação a matérias socialmente sensíveis que permanecerão aguardando indefinidamente por soluções que poderiam ser alcançadas pelo juízo natural.

Os reflexos no que tange ao acesso à justiça são evidentes. Enquanto se aguarda indefinidamente pela justiça – enquanto resposta razoável, elaborada a partir de consensos mínimos –, justiça não há.

instrumento de construção da integridade do sistema judiciário e promoção do interesse público. Definitivamente não é necessário analisar cada recurso extraordinário e muito menos cada agravo de instrumento que chega ao Tribunal, todos os dias. Ao restringir sua própria jurisdição, ao se autoconter, o Supremo estaria ao mesmo tempo reforçando a sua autoridade remanescente e, indiretamente, fortalecendo as instâncias inferiores, que passariam, com o tempo, a ser últimas instâncias, nas suas respectivas jurisdições. É preocupante a posição de subalternidade a que os tribunais de segunda instância foram relegados no Brasil, a partir de 1988, quando as suas decisões passaram a ser invaria-velmente objeto de reapreciação” (VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, out./dez. 2008, p. 74).16 Contabilizados os processos julgados e pendentes de julgamento, observa-se que foram admitidos em repercussão geral 456 assuntos (dados colhidos no sítio oficial do Supremo Tribunal Federal em 08/05/2013: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao).

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2.5 Acesso amplo e industrialização da tutelaA ciência jurídica tem amplamente reconhecido que a sentença ou

o acórdão estabelece a regra do caso concreto17. É manifesto, por con-seguinte, o elemento interpretativo que compõe a decisão, enriquecido por inimagináveis fatores a interferir nesse processo de composição. E, se por um lado, pode causar imprevisibilidade quanto à solução jurídica a ser proposta, por outro proporciona maior diversidade de argumentos a instruir a construção dessa resposta18.

Essa constatação remete necessariamente a considerar descabida a atuação jurisdicional como equiparada a uma linha de produção industrial. A massificação da demanda, decorrente dos catalisadores jurídicos, polí-ticos e sociais, parece impor, em cumprimento ao anseio de celeridade, a massificação da resposta. Contudo, essa solução não é desejável sob pena de irrazoabilidade da resposta judicial.

Por certo há demandas com nítido caráter identitário a reclamar respostas únicas. A dificuldade está em identificar a similaridade. Supe-rado esse obstáculo, mecanismos processuais como as ações coletivas ou mesmo os instrumentos constitucionais que conduzem ao Supremo Tribunal Federal a elaboração da resposta são inequivocamente aptos. Porém, há de haver equilíbrio, sob pena de prejuízo ao próprio acesso à justiça19.

17 Pontifica Humberto Ávila que as normas “não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 22). Em consequência “os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado” (Idem, ibidem).18 De todo modo, em algum momento essa decisão deve se tornar definitiva, sob pena de absoluta insegurança jurídica. Como anteriormente salientado, o atual sistema recur-sal, conquanto possa permitir em tese o aprimoramento da decisão, de outro lado torna infindável o processo, em inequívoco prejuízo à segurança jurídica.19 Conforme antes ressaltado no item 2.4. em relação aos problemas da repercussão geral e superação de instâncias e de próprio acesso geográfico ao STF. O mesmo pode ser afirmado a propósito das tutelas coletivas quando proferidas por juízos distantes do jurisdicionado por elas abrangido.

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Há que se atentar a situações em que a centralização das decisões pode conduzir a situações paradoxais. Em país de dimensões continen-tais, o tratamento genérico dos casos pode determinar soluções indiscu-tivelmente inábeis e em desconformidade com a própria Constituição Federal. quando o requisito para concessão de alguma prestação estatal depende da verificação da disponibilidade econômica do requerente, são variáveis seus componentes. Assim, v.g. no caso do benefício assistencial20, cujo pressuposto é a constatação da miserabilidade, são distintos os critérios de avaliação. Os ingredientes relacionados à composição da dieta mínima individual variam regionalmente, assim como são díspares os valores necessários para tratamento medicamen-toso. Descurar dessa realidade implica tornar inócuo o mandamento constitucional da assistência.21

ConclusõesA pretensão de demonstrar que o acesso à justiça não se confunde

com a mera instalação de órgãos judiciais país afora parece ter sido demonstrada. Para esse objetivo sequer é preciso estender o alcance do vocábulo “acesso à justiça” a fim de admitir o enfoque consequencial. No que hic et nunc se designou como enfoque tradicional já comprova a assertiva inicial. Deve-se dispor de critérios objetivos e racionais para a criação de comarcas, sessões judiciárias e órgãos judiciais colegiados. Sem essa cautela – ainda que óbvio, é sempre recomendado reafirmar – é alta a probabilidade de injustificado desperdício de recursos públicos, de resto já insuficientes para atender todos os reclamos sociais. Entretanto, o prejuízo é ainda maior no que diz respeito ao cumprimento a contento de um serviço essencial que é o jurisdicional. A alocação impensada contribui para sua ineficiência.

20 O benefício assistencial encontra-se disciplinado nos artigos 20 e 21 da Lei n. 8.742/93, com importantes alterações determinadas pela Lei n. 12.435/2011.21 Art. 203 da Constituição Federal.

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Considerada a relevância do problema, a discussão acerca da opor-tunidade e conveniência da criação e instalação de órgãos jurisdicionais reclama ativa participação dos mais variados segmentos sociais, e não apenas daqueles de matriz técnica, como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, Ministérios Públicos, órgãos policiais, Defensorias Pú-blicas, os quais, ainda que diretamente implicados, no mais das vezes também se encontram alijados desse tipo de deliberação.

É acurar a vista e ampliar o horizonte de aplicação do princípio do acesso à justiça. O termo não está a indicar o simples ingresso em juízo. Este deve pressupor alguma saída, correspondente ao término do processo implicado numa decisão definitiva. Esse é o propósito do que se convencionou designar, neste sucinto e despretensioso trabalho, como enfoque consequencial. Amplo acesso à justiça não se confunde com amplo acesso ao Poder Judiciário. Pressupõe este, mas também requer a solução da demanda proposta, mediante apresentação de uma resposta juridicamente razoável.

De longe se está a apresentar alguma inédita abordagem sobre o tema. Apenas se procura repercutir preocupações tópicas que despontam numa principal, a de que o Poder Judiciário caminha a passos largos para se tornar um fim em si mesmo, um paquiderme socialmente inútil a alimentar-se da burocracia gerada por si próprio, enfim, o último lugar onde deveras se haverá de encontrar justiça – aqui conceituada, reprise-se, formalmente no sentido de se obter uma resposta jurisdicional razoável e definitiva.

Identificados os problemas, é preciso propor possíveis soluções. Ou melhor, singelas propostas de discussão. A única certeza que se extrai é a de que o quadro atual necessita de profundas modificações. Advém daí a grande complexidade da questão. O problema do acesso à justiça – no sentido amplo aqui compreendido – está a exigir que se repensem o custeio da demanda judicial, o sistema recursal, o ativismo e a contenção judicial, a reestruturação da competência do Supremo Tribunal Federal e a funcionalidade judicial na elaboração de suas respostas.

A tarefa é árdua, mas instigante. Mãos à obra.

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notas bibliográficasÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

COSTA, Gerson Godinho da. O princípio constitucional do contraditório como pressuposto de legitimação da atividade jurisdicional. In: HIROSE, Tadaaqui; SOUZA, Maria Helena Rau de. Curso Modelar de Direito Processual Civil. São Paulo: Conceito, 2011. p. 13-37.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 3.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4.ed., rev. atual. e amplia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, ano 3, n. 12, p. 55-75, out./dez. 2008.

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COMEntÁRIOS à lEI AntICORRUPçãO – LEI Nº 12.846, DE 1º DE AGOSTO DE 2013

BREVES REFlExõES ACERCA DAS COnSEqUênCIAS DA EntRADA EM VIGOR

DA nOVA lEGISlAçãO nO âMBItO DO DIREItO ADMInIStRAtIVO

STEFAN ESPIRITO SANTO HARTMANNJuiz Federal Substituto na 4ª Região. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Ex-Advogado da União.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo principal examinar, de maneira geral, os dispositivos mais importantes da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 – a chamada Lei Anticorrupção (LAC). Com a entrada em vigor da norma, em janeiro de 2014, tornou-se necessário que todos aqueles que, de alguma forma, trabalham com o Direito Administrativo, ou mesmo dedicam-se apenas a estudar tal ramo da ciência jurídica, es-tejam a par das significativas transformações levadas a efeito pela LAC.É importante ressaltar, no entanto, que não se pretende – e nem seria possível neste espaço – analisar, minuciosamente, todas as circunstâncias e consequências jurídicas que advêm dos 31 (trinta e um) artigos que compõem a Lei nº 12.846/2013. Com efeito – adotando-se a sistemática de reproduzir os textos legais, para depois comentá-los –, serão apre-sentadas, genericamente, breves reflexões acerca das regras previstas na norma jurídica em comento, sublinhando-se aquelas que mais possuem importância para os atores envolvidos na aplicação da norma, sobretudo na esfera do Direito Administrativo Sancionador.à guisa de conclusão, defende-se que, apesar de alguns problemas pontu-ais, a LAC representa significativo avanço no combate à corrupção. Dessa maneira, pretende-se, com este texto, dar uma pequena contribuição a tão importante debate, o qual já ocupa generosos espaços tanto na im-prensa quanto na sociedade civil brasileiras, e que certamente continuará ocupando-os nos próximos anos.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Disposições gerais. 2 Dos atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira. 3 Da responsabilização administrativa. 4 Do processo administrativo de responsabilização. 5 Do acordo de leniência. 6 Da responsabilização judicial. 7 Disposições finais. Conclusão. Referências bibliográficas.

PALAVRAS-CHAVE: Corrupção. Repressão. Direito Administrativo Sancionador. Ética. Transparência.

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IntroduçãoRecentemente, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Lei nº

12.846, de 1º de agosto de 2013, apelidada de Lei Anticorrupção Empre-sarial, ou simplesmente Lei Anticorrupção. A norma, de suma importância no combate a uma das maiores mazelas que se abate sobre o país, teve sua vigência iniciada em 29 de janeiro de 2014, regulamentando, no âmbito do Direito Administrativo, as relações político-jurídicas entre as pessoas jurídicas de direito privado e o Poder Público, notadamente no que se refere à aplicação de sanções a comportamentos lesivos à coisa pública.

Inicialmente, é preciso lembrar que, de acordo com Fernandes e Cos-ta1, a LAC tem origem no episódio da história norte-americana conhecido como Watergate, o qual deu origem ao Foreign Corrupt Practices Act (1977). Essa norma introduziu, no sistema jurídico norte-americano, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica diretamente envolvida em casos de corrupção, os quais tenham sido praticados no seu interesse, independentemente da responsabilização individual das pessoas físicas envolvidas.

Além disso, no âmbito nacional, é notório que a LAC representa uma resposta, por parte do Congresso Nacional, ao movimento que ficou conhecido como “manifestações de junho de 2013”, o qual tomou conta das ruas do país naquela época. Milhares de pessoas foram às ruas das suas cidades, exigindo maior transparência e ética nas relações políti-cas, traduzindo clara manifestação de inconformidade com o status quo vigente.

Ressalta-se, ademais, na esteira do que afirmam Petrelluzzi e Rizek Junior2, que a LAC visa a dar concretude a compromissos internacionais relacionados ao combate à corrupção, assumidos pelo Brasil, especial-mente a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públi-cos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, a Convenção

1 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; COSTA, Karina Amorim Sampaio. In: NASCI-MENTO, Melillo Dinis do (org.). Lei Anticorrupção Empresarial – Aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 29. 192p.2 PETRELLUZZI, Marco Vinício; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrup-ção – Origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 17. 122p.

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das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção Interamericana contra a Corrupção. Trata-se de tratados internacionais firmados no âm-bito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização das Nações Unidas (ONU).

Nessa perspectiva, nota-se que o fenômeno da corrupção, mesmo antes da LAC – em que pese a lacuna, na esfera administrativa, no que tange às pessoas jurídicas –, já recebia tratamento diferenciado no direito brasileiro, já que é tipificado como crime no Código Penal – um direcionado ao corruptor (art. 333 – corrupção ativa) e outro destinado ao corrupto (art. 317 – corrupção passiva). É certo que a criminalização de tal conduta reflete o reconhecimento, por parte da sociedade moderna, da corrupção como flagelo da humanidade, visto que gera consequências nefastas para todas as nações, especialmente para os países em desenvolvimento. Demais disso, não há dúvidas de que a corrupção ganhou força a partir do advento da globalização, a qual eliminou barreiras comerciais e culturais anteriormente intranspo-níveis, possibilitando que empresas e pessoas físicas das mais diversas nacionalidades negociem e comercializem produtos e serviços entre si e com os Estados estrangeiros.

Nada obstante a abundância de oportunidades negociais dos últimos anos, percebe-se que, com a evolução do Estado absolutista para o Estado Democrático de Direito, de acordo com Ferraz Dal Pozzo e outros3, o exercício do poder de polícia pelo Estado, sobre o particular, constitui elemento essencial à boa convivência entre os diversos atores sociais, com o intuito de preservar certos valores coletivos, ao impor aos particulares determinadas obrigações de fazer ou não fazer. E, justamente em face do exercício do poder geral de polícia do Estado, a LAC criou uma série de comportamentos que caracterizam ilícitos, denominados por ela de atos lesivos à administração pública, em homenagem a certos valores, tais como o patrimônio público nacional ou estrangeiro, os princípios da administração pública e os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

3 DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz; DAL POZZO, Augusto Neves; DAL POZZO, Beatriz Neves; FACCHINATTO, Renan Marcondes. Lei Anticorrupção – Apontamentos sobre a Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 09-11. 120p.

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Nesse sentido, Bittencourt4 entende que a edição da LAC demonstra uma mudança de perspectiva na punição da corrupção, tendo em vista que ela visa a alcançar as pessoas jurídicas infratoras, as quais somente eram sancionadas no âmbito da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos). Destarte, verifica-se que a LAC, ao lado da Lei de Improbidade Administrativa, é mais uma expressão significativa do chamado Direito Administrativo Sancionador, o qual, ao lado do Di-reito Penal, tem por objetivo tutelar as relações ilícitas que se desenrolam entre o particular e o Estado. Ademais, à luz do que afirmam Petreluzzi e Rizek Junior5, a LAC precisa ser estudada em conjunto com o arcabouço jurídico brasileiro de normas que pretendem combater a corrupção, o qual congrega normas penais, administrativas, civis e de conteúdo político.

Portanto, a título introdutório, é possível dizer, como será de-monstrado ao longo deste trabalho, que a LAC mudou o paradigma do controle da corrupção do Brasil, contribuindo para que sejam reduzidos os prejuízos experimentados pela sociedade brasileira decorrentes do ato corrupto. Nas palavras de Nascimento6, a Lei 12.846/2013 é parte de um esforço transnacional por mais transparência na gestão pública e ética nas sociedades, temática essa de grande importância para o Brasil.

1. Disposições gerais

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às socie-dades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou

4 BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção – Lei 12.846/2013. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 21-24. 176p.5 Op. cit., p. 17.6 Op. cit., p. 17.

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modelo societário adotado, bem como a quaisquer funda-ções, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

O caput do art. 1º anuncia o que dispõe a Lei Anticorrupção: res-ponsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. A partir disso, pode-se afirmar, de início, o seguinte: (a) a responsabilização, no âmbito da LAC, é objetiva, isto é, independe da presença de dolo ou culpa, nos moldes do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal; (b) a LAC trata apenas de responsabilidade administrativa e civil, e não penal; (c) a LAC tutela as administrações públicas nacional e estrangeira, ou seja, é possível a sua aplicação quando o sujeito passivo do ato lesivo for Estado estrangeiro ou organização internacional.

Além disso, o parágrafo único do art. 1º traz quais as espécies de pessoas jurídicas em relação às quais poderá ser aplicada a LAC. São elas: sociedades simples e empresárias (personificadas ou não, indepen-dentemente da forma de organização ou do modelo societário adotado), fundações, associações (de pessoas físicas ou jurídicas) e sociedades estrangeiras com sede, filial ou representação no país (constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente). Vê-se que o dispositivo pretendeu ser o mais abrangente possível, de tal forma que, considerando as seis espécies de pessoas jurídicas de direito privado previstas no art. 44 do Código Civil (associações, sociedades, fundações, organizações religiosas, partidos políticos e empresas individuais de responsabilidade limitada), apenas as empresas individuais de responsabilidade limitada não estão, expressa ou implicitamente, abarcadas pela norma. Ressalta-se que as organizações religiosas e os partidos políticos são tipos de asso-ciações, razão pela qual se defende a aplicação da LAC a tais entidades.

Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetiva-mente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.

COMENTÁRIOS à LEI ANTICORRUPÇÃO – LEI Nº 12.846, DE 1º DE AGOSTO DE 2013

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O art. 2º reafirma o que determina a norma anterior – responsabi-lidade objetiva, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos na LAC –, acrescentando, ainda, que referidos atos, para fins de responsabilização, devem ser praticados por interesse ou benefício da pessoa jurídica, exclusivo ou não. Isso significa que é possível que o sujeito ativo do ato lesivo previsto na LAC seja responsabilizado ainda que o tenha praticado apenas por interesse ou benefício de terceiros.

Não é demais ressaltar que, como cediço, a responsabilidade objetiva independe da existência de culpa ou dolo. Por isso, para que a pessoa jurídica seja responsabilizada nos termos da LAC, basta que estejam comprovados a conduta, o resultado e o nexo de causalidade entre ambos, independentemente da intenção do agente.

Art. 3º A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou adminis-tradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.

§ 1º A pessoa jurídica será responsabilizada independente-mente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput.

§ 2º Os dirigentes ou administradores somente serão respon-sabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade.

É possível afirmar que o caput e o § 1º do art. 3º trazem a siste-mática da dupla responsabilização (ou imputação): a caracterização da responsabilidade administrativa ou civil da pessoa jurídica pelos atos lesivos previstos na LAC não exclui a responsabilização individual dos seus dirigentes ou administradores, ou ainda de qualquer pessoa física corresponsável. Assim, tanto a pessoa jurídica quanto as pessoas físicas que concorreram para a prática dos atos lesivos serão por ela responsa-bilizadas – sistemática da dupla responsabilização.

Contudo, o § 2º determina que tais pessoas físicas somente serão responsabilizadas na medida da sua culpabilidade. Isso significa que, embora a responsabilidade administrativa e civil das pessoas jurídicas, no âmbito da LAC, seja objetiva, a responsabilidade dos dirigentes ou

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administradores, por outro lado, será subjetiva, isto é, dependerá da comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa). Portanto, uma primeira conclusão a que se chega é que a LAC traz a sistemática da dupla responsabilização, ou seja, a pessoa jurídica é responsabilizada objetivamente, enquanto as pessoas físicas o são subjetivamente.

Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorpo-ração, fusão ou cisão societária.

§ 1º Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabili-dade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as de-mais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados.

§ 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.

Finalizando o primeiro capítulo, o art. 4º da LAC, a exemplo do art. 133 do Código Tributário Nacional, trata da responsabilidade dos suces-sores, nos casos de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária das pessoas jurídicas infratoras.

O caput do artigo, no intuito preservar a aplicação das punições previstas na LAC, inicia afirmando que subsistirá a responsabilidade da pessoa jurídica mesmo se forem promovidas as mencionadas altera-ções. No entanto, o § 1º determina que, exceto nos casos de simulação ou evidente intuito de fraude, desde que devidamente comprovados, a responsabilidade da sucessora das hipóteses de fusão e incorporação será restrita ao pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido.

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Primeiramente, é preciso destacar que somente nestes dois casos – fusão e incorporação – a responsabilidade da sucessora estará limitada. Nos demais casos (alteração contratual, transformação e cisão societária), aplicam-se a totalidade das punições previstas na LAC. Depois, nota-se que, se forem comprovados simulação ou intuito de fraude na celebração do negócio jurídico, mesmo nos casos de fusão e incorporação não haverá limitação da responsabilidade da sucessora. Percebe-se que, quando a LAC fala em “devidamente comprovados”, ela está querendo dizer que comprovação da simulação e/ou da fraude ocorrerá em processo admi-nistrativo ou judicial, respeitando-se os postulados do devido processo legal e da ampla defesa.

Por fim, o § 2º estabelece que, no caso de sociedades controlado-ras, controladas, coligadas ou consorciadas, haverá responsabilidade solidária com a pessoa jurídica autora do ato lesivo previsto na LAC, porém limitada ao pagamento de multa e à reparação do dano. Trata-se, portanto, de responsabilidade solidária – poderá figurar, no polo passivo do processo administrativo ou judicial, a pessoa jurídica autora e aquela que detém responsabilidade solidária, conjuntamente, ou somente esta última, individualmente –, mas que está restrita ao pagamento de multa e à reparação do dano.

2. Dos atos lesivos à administração pública nacional ou es-trangeira

CAPÍTULO II

DOS ATOS LESIVOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA-CIONAL OU ESTRANGEIRA

Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

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I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, van-tagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qual-quer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

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§ 1º Considera-se administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indi-retamente, pelo poder público de país estrangeiro.

§ 2º Para os efeitos desta Lei, equiparam-se à administração pública estrangeira as organizações públicas internacionais.

§ 3º Considera-se agente público estrangeiro, para os fins desta Lei, quem, ainda que transitoriamente ou sem remune-ração, exerça cargo, emprego ou função pública em órgãos, entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro, assim como em pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estran-geiro ou em organizações públicas internacionais.

O capítulo II da LAC é composto apenas do art. 5º, o qual, em 5 (cinco) incisos, traz o rol de atos lesivos à administração pública nacio-nal ou estrangeira e que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra os princípios da administração pública ou contra tratados internacionais firmados pelo Estado brasileiro. Entre os atos lesivos elencados nos incisos do dispositivo, destacam-se dois que possuem reflexos também na esfera penal, tendo em vista que também são tipificados como crime: a corrupção ativa, prevista no inciso I (art. 333 do Código Penal), e as condutas relacionadas às fraudes praticadas em licitações públicas, previstas no inciso IV (art. 89 e seguintes da Lei 8.666/1993).

Demais disso, os parágrafos do art. 5º dispõem sobre as definições de administração pública estrangeira e agente público estrangeiro, com destaque para o fato de que a LAC equiparou àquela as organizações públicas internacionais, como a Organização das Nações Unidas.

3. Da responsabilização administrativa

CAPÍTULO III

DA RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

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Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos pre-vistos nesta Lei as seguintes sanções:

I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, ex-cluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e

II - publicação extraordinária da decisão condenatória.

§ 1º As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações.

§ 2º A aplicação das sanções previstas neste artigo será pre-cedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público.

§ 3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.

§ 4º Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).

§ 5º A publicação extraordinária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circu-lação nacional, bem como por meio de afixação de edital, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabe-lecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores.

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Revista da aJUFeRGs / 0966

Prosseguindo, chega-se ao capítulo III da LAC, constituído de dois artigos e que trata da responsabilização administrativa das pes-soas jurídicas pelos atos lesivos elencados no dispositivo anterior. Por conseguinte, fica claro que a aplicação das penalidades tratadas neste capítulo é de competência da autoridade administrativa responsável, após regular tramitação de processo administrativo com tal desiderato, e sempre garantindo às pessoas jurídicas e físicas responsáveis as ga-rantias do devido processo legal e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal).

Nesse sentido, observa-se que são duas as sanções previstas na LAC, sem prejuízo da obrigação de reparação integral do dano causado (art. 6º, § 3º): multa, conforme parâmetros definidos no inciso I do art. 6º, e publicação extraordinária da decisão condenatória. A autoridade responsável, de modo fundamentado (art. 50, caput, da Lei 9.784/1999, e art. 93, IX, da CF), poderá aplicar tais sanções cumulativamente, ou de forma isolada, considerando as peculiaridades do caso concreto, a gravidade e a natureza das infrações (art. 6º, § 1º).

Além do mais, a LAC exige que a aplicação das mencionadas san-ções seja precedida de manifestação do órgão de assessoramento jurídico competente (Advocacia-Geral da União, Procuradoria do Estado ou Procuradoria Municipal, conforme o caso), bem como que a sanção de publicação extraordinária da decisão condenatória seja a mais abrangente possível.

Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções:

I - a gravidade da infração;

II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;

III - a consumação ou não da infração;

IV - o grau de lesão ou perigo de lesão;

V - o efeito negativo produzido pela infração;

VI - a situação econômica do infrator;

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VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações;

VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregula-ridades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;

IX - o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados; e

Parágrafo único. Os parâmetros de avaliação de mecanis-mos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal.

Por fim, percebe-se que o art. 7º determina quais as circunstâncias que a autoridade responsável deve levar em consideração para a aplicação das sanções administrativas, destacando-se o inciso VII, que estabelece a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações como critério determinante. Verifica-se, a exemplo do acordo de leniência – instituto que será examinado mais adiante –, que o legislador cada vez mais tem conferido incentivos à colaboração entre o investigado e as autoridades, com o objetivo de apurar os fatos ilícitos com maior eficiência.

4. Do processo administrativo de responsabilização

CAPÍTULO IV

DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE RESPONSABILI-ZAÇÃO

Art. 8º A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou me-diante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.

§ 1º A competência para a instauração e o julgamento do processo administrativo de apuração de responsabilidade da pessoa jurídica poderá ser delegada, vedada a subdelegação.

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§ 2º No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria--Geral da União – CGU terá competência concorrente para instaurar processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas ou para avocar os processos instaurados com fundamento nesta Lei, para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento.

Depois de tratar das sanções que serão aplicadas na esfera adminis-trativa, a LAC, em seu capítulo IV, estabelece as normas para o processo e o julgamento administrativo relacionado à responsabilização da pessoa jurídica, por atos lesivos praticados contra as administrações públicas nacional ou estrangeira.

Inicia a LAC, no art. 8º, afirmando que compete à autoridade máxima de órgão ou entidade, de ofício ou mediante provocação, a instauração e o julgamento do processo administrativo para apuração da responsa-bilidade. Tal competência, contudo, poderá ser delegada, sendo vedada a subdelegação. Ademais, a LAC determina que, na esfera do Poder Executivo federal, a Controladoria-Geral da União terá competência concorrente com as demais autoridades administrativas responsáveis, podendo instaurar os processos administrativos ou até mesmo avocar aqueles instaurados para verificar a sua regularidade.

Art. 9º Competem à Controladoria-Geral da União – CGU a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos pre-vistos nesta Lei, praticados contra a administração pública estrangeira, observado o disposto no Artigo 4 da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, pro-mulgada pelo Decreto no 3.678, de 30 de novembro de 2000.

Nada obstante as regras anteriores, nota-se que, no que se refere a atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira, a competência para apurar a responsabilização administrativa da pessoa jurídica é da CGU, observado o disposto no art. 4º da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, que trata da aplicação das normas

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convencionais no espaço. Acredita-se que a regra prevista no art. 9º é absoluta, pelo que competirá à CGU instaurar e processar o processo administrativo para verificar a prática de atos lesivos à administração pública estrangeira, ainda que, em conjunto com a pessoa jurídica infra-tora, estejam envolvidos funcionários públicos estaduais e/ou municipais.

Art. 10. O processo administrativo para apuração da respon-sabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por 2 (dois) ou mais servidores estáveis.

§ 1º O ente público, por meio do seu órgão de representação judicial, ou equivalente, a pedido da comissão a que se refere o caput, poderá requerer as medidas judiciais necessárias para a investigação e o processamento das infrações, inclu-sive de busca e apreensão.

§ 2º A comissão poderá, cautelarmente, propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação.

§ 3º A comissão deverá concluir o processo no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da data da publicação do ato que a instituir e, ao final, apresentar relatórios sobre os fatos apurados e eventual responsabilidade da pessoa jurídica, sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas.

§ 4º O prazo previsto no § 3o poderá ser prorrogado, mediante ato fundamentado da autoridade instauradora.

Art. 11. No processo administrativo para apuração de res-ponsabilidade, será concedido à pessoa jurídica prazo de 30 (trinta) dias para defesa, contados a partir da intimação.

Art. 12. O processo administrativo, com o relatório da co-missão, será remetido à autoridade instauradora, na forma do art. 10, para julgamento.

Os artigos 10 a 12 da LAC trazem normas atinentes ao rito do processo administrativo de apuração da responsabilidade das pessoas

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Revista da aJUFeRGs / 0970

jurídicas. Destacam-se, entre tais normas, aquelas que permitem que o ente público requeira medidas judiciais submetidas à reserva de juris-dição (art. 5º, XI e XII, da CF), como busca e apreensão, e também as que possibilitam a suspensão cautelar dos efeitos do ato lesivo ou do processo objeto da investigação.

Art. 13. A instauração de processo administrativo específico de reparação integral do dano não prejudica a aplicação imediata das sanções estabelecidas nesta Lei.

Parágrafo único. Concluído o processo e não havendo pa-gamento, o crédito apurado será inscrito em dívida ativa da fazenda pública.

O art. 13 da LAC estabelece que a instauração de processo adminis-trativo específico para reparação integral do dano causado pela pessoa jurídica não prejudica a aplicação imediata das sanções de multa e de publicação da decisão extraordinária, sendo certo que, caso o respon-sável não realize o pagamento ao final do procedimento, o crédito será inscrito em dívida ativa.

Aqui, cabe fazer uma indagação: é possível que referido crédito – reparação integral do dano causado pela pessoa jurídica – possa ser inscrito em dívida ativa e, consequentemente, aparelhar futura execução fiscal? Trata-se de questão interessante, mas que transborda os limites deste trabalho.

Nada obstante, em breves comentários, verifica-se que tal crédito – obrigação de reparar o dano – possui natureza nitidamente indenizatória, tendo em vista que, no caso, a Fazenda Pública sofreu um dano e pretende vê-lo ressarcido por meio do pagamento de um determinado valor. Nessa perspectiva, considerando-se que o art. 39, § 2º, da Lei 4.320/1964, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, traz, no rol de créditos não tributários, a indenização, tem-se que uma leitura fria e isolada desses dispositivos legais enseja a conclusão de que é possível, sim, a inscrição em dívida ativa da obrigação de reparar o dano.

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Entretanto, entende-se que, à luz dos postulados da segurança jurídi-ca (art. 5º, XXXVI, da CF) e da isonomia (art. 5º, caput e I, também da CF), não se pode conferir tal prerrogativa à Fazenda Pública, pelo que, em situações como essas, o mais adequado seria o ajuizamento de ação judicial de conhecimento para cobrança do referido crédito. Com efeito, possibilitar que o Poder Público, nesses casos, possa confortavelmente constituir o seu crédito na esfera administrativa configura odioso privi-légio. Isso porque, se o Estado causa um dano ao particular, este deverá constituir o seu crédito judicialmente, por meio de um título executivo judicial, enquanto a Fazenda Pública, no mesmo caso, poderia fazê-lo administrativamente, e desde já ajuizar feito executivo, fato esse que, defende-se, viola a segurança jurídica e a isonomia.

Portanto, trata-se de questão espinhosa, que deverá ser tratada pela doutrina e pela jurisprudência nos próximos anos.

Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsi-derada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

Prosseguindo, observa-se que o dispositivo em tela trata da des-consideração da personalidade jurídica, nos casos de abuso de direito, com intuito de facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos, ou de confusão patrimonial, desde que observados o contraditório e a ampla defesa.

O instituto é bastante conhecido no direito brasileiro e possui previsões em diversos diplomas normativos. Todavia, novamente um artigo da LAC é objeto de questionamento, no seguinte sentido: poderia uma autoridade administrativa (o art. 14 está dentro do capítulo IV, que trata do processo administrativo de responsabilização) desconsiderar a personalidade jurídica sem ordem judicial ou tal medida está submetida à reserva de jurisdição?

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Mais uma vez, compreende-se que o tema merece maiores digres-sões, mas se entende, com o intuito de firmar posicionamento, que a desconsideração da personalidade jurídica, de regra, somente pode ser determinada por autoridade judicial, salvo quando a lei expressamente previr a possibilidade de a autoridade administrativa fazê-lo. Veja-se, a respeito, que: (a) no Código Civil (art. 50) e no Código de Defesa do Consumidor (art. 28, caput), o legislador, de forma expressa, previu que somente o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica; (b) na Lei Antitruste (Lei 12.529/2011, art. 34) e na Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998, art. 4º), o legislador, assim como na LAC, foi silente, pelo que se entende que somente a autoridade judicial poderá deter-minar a desconsideração; (c) por fim, no Código Tributário Nacional (art. 116, § único), tratando de instituto similar, o legislador expres-samente previu que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos e negócios jurídicos que pretendam dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo.

Destarte, parece claro que apenas quando o legislador expressamente autorizar é que será possível que o administrador determine, sem ordem judicial, a desconsideração da personalidade jurídica, pelo que, no caso da LAC, somente o juiz poderia fazê-lo.

5. Do acordo de leniência

CAPÍTULO V

DO ACORDO DE LENIÊNCIA

Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o pro-cesso administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:

I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e

II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

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§ 1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:

I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;

II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;

III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

§ 2º A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.

§ 3º O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.

§ 4º O acordo de leniência estipulará as condições neces-sárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo.

§ 5º Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas.

§ 6º A proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.

§ 7º Não importará em reconhecimento da prática do ato ilí-cito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.

§ 8º Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar novo acordo

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pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento.

§ 9º A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei.

§ 10. A Controladoria-Geral da União – CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesi-vos praticados contra a administração pública estrangeira.

Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.

Depois de tratar do processo administrativo, o capítulo V da LAC versa sobre instituto que também não é novo no direito brasileiro, mas que vem sendo bastante aplicado, especialmente na seara criminal: o acordo de leniência, também chamado de colaboração/delação premiada. Na verdade, referido acordo constitui-se em benefício concedido à pessoa jurídica infratora por parte do legislador, sempre que ela decida colaborar efetivamente com a investigação e o processo administrativo. Apesar de sofrer críticas por parte de setores da doutrina especializada – que veem no instituto um pernicioso concerto entre o Estado e o particular infrator –, fato é que o acordo de leniência, quando bem definido e estruturado, permite que se tenha acesso a dados e circunstâncias, pertinentes ao fato investigado, que dificilmente seriam alcançados pelas autoridades competentes, caso utilizassem apenas as vias ordinárias. Com efeito, a colaboração entre o infrator e o Estado é largamente utilizada em outros sistemas jurídicos, como o norte-americano, produzindo resulta-dos bastante significativos, de modo que deve ser saudada a iniciativa do legislador em inserir o instituto na sistemática de repressão da Lei Anticorrupção.

Observa-se, assim, que o caput do art. 16 e seus dois incisos trazem os pressupostos para a celebração do acordo de leniência, enquanto o § 1º apresenta os requisitos que devem ser cumpridos pela pessoa jurídica.

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Caso o acordo seja efetivo, a infratora ficará isenta das sanções de pu-blicação da decisão extraordinária e suspensão ou interdição parcial de suas atividades (nos casos em que há processo judicial), assim como o valor da multa aplicável será reduzido em até 2/3 (dois terços). Porém, a celebração do acordo não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparação do dano.

Nota-se, ademais, que, ainda que a proposta de acordo seja rejeitada, tal circunstância não importará reconhecimento da prática do ilícito por parte da pessoa jurídica. Além disso, em caso de descumprimento do acordo, a infratora ficará impedida de celebrar outro, no prazo de 3 (três) anos a partir do conhecimento da administração do descumprimento.

Por fim, digno de nota é o art. 17 da LAC, que estende a possibili-dade de celebração de acordo de leniência no que concerne às sanções administrativas previstas no art. 86 e seguintes da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos). Trata-se de importante previsão, tendo em vista que é de conhecimento geral que a atividade licitatória constitui campo fértil para a prática de atos lesivos à admi-nistração pública.

6. Da responsabilização judicial

CAPÍTULO VI

DA RESPONSABILIZAÇÃO JUDICIAL

Art. 18. Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsa-bilização na esfera judicial.

O penúltimo capítulo da Lei Anticorrupção trata da responsabilização judicial da pessoa jurídica infratora. Trata-se, logo, de regras destinadas ao eventual processo judicial que poderá surgir em decorrência da prática dos atos lesivos previstos na LAC.

Nesse diapasão, inicia a LAC, no art. 18, afirmando que a possibili-dade de responsabilização judicial da pessoa jurídica infratora não resta afastada pela configuração de sua responsabilidade na esfera adminis-trativa. Na verdade, a LAC apenas reafirma um entendimento pacificado

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no ordenamento jurídico pátrio, qual seja a possibilidade de que alguém, ou alguma pessoa jurídica, seja responsabilizada, por determinados atos que praticou, em três esferas diferentes: administrativa, cível e penal.

A exemplo da Lei 8.429/1992, que trata da responsabilização por atos de improbidade administrativa, a LAC, no presente capítulo, esta-belece, na esfera cível, as sanções aplicáveis à pessoa jurídica infratora. Nada obstante, ela também poderá ser punida na esfera administrativa, conforme capítulos anteriores, e nada impede que os seus diretores e/ou administradores também sejam punidos na esfera penal, tendo em vista que muitas das condutas previstas nesta Lei também são tipificadas como crimes no Código Penal e em leis penais extravagantes. É certo que as três esferas são independentes e autônomas entre si, o que possibilita a responsabilização cumulativa ou isolada.

Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:

I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da in-fração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;

II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;

III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;

IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

§ 1º A dissolução compulsória da pessoa jurídica será de-terminada quando comprovado:

I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habi-tual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou

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II - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.

§ 3º As sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa.

§ 4º O Ministério Público ou a Advocacia Pública ou órgão de representação judicial, ou equivalente, do ente público poderá requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano causado, conforme previsto no art. 7º, ressalvado o direito do terceiro de boa-fé.

Dando prosseguimento, percebe-se que o art. 19, no seu caput, estabelece de quem é a legitimidade para figurar no polo ativo da ação judicial movida em face da pessoa jurídica infratora, para fins de res-ponsabilização pela prática dos atos previstos no art. 5º da LAC. Isso porque os entes federativos – União, estados/DF e municípios –, por meio da advocacia pública, e o Ministério Público, seja da União, seja dos estados/DF, são quem detêm tal legitimidade.

Aqui, uma particularidade: mesmo nos casos em que os atos lesivos tenham sido praticados em detrimento de autarquias e/ou fundações pú-blicas, as quais são pessoas jurídicas de direito público, a ação deverá ser ajuizada pelo ente federativo ao qual tais entidades estão vinculadas ou pelo Ministério Público competente. Exemplificando, se o Banco Central do Brasil (autarquia federal) for vítima de algum ato lesivo previsto na LAC, a legitimidade ativa caberá somente à União e ao Ministério Públi-co Federal. Sucede que, no caso, apesar de as autarquias e as fundações públicas possuírem capacidade de ser parte – e, portanto, poderem perse-guir seus direitos em processo judicial –, o legislador optou por conferir legitimidade somente às entidades federativas propriamente ditas.

Demais disso, a LAC foi omissa no que tange às pessoas jurídicas de direito público externo, como os Estados estrangeiros e as organizações internacionais. Caso essas entidades sejam as vítimas, de quem será a legitimidade ativa para ajuizar a ação correspondente? Defende-se, para tal circunstância, que a pertinência subjetiva ativa da ação recairá sobre a União, por meio da Advocacia-Geral da União, e sobre o Ministério Público da União, ainda que estejam envolvidos servidores estaduais/

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distritais ou municipais. Isso porque, se na esfera administrativa a com-petência para apuração da responsabilidade é da Controladoria-Geral da União (art. 9º), que é órgão federal, a legitimidade será da União e do MPU, por simetria.

Depois da legitimidade, a LAC, nos incisos do art. 19, traz as sanções aplicáveis à pessoa jurídica infratora na esfera judicial, que podem ser (a) perdimento dos bens, direitos ou valores, (b) suspensão ou interdi-ção parcial das atividades, (c) dissolução compulsória e (d) proibição de receber determinados benefícios de entidades públicas. A dissolução compulsória, porém, em virtude da gravidade da sanção, somente poderá ser aplicada em casos específicos, como nas situações em que a pessoa jurídica foi criada para a prática de ilícitos, de forma habitual, ou para ocultar e/ou dissimular interesses obscuros ou a identidade de infratores. Ressalta-se, também, que tais sanções podem ser aplicadas cumulativa ou isoladamente e que o legitimado ativo pode requerer ao Judiciário a indisponibilidade de bens, direitos ou valores da pessoa jurídica, a fim de pagar a multa ou reparar o dano causado pelo ato lesivo.

Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 6º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa.

Art. 21. Nas ações de responsabilização judicial, será ado-tado o rito previsto na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.

Parágrafo único. A condenação torna certa a obrigação de reparar, integralmente, o dano causado pelo ilícito, cujo valor será apurado em posterior liquidação, se não constar expressamente da sentença.

Depois, o art. 20 traz uma interessante previsão, que se traduz na possibilidade de, nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderem ser também aplicadas as sanções previstas na esfera administrativa, nos casos em que houver omissão da autoridade competente, e sem prejuízo das sanções judiciais. Em outras palavras, se a autoridade administra-

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tiva não promover a responsabilização da pessoa jurídica infratora, o Ministério Público, ao ajuizar a ação correspondente, poderá pleitear a aplicação das sanções previstas nos artigos 6º e 19, de forma cumulativa ou isolada. É uma espécie de “ação judicial subsidiária da administra-tiva”, ressaltando-se, sem embargo, que essa possibilidade somente foi franqueada, pela LAC, ao órgão ministerial, vedando-a aos demais legitimados – a saber, aos entes federativos.

Finalizando o capítulo, o caput do art. 21 determina que a ação judi-cial seguirá o rito previsto na Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), o que se mostra deveras relevante, especialmente no que concerne à aplicação, em tese, de institutos próprios daquela norma, como a possi-bilidade de firmar compromisso de ajustamento de conduta (art. 5º, § 6º). Numa primeira análise, parece não haver óbice para que a Lei de Ação Civil Pública seja aplicada integralmente ao rito da LAC, no que não lhe for contrária. Entretanto, não há dúvidas de que tais questões logo serão objeto de debate na jurisprudência, a qual terá papel importante na pacificação desses temas.

Finalmente, o § único do art. 21 estabelece um efeito automático da condenação na ação judicial, que é a obrigação de reparar o dano causado pelo ilícito. Trata-se de obrigação de pagar, cujo valor poderá constar do dispositivo da sentença condenatória ou ser apurado em posterior liquidação.

7. Disposições finais

CAPÍTULO VII

DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 22. Fica criado no âmbito do Poder Executivo federal o Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, que reuni-rá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base nesta Lei.

§ 1º Os órgãos e entidades referidos no caput deverão infor-mar e manter atualizados, no CNEP, os dados relativos às sanções por eles aplicadas.

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§ 2º O CNEP conterá, entre outras, as seguintes informações acerca das sanções aplicadas:

I - razão social e número de inscrição da pessoa jurídica ou entidade no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ;

II - tipo de sanção; e

III - data de aplicação e data final da vigência do efeito limitador ou impeditivo da sanção, quando for o caso.

§ 3º As autoridades competentes, para celebrarem acordos de leniência previstos nesta Lei, também deverão prestar e manter atualizadas no CNEP, após a efetivação do respec-tivo acordo, as informações acerca do acordo de leniência celebrado, salvo se esse procedimento vier a causar prejuízo às investigações e ao processo administrativo.

§ 4º Caso a pessoa jurídica não cumpra os termos do acordo de leniência, além das informações previstas no § 3o, deverá ser incluída no CNEP referência ao respectivo descumpri-mento.

§ 5º Os registros das sanções e acordos de leniência serão ex-cluídos depois de decorrido o prazo previamente estabelecido no ato sancionador ou do cumprimento integral do acordo de leniência e da reparação do eventual dano causado, mediante solicitação do órgão ou entidade sancionadora.

Inicialmente, o art. 22 trata da criação, no âmbito do Poder Executivo federal, do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, o qual tem por função reunir e publicizar as sanções aplicadas às pessoas jurídicas infratoras por parte dos três Poderes, em todas as esferas federativas. O órgão responsável pela punição deverá informar e manter atualizados os dados relativos à aplicação das sanções, especialmente no que se refere aos termos a quo e ad quem das punições. Ademais, o CNEP também conterá informações relativas ao acordo de leniência eventualmente celebrado com a pessoa jurídica infratora, salvo se houver necessidade de conferir sigilo a tais dados, a fim de não prejudicar as investigações e o processo administrativo.

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Art. 23. Os órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Le-gislativo e Judiciário de todas as esferas de governo deverão informar e manter atualizados, para fins de publicidade, no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, de caráter público, instituído no âmbito do Poder Executivo federal, os dados relativos às sanções por eles aplicadas, nos termos do disposto nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.

Art. 24. A multa e o perdimento de bens, direitos ou valores aplicados com fundamento nesta Lei serão destinados pre-ferencialmente aos órgãos ou entidades públicas lesadas.

Art. 25. Prescrevem em 5 (cinco) anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

Parágrafo único. Na esfera administrativa ou judicial, a prescrição será interrompida com a instauração de processo que tenha por objeto a apuração da infração.

Já o art. 25 traz regras concernentes ao prazo prescricional, relativo à pretensão dos entes federativos e do Ministério Público, para aplicação das sanções previstas na LAC, em face da pessoa jurídica infratora.

Com efeito, a partir da ciência da infração, por parte dessas autori-dades, ou do dia em que ela cessar, nos casos de permanência ou conti-nuidade, começa a correr o prazo de 5 (cinco) anos para o ajuizamento de ação visando à aplicação das sanções aqui examinadas. Tal prazo, contudo, interrompe-se com a instauração de processo, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial, que tenha por objeto a apuração da infração.

Ressalta-se que, ao contrário de outros diplomas, como a Lei de Im-probidade Administrativa (art. 23, II, c/c art. 142, § 2º, da Lei 8.112/1990), no âmbito da LAC, aplica-se o prazo prescricional de 5 (cinco) anos, ainda que o ato lesivo também seja capitulado como crime na lei penal. V.g., ainda que o ato lesivo praticado seja a corrupção ativa (art. 5º, I), conduta considerada crime pelo Código Penal, o prazo para aplicação das sanções será de 5 (cinco) anos.

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Art. 26. A pessoa jurídica será representada no processo administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social.

§ 1º As sociedades sem personalidade jurídica serão repre-sentadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens.

§ 2º A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.

Art. 27. A autoridade competente que, tendo conhecimento das infrações previstas nesta Lei, não adotar providências para a apuração dos fatos será responsabilizada penal, civil e admi-nistrativamente nos termos da legislação específica aplicável.

Art. 28. Esta Lei aplica-se aos atos lesivos praticados por pessoa jurídica brasileira contra a administração pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior.

Art. 29. O disposto nesta Lei não exclui as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica.

Logo depois, percebe-se que o art. 28 estabelece uma hipótese de extraterritorialidade ao determinar que no caso de ato lesivo praticado por pessoa jurídica brasileira contra Estados estrangeiros ou organizações internacionais, ainda que cometidos no exterior, aplica-se o disposto na LAC. Em outras palavras, o legislador, ao determinar a aplicação da Lei em tela a condutas praticadas no exterior, constitui uma exceção ao princípio da territorialidade, segundo o qual será aplicada, a determi-nado fato jurídico, a lei do país em que ele ocorreu. Defende-se que a aplicação da LAC, nessa hipótese, independe da instauração, ou não, no país em que ocorrido o ato lesivo, de procedimento destinado a apurar a responsabilização da pessoa jurídica infratora, na medida em que se trata de norma que expressamente determina a extraterritorialidade.

Por sua vez, o art. 29 estatui que as competências do Conselho Ad-ministrativo de Defesa Econômica – CADE, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fatos que constituam

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infração à ordem econômica (Lei 12.259/2011) não são excluídas pelo disposto na LAC. Isso significa, portanto, que a pessoa jurídica infratora poderá ter sua conduta sancionada, de forma cumulativa, tanto pelas au-toridades que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência quanto por aquelas previstas na LAC, sem que isso importe dupla punição.

Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:

I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992; e

II - atos ilícitos alcançados pela Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC instituído pela Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011.

Art. 31. Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias após a data de sua publicação.

Finalmente, é preciso tecer alguns comentários sobre o art. 30 da LAC, o qual certamente será objeto de embates e discussões na doutrina e na jurisprudência.

Verifica-se, na redação do dispositivo, que o legislador determinou que a aplicação da LAC não afeta nem prejudica a aplicação de penali-dades por atos de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992) e também por atos lesivos praticados na esfera das licitações e das contratações com a administração pública (Lei 8.666/1993). O que a LAC está di-zendo, com isso, é que é possível, em tese, a cumulação de penalidades decorrentes dos três diplomas normativos. Destarte, uma mesma pessoa jurídica poderia ser sancionada triplamente: (1) por atos previstos na Lei Anticorrupção, (2) por atos de improbidade administrativa e (3) por atos lesivos no âmbito das licitações e dos contratos (3).

Mais uma vez, esclarece-se que um exame minucioso e pormeno-rizado do tema foge ao escopo deste trabalho, levando-se em conta que um dos seus objetivos é abordar a LAC de maneira geral, ressaltando-

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-se aqueles aspectos que dizem respeito ao Direito Administrativo. Sem embargo, e no intuito de tomar posição, entende-se que é possível, sim, a aplicação cumulativa das sanções previstas nos três diplomas normativos, desde que tal circunstância não implique “bis in idem”.

Veja-se, por exemplo, o ato lesivo previsto no art. 5º, I, da LAC (corrupção ativa). É certo que tal conduta é sancionada, a um só tempo, pela LAC e pelos artigos 9º e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, tendo em vista que constitui ato que importa enriquecimento ilícito do agente público (art. 9º da LIA) e também atenta contra os princípios da administração pública (art. 11 da mesma Lei). Não é demais lembrar que, nesses casos, a LIA permite a responsabilização de pessoas jurídicas de direito privado, nos termos do seu art. 3º.

Nessa perspectiva, parece não haver dúvidas de que, ainda que as mencionadas Leis protejam bens jurídicos diversos, haverá, a princí-pio, bis in idem, tendo em vista, inclusive, que algumas das sanções aplicáveis são idênticas (p. ex., o perdimento de bens). E, ainda que as condutas que lesam a administração pública pátria devam ser gravemente sancionadas – considerando, sobretudo, os sistemáticos esquemas de locupletação e aferição de vantagens indevidas que tomaram de assalto o Estado brasileiro nos últimos anos –, é certo que a punibilidade dos agentes infratores deve sofrer limitações, como sói acontecer no Estado Democrático de Direito. Assim, trata-se de mais uma questão que, no seu devido tempo, deverá ser resolvida pela jurisprudência, a fim de trazer segurança jurídica e evitar responsabilizações desmedidas.

ConclusãoA edição da Lei Anticorrupção, por meio dos representantes eleitos

do povo brasileiro, deixa claro que a sociedade considera a corrupção, a burocracia e a má qualidade de gestão como fatores impeditivos do progresso e da justiça social. Assim, são louváveis os esforços desenvol-vidos para melhorar a imagem do país e criar uma cultura de combate à corrupção, entre os quais a publicação da LAC está inserida.

Destarte, após uma análise geral das normas previstas na referida norma, é possível concluir que, apesar de pequenas incongruências de texto e situações esparsas de juridicidade questionáveis, o resultado

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alcançado foi satisfatório. De acordo com Capanema7, há dois avanços bastante significativos da LAC, quais sejam a atribuição de responsabi-lidade objetiva às pessoas jurídicas infratoras e a inclusão do suborno no rol de atos lesivos imputáveis a tais pessoas.

Além do mais, é certo que a LAC ainda passa por período de matu-ração, o que demanda ajustes de interpretação, especialmente por parte do Poder Judiciário. Trata-se de momento especial de reflexão e crítica sobre o inovador arcabouço jurídico criado para o combate à corrupção.

Para Bittencourt8, os principais problemas presentes da LAC são os seguintes: (a) o processo administrativo de responsabilização da pessoa jurídica será julgado pela autoridade máxima do órgão que o instaurou, posto normalmente ocupado por políticos; (b) a decisão de tal autoridade não está vinculada ao parecer dos servidores da comissão julgadora; (c) o procedimento poderá ser prorrogado indefinidamente; (d) a inexistência de recurso cabível contra a decisão tomada pela autoridade administrati-va; (e) a demasiada concentração de poder pela autoridade administrativa que decidirá o processo; (f) a falta de critérios claros para a fixação das penas. Da mesma forma, Petreluzzi e Rizek Junior9 entendem que o principal problema da LAC reside na imprecisão das consequências dos acordos de leniência, considerando as várias possibilidades sancionatórias pela prática de um único fato. Isso porque somente há viabilidade na confecção de acordos de leniência se a sua efetivação significar prêmio efetivo às pessoas jurídicas colaboradoras, o que não é possível no mo-mento, ante as incongruências do sistema.

Acrescentam-se, a tais situações, alguns pontos polêmicos levantados ao longo deste artigo, como a possibilidade de cumulação de sanções entre a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção e a questão acerca da possibilidade, ou não, de desconsideração da personalidade jurídica por autoridades administrativas. Fica claro que caberá ao Judi-ciário delinear os contornos de aplicação de tais normas, observando, de um lado, a premente necessidade de moralizar as relações entre pessoas jurídicas de direito privado e agentes públicos e, de outro, o respeito às garantias constitucionalmente positivadas.

7 Op. cit., p. 27-28.8 Op. cit., p. 24-26.9 Op. cit., p. 106-107.

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De mais a mais, os mesmos Petreluzzi e Rizek Junior, partilhando de opinião semelhante à de Fernandes e Costa10, alertam para a necessi-dade de criação de um sistema jurídico de combate à corrupção, o qual englobaria normas de diversas esferas do Direito.

Atualmente, é impossível dizer que há tal sistema no Brasil, devido à existência de superposições e até mesmo de contradições entre os mais diversos diplomas normativos. Com efeito, o ideal seria a edição de um Código de Direito Administrativo, o qual buscasse consolidar, em um só diploma, o sistema de normas que compõem tal esfera da dogmática jurídica. Enquanto isso não for feito, haverá textos falhos, os quais fa-vorecem a insegurança jurídica e a ação de pseudojuristas.

De todo modo, na esteira do que defende Nascimento11, conclui-se que o combate à corrupção, no Brasil, ganhou com a edição da Lei An-ticorrupção. É certo que a norma – ainda que suscite muitas discussões e construções ao longo dos anos – imporá uma nova agenda jurídica e política para as pessoas jurídicas, independentemente do seu tamanho ou de seu modo de organização. Não há dúvidas que haverá um esforço coletivo dos atores envolvidos na temática para que, com a edição da LAC, a corrupção tentacular, que tanto corrói as instituições brasileiras, seja paulatinamente enfraquecida.

Referências bibliográficasBITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção – Lei 12.846/2013. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 176p.

DAL POZZO, Antonio Araldo Ferraz; DAL POZZO, Augusto Neves; DAL POZZO, Beatriz Neves; FACCHINATTO, Renan Marcondes. Lei Anticorrupção – Apontamentos sobre a Lei nº 12.846/2013. Belo Hori-zonte: Fórum, 2014. 120p.

NASCIMENTO, Melillo Dinis do (org.). Lei Anticorrupção Empresarial – Aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. 192p.

PETRELLUZZI, Marco Vinício; RIZEK JUNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção – Origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014. 122p.

10 Op. cit., p. 57-58.11 Op. cit., p. 115-116.

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lIMItES SOCIOlóGICOS AO USO IntEnSIVO DO BACEn-JUD

MARCEL CITRO DE AZEVEDOJuiz Federal substituto do TRF/4ª região, professor da Esmafe-RS e

mestrando em Direito na UFRGS.

RESUMO: Este artigo apresenta um contraste entre os modelos ca-pitalista e comunista da propriedade, fazendo o contraponto entre um Estado omisso, que nada realiza em prol de seus cidadãos, e o Estado máximo, que, por conta de sua intervenção contínua e estabanada, acaba agredindo-os em seus direitos mais elementares. A partir do entrechoque entre esses dois modelos, o artigo enfatiza a necessidade da moderação no uso da ferramenta Bacen-Jud, utilizada para o bloqueio de contas--correntes como modo de satisfazer o crédito fazendário, evitando-se tanto a postura de intervenção mínima adotada pelo Estado Liberal Clássico como a atitude de menoscabo ao mínimo existencial levada ao extremo pelo Estado totalitário.

PALAVRAS-CHAVE: Sociologia do Direito. Propriedade. Estado Mí-nimo. Lide Sociológica. Bacen-Jud.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Desigualdade. 2 O Estado ausente da ques-tão social: capitalismo sem peias. 3 Totalitarismo comunista: terror de Estado. 4 Em busca de um meio termo estatal: socialismo utópico e social-democracia. 5 Estado Fiscal contemporâneo como pressuposto de Estado Social de Direito. Conclusão. Referências Bibliográficas.

IntroduçãoUma das definições mais exatas da sociologia é aquela que a determi-

na como um conjunto de conceitos, teorias e métodos aptos a permitir que se estabeleça “uma postura intelectual ordenada em face dos fenômenos de equilíbrio social (estrutura), de desequilíbrio social (mudanças) e de reequilíbrio social (reestruturação)”1.

No ambiente brasileiro deste início de século, esses três fenômenos vêm ocorrendo cada vez mais simultaneamente: queremos tudo ao mesmo tempo agora. Nesse contexto de “um querer” extremado e incondicional,

1 CASTRO, Celso Antônio Pinheiro. Sociologia do Direito. 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 20.

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a sucessão cadenciada de equilíbrio e de desequilíbrio sociais encontra um reequilíbrio muito mais precário em nossa realidade multifacetada e extremamente mutável. Como se estivesse em queda livre, o mundo acelerou-se.

Tal aceleração impacta diretamente o Direito, de forma que qual-quer estudo que almeje investigar seriamente uma questão jurídica deve preocupar-se também com suas raízes, firmemente presas ao tecido social. Por vezes, a lide jurídica é pretensamente resolvida sem que se solucione a lide sociológica a ela subjacente.

O aporte sociológico e o estudo de modelos alternativos de vida inserem-se no âmbito mais amplo das humanidades, projetando um modelo de operador de Direito “mais crítico por mais culto”, como já teve a oportunidade de expressar o jurista espanhol José Calvo Gonzalez, autor do livro Direito Curvo2.

De fato, no campo sociológico-jurídico, a linha reta não é sempre a distância mais curta entre dois pontos. Hoje, o Direito não é mais retilí-neo como foi outrora, e sim curvo. O Direito empedernido, quadrático e repleto de ângulos retos, que formam arestas, tende a se separar da vida e, por vezes, a dificulta; até mesmo a ignora.

Em uma abordagem prática, penso que o aplicador do Direito afasta--se do que é humano – da vida em si – quando, por exemplo, faz uso não criterioso do Bacen-Jud, privando sem causa jurídica o réu de uma ação de cobrança – qualquer espécie de cobrança – dos meios para prover a sua subsistência.

Desde o advento da Lei Complementar 118/2005, a penhora eletrôni-ca de valores em conta-corrente – também conhecida entre os operadores de Direito como ferramenta “Bacen-Jud”, pois foi desenvolvida a partir de um convênio celebrado entre vários órgãos do Poder Judiciário e o Banco Central – passou a ser considerada como meio preferencial para a ordem de indisponibilidade de ativos. Assim, tão logo citado o executado e não apresentados bens penhoráveis, o credor postula judicialmente o bloqueio de valores eventualmente existentes em contas-correntes de qualquer agência bancária do país.

2 GONZÁLEZ, José Calvo. Direito Curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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O impacto social dessa medida é extremo. Com um simples “enter” no teclado de um computador, recursos financeiros indispensáveis para a manutenção do mínimo existencial tornam-se indisponíveis. quando o bloqueio é realizado por provocação de Conselhos de Fiscalização Pro-fissional – também habilitados a fazer uso da sistemática –, atinge-se com mais intensidade valores de pequena monta titulados por pessoas humildes3 ou mesmo hipossuficientes, desprovidas de capacidade contributiva e que sequer têm conhecimento de que devem dar a baixa no seu registro junto a autarquia profissional quando da aposentadoria ou da mudança de atividade.

A utilização não criteriosa da ferramenta “Bacen-Jud” redunda em mais desigualdade, tema recorrente no livro O Futuro Chegou, de Do-menico de Masi4. Particularmente interessante nessa obra é o contraste entre as abordagens capitalista e comunista da propriedade5, a visão de um estado omisso, que nada realiza em prol de seus cidadãos, permitindo a exploração da maioria pela minoria (Estado liberal clássico durante a Revolução Industrial), em contraponto a um Estado reduzido a mero mecanismo de perpetração do terror (Estado totalitário).

Tenho, assim, que os modelos de vida e os parâmetros sociais que serão apresentados nos tópicos a seguir oferecem balizas sociológicas bastante importantes para determinar o alcance do uso da ferramenta Bacen-Jud, procurando-se um meio-termo em que se evite tanto a omissão do aparato estatal – conforme se via no capitalismo sem peias da Revolução Industrial – quanto o excesso de intervenção, que, numa perspectiva extremada, pode redundar até mesmo em terror de Estado.

Nesse contexto, abordo em primeiro lugar a problemática da desi-gualdade. Foi justamente a tentativa multisecular de superação de um modelo anti-isonômico e excludente o motor para que fossem idealizados vários paradigmas alternativos, que ora passo a sumarizar.

3 Pode-se citar, por exemplo, técnicos em enfermagem, em nutrição e em contabilidade, operadores de raio X, representantes comerciais de ganhos modestos, etc.4 MASI, Domenico. O futuro chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.5 Em última análise, estabelecer limites no uso da penhora eletrônica via Bacen-Jud é procurar uma acomodação entre as tensões inerentes à manutenção do direito de pro-priedade e a necessidade de financiamento de nosso Estado Social e Democrático de Direito, com seus custos sempre crescentes.

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1 Desigualdade“Todos os homens nascem iguais, mas esta é a última vez que o

são”. Esse inspirado aforismo de Abraham Lincoln bem sintetiza a busca permanente por alguma espécie de igualdade, busca sempre inconclusa, incompleta.

Um estudo contundente sobre a desigualdade é realizado na obra O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, um dos principais lan-çamentos de 2014. Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a marcha da desigualdade ganhou manchetes em todo o mundo, gerou debates nas redes sociais e amealhou elogios de diversos ganhadores do Prêmio Nobel.

O livro apoia-se em dados históricos de mais de vinte países para concluir que o capitalismo tende a gerar um círculo vicioso de desigual-dade, já que, no médio e no longo prazos, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que acaba provocando uma concentração crescente da riqueza. Adverte o autor que uma situa-ção extremada de desigualdade pode levar a uma crise institucional que venha a colocar em risco os valores democráticos, como já aconteceu nos anos 20. Salienta, ainda, que uma acertada e corajosa intervenção política foi capaz de reverter tal quadro no passado e que poderá voltar a fazê-lo se houver coragem suficiente para tanto.

De fato, é preciso coragem e discernimento para tentar colocar um freio no apetite dos grandes capitalistas financeiros supranacionais que movem as engrenagens do mundo econômico moderno. Ainda repercute a confissão de Warren Buffet, segunda maior fortuna dos Estados Unidos: “Existe uma Guerra de classes, é certo, mas é a minha classe, a classe rica, que está fazendo esta guerra, e nós estamos ganhando”.6

Se há uma guerra de classes em andamento, como propalava Marx e conforme afirma o Sr. Buffet, pode-se dizer que, no Brasil, o topo dourado da pirâmide social já ganhou. Não a tão festejada Classe A, pois ela reúne assalariados, profissionais liberais e pequenos empresários cuja

6 Conforme noticiado no periódico norte-americano New York Times, edição de 15.08.2011 disponível em <http://www.nytimes.com/2011/08/16/business/buffett-calls--on-congress-to-raise-taxes-on-the-rich.html>. Acesso em: 29.01.2015.

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renda média por pessoa do grupo familiar é de cerca de sete mil reais7, e sim o ápice, o cume, o pináculo: os beneficiários do enriquecimento espetacular, que se alçam à condição de donos de ativos na casa dos sete ou oito dígitos. É essa casta que venceu a guerra e que agora perpetua o seu triunfo por meio de uma complexa e intrincada estrutura de poder.

Nesse ponto, é preciso esclarecer que o sujeito que obteve sua riqueza por mérito próprio ou o bem nascido que tão só administra seu legado sequer lutaram essa guerra. Não causaram dano, não vitimaram ninguém. O rico é um sujeito a ser prestigiado no nosso modo de produção capita-lista, pois seu poder de investimento, se bem direcionado, cria empregos, enseja oportunidades e faz gerar renda no seu meio circundante.

Notícia divulgada recentemente em vários jornais brasileiros, a partir de um estudo encomendado pela Tax Justice Network8, aponta que os brasileiros detêm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais. De acordo com relatório daquela entidade, “os super-ricos” brasileiros titulam o equivalente a um terço do PIB em contas off-shore, ou seja, livres de tributação e de supervisão pelo Banco Central.

Parte significativa desses recursos advém de monumentais transfe-rências irregulares de recursos públicos para o setor privado, à semelhança daquelas investigadas na recente operação “Lava-Jato”, de conhecimen-to geral. Seja advinda da remessa ilegal de recursos particulares, seja oriunda de dinheiro desviado de estatais ou do próprio erário, o estudo citado estimou essa fortuna bilionária mantida de forma criminosa por brasileiros no exterior: em 2011, haveria cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais.

Não obstante uma demonstração de maior rigor na esfera penal por parte do STF e de algumas instâncias ordinárias, no âmbito civil, a localização e o repatriamento desses recursos, quando transferidos para o estrangeiro, ou mesmo o seu bloqueio em território nacional, são bastante problemáticos. Paralelamente ao expediente lícito de fazer usos dos vários recursos que eternizam uma demanda judicial, há a prática ilegal de blindagem patrimonial: transferem-se bens para terceiros, opera-

7 Para ser exato, R$ 6.563,73, de acordo com dados de 2011 da ABEP – Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa.8 Rede de Justiça Fiscal, em uma tradução livre.

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-se no mercado financeiro por prepostos, utilizam-se cartões de crédito expedidos por bancos situados em paraísos fiscais. E os meios legais de cobrança perdem-se nos complexos meandros do processo e dos seus meios de impugnação.

A ferramenta Bacen-Jud, do modo como vem sendo manuseada, so-mente atinge pequenos empresários fracassados e assalariados em geral. Os pobres estão, realmente, perdendo no Brasil. Nesse ponto, cabível desenvolver um tópico que sumarize o início do processo de acumulação de capital que redundou na desigualdade que hoje se verifica.

2 O Estado ausente da questão social: capitalismo sem peias

quando Friedrich Engels (1820-1895) chegou a Londres, em 1842, foi surpreendido pelas condições degradantes em que vivia a classe ope-rária inglesa. Parcelas cada vez maiores de camponeses que migravam para a cidade marginalizavam-se rapidamente, perdendo seu referencial anterior e passando a habitar moradias insalubres.

Membro de tradicional família alemã, Engels surpreendeu a In-glaterra quando de sua chegada em pleno processo de substituição da mão de obra humana pelas máquinas. No século XVIII, a tecelagem e a costura eram feitas quase que artesanalmente, em pequenas oficinas familiares. A partir do início do século XIX, não só o algodão passou a ser tratado industrialmente, como também a lã, o linho e a seda. Todavia, o resultado mais importante da transformação industrial foi o advento do proletariado inglês9.

Em Manchester, 70% dos habitantes eram operários, moradores de bairros sujos e degradados10. Não raro, recebiam comida e mercadoria

9 Na Roma antiga, o rei Sérvio Túlio fez uso da expressão “proletários” (proletarii) para descrever os cidadãos de classe mais baixa, que não tinham propriedades e cujo único proveito para o Estado era gerar proles (filhos) para engrossar as fileiras das legiões. No século XIX, o termo voltou a ser utilizado por socialistas, anarquistas e comunistas para identificar a classe dos desprovidos de meios de vida do capitalismo industrial.10 Em função da menor força física exigida dos trabalhadores com o advento das má-quinas, homens eram demitidos e, em seu lugar, eram contratadas mulheres e crianças, a quem se podia pagar salários ainda mais miseráveis. Por essa época, eram comuns jornadas de trabalho de 12 a 16 horas por dia.

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estragada de estabelecimentos mantidos pelos próprios industriais. En-gels chegou a afirmar que, comparada à escravidão da Antiguidade, a situação do proletário era pior: este era vendido não de uma vez só e a apenas um senhor, como o escravo, mas comercializado em partes, todos os dias. Não pertencia, assim, a uma pessoa somente, mas a toda uma classe abastada, numa espécie de condomínio demoníaco. E não era só: o patrão assumia o papel de legislador absoluto, sempre respaldado pela força pública11 e pelos tribunais, já que os juízes compartilhavam com o capitalista a mesma origem burguesa.

Nesse contexto de exploração intensa, não havia tempo para família ou filhos, nem mesmo para as necessidades corporais e espirituais. A burguesia, segundo Engels, era uma classe corrompida. Já Karl Marx (1818-1883) afirmava que o capital, se não lhe são colocados freios, trabalha sem escrúpulos e sem misericórdia “para rebaixar cada vez mais a classe operária”.

Conforme acentua Masi12:

O primeiro ensinamento que veio do liberalismo é que o livre mer-cado, tomado ao pé da letra, resulta em desastre. Nós hoje sabemos que a ação individual, na busca do próprio bem-estar, é insuficiente para garantir a prosperidade econômica da sociedade. [...] O estado deve ditar as regras para que o jogo não se torne sempre vantajoso para apenas um jogador.

O livre mercado tem verdadeira ojeriza à autorregulação e, se é eficiente em produzir riquezas, é extremamente falho em distribuí-la. Tende a propiciar grande acumulação de capital, que por sua vez enseja exclusão e mais desigualdade. Se a tributação justa – ou seja, que respeite a capacidade contributiva de cada um e obedeça as balizas constitucio-nais – é um remédio eficaz para combater a tendência concentradora de renda desse modelo, é preciso também estabelecer critérios para limitar e disciplinar o uso das ferramentas que concretizam o poder fiscal do Estado, entre as quais se destaca o Bacen-Jud. Assim como se protege a

11 Tal situação era recorrente no mundo ocidental e provocou ecos no Brasil em inícios do século XX. É por demais conhecida a máxima de Washington Luis “a questão social é uma questão de polícia”.12 MASI, op. cit, p. 353.

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sociedade dos excessos do livre mercado, é preciso resguardá-la também do exagero arrecadatório dos entes tributantes, que numa situação limite pode implicar em supressão da própria propriedade e incentivar uma sucessão de violências perpetradas por agentes do Estado.

3 totalitarismo comunista: terror de EstadoCom o Manifesto do Partido Comunista de 1848, resultado da as-

sociação de Engels ao conterrâneo Karl Marx, procurou-se ensejar uma organização revolucionária apta a realizar, por intermédio da luta de classes (operariado x capitalistas), um modelo de sociedade que viesse justamente a suprimi-las.

Essa organização, segundo Marx e Engels, jamais poderia ser socia-lista. Os socialistas eram considerados muitos gentis e pacíficos, uma vez que apenas admitiam como via para as mudanças a persuasão da opinião pública, e não a ruptura radical com o status quo. A grande dificuldade prática seria a mobilização da classe trabalhadora, visto que, de acordo com os dois pensadores, o trabalho acabava por gerar alienação, o que impedia o engajamento político e a possibilidade de mudança.

Tal alienação assumiria vários matizes. Primeiro, o operário torna--se estranho ao próprio produto, pois, quando termina a produção de um objeto na fábrica, esse objeto já não é seu, passando a lhe ser indisponível. Ele produzirá para a classe dos capitalistas objetos mara-vilhosos; no entanto, jamais poderá possuí-los. O operário é, também, alienado do próprio trabalho, já que é o patrão que decide tudo. Ele não se realiza, não se desenvolve, por vezes resume-se tão só a um apêndice da máquina.

Por fim, Marx e Engels sugerem que o trabalhador fabril também se torna alienado de si mesmo e de sua espécie, pois o modelo capitalista cria contraposição de um operário a outro: eles não são vistos como vítimas comuns de um sistema de produção opressor, mas como adversários e mesmo competidores por algo escasso, o emprego13.

13 Os crescentes ganhos tecnológicos advindos do avanço da ciência e da técnica provo-cam desemprego, e os trabalhadores alijados do processo produtivo acabam por formar um exército industrial de reserva.

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Friederich Engels sobreviveu por doze anos à morte de Marx, cunhando a expressão “Materialismo Histórico”, que não havia sido re-ferida antes por seu companheiro de ideais. Pelo materialismo histórico, entende-se que a história é movida pelas relações sociais de produção, que são de natureza econômica. Contudo, não adiantava tão somente descrever um modelo: seria necessário, também, transformá-lo. Era preciso, pois, buscar a transformação prática da sociedade. Era preciso que a classe dos trabalhadores preponderasse sobre a classe dos capita-listas14. Era necessário, finalmente, que se instaurasse uma ditadura do proletariado, para só então se alcançar uma sociedade sem classes, na qual reinasse a solidariedade.

Por incrível que pareça, a ditadura foi instaurada não na Alemanha, pátria natal dos dois pensadores, nem na Inglaterra, berço da revolução industrial que tomou conta de toda a Europa e depois do mundo, mas na atrasada, distante e semifeudal Rússia. Pode-se dizer que, antes de Marx e Engels, o motor revolucionário do mundo era francês; com a sua atividade intelectual, passou a ser alemão e, finalmente, tornou-se russo. Nesse momento, é que entra em cena a dupla Lênin e Stalin.

O irmão mais velho de Lênin foi enforcado por ter participado de uma conspiração contra o czar, o que o impactou diretamente. Ele exerceu forte militância na segunda internacional comunista e criou a facção bol-chevique, idealizadora do método do centralismo democrático. Por esse método, toda decisão era discutida em profundidade previamente, mas, uma vez aprovada, deveria ser compulsoriamente observada por todos.

Os bolcheviques tomaram o poder em outubro de 1917, derrubando o governo moderado de Kerensky, que havia assumido o governo em março, após a abdicação do czar. Lênin, líder supremo da revolução,

14 Segundo Marx e Engels, havia tão somente a facção dos burgueses e a facção dos proletários. As duas massas constituíam duas classes objetivamente contrapostas, duas classes em si. Para eles, os proletários deviam tornar-se classe “por si”, tomando cons-ciência da sua própria situação objetiva e criando para si próprios uma organização eficiente, visto que a classe burguesa já se organizava nesse sentido, secundada pelo aparato estatal e pela religião. Conforme Marx, a classe que controla os meios de pro-dução material controla também os meios de produção intelectual, aquilo que ele chama de superestrutura. As classes produtoras precisavam unir-se, os proletários “nada tinham a perder além de suas correntes”.

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viu-se com um desafio único: construir a primeira sociedade comunista da História, criando uma organização inédita, sem nenhum molde prévio em que se inspirar. Ao contrário da promessa das religiões, ele pretendia criar o paraíso na própria Terra.

No entanto, para chegar à sociedade sem classes, era preciso antes passar por uma fase de ditadura do proletariado, em que o partido dos operários e dos camponeses exerceria um poder absoluto. “Todo o poder aos sovietes”, bradava Lênin, procurando fortalecer os conselhos eletivos de operários e, em um segundo momento, os soldados – provenientes dos campos de batalha da Primeira Guerra – e os camponeses.

O excesso de trabalho atingiu sua saúde, provocando um ataque cardíaco e sua morte, em 1924. Após uma disputa interna violenta, subiu ao poder Stalin – líder muito mais autoritário, intransigente e cruel. Eli-minou milhões de pequenos proprietários de terra para impor as fazendas coletivas. Promoveu expurgos no exército e entre os quadros do partido comunista, executando e deportando milhões de soviéticos.

Sob o jugo de Stalin, foram imolados todo direito humano e toda conquista da liberdade. Cada soviético virou um dócil empregado do Estado patrão, rectius, das elites dirigentes. Na prática, as classes não foram abolidas, apenas modificadas.

Após 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, “uma cortina de ferro” desceu sobre a Europa Oriental, com todos os países a leste ingressando na órbita soviética. Em 1961, já sob o comando de Nikita Kruschev, na URSS, foi erigido o muro de Berlim. A situação do operário da Europa Oriental era bem melhor do que aquela em Manchester, nos tempos da chegada de Engels, mas no Ocidente sua condição de vida melhorara visivelmente mais. Além disso, os ganhos econômicos haviam sido obtidos com a inicial violência revolucionária, que se renovava sem sinal de exaustão, gerando um estado permanente de terror.

Vê-se, assim, o acerto de Montesquieu ao asseverar que a separação dos poderes é imprescindível para a democracia e a liberdade, e como é temerário reprimir nos seres humanos – ainda que sob a justificativa do atingimento do bem comum e da segurança coletiva – o sentimento de religiosidade e a necessidade de vida privada. Com o advento do sta-linismo, ficou demonstrada a extrema dificuldade de consolidar-se um modelo comunista sem recorrer à violência institucionalizada.

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Exportando tais conclusões para o contexto específico do estudo que ora desenvolvo, verifico que, em uma perspectiva extrema, o uso des-criterioso do Bacen-Jud equivale, mutatis mutandis, a um uso atenuado do terror de estado: o Estado-Juiz, tão somente verificando que alguém deve, indisponibiliza recursos de sua conta-corrente. O executado vê-se, subitamente, privado da possibilidade de ir ao supermercado, de tomar uma condução, de pagar a luz e a água de sua casa.

Pode-se dizer, com certeza, que o bloqueio dos recursos existentes em conta-corrente é muito mais oneroso do que a penhora sobre outro bem corpóreo: ao penhorar-se um imóvel ou um veículo, salvo raras exceções, o executado fica como depositário, permanecendo na sua posse, no seu uso e gozo, enquanto o bloqueio das contas-correntes torna desde logo indisponível o ativo. Dessa maneira, priva-se o correntista de todos os direitos atinentes ao domínio, acarretando-lhe encargos moratórios por conta dos recursos que, imobilizados, não poderão mais fazer frente aos lançamentos a débito na conta bancária.

Assim como é necessário uma terceira via no embate entre o capitalismo e o comunismo, também é preciso uma posição inter-mediária que harmonize a necessidade de satisfação do crédito da Fazenda Pública e o imperativo de manter-se o mínimo existencial do devedor tributário.

4 Em busca de um meio termo estatal: socialismo utópico e social-democracia

Diversas correntes do chamado socialismo utópico, representado por Saint-Simon, Robert Owen e Louis Blanc, entre outros, também denunciavam a exploração dos trabalhadores e lutavam “pela educação permanente dos cidadãos nos princípios da moral social”15. Entendiam os socialistas que a base determinante do comportamento humano residia na esfera moral/ideológica e que o desenvolvimento das civi-lizações ocidentais estava a permitir uma nova era, na qual imperaria a harmonia social.

15 MASI, op.cit., p. 430.

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Conforme acentua Masi, “o termo socialist apareceu pela primeira vez em 1827 na Cooperative Magazine de Robert Owen para indicar aqueles que enfatizavam o aspecto social das relações humanas mais que os direitos dos indivíduos”16. Owen, agraciado por Masi com o título de “o mais interessante entre os utópicos”, inovou ao defender que a eficiência empresarial dependeria muito mais do bem-estar dos trabalhadores que de sua exploração e que operário e capitalista deveriam – ao contrário de adotar uma posição de beligerância permanente – assumir uma verdadeira parceria para obter vantagens mútuas.

O autor refere que os socialistas ensinaram-nos “em primeiro lugar o amor pela humanidade. O sentimento de ‘nós’, de sentir-se parte de uma comunidade, de um arquipélago, jamais sentir-se ilhado ou solitá-rio”17. Refere também o ensinamento plasmado na rejeição do luxo, do desperdício, das injustas desigualdades, do poder e do bem-estar sepa-rado do mérito, e atesta que aqueles homens aguerridos reivindicaram com bravura18.

as liberdades civis e os direitos sociais, a justiça e a igual-dade, o sufrágio universal e o voto secreto, a igualdade entre homem e mulher, o bem-estar e a intervenção do Estado para corrigir as desigualdades, a prestação de serviços de assistência social, a garantia dos serviços básicos, essenciais para todos os cidadãos.

Friso tal passagem: “[...] intervenção do Estado para corrigir as desigualdades”. O Estado deve, sim, intervir para corrigir as anomalias causadas pela atuação individualista e excludente das forças de mercado, mas respeitando o direito de propriedade, que só deve ser suprimido em situações excepcionais, e sempre fomentando a livre iniciativa que enseja o progresso.

É esse o mote que deve orientar a aplicação da ferramenta Bacen-Jud: uso criterioso, respeitando a propriedade em sua expressão mais sucinta (mínimo existencial), mas mantendo a potencialidade para atingir tam-

16 MASI, op.cit, p. 429.17 MASI, op.cit, p.460.18 MASI, op.cit., p.461.

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bém os devedores mais arrojados, contumazes em desenvolver técnicas para blindar seu patrimônio e colocarem-se acima dos mecanismos de coerção fazendários.

São justamente tais mecanismos de coerção fazendários – entre os quais se inclui o Bacen-Jud – os responsáveis pela arrecadação dos créditos indispensáveis para a manutenção de políticas públicas de se-guridade. Um Estado Social de Direito só se mantém, na atualidade, se firmemente ancorado em um Estado Fiscal capaz de assegurar, obser-vados os ditames da justiça tributária, os recursos indispensáveis para o financiamento dessas políticas.

É o que se vê, por exemplo, nos países da Escandinávia. Um mecanismo de arrecadação tributária eficiente garantindo uma atu-ação estatal firme no enfrentamento de vários riscos sociais. Como acentua Masi19:

Em todos os países escandinavos, caracterizados por um alto PIB per capita, um sistema generoso de garantias de bem-estar social gera o efeito desejado: isto é, uma distri-buição bastante igual da riqueza com uma distância bastante tolerável entre ricos e pobres.

O estudo do Estado Fiscal Contemporâneo – no bojo do qual se insere a ferramenta Bacen-Jud, pressuposto do Estado de Bem-Estar Social praticado nas nações nórdicas – é melhor realizado mediante a comparação entre as práticas atuais e os modelos sumarizados nos tópicos antecedentes.

No estágio atual de desenvolvimento estatal, o cidadão, mais do que simples “camarada” ou mão de obra barata para o capitalista industrial, passou a ser muito mais proativo e cônscio de sua posição perante o Estado. Não há mais mera relação de poder entre o Estado e os seus residentes, com a justificação de condutas marcadas pelo autoritarismo e pelo arbítrio no jus imperium, e sim relação jurídica pontilhada de direitos e deveres de parte a parte. É o que abordaremos no tópico seguinte.

19 MASI, op. cit, p. 381.

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5 Estado Fiscal contemporâneo como pressuposto de Estado Social de Direito

Pode-se afirmar, por conseguinte, que também as relações com o fisco vêm se desenvolvendo sob a proteção dos direitos fundamentais, adquirindo especial significado o papel do princípio da dignidade hu-mana20. Tal princípio possui eficácia irradiante na definição e no alcance do mínimo existencial, entendido como detentor de uma dupla face: proteção negativa contra a tributação em excesso e proteção positiva ao constituir-se o ser humano como destinatário de um conjunto mínimo de prestações no que concerne à seguridade e à educação fundamental.

Neste particular, Ricardo Lobo Torres ressalta que o conceito de mínimo existencial está ligado ao conceito de liberdade, uma vez que não há alternativas de escolha em condições mínimas de sobrevivência. A preponderância do valor da dignidade da pessoa humana e da conser-vação do mínimo vital funda-se sobre a ideia da solidariedade social.21

O grande paradoxo é que o tributo, historicamente, sempre esteve associado à perda dessa mesma liberdade. Na Antiguidade, povos venci-dos deveriam pagar tributos aos vitoriosos, como contrapartida por não terem sido arrasadas suas aldeias e plantações ou mesmo por não terem sido feitos escravos pelos agressores22.

Durante a consolidação do Estado Nacional, a situação se manteve, com a renda dos tributos direcionada basicamente para o benefício exclusivo de determinados estamentos – o imperador, a nobreza, o alto clero – em detrimento do interesse coletivo. Essa situação somente veio a alterar-se a partir do século XVIII, com o influxo das ideias iluministas.

20 Conforme expressa disposição do artigo 1º, III, da Constituição, é fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.21 Nos termos do art. 3º da Constituição, é objetivo da República brasileira a construção de uma sociedade que seja livre, justa e solidária.22 É justamente daí que vem o termo “tributo”, cuja etimologia remete a “repartir por tribos”, ou seja, dividir os despojos e os resultados da guerra por entre as tribos que, conduzidas por um líder guerreiro, lograram obter o êxito militar com vistas a garantir a expropriação de produtos agrícolas, metais preciosos e outros bens.

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Surgiram, então, em consequência da concretização do pensamento iluminista, os estados liberais clássicos, cujas constituições positivavam uma série de deveres de abstenção por parte do Estado, entendidos como direitos de primeira geração, mas que também permitiram – como se viu – a exploração desumana de grandes contingentes de miseráveis. A partir do término da Primeira Guerra Mundial, todavia, passaram a figurar nos textos constitucionais os direitos sociais – direitos à prestação na área de saúde, previdência e assistência social – bem como os direitos traba-lhistas advindos da pressão exercida pelos trabalhadores e do temor das classes dirigentes de que pudesse ser adotado, em cada país, um modelo político-econômico semelhante ao soviético.

O modelo social brasileiro é extremamente dispendioso, seja em função da falta de recursos da maioria da população, seja por conta da má administração desses mesmos recursos e dos desvios de toda a ordem. A pressão da despesa pública – e a pouca disciplina fiscal dos três entes tributantes – acaba por ensejar necessidades de arrecadação crescentes, bem como a adoção de mecanismos rigorosos para a constrição de ativos penhoráveis, com destaque para a ferramenta Bacen-Jud.

Dessa maneira, o nosso Sistema Tributário, entendido em seu sen-tido amplo, tem se ocupado quase que com exclusividade da questão arrecadatória, em detrimento dos valores maiores da Justiça Fiscal e da Segurança Jurídica.

Na obra Clash! – 8 conflitos culturais que nos influenciam23, os au-tores são enfáticos ao apontarem nosso país como o possuidor do menor grau de confiança interpessoal da América do Sul. Considerando que os sul-americanos já perfazem o povo mais desconfiado da face da Terra, tem-se que uma atuação estatal que prime pela possibilidade do bloqueio de valores em conta-corrente de qualquer cidadão, sem a predefinição de requisitos mínimos consistentes, irá expandir assustadoramente esse já alto grau de desconfiança. Qual será o grau de confiabilidade do cidadão no Estado, que falha em lhe proporcionar os mais elementares serviços de saúde, educação e segurança, mas não hesita em lhe indisponibilizar a conta-corrente tão logo verifique que os tributos devidos não ingressaram em seu caixa único?

23 CONNER, Alana; MARKUS, Hazel Rose. Clash! – 8 conflitos culturais que nos influenciam. São Paulo: Elsevier, 2013.

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ConclusãoDa análise dos modelos de vida apresentados por Masi, viu-se

que o Estado liberal burguês do século XIX permitiu – e por vezes até encorajou – a exploração de grandes contingentes de trabalhadores por uma minoria, enquanto o Estado totalitário da primeira metade do século XX restringiu – e em alguns casos chegou a suprimir – os direitos humanos mais elementares em nome de uma pretensa segu-rança de Estado.

Esta segunda década do século XXI, por sua vez, encontra prati-camente toda a parte ocidental do mundo inserida num contexto demo-crático até então inédito. A democracia representativa, não obstante as dificuldades que variam conforme o horizonte cultural de cada país, é capaz de propiciar aos cidadãos um nível de liberdade inimaginável para nossos antepassados.

Nesse contexto, pode-se afirmar que o grande desafio da contem-poraneidade é administrar a própria liberdade. O maior problema deste início de século, não apenas no Brasil, mas em todo o Ocidente, é que os interesses contrapostos nunca estiveram em tamanha ebulição. Na nossa sociedade complexa, multifacetada e plural, os conflitos crescem exponencialmente, enquanto a capacidade para resolvê-los tende a ser linear.

Todos querem “tudo ao mesmo tempo agora”, como salientado na parte introdutória, e esse querer extremado induz a uma cultura de litigiosidade excessiva, que precisa ser mitigada com temperamento de ânimos e espírito de conciliação. Em épocas de recessão, como a que ora se avizinha, quando o dinheiro escasseia e a capacidade de autocomposição também tende a diminuir, crescem as expectativas sociais acerca do papel do Estado, que não deve ser nem máximo nem mínimo, mas eficiente.

Um Estado eficiente passa necessariamente por um Judiciário mais eficaz, que por seu turno demanda juízes mais preparados, flexíveis com o manejo simultâneo dos mecanismos da efetividade do processo e da segurança jurídica. Juízes que saibam situar-se “mais próximos à vida do que do dogm”, conforme já ressaltou José Calvo Gonzalez, autor do referido livro Direito Curvo.

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A curvatura como síntese jurídica pode ser compreendida mediante as transformações operadas nas relações entre as partes, do rigorismo do modelo capitalista até a sociedade plúrima atual, do desprezo ao indivíduo ínsito ao regime totalitário à afirmação dos direitos e da liberdade de ação própria do século XXI. Tal curvatura concretiza-se não somente na relativização do pacta sunt servanda, mas principalmente nas tendências de privatização do direito público e de publicização do direito privado, e representa uma boa metáfora para o impacto da pós-modernidade na aplicação da norma positiva.

É nesse contexto multifacetado que o juiz deve aplicar a ferramenta Bacen-Jud, atentando para as especificidades do caso concreto e tendo como norte a realização do valor justiça, ainda que a ideia que dela temos possa oscilar. Se o papel do magistrado hoje é fazer concretizar os direitos expressos na Constituição e inserir no cidadão uma vontade de apaziguamento social, deve procurar compatibilizar o tecnicismo da profissão com uma maior humanidade, afastando a atuação estatal daqueles modelos tendentes a restringir e limitar os direitos humanos, vistos no decorrer deste artigo.

De nada adianta resolver a lide processual, bloqueando valores na conta-corrente do executado para satisfazer o credor fazendário, se não for equacionada, concomitantemente, a lide sociológica que subjaz ao processo. Justiça, na falta de uma definição mais consensual, é o que o Direito almeja tornar-se quanto todos nós, juízes e jurisdicionados, possamos atingir outro patamar de civilização. Um juiz melhor é um juiz mais humanizado. O magistrado que sabe apenas Direito sequer compreende o Direito.

Referências bibliográficas BIELSA, Rafael. Estudios de Derecho Publico. Buenos Aires: Depalma, 1951, vol II, p.93 apud.

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CASTRO, Celso Antônio Pinheiro. Sociologia do Direito. 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2001.

LIMITES SOCIOLÓGICOS AO USO INTENSIVO DO BACEN-JUD

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Revista da aJUFeRGs / 09104

CONNER, Alana; MARKUS, Hazel Rose. Clash! – 8 conflitos culturais que nos influenciam. São Paulo: Elsevier, 2013.

DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Princípio do Estado Constitucional Demo-crático de Direito. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 95, p. 184, 2004.

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MASI, Domenico. O Futuro Chegou. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.

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RESPOnSABIlIDADE CIVIl OBJEtIVA: tEnDênCIAS E AnÁlISE DO DIREItO

COMPARADO

ANA PAULA MARTINI TREMARIN WEDYMestranda em Direito na PUC/RS, Visiting Scholar em Columbia University.

Juíza Federal Substituta no TRF da 4ª Região.

RESUMO: A presente investigação visa a analisar o panorama da respon-sabilidade civil objetiva no ordenamento jurídico brasileiro, perpassando pela evolução histórica do instituto, mediante o estudo da doutrina e da jurisprudência nacionais e estrangeiras.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade objetiva. Fundamentos. Teoria do risco. Solidarização dos riscos. Securitização.

ABSTRACT: The present paper aims to give a global overview of ob-jective liability in Brazilian law, going through the historical evolution of the institute, through the study of national and international doctrine and judiciary precedents.

KEYWORDS: Objective civil liability. Foundation. Theory of risk. Socialize risk. Securitization.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Da responsabilidade civil baseada na culpa e na evolução para o sistema solidarista da reparação do dano. 2. Responsa-bilidade objetiva no ordenamento jurídico pátrio. 3. Da responsabilidade objetiva no Direito Comparado. 3.1 Direito alemão. 3.2 Direito francês; 4. Jurisprudência no STJ. Conclusão.

IntroduçãoPretende-se demonstrar que o dogma da culpa, por muito tempo o

centro gravitacional do sistema da responsabilidade civil, adotada como fundamento pelos códigos do século XIX, inerentes à política filosófica do Estado liberal, cede espaço aos anseios presentes, notadamente no que se refere a conflitos e interesses próprios ao progresso social, marcado pela inovação tecnológica e pelo direito das massas, que pugnam por soluções mais solidaristas e cooperativas, as quais tragam em seu bojo a socialização do risco, ou seja, soluções que permitam que os danos sejam redistribuídos coletivamente.

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Revista da aJUFeRGs / 09106

1 Da responsabilidade civil baseada na culpa e na evolução para o sistema solidarista da reparação do dano

Nos sistemas jurídicos integrantes da família romano-germânica (civil law), é possível distinguir dois modelos no tratamento da respon-sabilidade civil: o modelo liberal dos códigos civis do século XIX (entre os quais se pode incluir o CC/1916) e o modelo solidário ou social (ou welfarista) dos códigos civis da segunda metade do século XX (italiano, português, brasileiro, etc.) e de diversos microssistemas legislativos, como o consumerista.

A evolução de um sistema de responsabilidade civil baseado na culpa, adotado nos códigos de modelo liberal, para um sistema objetivo, baseado no risco econômico, na socialização do prejuízo, próprio dos códigos de modelo social, revela uma opção do legislador por um modelo jurídico completamente diverso do liberal, chamado de “Direito Social” (próprio do Welfare State), o qual propõe um modelo socialmente fun-cionalizado de direito privado. Essa “socialização” das normas jurídicas impõe novas tarefas aos institutos jurídicos, bem como aos operadores do Direito1.

Na perspectiva evolutiva do sistema de responsabilidade civil, tem--se que, no início do Direito romano, a responsabilidade era objetiva, dissociada da noção de culpa, porquanto era fundamentada na vingança privada. Assim, ainda que objetiva, não considerava o risco da atividade e, tal qual o sistema da culpa, era nitidamente individualista. Posterior-mente, surgiu o período da composição voluntária, em que a vingança foi substituída pela composição a critério da vítima, e, por fim, a composição econômica passou a ser obrigatória.

Nesse sentido, os Códigos estabeleciam determinado valor de acordo com a ofensa praticada. Por exemplo, pela quebra de um osso, pagava-se uma mina de prata: Código de Ur Namnu, Código de Manu e Lei das XII Tábuas.

1 TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no direito privado: da culpa ao risco. Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 2 | p. 787 | Set / 2012 | DTR\2005\425.

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107RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

A origem do fator culpa como fundamento de reparação do dano é atribuída à Lei Aquília2. Porém, o casuísmo que marcou a legislação romana impediu o surgimento de um princípio geral de responsabilidade. Apenas no século XVII, com o jusnaturalismo, veio à tona o princípio genérico da responsabilidade civil, que depois serviu de base para o art. 1.383 do Código Civil francês, marco legislativo inspirador da legislação de inúmeras outras nações3.

As características específicas da responsabilidade civil foram tra-çadas no Código Civil Francês de 1804, o qual instituiu o princípio da atipicidade da responsabilidade civil, mediante cláusula geral de respon-sabilidade subjetiva, com o abandono do critério de enumeração de casos de composição obrigatória e consagrando a culpa como fundamento à reparação do dano.

Nesse sentido, o art. 1.382 do Código Civil francês institui a cláusula geral de responsabilidade subjetiva nos seguintes termos: “Tout fait quel-conque de l’homme, qui cause à autrui um dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer”4. Ainda, o art. 1.383 do Código Civil francês institui a culpa como pressuposto da responsabilidade civil: “Chacun est responsible du dommage qu’il a causé non seulement par son fait, mais encore par sa négligence ou par son imprudence”5.

2 JUNIOR, Otávio Luis Rodrigues. Responsabilidade civil no Direito Romano. p. 13. In: Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. A Lex Aquilia é um Plebiscito de data incerta, aproximadamente 286 ou 287 a.C., elaborada a pedido de um tribuno da plebe, de nome Aquilius, para permitir o ressarcimento dos danos causados pelos patrícios aos plebeus.3 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 180. In SAR-LET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.4 “Todo e qualquer fato do homem, que causa um dano a outrem, obriga o culpado a repará-lo.”5 Cada um é responsável pelo dano que provocou não somente por sua culpa, mas ainda por sua negligência ou por sua imprudência.” O Código Civil francês de 1804 possui 2302 artigos, dos quais 1200 artigos continuam em vigor com sua redação original. O mais curioso é que, embora a França tenha posto em vigor mais de dez constituições ao longo dos dois últimos séculos (sendo a Constituição de 1958, regente do funcionamento das instituições da quinta República, a última delas), sempre conservou o Código Civil de 1804, pelo que é um verdadeiro monumento da cultura jurídica e política do povo

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No Brasil, as Ordenações do Reino de Portugal vigoraram mesmo após a Independência. O Código Civil de 1867 de Portugal, inspirado no modelo francês, não vigorou no Brasil, visto que já havíamos procla-mado a Independência. Assim, as Ordenações do Reino vigoraram até o Código Civil de 1916, sendo que, no campo da responsabilidade civil, o Código Francês de 1804 foi suporte e modelo para o nosso estatuto civil revogado.

Destarte, inspirados nos franceses, adotamos a culpa como pressu-posto da responsabilidade, acolhida no art. 159 do CC de 1916, o qual previa que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violasse direito ou causasse prejuízo a outrem, ficava obrigado a reparar o dano. Dessa maneira, nesse modelo, são requisitos para o dever indenizatório comprovar: 1) o ato lesivo (ou ato ilícito); 2) o dano; 3) o nexo causal entre ambos; 4) a culpa.

Não obstante, a era do maquinismo, notadamente no final do século XIX e acentuada no último século, e o consequente agravamento dos riscos e a multiplicação dos acidentes, decorrentes dos fenômenos da industrialização, da urbanização e da massificação da sociedade, trou-xeram consigo a ruptura do dogma do sistema da culpa6. Dificuldades em comprovar a culpa na origem do dano e o próprio causador do dano, principalmente nos acidentes de trabalho, permitiram o desenvolvimen-to de mecanismos alternativos, como a inversão do ônus da prova e a exacerbação do dever de cuidado.

A noção de responsabilidade baseada na culpa não mais satisfez à dinâmica da realidade social e passou a ser insuficiente para reparar os

francês, desfrutando de grande prestígio internacional por tudo que representa. O Código de Napoleão contém três livros desiguais: I – Das pessoas (arts. 1º a 515); II – Dos bens e das diversas modificações da propriedade (arts. 516 a 710); III – Das diferentes formas por que se adquire a propriedade (arts. 711 a 2281). No Título IV do Livro III, que trata das diferentes formas pelas quais se adquire a propriedade, o Capítulo II, contendo ape-nas cinco artigos, trata da responsabilidade extracontratual ou delitual, com a epígrafe “dos delitos e quase-delitos”, distinção essa por nós abolida, passando a identificar a antijuridicidade e a reprovabilidade do comportamento nos “atos ilícitos”.6 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 177. In: SAR-LET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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danos causados em decorrência dessas novas atividades, dada a impos-sibilidade de comprovar a imprudência, a negligência, a imperícia ou o dolo do autor do dano.

Raymond Salleilles e Louis Josserand, grandes teóricos franceses do Direito Social do início do século XX, foram os precursores de uma teoria da responsabilidade civil objetiva focada na perspectiva de repa-ração do dano.

Não se ignora que alguns doutrinadores defendem a primazia da doutrina germânica acerca da teoria objetiva; todavia, o certo é que foram os franceses os divulgadores dessa teoria, devendo ao seu trabalho de sistematização a evolução da teoria7.

A propositura de critérios objetivos de imputação de responsabili-dade teve como marco principal a obra de Raymond Saleilles, em 1897: Les accidentes de travail et la responsabilité civile: essai d’une théorie objective de la responsabililé délictuelle (Os acidentes de trabalho e a responsabilidade civil: ensaio de uma teoria objetiva da responsabilidade delitual). O autor defendia substituir o princípio da imputabilidade por um princípio de simples causalidade, em que fosse prescindida a avaliação do comportamento do causador do dano8.

Nesse passo, em 1897, Louis Josserrand publicou o texto Évolutions et Actualittés, se refere ao século do automóvel e da mecanização uni-versal e no qual afirma que a falta da segurança material acarreta o anseio à segurança jurídica. Defendia a adoção do fator risco como critério de responsabilização, com base na jurisprudência francesa, que já aplicava a responsabilidade objetiva por guarda da coisa9. A prioridade passou a ser a vítima, e não mais a conduta do agente, praticamente impossível de ser comprovada para fins de reparação do dano.

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

7 Assim, tem-se que a legislação alemã realmente previu a responsabilidade objetiva antes do Código Civil francês, já que o Código Civil prussiano de 1794 obrigava o proprietário à reparação dos danos causados pelos animais sob sua guarda, mesmo que sem culpa, assim como no Código Civil austríaco de 1811.8 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 19.9 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 19.

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Difundiram-se as teorias do risco. A teoria da responsabilidade objetiva possui diferentes formas de fundamentação, a partir da noção de que a atividade causadora do dano apresenta certo grau de risco ao indivíduo/sociedade, e por essa razão será suficiente para fundamentar a obrigação da reparação do dano.

Nesse sentido, de acordo com Sérgio Cavalieri: “Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela recorrente. A doutrina do risco poder ser, então, resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o cau-sou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano”10.

A teoria do risco administrativo trata da responsabilidade objetiva civil do Estado nos atos omissivos e comissivos. A responsabilidade de-corre da prestação de atos típicos da administração pública e dos riscos criados com o desempenho de suas atividades estatais11.

A teoria do risco integral surge sob o enfoque de que, para a configu-ração da responsabilidade civil, basta a existência de um dano. A norma indica o responsável sem exigir um nexo de causalidade entre ele e o dano. Não admite excludentes de responsabilidade, há dever de reparar mesmo diante do caso fortuito, força maior, fato de terceiro ou culpa exclusiva da vítima. Essa teoria aplica-se no caso de dano ambiental e no caso do seguro obrigatório dos veículos automotores.

Ainda sob tal enfoque, há a teoria da responsabilidade objetiva agravada. Essa é a denominação de Fernando Noronha, e surge quando há obrigação de indenizar, independente de haver o nexo de causalidade adequado entre a atividade e o dano. Exemplos práticos dessa teoria se-riam a responsabilidade do estabelecimento prisional pela incolumidade do prisioneiro (em caso de suicídio ou homicídio por outros detentos), do

10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. p. 55 5. ed. Mal-heiros Editores Ltda. São Paulo: 2005.11 TARTUCE, Flavio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do risco con-corrente. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 137.

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hospital pelo paciente, do banco pelo cliente (ainda que não correntista), do transportador pelo passageiro (ainda que não compre passagem)12.

A teoria do risco excepcional trata do risco de atividades que apre-sentem risco exacerbado, como ocorre com a exploração de energia nuclear (Lei 6.453/77). As excludentes são específicas, limitando-se às situações de conflito armado, guerra civil, hostilidades, insurreição ou fato excepcional da natureza (art. 8º).

A teoria do risco-proveito tem por fundamento a máxima de que aquele que aufere algum benefício com a existência do risco possui o dever de reparar. Também chamada de risco benefício, essa teoria do risco não se justifica se não há proveito para o agente causador do dano, motivo de crítica, já que é difícil para a vítima comprovar o proveito. A teoria do risco profissional sustenta igualmente esse proveito, mas relativamente a uma atividade empresarial específica.

A teoria do risco criado, mais ampla e mais benéfica para a vítima, considera que toda atividade que exponha outrem a risco torna aquele que a realiza responsável, mesmo nos casos em que não haja atividade empresarial ou atividade lucrativa propriamente dita.

Há ainda a ideia de responsabilidade objetiva desvinculada do fator risco, a partir de um dever de garantia, o qual explica a responsabilidade objetiva quando o autor direto do dano não for possuidor de bens ou de renda13. É a relação que há, por exemplo, entre pais e filhos, curadores e curatelados, tutores e tutelados e assim por diante.

O enfoque da responsabilidade civil sofreu diversas alterações ao longo dos últimos séculos, sendo que, durante o século XIX, a culpa era a viga mestra da responsabilização, que possuía como fundamento a pessoa causadora do prejuízo e a consequente atribuição de responsabilidade pelo

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

12 TARTUCE, Flavio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do risco concor-rente. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 174. O autor explica que o Direito italiano dife-rencia a responsabilidade objetiva da agravada, porquanto a agravada admite a excludente do caso fortuito, de modo que está relacionada a hipóteses em que a atividade ou a coisa criam um perigo que poderia ser afastado com a adoção das cautelas adequadas. Vide Fernando Noronha. Direito das Obrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 485-489.13 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 181. In: SAR-LET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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evento. Numa segunda fase, tem-se que o foco da responsabilidade passa a ser a reparação do dano; nesse período, despontam as concepções do risco criado e do risco-proveito, de modo que a descoberta do responsável pelo dano ainda é fundamental para a fixação da responsabilização. Em um terceiro momento, ainda convivem elementos das fases anteriores, mas não mais são suficientes para a concretização da Justiça, mormente nos casos de danos de massa (centenas de vítimas e prejuízos de grande monta).

Atualmente, o foco é a reparação do dano, a indenização das víti-mas, ainda que para isso tenhamos que socializar o prejuízo, mediante mecanismos como a securitização, seja ela obrigatória ou contratual. É o modelo de responsabilidade coletiva fundada na solidariedade14.

Denota-se que a criação ou a majoração do risco como noção jurídica empregada por cláusulas gerais de responsabilização continua a ter efici-ência; no entanto, não é mais fundamento exclusivo, na medida em que surgiram outras hipóteses de incidência da responsabilidade objetiva em que não se pode invocar o risco como fator de vinculação entre o dever de indenizar e o agente. Nesses casos, percebe-se a verdadeira essência da responsabilidade objetiva na contemporaneidade, que é a de uma res-ponsabilidade independente de culpa ou qualquer outro fator subjetivo, marcada pela necessidade de garantir a reparação dos danos que não devem ser exclusivamente suportados pela vítima, mas solidarizados15.

Esse modelo transcende o indivíduo e socializa as perdas. Assim, não haveria uma única pessoa a indenizar o dano, mas toda a sociedade, ou um setor dela, passa a ter responsabilidade em ressarcir o prejuízo16.

14 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 181-182. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. De acordo com o autor, alguns doutrinadores, como Jean Guyenot e René Savatier, defendem que a tendência é a socialização da responsabilidade e dos riscos individuais, que garantam à vítima uma certeza da indenização. Nesse sistema, o Estado absorverá todos os riscos e distribuirá por todo o corpo social, através de um imposto.15 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 29-30.16 Facchini, no artigo Da Responsabilidade Civil no novo Código, traz que, no direito comparado, esse modelo já foi implantado de forma ousada, como na Suécia e na Nova Zelândia, onde tais programas são mantidos por fundos instituídos por uma imposição tributária generalizada. p. 182.

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2 Responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico pátrioA responsabilidade objetiva ingressou no ordenamento jurídico

brasileiro por meio de legislação especial, anterior ao Código Civil de 1916, a exemplo da Lei das Estradas de Ferro (Decreto 2.681/12), do Decreto 24.687/34 (Lei de Acidentes do Trabalho), que fixou a responsabilidade objetiva do empregador pelo dano causado ao trabalhador que resultasse em morte ou ferimento (esse encargo foi agravado pelo Dec.-lei 7.036/44, que confirmou a responsabilidade mesmo no caso de culpa da vítima), e da Lei 6.457/77, relativa às atividades nucleares.

A Constituição Federal de 1988 prevê hipóteses específicas de responsabilidade objetiva quando se refere ao seguro em acidentes de trabalho (art. 7º, inc. XXVIII), aos danos nucleares (art. 21, inc. XXIII, alínea c), às pessoas jurídicas de direito público e privado prestadoras de serviço público (art. 37, § 6º) e aos danos ambientais (art. 225, § 3º)17. Percebe-se que o constituinte elegeu uma nova tábua axiológica para a responsabilização objetiva, a qual enfatiza a solidariedade social como fundamento à responsabilização objetiva.

Nessa linha, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) também prevê a responsabilidade objetiva do fabricante, do produtor, do construtor, nacional ou estrangeiro, e do importador pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

17 Ainda no que tange à responsabilidade por danos ambientais, a legislação expressa também é enfática ao prever a teoria da responsabilidade objetiva integral. Assim ocor-re nas disposições da Lei 6.938/1981, no art. 14, § 1°: “Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degra-dação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: [...] § 1º - Sem obstar a apli-cação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

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informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e seus riscos (art. 12)18.

O Código Civil de 1916 foi inspirado no Código Civil francês de 1804, ao menos no que tange à responsabilidade civil. Assim, o Código Civil dispunha, no art. 159, que aquele que, por ação ou omissão volun-tária, negligência ou imprudência, violasse direito ou causasse prejuízo a outrem, ficava obrigado a reparar o dano. Havia, portanto, a previsão da cláusula geral da responsabilidade subjetiva, mas era admitida a res-ponsabilidade objetiva, ao menos no art. 1.529, na hipótese de queda ou lançamento de objetos de edifícios.

O Código Civil de 2002 igualmente prevê cláusula geral da res-ponsabilidade subjetiva ao estabelecer a culpa como requisito para a responsabilização civil, no art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

De outra banda, também prevê cláusula geral de responsabilidade objetiva por atividades de risco no art. 927, parágrafo único, ao estabe-lecer a obrigação de indenizar, independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar riscos para outrem19.

O legislador inspirou-se no art. 2.050 do Código Civil da Itália de 1942, que diz: “qualquer um que causa dano a outros no desenvolvimento de uma atividade perigosa, por sua natureza ou pela natureza dos meios empregados, é obrigado ao ressarcimento se não provar haver adotado

18 Ainda, o art. 14 do CDC prevê: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”. No que tange à responsabilidade subsidiária do comerciante, dispõe: “São aqueles casos contemplados nos incs. I a III, do art. 13, em que: 1) o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados (inc. I); 2) o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador (inc. II) e 3) não forem adequadamente conservados produtos perecíveis (inc. III)”. 19 “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

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todas as medidas idôneas para evitar o dano”. O dispositivo em ques-tão inverte o ônus da prova no caso de atividade perigosa e institui um parâmetro de comportamento mais elevado que o do homem médio, ao exigir prova de todas as medidas idôneas para evitar o dano20.

A redação original do projeto do Código Civil previa atividades de “grande risco para os direitos de outrem”, enquanto as legislações italiana e portuguesa, ao tratarem do assunto, tratam apenas de “atividade perigosa”.

Não obstante, o legislador excluiu a expressão “grande risco”, que estava no projeto, sinalizando que qualquer atividade normalmente desenvolvida que, por sua natureza, implicar risco aos direitos de ou-trem, obrigará o autor a reparar o dano, independentemente do grau de periculosidade, da atividade de risco organizar-se ou não sob a forma empresarial ou, ainda, de ter ou não revertido em proveito de qualquer espécie para o responsável pelo dano21.

Em conformidade com Facchini, referindo-se à jurisprudência italiana, a lição do direito comparado é que compete ao juiz identificar a periculosidade da atividade mediante análise tópica. Não se trata de “decisionismo” judicial, em que cada juiz possa desenvolver um critério próprio: “O magistrado deve ser sensível às noções correntes na comunidade, sobre o que se entende por periculosidade, bem como deve estar atento a entendimentos jurisprudenciais consolidados ou tendenciais”. Conclui afirmando que o juiz pode se inspirar na legisla-

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20 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 21-22. Outros códigos civis também adotam essa cláusula geral como o faz o mexicano ao impor ao agente responsabilidade pela utilização de “mecanismos, instrumentos, aparelhos ou substâncias perigosas por si mesmas, pela velocidade que desenvolvem, por sua natureza explosiva ou inflamável, pela energia de corrente elétrica que conduzem ou outras causas análogas”, mesmo “que não obre ilicitament”, admitindo apenas a demonstração de que o prejuízo foi causado por culpa da vítima (art. 1.013). O Código Civil de Portugal de 1966, no art. 493, também assim o prevê.21 Nesse sentido, o Enunciado 38, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, assim estabelece: “A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do CC, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.

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ção trabalhista e previdenciária no que tange a determinadas atividades classificadas como perigosas para efeitos de percepção do adicional de periculosidade22.

O Código Civil traz outra cláusula geral de responsabilidade objetiva nos casos de abuso do direito ao prever, no art. 187, o seguinte: “Tam-bém comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O artigo não exige a intenção de prejudicar, contentando-se com o excesso objetivamente identificável.

Denota-se que o legislador partiu da premissa de que os direitos subjetivos não são concedidos aos indivíduos em uma perspectiva me-ramente individual, pois possuem uma destinação econômica e social, já que o exercício desses direitos repercute na esfera jurídica de outras pessoas. Por tal motivo, quando o titular de um desses direitos o exerce de maneira abusiva, desviando-se dos parâmetros de convivência social, vindo a causar dano a outrem, será obrigado a repará-lo, independente-mente de haver agido com culpa.

Por fim, outra cláusula geral prevista no Código Civil está no art. 931 e trata da responsabilidade civil objetiva do empresário pelo fato do produto. Esse artigo abrange situações mais amplas que as previstas no art. 12 do CDC, porquanto o CDC menciona “produtos com defeito”, e o CC responsabiliza os empresários “pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Ampliou o conceito de fato do produto e, como não há referência à época em que o produto foi colocado em circulação, contempla também os riscos do desenvolvimento23.

22 FACCHINI, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no novo Código. p. 187. In: SAR-LET, Ingo Wolfgang. O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.23 “Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individ-uais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.” Nesse sentido, enunciados 42 e 43 do CJF, respectiv-amente: “Art. 931: O art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos” e “Art. 931: A respons-abilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento”.

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O Código Civil prevê outras hipóteses de responsabilidade objetiva: artigo 928 (responsabilidade equitativa e subsidiária dos incapazes); artigos 932 e 933 (responsabilidade dos pais em relação aos filhos, do tutor e do curador em relação aos pupilos e curatelados, do empregador ou comitente quanto aos empregados e prepostos24, dos donos de hotéis pelos hóspedes e dos que gratuitamente houverem participado nos pro-dutos de crime); artigo 936 (pelo fato dos animais, dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por ele causado, se não provar culpa da vítima ou força maior); artigos 937 e 938 (responsabilidade civil pelo fato das coisas); artigos 441 a 446 (responsabilidade por vício redibitório); artigos 447 a 457 (responsabilidade objetiva por evicção); artigos 734 e 735 (responsabilidade do transportador de pessoas é objetiva); artigos 884 a 886 (hipóteses de enriquecimento sem causa) e artigos 939 e 940 (con-cernentes ao credor que demanda o devedor antes de vencida a dívida, bem como ao que o faz por dívida já paga).

3 Da responsabilidade objetiva no Direito Comparado

3.1 Direito alemão O Código Civil Alemão é de 1896, no original Bürgerliches Ge-

setzbuch ou simplesmente BGB. Possui cinco livros: I – Parte Geral; II – Obrigações e Contratos; III – Coisas; IV – Família; V – Sucessões. No livro II, há um capítulo que trata “Dos atos ilícitos” (Unerlaubte Handlungen), que elenca os princípios gerais da responsabilidade civil, distribuídos em 30 artigos25.

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24 Na vigência do Código Civil de 1916, dispunha a Súmula 341 do STF: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”. Inicialmente, tal presunção foi tida como relativa, mas passou, com o tempo, a ser considerada absoluta.25 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Pau-lo: Atlas, 2011. p. 140-141. Nesse aspecto, o Código Civil revogado e o atual adotam a classificação germânica da divisão de matérias. A opinião majoritária na doutrina comparatista é a de que a influência alemã no Código Civil Brasileiro estaria restrita à sistemática adotada e não abrangeria o conteúdo. O sistema escolhido pelo legislador brasileiro, com uma parte geral e uma parte especial, teria, então, sua origem na ciência jurídica alemã da época.

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O Direito germânico está perfilado ao sistema romano-germânico. Assim, a disciplina legal referente à responsabilidade civil está sistema-ticamente prevista em estatutos legais, no BGB ou na legislação esparsa.

A principal diferença entre o BGB e o Código Civil Francês de 1804 é que o alemão não apresenta a cláusula geral de responsabilidade por ato ilícito, de modo que os legisladores optaram por um modelo casuístico, em que os direitos passíveis de indenização estão enumerados na lei.

O BGB adotou a responsabilidade subjetiva como regra, exige culpa como requisito para a responsabilidade e limitação da possibilidade de ressarcimento de danos àqueles interesses legalmente protegidos. Desse modo, para que se configure a obrigação à reparação, a lesão deve ser contra um bem jurídico determinado, chamado pela doutrina de “bem jurídico absoluto” (absolute Rechtsgüter)26.

Nesse passo, os bens protegidos no § 823, I, do BGB são a proprie-dade, a integridade física, a liberdade pessoal e demais bens jurídicos (sonstige Rechte). A interpretação jurisprudencial que se dá ao conceito indeterminado dos “demais bens jurídicos” é restrita, de forma que serão considerados lesões a direitos da personalidade. Outrossim, consideran-do que não está abrangido o patrimônio como bem jurídico tutelado no regime de responsabilidade extracontratual, não se indenizam danos de caráter exclusivamente patrimonial27.

26 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional no Direito comparado. p. 733. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; RO-CHA, Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011.27 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional no Direito comparado. p. 733. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. O autor cita dois casos da jurisprudência alemã para ilustrar o significado de dano à propriedade e dano ao patrimônio. No primeiro caso, durante obras de construção em uma rua, um cabo elétrico foi danificado e uma fábrica confinante ficou sem energia elétrica por várias horas, experimentando com isso prejuízos econômicos. A questão versava sobre a responsabilidade do construtor de indenizar a fábrica por lucros cessantes, e a jurisprudência foi contrária à pretensão, sob o fundamento de que não houve violação de um dos bens tutelados no § 823, I, do BGB, pois o prejuízo era exclusivamente patrimonial. No segundo caso, em razão de dano em cabo elétrico, um armazém frigorífico deixou de funcionar e estragaram as mercadorias nele armazenadas. Nesse caso, o proprietário obteve direito à indenização, visto que houve violação de bem jurídico tutelado, a propriedade.

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No que concerne à responsabilização por atos de terceiro, o § 831, I, do BGB exige a comprovação da culpa in vigilando ou da culpa in eligendo, de maneira que o empregador não responde de automaticamente perante a vítima. Para suprir esses déficits da responsabilidade extracontratual e garantir a tutela efetiva dos bens jurídicos, houve significativa evolução na área do direito dos contratos na Alemanha, marcada pela necessidade de encontrar “maquinismos contratuais” para fazer valer tal proteção.

O BGB trata da responsabilidade objetiva apenas quando se refere ao detentor de animais, no § 83328. Todavia, a responsabilidade objetiva já era prevista na legislação esparsa desde o Direito germânico, em 1838, quando a Prússia regulamentou a responsabilidade das ferrovias.

A responsabilidade objetiva no Direito tedesco tem dois traços mar-cantes: o entendimento de que deve ser excepcional e motivada por uma perspectiva social e a concepção de que deve ser restrita às hipóteses positivadas, como o BGB faz também na responsabilidade subjetiva29.

Nesse rumo, a responsabilidade objetiva é positivada por leis es-parsas, a exemplo das seguintes legislações: Ato de Tráfego Aéreo de 1922, Ato de Tráfego em Estradas de 1952, Ato Federal de Caça de 1952, Ato da Responsabilidade Objetiva (estradas de ferro) de 1978, Ato da Responsabilidade Objetiva (operação de energia e acidentes causados por eletricidade, gás, vapor ou outro líquido utilizado), Ato Federal de Mineração de 1980, Ato de Energia Nuclear de 1985, Ato de Recursos Hídricos de 1986, Proteção ao Consumidor de 1989, Ato sobre a Enge-nharia Genética de 1990, Ato da Responsabilidade Ambiental de 1990 e Ato dos Produtos Farmacêuticos de 1976 (revisado em 1994).

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28 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 146. A responsabilidade é objetiva quando o dano ocorrer em decorrência da natureza do animal, e não apenas por haver um animal envolvido na ocorrência do dano. O autor ilustra o dispositivo com a jurisprudência alemã: no pri-meiro, o dono de um cachorro é condenado a indenizar a vítima da mordida do cão; no segundo, a vítima, um ciclista, é ferida ao colidir à noite com o cadáver de um cão, situação em que o dono do cão somente será condenado a indenizar caso seja provada a sua culpa no evento.29 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 143.

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Assim, no Direito alemão a regra é a subsunção da responsabilidade objetiva à lei, sendo quase nulo o espaço para a jurisprudência alargar hipóteses de incidência. A crítica que se faz a esse modelo é que, devido à inoperância da lei para acompanhar as inovações tecnológicas e, portanto, os novos riscos que surgem no cotidiano da vida moderna, a legislação acaba por tutelar tardiamente os bens jurídicos lesados.

Denota-se que os avanços na legislação da responsabilidade objetiva são posteriores à ocorrência de tragédias, de modo que não são decorrentes do avanço da tecnologia, ou das demandas judiciais em grande volume, ou das dificuldades de as vítimas comprovarem o dano ou a sua autoria.

Assim precede a história do ato de responsabilidade ambiental, que foi editado após um desastre ambiental ocorrido em 1986, quando a água utilizada para apagar um incêndio em uma indústria química na Suíça desaguou no rio Reno substâncias altamente tóxicas, causando desastre ambiental na Suíça e na Holanda. Diante do desastre ecológico, o governo alemão manifestou-se no sentido de que deveria ser criada lei aplicando a responsabilidade objetiva em tais situações, pelo que foi editado o ato de responsabilidade ambiental30.

Apesar do caráter excepcional da responsabilidade objetiva, a previ-são na legislação extracódigo acaba por criar sistema paralelo ao BGB, o que dificulta a harmonização do sistema e assume feição de confronto entre o individualismo, característico do BGB ao exigir o elemento culpa, e o socialismo, inspirador da responsabilidade objetiva.

3.2 Direito francês O Código Civil francês de 1804 inovou com a cláusula geral de res-

ponsabilidade por culpa (artigos 1.382 e 1.383), rompendo com o modelo estabelecido no Direito romano de responsabilidade fixada em hipóteses preestabelecidas de ações, mantido no âmbito da Common Law31.

30 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 150. Também o Ato de Tráfego Aéreo foi editado à luz do desastre com o dirigível Zeppelin, em 1908, e do Ato dos Produtos Farmacêuticos, o qual decorreu do incidente com o medicamento Contergan (talidomida).31 A cláusula geral foi adotada por países de culturas diferentes, a exemplo das codifi-cações italianas de 1865 e 1942, do Código suíço de 1911, do Código grego de 1940, do Código português de 1966 e dos Códigos brasileiros de 1916 e 2002.

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O Código de Napoleão é principiológico ou conceitualista, pois foi alicerçado sobre o princípio ou o conceito de faute, mas associado à culpa em seu sentido moral. No entanto, o código não define o que é a faute, nem condiciona a responsabilidade civil à violação de direitos subjetivos ou de interesse jurídico tutelado, tal qual ocorre no Direito tedesco. No modelo francês, compete à jurisprudência construir os pressupostos da responsabilidade civil, por meio da identificação da faute e da densifi-cação dos requisitos específicos para a indenização32.

A construção da responsabilidade objetiva pela jurisprudência a partir da releitura do artigo 1.384 do Código Civil, que trata da responsa-bilidade pelo fato das coisas, é exemplo da contribuição da jurisprudência para o Direito francês33.

A primeira decisão da Cour de Cassation (Corte de Cassação) é de 16 de junho de 1886 e restou conhecida como Caso Arrêt Teffaine. A Corte considerou o proprietário de uma máquina a vapor responsá-vel pela morte do trabalhador, decorrente da explosão de tal máquina, ocorrida em razão de defeito em seu maquinismo. O fundamento foi o de que o proprietário da máquina era o seu guardião, não obstante os argumentos de que não conhecia e de que nem poderia conhecer o defeito que motivou a explosão. Essa decisão foi o início, pela via jurisprudencial, da instituição do risco social como fundamento à res-ponsabilização objetiva.

Nessa evolução, em 1914, a Cour de Cassation estabelece a força maior, a culpa da vítima e o ato de terceiro como únicas excludentes da responsabilidade do art. 1.384 do Código Civil.

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32 SCHMIDT, Jan Peter. Responsabilidade Civil no Direito Alemão e Método Funcional no Direito comparado. p. 750. In: JUNIOR, Luis Rodrigues; MAMEDE, Gladston; RO-CHA, Maria Vidal da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Silvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011.33 No original: “Article 1384. On est responsable non seulement du dommage que l’on cause par son propre fait, mais encore de celui qui est causé par le fait des personnes dont on doit répondre, ou des choses que l’on a sous sa garde”.

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Nesse rumo, a partir de uma decisão paradigmática da Corte, em 1930, resta fixado o princípio geral da responsabilidade pelo fato da coisa. Trata-se do caso Jand’heur v. Lés Galéries belfortaises: uma senhora foi atropelada ao atravessar a rua por um furgão que entregava mercadorias para a ré. A ré foi condenada a indenizar por ser a guardiã do veículo. A Corte, para afastar a ideia de que se trata de culpa presumida, desde 1950 utiliza a expressão responsabilidade de pleno direito (responsabilité de plein droit), afastando a perspectiva da culpa34.

A jurisprudência também construiu a responsabilidade objetiva na matéria denominada pelos franceses de problemas de vizinhança (trou-bles du voisinage). A questão era tratada no âmbito da responsabilidade subjetiva, nos termos do art. 1.382 do código; no entanto, com os anos adveio o entendimento de que a ninguém é permitido desenvolver em sua propriedade uma atividade que traga incômodo anormal para seus vizinhos.

Ainda, no intuito de atender às Diretivas da União Europeia, de 1985, em 1998 foram acrescentados ao art. 1.386 dezoito parágrafos, referentes à responsabilidade objetiva por produtos defeituosos35.

No que tange à socialização dos riscos, a França possui um Fundo de Seguros Obrigatórios, destinado a indenizar vítimas de catástrofes tecnológicas, após a explosão da usina de Grande Paroisse (AZF), em setembro de 2001, na cidade de Toulose, que custou milhares de vidas e milhões de euros. Foi o pior acidente industrial já ocorrido, motivando a edição da Lei 2003-699, de 2003, lei de prevenção de riscos tecnológicos. Devido a essa norma, sociedades empresárias de seguro têm o dever de indenizar os danos e há previsão de um fundo de seguros. Assim, a re-

34 AGUIAR, Roger Silva. Responsabilidade civil: a culpa, o risco e o medo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 182.35 Ainda, legislação esparsa prevendo a responsabilidade objetiva: 1810, exploração do minério; 1917, estabelecimentos perigosos, incômodos ou insalubres; 1921, estabe-lecimentos que trabalham para a Defesa Nacional por danos causados a terceiros; 1924, Código de Aviação Civil,; 1941, operadores de teleféricos; 1968, usinas nucleares; 1978, vícios em construções de prédios; 1985, veículos automotores (tráfego); 1988, experimentos médicos em humanos; 1993, transfusão de sangue.

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paração do dano ocorre por securitização, afastando-se dos instrumentos tradicionais de responsabilização.

Por fim, insta sinalar que tramita no Legislativo francês projeto de reforma do Código Civil, apresentado ao Ministro da Justiça em 2005, conhecido por Avant-projet Catala, em homenagem ao presidente da comissão, professor Pierre Catala. Esse projeto pretende modernizar o código de 1804, para que haja possibilidade de ser uma referência em eventual futura unificação da legislação privada no âmbito da Comuni-dade Europeia.

No projeto, há previsão de aditar ao código artigo prevendo respon-sabilidade objetiva pela prática da atividade “anormalmente perigosa”, mesmo lícita, sendo tal atividade que cria um risco de danos graves, podendo afetar um grande número de pessoas simultaneamente. Nesse caso, a única excludente admissível será a culpa da vítima; não se admi-tirão fato de terceiro e caso fortuito como excludentes.

4 Jurisprudência no StJ No intuito de demonstrar como a jurisprudência do Superior Tribunal

de Justiça vem reconhecendo as hipóteses de incidência da responsabi-lidade objetiva no ordenamento jurídico brasileiro, serão trazidos à tona alguns julgamentos paradigmáticos sobre o tema.

O primeiro julgamento que se destaca refere-se ao acidente ra-dioativo ocorrido em Goiânia, em 1987, conhecido como Caso Césio 137. Nesse julgamento, o STJ manteve acórdão do TRF da 1ª Região. O Estado foi condenado com base na responsabilidade objetiva a inde-nizar as vítimas do acidente. Entretanto, os particulares, proprietários do Instituto Goiano de Radiologia – IGR, e o físico responsável pela Bomba de Césio 137 foram condenados em razão da negligência e da imprudência, respondendo, solidariamente, pelos danos pessoais causados aos autores.

Nada obstante, defende-se que a todos os réus poder-se-ia ter imputa-do a responsabilidade civil objetiva alicerçando-se na Lei nº 6.453/77 (Lei de Acidentes Nucleares), com base na teoria do risco excepcional, a qual

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prevê que a responsabilidade por dano nuclear é a objetiva, admitindo apenas a exclusão nos casos conflito armado, guerra civil, hostilidades, insurreição ou fato excepcional da natureza36.

De outra banda, a jurisprudência é bastante evoluída em relação à responsabilidade das instituições financeiras, o que pode ser visualizado na Súmula 479 do STJ: “Conforme entendimento sufragado por esta Corte em recursos especiais representativos de controvérsia, submeti-dos ao rito do art. 543-C do CPC, as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados por terceiros, pois tal responsabilidade decorre do risco do empreendi-mento, caracterizando-se como fortuito interno (REsp 1.199.782/PR e REsp 1.197.929/PR)”.

A Súmula 479 do STJ ainda dispõe: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno rela-tivo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”.

No tocante ao caso fortuito interno e externo, é válida a conceituação de Sérgio Cavalieri:

Cremos que a distinção entre fortuito interno e externo é totalmente pertinente no que respeita aos acidentes de consumo. O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte de sua atividade, liga-se aos riscos

36 Nesse sentido, o STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 1.180.888 – GO (2010/0030720-3), manteve julgamento do TRF no que tange à responsabilidade objetiva da União e dos Estados pelo acidente radioativo ocorrido em Goiânia em 1987, Bomba de Césio 137. No entanto, o acórdão do TRF da 1ª Região (AC 38194 GO 2003.01.00.038194-4) condenou as pessoas físicas com base na subjetiva: “Os Réus... proprietários do Instituto Goiano de Radiologia – IGR, que, juntamente com o físico responsável pela Bomba de Césio 137, ao abandonarem o equipamento na antiga sede da referida clínica, bem como Fulano ao mandar ‘demolir’ o prédio para retirar o material de construção nele empregado e do qual se julgava dono, devem ser considerados responsáveis pelo maior acidente radiológico do mundo, ocorrido na cidade de Goiânia/GO, em setembro de 1987, em razão da negligência e imprudência, respondendo, solidariamente, pelos danos pessoais causados aos Autores”.

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do empreendimento, submetendo-se a noção geral de defeito de concepção do produto ou de formulação do serviço. Vale dizer, se o defeito ocorreu antes da introdução do produto no mercado de consumo ou durante a prestação do serviço, não importa saber o motivo que determinou o defeito; o fornecedor é sempre res-ponsável pelas suas consequências, ainda que decorrente de fato imprevisível e inevitável. O mesmo já não ocorre com o fortuito externo, assim entendido aquele fato que não guarda nenhuma relação com a atividade do fornecedor, absolutamente estranho ao produto ou serviço, via de regra, ocorrido em momento posterior ao da sua fabricação ou formulação. Em caso tal, nem se pode falar em defeito do produto ou do serviço, o que, a rigor, já estaria abrangido pela primeira excludente examinada – inexistência de defeito (art. 14, § 3º, I).37

Por fim, merece destaque a jurisprudência do STJ acerca da constru-ção da teoria do risco integral nos casos de dano ambiental, ao estabelecer que o nexo de causalidade é o fator aglutinante que permite que o risco se integre à unidade do ato, não admitindo excludentes de responsabilidade civil para afastar a obrigação de indenizar. Segundo o STJ, aquele que explora a atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão sempre vinculados a ela; por isso, descabe a invocação, pelo responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil38.

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

37 Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 256-257.38 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RE-CURSO ESPECIAL. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. VALOR DA CONDENAÇÃO EM DANOS MATERIAIS. SúMULA N. 7/STJ. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. PETROBRÁS. ROMPIMENTO DO POLIDUTO “OLAPA” E VAZAMENTO DE ÓLEO COMBUSTÍ-VEL. DANO AMBIENTAL. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PRECEDENTE DA SEGUNDA SEÇÃO, EM SEDE DE RECURSO REPE-TITIVO. ART. 543-C DO CPC. TERMO INICIAL. JUROS MORATÓRIOS. SúMULA N. 54/STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. O Tribunal de origem afastou a alegação de cerceamento de defesa por entender comprovada a ocorrência e a extensão do dano ambiental, bem como a legitimidade do autor da ação. Alterar esse entendimento demandaria o reexame das provas produzidas nos autos, o que é vedado em recurso especial, a teor da Súmula n.

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ConclusãoOs textos constitucionais e a codificação civil do século XX trazem

lógica da justiça social distributiva, da dignidade da pessoa humana, em que não mais se aceita que os danos pessoais sejam ignorados ou indi-vidualmente suportados, sob a falsa justificativa de que necessários ao crescimento social, econômico e tecnológico de uma civilização. Nessa lógica solidarista, os prejuízos são transferidos, sempre que possível, à comunidade, subordinando-se o conceito de responsabilidade à efetiva reparação dos danos (injustos) sofridos pela vítima, independentemente da identificação de um culpado, ressaltando-se a relação de solidariedade entre a coletividade (na qual se inclui o autor do dano) e a vítima39.

A responsabilidade civil contemporânea tem por escopo indenizar a vítima. Tem por contorno a ampliação da esfera de proteção dos interesses e a solidarização da reparação dos danos. O desenvolvimento dos seguros de responsabilidade civil adveio do propósito de desestimular as condutas culposas e assegurar a reparação integral à vítima, o que não rara vezes é inviável, ante o grande número de pessoas atingidas e o elevado valor da reparação do dano (a exemplo do que ocorre em desastres ambientais e catástrofes industriais).

Nesse passo, o legislador ampliou as hipóteses de responsabilidade solidária em que são distribuídos na sociedade, ou em setor da sociedade, os custos da administração dos riscos.

7/STJ. 2. O exame da pretensão recursal no tocante à diminuição do valor da condenação a título de danos materiais exigiria o reexame da extensão do prejuízo sofrido pelo recorrido, o que é inviável em recurso especial, ante o óbice da mesma súmula. 3. Aplica-se perfei-tamente à espécie a tese contemplada no julgamento do REsp n. 1.114.398/PR (Relator Ministro SIDNEI BENETI, julgado em 8/2/2012, DJe 16/2/2012), sob o rito do art. 543-C do CPC, no tocante à teoria do risco integral e da responsabilidade objetiva ínsita ao dano ambiental (arts. 225, § 3º, da CF e 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981). É irrelevante, portanto, o questionamento sobre a diferença entre as excludentes de responsabilidade civil suscitadas na defesa de cada caso. Precedentes. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 273058 / PR. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2012/0268197-9, DJe 17/04/2013).39 TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no direito privado: da culpa ao risco. Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 2 | p. 787 | Set / 2012 | DTR\2005\425.

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Denota-se que a tendência é a adoção de sistemas de securitização do risco, a imposição de seguros obrigatórios e de fundos ressarcitórios, que permitam a substituição de uma responsabilidade individual por uma responsabilidade social, em que cada um assuma o ônus correspondente ao seu real potencial lesivo, transformando o problema dos danos em um problema de toda a sociedade40.

A securitização como solução não está imune a riscos, como a in-viabilidade da generalização do seguro, o possível desaparecimento do efeito intimidatório do pagamento da indenização ou ainda a necessidade da limitação da indenização, como ocorre no Direito tedesco.

Enfim, o que se vê não é a transformação de um sistema de responsabilidade em um sistema de solidariedade, mas uma modifi-cação interna da estrutura da responsabilidade civil, a qual substitui a responsabilidade individual pela social. Esse modelo ultrapassa a responsabilidade objetiva, já que ela permanece vinculada a parâme-tros individuais, enquanto a responsabilidade socializada transcende o indivíduo e socializa as perdas. O modelo de responsabilidade sociali-zada está previsto no ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo, a exemplo do acidente por trabalho ou de veículos automotores. No entanto, o que se percebe é um movimento expansionista sem volta dessa nova tendência da responsabilidade civil.

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CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. Malheiros Editores Ltda. São Paulo: 2005.

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA: TENDÊNCIAS E ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO

40 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 256.

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Revista da aJUFeRGs / 09128

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TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil Objetiva e risco: a teoria do risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

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PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

“E que o seu legado tenha sido um mun-do melhor do que aquele que encontrou.” Og Mandino

ANA CRISTINA MONTEIRO DE ANDRADE SILVAJuíza Federal da Vara Federal de Joaçaba, Santa Catarina

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do SulMestre em Direito Público pela PUC/RS

Professora da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa CatarinaProfessora do Curso de Pós-Graduação da UNOESC de Joaçaba

RESUMO: Princípio constitucional da solidariedade. Significado. Funda-mento Constitucional. Fundamento do Código de Ética da Magistratura Nacional. Perspectiva previdenciária do princípio. Perspectiva ambiental do princípio. Solidariedade intergeracional.

PALAVRAS-CHAVE: Princípio constitucional da solidariedade. Fun-damento. Direito Previdenciário. Direito Ambiental.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Significado. 2 Fundamento. 2.1 Fundamento constitucional. 2.2 Fundamento do Código de Ética da Magistratura Federal. 3 O princípio constitucional da solidariedade iluminando os demais ramos do Direito. 3.1 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva do Direito Previdenciário. 3.2 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva do Direito Ambiental. Conclusões.

IntroduçãoEste trabalho foi elaborado em resposta à exigência da Escola da

Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, como conclusão do Módulo V – Direito Constitucional, o qual teve seu ciclo de palestras realizado no segundo semestre do ano de 2012, nas cidades de Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba.

O tema foi escolhido com base na aspiração de construir um mundo mais justo e solidário. Tal aspiração não é somente nossa, individualmen-te, mas traduz um valor constitucional que foi expresso na Constituição

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de 1988, no seu artigo 3º, inciso I. Assim, buscaremos verificar até que ponto esse princípio tem força cogente capaz de obrigar ao seu acatamento e quais as consequências disso.

Iremos em busca, primeiramente, do significado da solidarieda-de, valor que embasa o princípio ora estudado. Nessa procura, não ficaremos adstritos ao Direito, mas teremos o apoio da Filosofia e da Antropologia.

Investigaremos esse princípio sob o prisma constitucional, do ponto de vista do Código de Ética da Magistratura Nacional e também sob as perspectivas do Direito Previdenciário e do Direito Ambiental. Estamos cientes da multidisciplinaridade do Princípio da Solidariedade e sabemos que seu alcance não se esgota nos ramos do Direito aqui mencionados. Todavia, escolhemos propositalmente o Direito Previden-ciário e o Direito Ambiental porque envolvem a competência da Justiça Federal. Desse modo, poderemos aprimorar nossa jurisdição por meio deste estudo. Buscaremos saber como o Princípio Constitucional da Solidariedade ilumina o Direito Previdenciário e o Direito Ambiental e quais são os direitos e as obrigações que resultam daí.

1 SignificadoDe acordo com o Dicionário Aurélio1, assim pode ser definida so-

lidariedade:

1. qualidade de solidário. 2. Laço ou vínculo recíproco de pes-soas ou coisas independentes. 3. Adesão ou apoio a causa, empresa, princípio, etc. de outrem. 4. Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação ou da própria humanidade. 5. Relação de responsa-bilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s). 6. Sentimento de quem é solidário. 7. Dependência recíproca. 8. Jur. Vínculo jurídico entre os credores (ou entre os

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1879.

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devedores) duma mesma obrigação, cada um deles com direito (ou compromisso) ao total da dívida, de sorte que cada credor pode exi-gir (ou cada devedor é obrigado a pagar) integralmente a prestação objeto daquela obrigação.

A solidariedade passa pela empatia, mas nela não se encerra. Ao contrário, vai além dela. Enquanto a empatia é a capacidade de se co-locar no lugar do outro, a solidariedade consiste na preocupação com a situação alheia e na tomada de ações para minimizar o sofrimento do próximo. Frans de Waal2 assim explicita tal distinção: “A solidariedade difere da empatia pelo fato de ser proativa. A empatia é o processo pelo qual nos damos conta da situação de outra pessoa. A solidariedade, em contraste, reflete nossa preocupação com o outro e um desejo de fazer com que a situação melhore”.

Mas o que exatamente significaria uma sociedade solidária? Wol-gran Junqueira Ferreira3 responde que consiste na coparticipação das comunidades. Deverão, assim, os membros dessa sociedade ter maior participação nas responsabilidades e nas decisões. E, com razão, acres-centa que é aí que encontramos a razão da existência do regime demo-crático, deixando ao ser humano um campo mais vasto, que vai além de proporcionar a possibilidade de informar-se e exprimir-se, levando-o a comprometer-se numa responsabilidade comum.

Indagamos se essa responsabilidade pela guarda de nossos irmãos de algum modo atrapalharia nossos propósitos na Terra (de produzir e consumir, segundo os economistas, ou de sobreviver e nos reproduzir, de acordo com os biólogos). Wall lembra que Adam Smith sabia que a luta pelos nossos interesses pessoais deve ser temperada pelo sentimento de solidariedade, referindo que Smith4 teria assim começado seu primeiro livro:

2 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130.3 FERREIRA, Wolgran Junqueira. Comentários à Constituição de 1988: volume 1. Campinas: Julex Livros, 1989, p. 92 e 93.4 SMITH, A. A theory of moral sentiments. Nova York, Modern Library, 1937 (1759) apud WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11 e 12.

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Por mais egoísta que se possa admitir que seja o homem, é evidente que existem certos princípios em sua natureza que o levam a interessar-se pela sorte dos outros e fazem com que a felicidade destes lhe seja necessária, embora disso ele nada obtenha que não o prazer de a testemunhar.

A fraternidade foi invocada pelos revolucionários da Revolução Francesa. Lincoln falava sobre os laços que unem as pessoas, e Roosevelt afirmava que a solidariedade era o “fator mais importante na produção de uma vida política e social saudável”. Embora esses sentimentos tenham sido muitas vezes ridicularizados, Frans de Wall5 sustenta que a empatia é algo natural em nossa espécie, que nossa tendência natural dirige-se para a solidariedade, e não para a competição desenfreada e para a agressão, como quiseram supor alguns seguidores da teoria evo-lucionista de Darwin, os quais, diga-se de passagem, foram muito além do que Darwin quis expressar em sua teoria. Aqueles que dão ênfase à liberdade individual normalmente consideram os interesses coletivos como uma ideia romântica, preferindo a lógica do “cada um por si”.

No dizer de Frans de Wall6:

É muito diferente ver a natureza humana como “rubra nos dentes e garras” ou considerar que a solidariedade e a cooperação fazem parte de nossos antecedentes [...]. O próprio Darwin se sentia desconfortável com as lições sobre o “direito do mais forte” que outros pensadores como Spencer tentaram extrair de sua teoria.

Tem razão Frans de Wall7 quando sustenta que a grande questão de nossos tempos é o bem comum e reside em saber de que modo podemos combinar uma economia próspera com uma sociedade humanitária.

5 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 13 e 17.6 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 50.7 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 14.

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Ayres Britto8, fazendo referência à dignidade da pessoa humana, sustentáculo dessa sociedade humanitária, nos ensina:

A humanidade que mora em cada um de nós é em si mesma o fundamento lógico ou o título de legitimação de tal dignidade. Não cabendo a ele, Direito, outro papel que não seja o de declará-la. Não propriamente o de constituí-la, porque a constitutividade em si já está no humano em nós. Em palavras outras, a circunstância do humano em nós é que nos confere uma dignidade primaz. Dignidade que o Direito reconhece com fator legitimante dele próprio e fundamento do Estado e da sociedade.

Embora o ser humano conserve seu lado individualista, o sentimento egoísta, por si só, não basta. Frans de Wall9 refere que há algo como um “autointeresse esclarecido”, que nos leva a trabalhar em prol de uma sociedade que sirva aos nossos melhores interesses. Tanto os ricos como os pobres dependem do mesmo sistema de esgotos, das mesmas autoestradas e do mesmo sistema de leis. De fato, ao crescermos em so-ciedade, somos introduzidos nesse contrato e reagimos com indignação quando ele é violado.

Assistindo os outros servimos também, muitas vezes, ao nosso interesse, como é o caso da ajuda a parentes ou amigos próximos que possivelmente retribuirão o favor. Entretanto, humanos e animais, con-forme a observação de Wall, não se ajudam mutuamente somente por razões egoístas. Exemplifica o autor10:

Um homem que salta sobre os trilhos do trem para salvar um estranho, um cachorro que pula à frente de uma criança para protegê--la de uma cascavel ou os golfinhos que formam círculo protetor ao redor de pessoas nadando em águas infestadas de tubarões não estão procurando recompensas futuras.

8 BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 25- 26.9 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 59.10 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 67 e 68.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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A verdade é que estamos interligados com nossos semelhantes tanto do ponto de vista corporal como pelo aspecto emocional. O Homo sa-piens é impelido na mesma direção de seus companheiros em diversas ocasiões: correndo quando outros correm, rindo quando outros riem e bocejando quando outros bocejam11. Do mesmo modo, reagimos a ca-tástrofes ambientais a milhas distantes devido às imagens que chegam a nós. Assim, “nossa caridade é produto da identificação emocional, mais do que uma escolha racional”12.

Estamos de acordo com Wall13 no sentido de que uma sociedade ba-seada no interesse egoísta e nas forças de mercado, ainda que seja capaz de produzir riquezas, não é capaz de alcançar a união e a confiança que fazem a vida valer a pena. Tanto é assim que pesquisas recentes concluem que altos índices de felicidade não têm seus coeficientes mais expressivos nos países ricos, mas, ao contrário, têm seus níveis mais elevados nos países onde há maior confiança entre os cidadãos.

O certo é que a ganância como única força propulsora da sociedade acabará corroendo o tecido social, pois não alcançaremos um funciona-mento harmonioso da sociedade sem que haja um forte senso de comu-nidade14. Enfim, não podemos ser indiferentes aos outros se quisermos construir a sociedade justa e solidária de que fala nossa Constituição.

2 Fundamento

2.1 Fundamento constitucional O princípio constitucional da solidariedade é princípio expresso nos

termos do artigo 3º, inciso I, da Constituição, o qual preceitua o que segue:

11 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 75.12 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 168.13 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 312.14 WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 312.

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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Fe-derativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-gualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Tais objetivos são ações que devem ser almejadas e efetivadas pelos entes da Federação para a construção de uma sociedade livre, justa e soli-dária, que seja capaz de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza.

Estamos de acordo com o juiz federal Narciso Leandro Xavier Baez15, visto que esses objetivos são normas constitucionais de eficácia plena, tendo força vinculativa desde a promulgação da Carta, não dependen-do de qualquer norma infraconstitucional para sua aplicação. De fato, não por acaso o princípio da solidariedade restou situado no título dos princípios fundamentais, formando a base axiológica do ordenamento jurídico, com a finalidade de nortear os atos perpetrados pelo Estado desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim sendo, qualquer ato que esteja em desacordo com esses objetivos fundamentais viola o artigo terceiro da Lei Fundamental. A força vinculativa dessa norma é desde a promulgação da Carta Magna.

Como ensina Konrad Hesse16, o Direito Constitucional precisa dar o máximo de eficácia na interpretação do texto constitucional, como meio de despertar e preservar a vontade da Constituição:

15 BAEZ, Narciso Leandro Xavier. Princípios fundamentais do Estado brasileiro. In: JANCZESKI, Célio Armando (Coord.). Constituição Federal Comentada. Curitiba: Juruá, 2010, p. 27 e 28.16 HESSE, Konras. A força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991, p. 27.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando assim o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubitavelmente, torna imperiosa a assunção de uma nova visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado.

Comentando o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, José Francisco Cunha Ferraz Filho17 afirma que a solidariedade “é o princípio que norteia a amizade política no espaço público, a aproximação e a co-operação sociais entre pessoas e povos. Há que notar que solidariedade não é coercitiva, pois, ao contrário, tem como pressuposto necessário a liberdade”. Salienta ainda que “a cooperação na sociedade deve partir de seus membros, não podendo ser imposta pela estrutura política”.

O Ministro Eros Grau18, ao comentar o artigo 3º, inciso I, da Consti-tuição Federal, ensina que sociedade solidária é aquela que não inimiza os homens entre si:

Sociedade livre é sociedade sob o primado da liberdade, em todas as suas manifestações e não apenas enquanto liberdade formal, mas, sobretudo, como liberdade real. Liberdade da qual neste sentido, consignado no artigo 3º, I, é titular – ou co-titular, ao menos paralelamente o indivíduo – a sociedade. Sociedade justa é aquela, na direção do que aponta o texto constitucional, que realiza justiça social, sobre cujo significado adiante me deterei. Solidária a sociedade que não inimiza os homens entre si, que se realiza no retorno, tanto quanto historicamente viável, à Geselchaft – a energia que vem da densidade populacional fraternizando e não afastando os homens uns dos outros.

17 FERRAZ FILHO, José Francisco Cunha. Dos princípios fundamentais. In: MACHA-DO, Antônio Cláudio da Costa (Org.). Constituição Federal Interpretada. 3. ed. Barueri, SP: Manole, 2012, p. 7 e 8.18 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 215.

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Canotilho19 também ressalta a importância de o hermeneuta constitu-cional estar atento aos problemas de seu tempo, entre eles a solidariedade intergeracional, destacando que:

Por último não deve esquecer-se que a constituição não é apenas um ‘texto jurídico’, mas também uma expressão do desenvolvimento cultural do povo. Precisamente por isso, a reserva de constituição deve estar aberta aos temas do futuro, como o problema da res-ponsabilidade e solidariedade intergeracional (ambiente, dívida pública, segurança social), o problema da sociedade de informação, o problema do emprego, o problema da ciência e técnica e das suas refrações na pessoa humana (biotecnologia, tecnologias genéticas), o problema das empresas multinacionais e do seu incontrolado poder político, o problema da droga e do seu potencial existencialmente aniquilador, o problema da queda demográfica nuns casos e da explosão demográfica noutros.

Desse modo, entendemos que a melhor hermenêutica constitucional recomenda que seja atribuída eficácia plena ao princípio da solidariedade, inscrito em nossa Carta Magna no artigo 3º, inciso I. Entretanto, em outros momentos, a Constituição faz referência ao princípio da solidariedade, como é o caso do artigo 40, que assegura regime de previdência de caráter contributivo e solidário aos servidores titulares de cargos efetivos das pessoas jurídicas de direito público. Também no artigo 225 da Consti-tuição resta implícito o princípio da solidariedade intergeracional, a que faz menção Canotilho, quando assevera que incumbe à coletividade o ônus de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e as futuras gerações.

Portanto, a solidariedade social corresponde a um princípio estrutural presente em todas as constituições dos Estados Sociais formados a partir das crises resultantes das grandes guerras que pautaram a primeira metade do século XX, marcadas pelo reconhecimento constitucional de direitos sociais, especialmente aqueles relacionados à regulação do trabalho e à Seguridade Social. Todavia, esse princípio atualmente está presente em todos os modelos de Estado chamados Estados Democráticos de Direito20.

19 CANOTILHO, JOSÉ Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 1141 e 1142.20 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. O sistema de seguridade social e o princípio da soli-dariedade: reflexões sobre o financiamento dos benefícios. Revista de Doutrina TRF4, Porto Alegre, ed. 25, p. 4 e 5, ago. 2008.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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2.2 Fundamento do Código de Ética da Magistratura nacionalA ética judicial compreende critérios normativos que devem orientar

o exercício da função do juiz. Tais critérios se expressam em princípios e regras que incidem sobre a conduta do homem ao qual é atribuída a função de julgar.

O Código de Ética da Magistratura Nacional (Resolução nº 60, de 19/09/08, do CNJ) enuncia diversos desses princípios. Para Lourival Serejo21, o Código de Ética da Magistratura Nacional constitui-se, desse modo, num “repositório de valoração de condutas e serve de inspiração para os magistrados elegerem a melhor opção de agir”.

A força normativa desse Código encontra-se na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, da qual é uma extensão (art. 35 da LOMAN), e na Constituição Federal, abrigo de deveres e princípios que servem de catecismo para todo cidadão. O princípio da solidariedade está entre aqueles previstos no Código de Ética da Magistratura e é orientador da conduta jurisdicional do magistrado. Nesse sentido, o artigo 3º do Código de Ética da Magistratura preceitua: “Art. 3º A atividade judicial deve desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa humana, objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas”.

O capítulo I desse Código contém a síntese de tudo aquilo que se almeja de um juiz atual, desde sua formação pessoal até sua postura insti-tucional, política e crítica. Essa preocupação com a formação e a conduta do juiz vem expressa na Constituição Federal (arts. 101, 104, parágrafo único e 119, inciso II) ao exigir dos magistrados que terão acesso aos tribunais superiores os critérios do saber jurídico e da reputação ilibada. Nessa condição –reputação ilibada –, centra-se toda a preocupação ética com a pessoa que será investida em tão elevado cargo do Poder Judiciário.

Em conformidade com o Código de Ética e com a melhor inter-pretação, o juiz, consciente de sua responsabilidade e da função em que foi investido, necessariamente deve ser independente, imparcial, capaz, cortês, prudente, diligente, íntegro e digno. Toda aplicação da

21 EREJO, Lourival. Comentários ao código de ética da magistratura nacional. Brasília, DF: ENFAM, 2011, p. 17.

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lei, atualmente, deve submeter-se à perspectiva constitucional. Assim, à magistratura é reconhecida hoje importante função na efetivação do Estado Democrático de Direito, assegurando as promessas da democracia aos cidadãos e a transparência do jogo democrático.

A Constituição Federal, além de iluminar e dirigir todos os demais ramos do Direito, orienta também a atividade do juiz, como pudemos observar pelo mandamento do artigo 3º do Código de Ética da Magistratura Nacional. A Constituição da República é o documento que abriga as garantias e os direitos individuais, as regras de funcionamento do governo e traça todo o arcabouço do Estado, notadamente se ela foi elaborada por uma assembleia constituinte legitimamente constituída pela vontade soberana do povo.

Urge que o juiz esteja sempre voltado para a aplicação dos princí-pios constitucionais, entre eles o princípio da solidariedade, como fonte motivadora de suas decisões, além de demonstrar o espírito público que deve orientar sua postura. Por inspiração constitucional é que se forma o juiz republicano, preocupado com o bem comum, com a coisa públi-ca, com a eficiência das políticas públicas e com a efetivação da justiça social. A busca da justiça em suas decisões é garantia de paz, equidade e razoabilidade. Não se admite mais o juiz que decide somente pela letra da lei, ressuscitando o velho brocardo dura lex sed lex para justificar decisões injustas e alheias às peculiaridades do caso concreto.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, insculpiu os seguintes princípios básicos do nosso Estado Democrático de Direito: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político. Logo adiante (art. 3º), a Constituição elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre os quais se destaca o de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Concordamos com Lourival Serejo22 ao afirmar que “a promoção da solida-riedade e da justiça entre as pessoas tem sua base na ética da convivência, da cristandade, da tolerância, do respeito e do olhar atento”.

Sobre a solidariedade, Leonardo Boff23, dando-lhe uma dimensão ética maior, faz uma séria advertência: “A solidariedade política ou será o

22 SEREJO, Lourival. Comentários ao código de ética da magistratura nacional. Bra-sília, DF: ENFAM, 2011, p. 25.23 BOFF, Leonardo. Ética e moral. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 54.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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eixo articulador da geossociedade mundial ou não haverá, a longo prazo, futuro para ninguém, solidariedade a ser construída a partir de baixo, das vítimas dos processos sociais e dos sofredores”.

Nesse sentido, também não vemos futuro para a sociedade atual sem obediência e vivência do princípio da solidariedade. Para que possamos bem obedecê-lo, esse princípio constitucional deve permear nossas atitudes como cidadãos e como magistrados que somos. A Constituição Federal e o Código de Ética da Magistratura Nacional não permitem outra atitude jurisdicional que não seja permeada pelo princípio da soli-dariedade. Assim sendo, o princípio da solidariedade, dada sua categoria constitucional, iluminará não somente a atividade do magistrado, como também todos os demais ramos do Direito.

3 O princípio constitucional da solidariedade iluminando os demais ramos do Direito

3.1 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva do Direito Previdenciário

O significado da solidariedade com relação à Seguridade Social está fortemente ligado à ideia de bem comum ao entendermos que todos são responsáveis por todos. De fato, a solidariedade é o elemento central desencadeador das políticas públicas que tenham por finalidade propiciar o bem-estar aos cidadãos24.

Estamos de acordo com Patrícia Sanfelice no sentido de que o Es-tado do Bem-Estar Social foi a maior experiência de solidariedade que já existiu. A sociedade assume o destino das pessoas, de maneira que ninguém é abandonado. O Estado, então, é utilizado para disciplinar e democratizar a distribuição de renda. Essas políticas sociais têm caráter contrário ao individualismo do Estado Liberal. Resulta desse modo a Seguridade Social como um fruto do direito de solidariedade, trazendo uma nova ordem de concepções jurídicas, em resposta ao declínio das

24 SANFELICE, Patrícia de Mello. O Princípio da Solidariedade, características e aplicação na seguridade social. Revista de Direito Social, Porto Alegre, ano 2, n. 7, p. 11, jul./set. 2002.

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concepções do individualismo, para regular os problemas sociais. Rui Barbosa apud Farias25, percebendo o crescimento da solidariedade frente ao individualismo, referiu:

Já não se vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais acastelas cada qual no seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indi-víduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.

No intervalo entre a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, e o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, o intervencionismo estatal, com a finalidade de sanar as desigualdades, toma traços definitivos. É justamente nessa época que surgem as teorias econômicas aliadas a políticas estatais (como o New Deal norte-americano), que servirão de inspiração a profun-das mudanças no modelo estatal contemporâneo. Justamente nesse lapso temporal que será cunhada a expressão Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

A proteção social passa a ser dever de toda a sociedade, possuindo o caráter de solidariedade que conhecemos até os dias atuais. De fato, sem esse conceito de que todos contribuem para que os necessitados possam receber, não é possível falarmos em previdência social26.

Há, portanto, uma íntima relação entre o princípio da solidariedade e a Seguridade Social, considerando que a Seguridade vem à tona justa-mente para satisfazer às necessidades do homem que devem ser providas pelo Estado. Assim, o ordenamento pátrio eleva à categoria de princípio a solidariedade, restando esta com o objetivo da República Federativa do Brasil, com estreito vínculo com os ideais democráticos27.

25 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do Direito de Solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 192.26 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Pre-videnciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 44.27 SANFELICE, Patrícia de Mello. O Princípio da Solidariedade, características e aplicação na seguridade social. Revista de Direito Social, Porto Alegre, ano 2, n. 7, p. 14, jul./set. 2002.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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Conforme o ensinamento de Martins28:

Ocorre solidariedade na Seguridade Social quando várias pes-soas economizam em conjunto para assegurar benefícios quando as pessoas do grupo necessitarem. As contingências são distribuídas igualmente a todas as pessoas do grupo. quando uma pessoa é atingida pela contingência, todas as outras continuam contribuindo para a cobertura do benefício necessitado.

A Seguridade Social tem por escopo prevenir, assistir e proteger os membros da sociedade diante das contingências sociais. Se por um lado é um dever jurídico do Estado, por outro é um direito subjetivo das pessoas que necessitam dessa prevenção, assistência ou proteção. Constitui-se, assim, como dever e direito. Todavia, não tem só a função de atender às necessidades imediatas decorrentes da ocorrência de even-tos nele prescritos. O papel do Estado vai além, cabendo a ele cumprir com os objetivos dos sistemas nos quais se insere, os da ordem social e, ao fim, os da República Federativa do Brasil. Por isso, de fato, a Se-guridade Social cumpre importante papel socioeconômico por meio da redistribuição de renda29.

Desse modo, a Seguridade Social contemporânea não é mais um serviço público de amparo social mantido pelos tributos sem vincula-ção às prestações estatais predefinidas para exercer o novel papel de distribuição de rendas. Trata-se de um mecanismo de transferência das responsabilidades pelos efeitos dos riscos sociais dos que foram atingidos pelas contingências sociais para os integrantes de grupos economicamente mais fortes, e destes para as pessoas mais aptas a suportá-las, isto é, toda a sociedade30.

28 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 67 e 68.29 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 63.30 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 63.

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A Seguridade Social tem um importante papel na redistribuição de rendas. Tanto é assim que, na França, havia um imposto sobre a riqueza, sobre a propriedade e sobre grandes fortunas. Tal tributo foi extinto, sendo criado no seu lugar o imposto da solidariedade social. Seu objetivo não é de atender aos gastos gerais do orçamento, mas de gerar recursos que possam auxiliar a eliminar o desequilíbrio de rendas existente no país, tirando dos ricos para aplicar a favor dos mais pobres, de modo a tentar nivelar o grau de bem-estar no país31.

No Brasil, é relevante o papel da Previdência Social na redução das desigualdades sociais e econômicas, mediante uma política de redistri-buição de rendas. Urge que se retirem maiores contribuições das parcelas mais favorecidas da sociedade e, assim, que se concedam benefícios a populações de mais baixa renda. Historicamente, foram as consequên-cias da vida laborativa moderna, posterior à Revolução Industrial, que levaram à criação dos primeiros modelos de Seguro Social como meio de amparar o trabalhador quando incapacitado e, após, à instituição das políticas de Seguridade Social, visando à melhor redistribuição de renda e a melhores condições sociais32.

Ademais, a solidariedade exerce também a função de mantenedora da ordem social, considerando que ela contém a liberdade nos seus limites, evitando desse modo o uso abusivo da liberdade de um em detrimento da liberdade de outro. Por isso, considerando seu papel distribuidor de renda, a solidariedade serve como instrumento para a repartição equili-brada das coisas, efetivando o mandamento da justiça, ou seja, dando a cada um o que é seu33.

31 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 64.32 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Pre-videnciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 55 e 56.33 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 64.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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Há quem alegue que o trabalhador deva ser responsável por sua subsistência futura quando deixar de ser capaz para o trabalho, fazen-do uma poupança para tanto. Todavia, há casos em que o trabalhador sofre acidente no início de sua atividade produtiva, sendo a partir disso incapaz para o trabalho. Isso revela que, por mais precavido que possa ser o indivíduo, ele estará sujeito a múltiplos infortúnios em todos os momentos de sua vida, e não somente na sua velhice. Destarte, assume especial relevância o princípio da solidariedade, pois, se a finalidade da Previdência Social é a proteção à dignidade da pessoa, somente se alcança tal proteção pela cotização coletiva a favor daqueles que, no futuro, ou mesmo no presente, necessitem de prestações retiradas desse fundo comum34.

Nosso Sistema de Seguridade Social, assim, do modo como posto pela Constituição Federal de 1988, pauta-se na ideia de solidariedade, que é pressuposto do Estado Providência e da social-democracia. Tal ideia de solidariedade, ao contrário do que poderia parecer ao senso comum, fundamenta-se no reconhecimento da desigualdade entre os homens, na medida em que propugna que alguns privilegiados têm o dever jurídico, e não puramente moral, de repartir os frutos de seu trabalho com os de-mais. Esse dever é político, econômico e social, e como decorrência desse princípio o indivíduo tem a obrigação de concorrer para a subsistência do Estado pelo simples fato de ser membro da comunidade, independente de contraprestação ou benefício35.

O princípio constitucional da solidariedade, em termos de Direito Previdenciário, serve como meio de realização da dignidade da pessoa humana, de modo a atender aos fins da justiça social. No que tange ao conteúdo normativo do princípio da solidariedade, há variação quanto aos seus limites e suas possibilidades. Ocorre que a proteção social deverá ser ministrada até debelar a necessidade resultante de uma contingência

34 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Pre-videnciário. 14. ed. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 54.35 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. O sistema de seguridade social e o princípio da soli-dariedade: reflexões sobre o financiamento dos benefícios. Revista de Doutrina TRF4, Porto Alegre, ed. 25, p. 4 e 5, ago. 2008.

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social, sendo que o dever do Estado e o direito do indivíduo não abrangem todas as carências nem sua completa extensão36.

No âmbito da saúde, a solidariedade consiste na contribuição de todos para a fruição por todos. Os recursos que financiam a saúde são su-portados por toda a sociedade, sem vinculação a nenhum beneficiário em específico, e têm por objetivo atender a toda a sociedade. Por intermédio dos impostos, das contribuições e de outras receitas, todos pagam para financiar a prestação de serviços a todos. Assim, em termos de saúde, a solidariedade social está limitada pelos princípios da universalidade e da uniformidade, preceituados no artigo 196 da Constituição Federal, os quais “não permitem que o legislador ordinário e o aplicador do Direito façam escolhas ou instituam privilégios: dá aos serviços médicos a quan-tos, no território nacional, deles tenham necessidade contra a doença”. Por outro lado, “esses serviços são devidos em dose igual, seja qual for seu destinatário, bastando que seja carecedor deles”37.

Já em termos de assistência social, são atendidos aqueles que não são filiados à Previdência Social, que não verteram sequer uma contri-buição. Todavia, para que possam fazer jus à contraprestação, urge que não tenham outro modo de prover o próprio sustento. Só se justifica o custeio por toda a sociedade se realmente houver a carência38.

Em termos de assistência social e de Previdência, vige o princípio da supletividade, ou seja, o Estado substitui a atividade do particular e apenas intervém quando de fato o indivíduo não pode suportar os efeitos das contingências sociais. Na assistência, todos pagam, mas

36 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 66.37 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 66 e 67.38 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 67.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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apenas alguns gozam das prestações. Aplica-se, então, a regra do “to-dos por alguns”. Essa limitação só ocorre porque seria inviável uma seguridade plena, a qual importaria uma carga difícil de ser suportada pela coletividade39.

No que concerne à Assistência Social, a responsabilidade do Estado é subsidiária à da família. Somente se de fato a família não tiver condi-ções de atender aos seus idosos, aos seus deficientes e às suas crianças é que o Estado irá arcar com o pagamento da prestação assistencial. Tal caráter subsidiário acaba por limitar a aplicação normativa da solidarie-dade social, sendo possível de se cogitar em uma ação regressiva contra a família caso possua condições de prestar a assistência requerida. De acordo com a juíza Leda Pinho, “o princípio da solidariedade na Assis-tência Social pode então ser designado do princípio da solidariedade seletiva ou restrita”40.

A Previdência Social não tem por objetivo a indenização, mas acudir a necessidade social. Por isso, não há correspondência exata entre o que o trabalhador paga e o que ele recebe se ocorrido o evento acobertado. A solidariedade financeira é um dos pressupostos da solidariedade social, já que os recursos precisam vir antes dos encargos financeiros. Em termos de previdência, tais recursos são carreados por alguns segurados em benefício de alguns segurados e seus dependentes. Vale, então, no que toca à Previdência Social, a regra do “alguns por alguns”41.

No dizer da juíza Leda Pinho: “A contributividade e a filiação, por-tanto, integram e limitam o conteúdo do princípio da solidariedade na

39 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 67 e 68.40 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 68.41 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 69.

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Previdência Social, o qual se pode designar de princípio da solidariedade interpessoal, contributiva ou recíproca”42.

3.2 O princípio constitucional da solidariedade na perspectiva do Direito Ambiental

O princípio da solidariedade traduz-se no novo marco jurídico--constitucional do Estado Socioambiental de Direito Contemporâneo. Esse princípio surge como uma “tentativa histórica de realizar na integra-lidade o projeto da modernidade, concluindo o ciclo dos três princípios revolucionários: liberdade, igualdade, fraternidade”43.

De fato, há que se aprofundar o ideário da Modernidade, sobretudo em sociedades como a nossa, nas quais se enfrentam carências já solucio-nadas nos países desenvolvidos. Devemos insistir na luta pela implemen-tação dos grandes valores do iluminismo da liberdade, da igualdade, da democracia e da solidariedade. E considerando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, incluídos aí os direitos sociais, recupera-se a noção de solidariedade, revestindo-a de juridicidade. Desse modo, confere-se aos poderes econômicos privados não apenas o dever moral de garantir certas prestações sociais para as pessoas carentes com quem se relacionam, mas acarretam, em certos casos, a obrigação jurídica de fazê-lo.

Nossa Constituição de 1988, como já comentamos anteriormente, é um marco para a dignidade da pessoa humana, trazendo a “primazia das situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial”44.

42 PINHO, Leda de Oliveira. O conteúdo normativo do princípio da solidariedade no sistema da seguridade social. In: LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista (Coord.). Curso Modular de Direito Previdenciário. Florianópolis: Conceito, 2007, p. 69.43 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 151, jan./mar. 2008.44 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura Civil--Constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109 apud FENS-TERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 132-157, jan./mar. 2008.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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Estabelece-se, então, o princípio da solidariedade como um princípio e um valor constitucional.

Conforme Fensterseifer: “A solidariedade expressa a necessidade fundamental de coexistência do ser humano em um corpo social, forma-tando a teia de relações intersubjetivas e sociais que se traçam no espaço da comunidade estatal”45. Ocorre que aqui se vai além de uma obrigação simplesmente moral, porquanto o princípio da solidariedade assumiu hie-rarquia constitucional, levando consigo toda a carga jurídico-normativa.

O princípio da solidariedade não opera isoladamente no sistema nor-mativo, atuando juntamente com outros princípios como a justiça social, a igualdade substancial e a dignidade humana. A justiça social e a justiça distributiva passam pelo fortalecimento da solidariedade. Se os direitos sociais dependem dos vínculos de fraternidade, o mesmo vale para os direitos de terceira dimensão, como é o caso dos direitos ecológicos, os quais também encontram seu fundamento na ideia de justiça ambiental46.

Ainda segundo Fensterseifer:

O princípio da solidariedade, juntamente com o princípio da igualdade, é instrumento e resultado da atuação da dignidade social do cidadão, a qual confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas de exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes.

Ademais, a ideia de justiça distributiva está inserida no princípio da solidariedade, já que esse princípio trata da relação entre sociedade e Estado, de modo a deslocar para os particulares parte da responsabilidade e dos encargos pertinentes à concretização dos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana.

45 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 151, jan./mar. 2008.46 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 152, jan./mar. 2008.

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O princípio 3 da Declaração do Rio preceitua: “Princípio 3. O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas, equitativamente, as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”. A solidariedade, assim, encontra-se ligada ao conceito de direito sustentável. Pela própria natureza difusa do bem ambiental, seu direito deve ser usufruído tendo em vista o direito de toda a coletividade, de modo a se afastar de uma perspectiva individualista e, indo além, de modo a garantir o direito das futuras gerações. Esse direito intergeracional também é expresso no artigo 225, caput, da Constituição Federal, a fim de determinar que encargos e responsabilidades sejam partilhados entre Estado e sociedade, conferindo “ao Poder Público e à coletividade o dever” de defender e proteger o ambiente para as presentes e as futuras gerações. É interessante observar que, atualmente, segundo o preceito constitucional, o dever de solidariedade é atribuído também aos particulares. Trata-se de um “de-ver fundamental”, que é “um dos aspectos normativos mais importantes trazidos pela nova dogmática dos direitos fundamentais, vinculando-se diretamente com o princípio da solidariedade”47.

Entende-se que há solidariedade também entre cidadãos de diferentes Estados nacionais, para conformar e limitar as práticas sociais predatórias do ambiente, de modo a alcançar um desenvolvimento sustentável mun-dial. Ocorre que, tendo em vista a crise ambiental pela qual passa nosso planeta, o conceito clássico de soberania restou relativizado. Destarte, em relação ao meio ambiente, a soberania não é mais justificativa para o abuso desenfreado dos recursos naturais. Embora soberano, o Estado deve respeitar o meio ambiente. Nesse sentido, estamos todos conectados pelo fato de habitarmos o mesmo planeta. Nossas ações, mesmo que realiza-das nos limites de nosso Estado, trarão consequências para além disso.

O princípio constitucional da solidariedade incide entre todos os grupos humanos, de todas as nações da mesma geração, mas também entre a geração atual e a futura, como bem assinala Comparato48:

47 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 153, jan./mar. 2008.48 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 422.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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Trata-se de aplicar, na esfera planetária, o princípio da so-lidariedade, tanto na dimensão presente como na futura, isto é, solidariedade entre todas as nações, povos e grupos humanos da mesma geração, bem como solidariedade entre a geração atual e as futuras. É evidente que a geração presente tem o dever fundamental de garantir às futuras gerações uma qualidade de vida pelo menos igual à que ela desfruta atualmente. Mas não é menos evidente que esse dever para com as gerações pôsteres seria despido de sentido se não se cuidasse de superar, desde agora, as atuais condições de degradação ambiental em todo o planeta, degradação essa que acaba por prejudicar mais intensamente as massas miseráveis dos países subdesenvolvidos.

O artigo 225 da Constituição Federal é expresso ao mencionar que é dever de todos preservar o meio ambiente para as presentes e as fu-turas gerações. Isso tem como objetivo garantir patamares de vida com dignidade para ambas, implicando uma série de responsabilidades das gerações presentes para com as futuras.

É inegável a responsabilidade de todos, a ser compartilhada, em termos de meio ambiente, considerando a condição de ser natural de que é dotado o ser humano, sendo inadmissíveis todas as ações que de-gradem ou prejudiquem o meio ambiente, bem como todas as omissões que não impeçam tais ações destrutivas. Como lembra, acertadamente, Juarez Freitas49:

O ciclo de vida dos produtos e serviços é responsabilidade a ser compartilhada tempestivamente. A crueldade contra a fauna é violência inadmissível. A alimentação não pode permanecer con-taminada e cancerígena. Os gases de efeito-estufa não podem ser emitidos perigosamente e sem critério. A economia de baixo carbono é meta inegociável. As florestas não podem deixar de cumprir as suas funções sistêmicas. O ser humano não pode, enfim, permanecer esquecido de sua condição de ser eminentemente natural, embora dotado de características singularizantes, que apenas deveriam fazê-lo mais responsável sistemicamente e capaz de negociar com diferentes pontos temporais.

49 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 65.

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De acordo com Sampaio50:

[...] as presentes gerações não podem deixar para as futuras ge-rações uma herança de déficits ambientais ou do estoque de recursos e benefícios inferiores aos que receberam das gerações passadas. Esse é um princípio de justiça ou equidade que nos obriga a simular um diálogo com nossos filhos e netos na hora de tomar uma decisão que lhes possa prejudicar seriamente.

Há quem, como Fensterseifer51, mencione inclusive a existência de um princípio de proibição de retrocesso em termos de qualidade ambien-tal, na medida em que é um direito das futuras gerações não receberem a terra ou os recursos naturais em condições ambientais piores que as recebidas pelas gerações anteriores.

Essa solidariedade projeta-se ainda entre todos os seres vivos, havendo uma comunidade entre a terra, as plantas, os animais e os seres humanos, considerando que a ameaça ecológica afeta a todos, já que o planeta é a casa comum de todos nós. Isso faz com que o ser humano se reconheça in-tegrante dessa comunidade natural “frente à qual uma relação de solidarie-dade e respeito mútuo apresenta-se como pressuposto para a permanência existencial das espécies naturais (incluída entre eles a espécie humana)”52.

Uma atitude ética sustentável, ao mesmo tempo em que alcança bem-estar íntimo, proporciona bem-estar social, estando nós cientes de que, como já referido anteriormente, o progresso material, por si só, não se converte, necessariamente, em garantia de bem-estar. Tanto é assim

50 SAMPAIO, José Adérito Leite. Constituição e meio ambiente na perspectiva do direito constitucional comparado. In: SAMPAIO, José Adérito Leite; WOLD, Chrise; NARDY, Afrânio. Princípios de Direito Ambiental na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 53.51 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 155, jan./mar. 2008.52 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 156, jan./mar. 2008.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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que os ricos não se percebem mais felizes. Juarez Freitas sugere que os recursos públicos sejam

redirecionados à universalização do bem-estar, em vez de devorados pelo submundo de falsas prioridades das oligarquias autocentradas. O próprio Estado Constitucional, bem observado, só encontra sentido a serviço dos fins éticos fundamentais, diretamente relacionados à sustentabilidade do bem-estar.

Em se tratando de políticas públicas, está sempre em jogo a opção de nossos governantes em investir nesse ou naquele setor. Há, por certo, uma margem constitucional de liberdade. Contudo, o que não se permite e o que viola diretamente a Constituição é que a administração pública seja governada com fins egoísticos – sem obediência ao princípio da solidariedade –, o que no mais das vezes acaba se convertendo em corrupção, que é eticamente reprovável, não universalizável em longo prazo e insustentável. Conforme a preciosa lição de Juarez Freitas53: “A honestidade de propósitos evolutivos é, sim, ingrediente de qualquer filosofia consistente de sustentabilidade, nas relações públicas e privadas, acompanhada da capacidade de antever impactos sistêmicos”.

De fato, a proteção ambiental é, atualmente, uma das bases éticas fundamentais da sociedade. Desse modo, para que haja o convívio har-monioso entre todos os integrantes da comunidade humana, concordamos com Fersterseifer54 no sentido de que urge que seja firmado um pacto socioambiental no que tange à proteção da Terra, para que todos assu-mam seus papéis rumo a uma sociedade saudável em termos ambientais.

Caso o meio ambiente, como um todo, prossiga acidentado, tóxico e contaminado, chegaremos rapidamente à temida insustentabilidade. Juarez Freitas55, sabiamente, argumenta com base em solução que passa pela melhoria da educação em nosso país:

53 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 62.54 FENSTERSEIFER, Tiago. Estado Socioambiental de direito e o princípio da soli-dariedade como seu marco jurídico constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça: revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 156, jan./mar. 2008.55 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 59.

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As escolas, por sua vez, precisam, ao mesmo tempo, educar para competências e habilidades e para o “capital social” produtivo, em vez do desfile de métodos aborrecidos, inúteis e subavaliados. Entretanto, para que cumpram esse papel, inadiável a tomada de providências estruturais, com o qualificado aumento dos investimen-tos naquilo que comprovadamente funciona, dado que as escolas não podem continuar a ser depósitos de alunos, perdidos no atraso escolar, na repetência e no abandono.

Assim, para nós, a sustentabilidade é um desdobramento do princípio constitucional da solidariedade. Estamos em sintonia com o festejado jurista Juarez Freitas56, quando afirma que a sustentabilidade é

(a) princípio constitucional imediata e diretamente vinculante (CF, artigos 225, 3º, 170, VI, entre outros), que (b) determina, sem prejuízo das disposições internacionais, a eficácia dos direitos fundamentais de todas as dimensões (não somente os de terceira dimensão) e que (c) faz desproporcional e antijurídica, precisamente em função do seu caráter normativo, toda e qualquer omissão cau-sadora de injustos danos intrageracionais e intergeracionais.

Conclusões

a) É possível combinar uma economia próspera com uma so-ciedade humanitária, desde que fortaleçamos nossa empatia, sendo capazes de nos colocar no lugar do outro e que possamos agir de forma solidária.

b) O agir solidário não se resume a um ato caridoso, mas trata de obedecer fielmente o artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, já que o princípio da solidariedade foi erigido à hierarquia consti-tucional de maneira expressa.

c) O princípio constitucional da solidariedade é princípio co-gente e possui eficácia plena desde a promulgação da Constituição, não necessitando de qualquer norma infraconstitucional para sua aplicação.

56 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 71.

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE

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d) O princípio constitucional da solidariedade serviu de suporte axiológico também para o Código de Ética da Magistratura, restando expresso no artigo 3º do mencionado código que a atividade judi-cial deve “promover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas”. Tal dispositivo maximiza a força normativa do princípio constitucional da solidariedade, obrigando o Magistrado a que sua atividade jurisdicional seja permeada pelo princípio da solidariedade sob pena de infringir, além do dispositivo constitucional, também o artigo 3º do Código de Ética da Magistratura.

e) O princípio constitucional da solidariedade ilumina o Direito Previdenciário, pois a Previdência, a Assistência Social e a Saúde baseiam-se na solidariedade entre os membros da sociedade para acudir uma necessidade social. Embora com limites e estruturas de custeio diferenciados, o certo é que, se não fosse o princípio da solidariedade, Assistência, Previdência e Saúde não poderiam estruturar-se. É a responsabilidade social institucionalizada, reflexo da aplicação do princípio da solidariedade, que permite ao Estado atender aos reclamos daqueles que invocam o Direito Previdenci-ário.

f) Na perspectiva do Direito Ambiental, do mesmo modo, o princípio constitucional da solidariedade ilumina esse ramo do Direito. Assim sendo, o artigo 225 da Constituição Federal tem aplicação imediata e força vinculante, determinando a eficácia dos direitos fundamentais de todas as dimensões, e não somente os de terceira dimensão. Em termos de Direito Ambiental, opera-se a solidariedade intergeracional e intrageracional, ou seja, deve ser superada a posição antropocêntrica exagerada, no sentido de que os recursos naturais devem servir ao homem à sua exaustão, para que o ser humano coloque-se como ser natural, de modo a coabitar o planeta de forma harmoniosa com todas as outras espécies de vida.

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DIREItO FUnDAMEntAl à BOA ADMInIStRAçãO PúBlICA, MORAlIDADE E

IMPROBIDADE ADMInIStRAtIVAS

EDUARDO KAHLER RIBEIROJuiz Federal Substituto da 1ª Vara Federal de Bento Gonçalves/RS

Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO: A redefinição dos limites da atividade administrativa e da própria legalidade implica um direito fundamental à boa administração pública. Isso amplifica o controle da atividade administrativa, proble-matizando a caracterização de condutas que afrontam o dever de bem administrar. Visualizada a moralidade administrativa como princípio, irradiando efeitos positivos e negativos destinados a pautar a conduta do administrador, a improbidade administrativa exige um enquadramento de situações-limite, não corriqueiras, que passam pela testagem da imo-ralidade. Na tentativa de se densificar tais situações, o primeiro passo é a utilização da proporcionalidade, que possibilita a análise entre meio e fim do agir administrativo, com ênfase no exame de adequação deste, seguida pela necessária aferição do aspecto subjetivo, conexo à gravidade da ação ou à omissão culposa ou dolosa do administrador.

SUMÁRIO: Introdução. 1. O direito fundamental à boa administração pública e a ampliação do controle da administração pública. 2. Morali-dade e improbidade administrativas. 3. Pressupostos para a improbidade administrativa: exame de proporcionalidade e gravidade da conduta. Conclusões. Bibliografia.

PALAVRAS-CHAVE: Direito fundamental à boa administração. Legalidade. Moralidade administrativa. Improbidade administrativa. Proporcionalidade. Adequação. Gravidade.

IntroduçãoÉ conhecido o adágio segundo o qual ao homem público, assim

como à mulher de César1, não basta ser honesto sem parecê-lo. à retidão

1 “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. A origem da expressão advém de episódio histórico no qual Júlio César se separou de Pompéia após suspeita de adultério dela com Clódio Pulcro. Sem fazer qualquer acusação moral contra Clódio, César foi perguntado por que se separou de Pompéia, ao que replicou: “Porque minha esposa deve ficar acima de qualquer suspeita” (DURANT, Will. Heróis da História – uma breve história da civilização da antiguidade ao alvorecer da era moderna. Porto Alegre: L&PM, 2012).

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das condutas dos agentes públicos, portanto, deve se seguir a concreta demonstração da ausência de vícios do agir. Tal aparente dever de trans-parência, contudo, problematiza-se na medida em que a administração pública vê redefinidos seus limites e seu objeto, distanciando-se da mera execução de leis e passando a orientar condutas, promover fins diversos, mediar problemas, qualificar soluções. Não há mais espaço para uma administração meramente burocrática, dedicada apenas à atividade subsuntiva das leis aos fatos. A atuação da administração pública, hoje, se orienta para a consecução de um direito fundamental do administrado à boa administração, a que se contrapõe um – complexo – dever funda-mental de bem administrar.

Um novo horizonte, novos desafios. Como consequência da redefi-nição do objeto e da atividade administrativa, o controle dos atos admi-nistrativos também tem redesenhado seus limites. Se antes era vedada a incursão pelo elemento anímico do administrador-aplicador da lei, o que implicava descontrole, hoje se assiste a um problema inverso. Com tantos parâmetros de controle, como separar o agente público de má-fé, que se locupleta indevidamente e causa prejuízos ao erário, daquele inábil, pouco criterioso? quais os limites exatos da má gestão e da responsabilização do agente? O direito fundamental à boa administração subjetiva o direito do cidadão à melhor escolha administrativa? Até que ponto a má escolha pode implicar a responsabilização do agente público?

Essas questões surgem no influxo das novas margens de controle da atividade administrativa e do aprimoramento institucional que consagra várias instâncias, externas e internas, de fiscalização. Nessa nova dinâ-mica, merece realce o papel da improbidade administrativa (tipificada na Lei nº 8.492/92) – instância punitiva última do direito administrativo sancionador, apta a sancionar os limites extremos da má gestão. A im-probidade, tida como uma imoralidade qualificada, exige a prática de condutas suficientemente graves, distintas da mera ilegalidade.

Partindo do exame da moralidade administrativa como princípio destinado a estabelecer cânones hermenêuticos para a qualificação da conduta do administrador, irradiando efeitos positivos e negativos, o presente trabalho propõe-se a adentrar em uma significação mais con-creta dos deveres atinentes à improbidade administrativa. Para tanto, a partir dos novos limites da atividade administrativa e do sujeito admi-

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159DIREITO FUNDAMENTAL à BOA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA, MORALIDADE E

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVAS

nistração pública, no âmbito do direito fundamental à boa administração pública, desenha-se o espaço normativo do princípio da moralidade, o qual, em seu aspecto subjetivo e positivo, suscita o dever de probidade do administrador.

Na tentativa de se densificar as condutas enquadráveis na improbi-dade administrativa, ganha campo a proporcionalidade, como postulado normativo destinado a testar os meios utilizados pelo administrador ao fim que lhe é vinculado (interesse público). Nesse exame, é importante perscrutar-se a adequação das condutas administrativas, sobretudo em face da separação de poderes e do espaço legítimo de escolhas, mais ou menos vinculadas, do administrador.

O exame de proporcionalidade, contudo, fornece apenas standards mínimos de atuação, identificando condutas que, reprovadas no teste meio-fim, sinalizam a possível ocorrência de improbidade. Para tanto, um elemento adicional faz-se necessário, correlacionado à gravidade da conduta do administrador faltoso, seja por dolo ou por culpa grave.

A densificação da improbidade a partir da moralidade adminis-trativa como princípio e da primeira testagem da proporcionalidade permite evidenciar que o âmbito de incidência daquela é bem reduzido, comparativamente à mera ilegalidade ou imoralidade hábil a invalidar o ato administrativo. Isso se faz necessário para que a improbidade ad-ministrativa tenha resguardada sua vocação constitucional como última instância do direito administrativo sancionador.

1 O direito fundamental à boa administração pública e a am-pliação do controle da administração pública

As relações entre a administração pública e as pessoas a ela subor-dinadas modificam-se, atualmente, como decorrência de um fenômeno de redefinição publicística da própria relação liberdade/autoridade2 e da superação do corte epistemológico entre sociedade e Estado3. Visualizada a relação de administração como aquela que se estrutura

2 DROMI, Roberto. El trânsito al derecho publico de la posmodernidad, p. 32.3 FREITAS, Juarez. Repensando a natureza da relação jurídico-administrativa e os limites principiológicos à anulação dos atos administrativos, p. 17.

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sob o influxo de uma finalidade cogente, que é a promoção de uma utilidade pública4, não mais cabe a clássica visão da administração pública weberiana, despersonalizada, como mera executora da lei e integrante secundária de um Poder Executivo. A abstrata função de apenas sustentar a lei se subjetivou, transformando-se em um sujeito singular, dotado de múltiplas atividades tendentes à consecução de um fim público5.

Da caracterização da administração pública como sujeito, entre-tanto, depende a prévia definição da atividade desempenhada por esse ente singular6. Nesse contexto, a partir da década de 30 do século XX, a administração foi assumindo novos papéis à medida que aumentavam as funções do Estado, com a flexibilização da tripartição estanque de pode-res. Criaram-se novos entes, dotados de personalidade jurídica própria, para atuar em setores específicos. A administração descentralizou-se, fragmentou-se: da imagem da pirâmide em cada ministério passou-se à imagem de uma rede de pirâmides, em relações jurídicas complexas e multipolares orientadas pela proteção aos direitos fundamentais, que têm no consenso seu centro gravitacional. Ampliaram-se, também, as atividades: a burocracia guardiã tornou-se burocracia prestacional, que deve agir rumo à concretização do direito fundamental à boa adminis-tração pública, atendendo às justas expectativas dos administrados7. Tal direito, nas palavras de Juarez Freitas,

trata-se do direito fundamental à administração pública efi-ciente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, impar-cialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas8.

4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo, p. 23-25.5 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Revolución francesa y administración contem-poranea, p. 75.6 CIRNE LIMA, Ruy. op. cit. p. 138.7 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução, p. 127.8 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 21.

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Fala-se, hoje, que o direito administrativo passou de uma rigidez autoritária à flexibilidade democrática, permutando a puissance publique pela finalidade pública, não descoberta a priori, como seu centro sistêmi-co9. Como consequência, o direito administrativo respira a absorção de valores e princípios consagrados na Constituição, a assimilação de uma nova relação Estado-Sociedade, com a abertura para o cenário político--econômico em que atua e para conexões científicas interdisciplinares10.

É previsível o choque desse cenário de renovação com o princípio da legalidade, tradicional estandarte da atividade administrativa aplicadora da lei. Como decorrência da complexidade das relações que rege, assiste--se hoje a uma progressiva indeterminação e abertura densificadora da normatividade a favor da administração pública, superando-se a ideia de uma genérica natureza heterovinculativa da legalidade em face do Poder Executivo11. A legalidade, nessa perspectiva, deixa de ser pauta de limite do administrador e torna-se parâmetro para a atuação da administração pública como sujeito de deveres-poderes12. Diz-se que esse princípio, hoje, não mais se densifica na estrita relação lei/ato administrativo, e sim no contexto ordenamento jurídico/Administração13.

Como subproduto da redefinição do princípio da legalidade e da consagração do direito fundamental à boa administração, ampliou-se a margem de controle dos atos administrativos. Parâmetros como discricio-nariedade administrativa, interesse público preponderante, ato político, etc. saíram de infensos a qualquer tipo de controle para integrantes de um rol de prerrogativas da administração pública válidos apenas enquanto direcionados de acordo com premissas constitucionais. A finalidade

9 MOREIRA, João Batista. Direito Administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade democrática, p. 15-19.10 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. p. 267.11 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação ad-ministrativa à juridicidade, p. 162 e 894.12 GRAU, Eros Roberto. Algumas notas para a reconstrução do princípio da legalidade, p. 162.13 MEDAUAR, Odete. op. cit. p. 147-148; ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade, p. 62; COUTO E SILVA, Almiro do. Poder Discricionário no Direito administrativo brasileiro, p. 53; MOREIRA, João Batista, op. cit,. p. 406.

DIREITO FUNDAMENTAL à BOA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA, MORALIDADE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVAS

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pública a ser atingida não o é a qualquer custo, mas tão somente quando contextualizada em regular motivação e adequação dos fins perseguidos aos meios eleitos pelo administrador.

A dilargada amplitude do controle sobre os atos da Administração, consectário que é da redefinição dos limites da própria atividade adminis-trativa e da submissão à lei, traz consigo a complexa questão metodológica atinente aos parâmetros de tal controle, sobretudo no âmbito do direito ad-ministrativo sancionador. Se a história do direito administrativo é a história da luta contra as imunidades de poder, como afirma García de Enterría14, um passo essencial para a consolidação das modificações por que passa o direito administrativo reside na delimitação do âmbito de responsabilização dos agentes que, de algum modo, praticam ações ou omissões incompatí-veis com o direito fundamental à boa administração pública.

Sucede que, na multifacetada atividade administrativa, o espectro de condutas passíveis de serem enquadradas como ofensivas aos deveres inerentes a tal direito fundamental (eficiência, transparência, sustentabili-dade, motivação proporcional, imparcialidade, moralidade, participação social, responsabilidade) é muito amplo, demandando do intérprete uma contínua e difícil atividade depuradora. Afinal, entre a corrupção15 – tida como a violação mais grave à reta conduta do administrador – e o erro escusável no direcionamento de alguma atividade, subsistem várias ações ou omissões que podem invocar, em qualquer medida, responsabilização. Como punir, por exemplo, o agente público que obtém resultado eco-nomicamente eficiente em sua gestão, porém se valendo de nepotismo? E a situação do agente que é absolutamente ineficiente, mas não pratica qualquer imoralidade? Até que ponto práticas imorais, porém não abso-lutamente desconformes à leitura estrita da lei, merecem sancionamento?

Como premissa para a resposta a tais questões, faz-se necessário se situar adequadamente a moralidade administrativa no âmbito da im-

14 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La lucha contra las inmunidades del poder em el derecho administrativo (poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos).15 LEAL, Rogério Gesta. Fundamentos filosófico-políticos do fenômeno da corrupção: considerações preliminares. Cadernos de Pós-Graduação em Direito da UFRGS, v. VII, n. 1, ano 2012.

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probidade administrativa, conferindo àquela uma significação concreta para fins de adequação de eventuais condutas ímprobas, em tema a ser enfrentado no próximo subitem.

2 Moralidade e improbidade administrativas A noção de administração pública, em lição clássica de Ruy Cirne

Lima, é antagônica à de propriedade16. O administrador público, por isso, tem o ônus de gerir a coisa alheia de modo cuidadoso, diligente e atento, concorrendo para a realização da boa administração. Essa concepção finalística da atividade administrativa indica a aparente necessidade de se objetivar o resultado da atuação do administrador, desvinculando-o da intenção de produzi-lo. Salienta Diogo Figueiredo Moreira Neto:

Assim, se a atividade do administrador se dirigiu, honestamen-te, a obter o máximo de ganhos para a Administração, mas não se voltou ao atingimento de objetivos finalisticamente adequados, sua intenção pode ter sido moralmente boa, mas seu resultado foi moral-administrativamente mau.

Da mesma forma, se a intenção do agente foi moralmente vicia-da ao atuar administrativamente, mas, não obstante, seus objetivos satisfazem a finalidade pública, o vício porventura existente em sua intenção não inquinará a ação administrativa cujo resultado foi moral-administrativamente bom.17

Não obstante, pretender-se o exame da atuação administrativa apenas sob o enfoque do resultado concreto atingido, abstraindo-se aspectos anímicos, não é tarefa fácil. É comum, afinal, o atingimento de fins ilícitos sob a roupagem de lícitos, valendo-se o agente de meios aparentemente regulares. Uma licitação que sagra vencedor aquele que obteve vantagem competitiva indevida (por exemplo, com informações confidenciais ou mediante a inserção de cláusula no edital que lhe fa-vorecia propositalmente), em que pese abstratamente regular, carece de manifesto vício de origem.

16 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo, p. 37.17 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à efetivação. Revista de direito administrativo, v. 190, out./dez. 1992, p. 7.

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Dessa dificuldade originou-se a ideia de moralidade administrativa enquanto cânone hermenêutico para o controle da atividade administrativa. Vendo que o exame raso da legalidade dos atos administrativos não permitia investigar aqueles praticados com meios lícitos para atingir a finalidades metajurídicas irregulares, o Conselho de Estado francês, sobretudo nos atos discricionários, construiu a teoria do desvio de poder. Sob inspiração de Maurice Hauriou, estabeleceu-se, via recurso de excesso de poder, a sindicabilidade dos motivos do ato, das intenções subjetivas do agente18.

Portanto, sob o prisma da moralidade, construída sobre os alicer-ces da teoria do desvio do poder, a mera satisfação dos requisitos da legalidade do ato não é suficiente. O ônus de bem administrar implica a observância de parâmetros de atuação que vão além da mera observância formal de um imediato antecedente normativo19, devendo o agente públi-co garantir o respeito a uma pauta de moralidade própria, demonstrando zelo pela coisa pública. Verbi gratia, um concurso público destinado ao provimento de uma vaga, que tenha como desfecho a aprovação em primeiro lugar do candidato mais bem preparado após conchavo com algum integrante da banca examinadora, é, nessa ótica, um procedimento viciado por manifesta imoralidade, em que pese ter havido, aparente-mente, a melhor solução para a administração pública.

Isso indica que a moralidade administrativa assume o papel de verdadeira otimizadora de padrões de conduta administrativa, como cânone hermenêutico que vinculará a concreção de conceitos fluídos eventualmente constantes nas leis20. A despeito da absorção da moralida-

18 A respeito, GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública – o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. No livro, o autor demonstra que o fenômeno jurídico do controle de atos discricionários da administração por finalidade outra que não o interesse público, a que se quis chamar de “controle de moralidade administrativa”, recebeu o nome de “controle do desvio de poder”, p. 90.19 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa: do conceito à efetivação. Revista de direito administrativo, v. 190, out./dez. de 1992, p. 7.20 MARTINS-COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade administrativa – o controle da moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146. 20 MARTINS--COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade administrativa – o controle da moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146.

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de administrativa pela noção de legalidade substancial (ou juridicidade) – tornando interna ao exame da legalidade a inquirição dos aspectos subjetivos que o cercam, no controle dos motivos e objetos do ato21 –, é certo que, vista como norma finalística, que encerra a promoção de um estado ideal de coisas a ser contraposto à conduta havida como necessária à sua promoção, a moralidade administrativa possui contornos de nítido princípio jurídico22, orientando um padrão de condutas conducentes ao dever de bem administrar.

Extraem-se do princípio da moralidade administrativa funções positivas e negativas. Se positivamente a moralidade atua como cânone hermenêutico e como mandamento de otimização da atividade adminis-trativa, direcionada ao dever de bem administrar, a função negativa de tal princípio o situa como limite entre a discricionariedade e o arbítrio, permitindo o controle efetivo do desvio de finalidade23. Celso Antonio Bandeira de Mello assim sintetiza os modos como pode se manifestar tal desvio:

a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse pú-blico. Isto sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo;

b) quando o agente busca uma finalidade – ainda que de in-teresse público – alheia à categoria do ato que utilizou. Deveras, consoante advertiu o preclaro Seabra Fagundes: “Nada importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir da orientação legal.24

O mesmo autor também é didático ao referir exemplos das duas formas de manifestação do desvio de finalidade:

21 Também demonstrada por GIACOMUZZI, José Guilherme, op. cit., p. 115-125.22 Na definição de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 70.23 Classificação de MARTINS-COSTA, Judith. As funções do princípio da moralidade administrativa – o controle da moralidade na Administração Pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, v. 11, 2º semestre.1993, p. 121-146.24 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 373.

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Exemplo da primeira hipótese tem-se no caso de um superior que remove um funcionário para local afastado sem nenhum fun-damento de fato que requeresse o ato, mas apenas para prejudicá-lo em razão de sua inimizade com ele.

Exemplo da segunda hipótese ocorre quando o agente remove um funcionário – que merecia uma punição – a fim de castigá-lo. Ora, a remoção não é ato de categoria punitiva.25

O exame subjetivo da ação do administrador à luz da moralidade administrativa, que positivamente inaugura um feixe de condutas admissí-veis e negativamente lhe coloca obstáculos à atuação a partir do desvio de finalidade, tem como pauta-limite um dever que é anexo a referido princí-pio, o dever de probidade. Segundo José Guilherme Giacomuzzi, “o dever de probidade é a função subjetiva e positiva do princípio da moralidade administrativa insculpido no art. 37 da Constituição Federal de 1988”26.

Sucede que, se a função positiva do princípio da moralidade possibi-lita maior controle sobre os atos administrativos, a imediata transposição da necessária otimização da atividade administrativa para o dever de probidade mostra-se mais problemática. Isso porque nem todo desvio de finalidade, sob o prisma da moralidade, é ímprobo. A improbidade, não por outra razão conhecida como imoralidade qualificada, exige atos inequivocamente desonestos ou desleais com o poder público27, suficientemente graves para invocar sanções de caráter quase-penal (perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios), em ultima ratio do direito administrativo sancionador28.

Assim sendo, nem todo ato administrativo ofensivo ao direito fun-damental à boa administração pública, em que pese plenamente sindi-

25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. op. cit., p. 373.26 GIACOMUZZI, José Guilherme, op. cit., p. 187-188. 27 FREITAS, Juarez. O princípio jurídico da moralidade e a lei de improbidade administra-tiva. Fórum Administrativo – Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 48, fev. 2005, p. 9.28 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa – má gestão pública, corrupção, ineficiência. 3. edição. São Paulo: RT, 2013, p. 149.

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cável, implica improbidade. A má gestão que autoriza o enquadramento normativo nas sanções da Lei nº 8.492/92 é aquela que, sobre violar a moralidade, é suficientemente grave por contaminada pela afronta à honra institucional, à ética republicana29 que deve presidir a prática do adminis-trador. Como exemplo, situe-se o agente político que nomeia, como cargo comissionado, pessoa sem qualquer familiaridade com a atividade a ser desempenhada. Não havendo provas da existência de qualquer prejuízo ao erário, tal prática pode ser questionada – mesmo judicialmente; não permite, contudo, a caracterização da improbidade administrativa. A exigência de conhecimento da atividade pelo agente público nomeado é imposta por deveres correlatos à eficiência administrativa (corolário do direito fundamental à boa administração pública), mas não está inscrita como requisito expresso da nomeação de comissionados, de modo que, não havendo tentativa de burlar outras normas expressas ou implícitas (v.g., nepotismo, transferência informal de vencimento do comissionado ao nomeante, etc.), improbidade administrativa não haverá.

A dificuldade na densificação de práticas que se enquadram como ímprobas acentua-se em razão do mencionado engolfamento30 da mora-lidade pelo instituto do desvio de poder e sua alocação no plano interno da legalidade. Se toda prática imoral e ímproba pode ser tida como ilegal lato senso, fica patente a perigosa aproximação da fronteira da improbi-dade à da mera ilegalidade31. Levando-se tal identificação ao extremo, toda vez que o Poder Judiciário concedesse uma ordem em mandado

29 “República” vem do latim res publica – literalmente, o bem público, invocando em sua etimologia, assim, a atenção para a coisa pública. Segundo Celso Lafer, compõem a virtude republicana o consensus juris (o consenso do direito, respeito à lei) e a communis utilitatis (a comum utilidade, ideia de um bem comum). LAFER, Celso. O significado de república. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.30 Expressão de que se vale GIACOMUZZI, José Guilherme. op. cit., p. 118-119.31 Em se tratando de improbidade administrativa, é firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10” (STJ, AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Zavascki, Corte especial, DJe de 28/09/2011). Em igual sentido: STJ, REsp 1.420.979/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 10/10/2014; STJ, REsp 1.273.583/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 02/09/2014).

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de segurança (remédio jurídico contra práticas manifestamente ilegais por parte de agentes públicos), deveria imediatamente remeter os autos ao Ministério Público para acionamento do agente em ação cível de improbidade32. Fácil ver que tal assimilação desconsidera o espaço da improbidade no sistema administrativo sancionador.

Situada, pois, a moralidade administrativa como autêntico princípio jurídico que recomenda condutas passíveis de serem praticadas pelo ad-ministrador, e visto que a improbidade administrativa exige um enquadra-mento de situações-limite – e não corriqueiras – que passam pela testagem da imoralidade, é necessário adentrar-se na complementação mais densa de tais situações33. A segurança jurídica é incompatível com a eterna im-precisão entre a caracterização de uma ilegalidade (que enseja a revisão do ato administrativo) e uma improbidade (que leva o agente sancionador a responder na esfera de maior gravidade no âmbito do direito administra-tivo). A improbidade, afinal, deve punir o administrador desonesto e que viola de modo inescusável o dever jurídico de bem gerir, e não o agente meramente inábil, ineficiente ou que comete mera ilegalidade.

Segundo nossa proposta, essa densificação de deveres não é aprio-rística, exigindo caracterização caso a caso, iluminada pela necessária atuação do postulado normativo da proporcionalidade.

3 Pressupostos para a improbidade administrativa: exame de proporcionalidade e gravidade da conduta

Otto Mayer, já na virada do século XIX para o XX, acentuava que “a condição de proporcionalidade, inerente a todas as manifestações do poder de polícia, deve produzir seu efeito também quando se tratar do zelo pela boa ordem da coisa pública”34. Além de regular as intervenções

32 Para acentuar a insuficiência da mera ilegalidade para configuração da improbidade administrativa, o exemplo é utilizado por CAMMAROSANO, Márcio. Princípio da moralidade e improbidade administrativa, p. 159.33 Proposta também de OSÓRIO, Fábio Medina. op. cit., p. 107.34 MAYER, Otto. Le Droit administratif alemand, v. II, p. 60 apud FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, op. cit., p. 89.

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do poder público no âmbito do poder de polícia, a proporcionalidade há muito é, portanto, uma condição de regularidade de toda e qualquer ação administrativa, seja ela mais ou menos discricionária.

No âmbito da improbidade administrativa, a proporcionalidade comumente é invocada por ocasião da dosimetria das sanções a serem aplicadas ao administrador ímprobo, juntamente com a razoabilidade35. Não obstante, tem-se que tal postulado normativo36 tem maiores po-tencialidades, notadamente na prévia caracterização da ação ou omis-são administrativa como ímproba. Ao não prescrever imediatamente comportamentos, mas estruturar a aplicação de normas que o fazem37, a proporcionalidade possibilita a visualização casuística de condutas convergentes à moralidade administrativa, identificando, por exclusão, padrões opostos, entre os quais apenas aqueles de maior gravidade me-recem a chancela da improbidade.

O grande desafio na tentativa de reduzir a fluidez na aplicação prática de tais conceitos (moralidade, improbidade, gravidade do ato) é, partindo do exame interno da proporcionalidade – com seus vetores adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – identificar standards mínimos de conduta que devam ser seguidos pelo administrador para a não prática de atos ímprobos – os quais, como visto, não se confundem com os padrões exigidos para a prática de atos não ilegais ou não imorais. Por isso, para caracterização da improbidade, à reprovação do teste da proporcionalidade na atuação administrativa (que basta à ilegalidade) deve se seguir um elemento adicional, conexo à gravidade do agir do administrador à luz do elemento subjetivo da conduta.

Entre os elementos da proporcionalidade cujo cotejo é necessário para a obtenção dos standards mínimos de atuação, merece destaque o exame da adequação da conduta do administrador aos fins dele exigí-

35 Nesse sentido: “Este Superior Tribunal firmou a compreensão de que não há impe-dimento à aplicação cumulativa das sanções previstas no art. 12 da LIA, bastando que a dosimetria respeite os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade.” (STJ, REsp 1091420/SP, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 23/10/2014, DJe 05/11/2014).36 Na dicção de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 104-110.37 ÁVILA, Humberto. op. cit. p. 81/82.

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veis. Não se pode desconhecer, nesse particular, que a finalidade apta a presidir a atividade administrativa é o interesse público, concretamente delineado a partir da convergência entre o agir do agente público respon-sável e o bem maior da comunidade. E esse bem, observadas premissas fundamentais, é definido a partir de escolhas com maior ou menor grau de discricionariedade38.

No exame de adequação da conduta administrativa (inerente à pro-porcionalidade), deve-se ter presente certo grau de deferência39, porque isso é exigência da separação de poderes e do princípio democrático. Esse espaço mínimo de atuação, consagrado ao administrador e espe-cialmente a agentes políticos, dá ensejo a um modelo fraco de controle da intensidade das decisões adotadas pela administração – que não se confunde com autorização de arbítrio –, a admitir a anulação destas apenas em caso de manifesta e inequívoca adequação dos meios aos fins almejados40. Assevera Fábio Medina Osório:

Os conteúdos da ‘boa administração’ costumam ser mais po-líticos, culturais e econômicos que propriamente jurídicos, já que dificilmente o Poder Judiciário logra obter a imposição de eficiência administrativa pela via de sentenças ou acórdãos.41

38 A título de exemplo, imagine-se um cenário hipotético, em que perfeitamente iden-tificada a disponibilidade apenas do valor x nos cofres públicos e a possibilidade de investimento de tal valor apenas em escolas ou presídios. A decisão de, com o valor x, construir apenas escolas, apenas presídios ou escolas e presídios passa, necessariamente, pela avaliação da maior ou menor necessidade de uns e outros. Não havendo um ditame legal expresso determinando a preponderância de escolas por presídios, ou fixando um número mínimo de escolas e presídios a serem construídos, o administrador deve possuir uma base flexível para a escolha pública. E essa escolha apenas deve ser anulada em caso de manifesta inadequação ao fim a que vinculativamente se destina (interesse público). Seguindo-se no exemplo, a incompatibilidade entre meio e fim seria manifesta, v.g., se houvesse a decisão de construção de escolas em área já densa de instituições da espécie, com vagas sobrando, e com clara insuficiência de presídios, forçando os apenados a cumprir pena em locais sem condições mínimas ou demasiadamente distantes.39 FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública, p. 36.40 É a posição de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 112 e OSÓRIO, Fábio Medina. op. cit., p. 277.41 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa – má gestão, corrup-ção, ineficiência, p. 45.

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Daí deriva que a existência de um direito fundamental à boa admi-nistração pública não se confunde com o direito fundamental à melhor administração pública42. A não adoção, por parte do agente público, da melhor escolha (abstraída a complexidade e a indefinição ínsita a tal conceito), mas apenas de escolhas não manifestamente equivocadas, não implica a prática de atos viciados, sendo inábil, portanto, para a anulação do ato e, a fortiori, para a caracterização de improbidade. Atingido o interesse público específico de modo minimamente satisfatório, o ato questionado passa pelo teste primeiro de adequação e de probidade, ressalvando-se que tal esfera legítima de decisão apenas compreende o campo dentro do qual ninguém poderá dizer, com total objetividade, qual é a providência ótima43.

Ocorre que, como visto, o exame de proporcionalidade é apenas um primeiro passo para a verificação da conduta administrativa e confere apenas standards mínimos de ação no que tange à caracterização da legalidade. Para que se ingresse na seara da imoralidade reprovável – e, em última instância, na improbidade –, elementos adicionais, conexos à esfera subjetiva do agente, devem ficar caracterizados44.

As condutas proscritas a partir da concretização do princípio da moralidade administrativa convergem para o chamado desvio de finali-dade (ou de poder), quando o agente se serve de um ato para satisfazer finalidade que é alheia ao interesse público específico. Retoma-se assim, de algum modo, a própria gênese de tal princípio, criado para possibilitar a identificação dos motivos subjacentes a determinados atos aparente-mente legais.

42 Mesma posição defendida por MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Moralidade administrativa: do conceito à efetivação, op. cit., p. 16, em sentido contrário ao entendi-mento de FERRAZ, Sérgio. Instrumentos de defesa dos administrados. Curso de direito administrativo, São Paulo: RT, 1986, p. 167.43 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 400.44 Nesse sentido, já decidiu o STJ que “[...] eventual ilegalidade na formalização do ato questionado é insuficiente a configurar improbidade administrativa, porquanto a situação delineada no acórdão recorrido afasta a existência de imoralidade, desídia, desvio ético ou desonestidade na conduta do recorrido” (STJ, Resp nº 1129277/RS, Segunda Turma, relator Ministro Herman Benjamin, julg.04/05/2010).

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As formas de manifestação do desvio de finalidade – quando o agente busca finalidade alheia ao interesse público ou apenas à catego-ria do ato que utilizou – permitem uma densificação maior do princípio da moralidade administrativa, a partir do exame da motivação do ato. Entre todas as formas de desvio de finalidade, contudo, são passíveis de enquadramento no arquétipo da improbidade administrativa apenas as condutas inequivocamente contaminadas por finalidade alheia ao próprio interesse público e, adicionalmente, qualificadas por suficiente gravida-de por importar enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação manifesta aos demais princípios da atividade administrativa (artigos 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92).

Ao exame do desvio do interesse público – reprovada a ação/omissão, pois, sob a ótica da proporcionalidade –, deve-se somar um elemento subjetivo (dolo ou culpa grave), hábil a acentuar a gravidade da conduta do agente público, contaminada por manifesta deslealdade institucional. Nas palavras de Juarez Freitas, a improbidade exige, para sua caracterização, “grave violação ao senso médio superior de morali-dade e inequívoca intenção manifesta”45.

O âmbito de condutas sancionadas pela improbidade, dessa forma, é bem reduzido comparativamente às condutas acoimadas de ilegais em seu sentido estrito e imorais. Se toda conduta ímproba é imoral, a recíproca nem sempre é verdadeira. Um agente público, ao remover servidor que lhe é subordinado hierarquicamente fora dos requisitos legais, comete manifesta ilegalidade, a qual pode ser apenas imoral, se for motivada com fins punitivos, porém dentro do interesse público que deve presidir o ato, ou imoral e ímproba, caso justificada por fins punitivos, mas fora do interesse público e qualificada por enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação clara a princípios da administração pública (por exemplo, mediante corrupção do agente, assédio moral ao servidor removido, etc.). Do mesmo modo, v.g., um procedimento licitatório viciado por manifesta inabilidade do agente responsável, mas sem provas claras de má-fé deste e prejuízo ao erário – tendo sido devidamente prestado o serviço que deu ensejo ao certame –, não caracteriza, em princípio, improbidade46.

45 FREITAS, Juarez. O princípio jurídico da moralidade e a lei de improbidade admi-nistrativa, op. cit., p. 8/9.46 STJ, Primeira Turma, Resp nº 1.159.746/RS, relator Ministro Luiz Fux, julg. 1º/06/2010.

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A redução do espectro de incidência da improbidade administrati-va, em comparação à ilegalidade e à imoralidade, fica clara na carac-terização da improbidade culposa, que gera prejuízo ao erário (art. 10 da Lei 8.429/92). A fim de se manter coerência com o sistema, apenas condutas que denotem culpa grave, não confundida com inabilidade ou erro profissional, merecem a chancela da improbidade, sendo afastada, de todo modo, a possibilidade de objetivação da responsabilidade47. A reprovabilidade da culpa, aqui, deve ser manifestada por “inequívoca e intolerável incompetência do agente público”48, a desvelar descaso com a coisa pública do administrador faltoso49.

É a gravidade da conduta praticada à luz da moralidade administra-tiva, desvelada sempre em seu aspecto subjetivo e após ultrapassado o necessário exame da proporcionalidade do ato – hábil a afastar, de ante-mão, o direito subjetivo à melhor escolha administrativa –, que permite a caracterização da improbidade administrativa, respeitada sua posição de última instância no sistema punitivo administrativo.

Conclusões1. A modificação das relações jusadministrativistas traz consigo uma

redefinição das atividades típicas da administração pública e da própria sujeição à legalidade. Esta deixou de ser pauta de limite do administrador, tornando-se parâmetro para a atuação da administração pública como sujeito de deveres-poderes, vinculados ao direito fundamental à boa administração pública, que exige do administrador a obediência a uma série de deveres correlatos (eficiência, transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade, moralidade, participação social, responsabilidade).

47 STJ, AIA 30/AM, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 28.09.2011; STJ, REsp. 1.103.633/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 03.08.2010; STJ, EDcl no REsp. 1.322.353/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 11.12.2012.48 OSÓRIO, Fábio Medina, op. cit., p. 247.49 O Tribunal Regional Federal da 4ª Região considerou presente culpa grave, a auto-rizar punição por improbidade, de encarregada pelo setor de medicamentos que atuou negligentemente na sua guarda e destinação (TRF4, AC 5001375-07.2012.404.7105, Terceira Turma, relator p/ acórdão Desembargador Federal Fernando quadros da Silva, juntado aos autos em 29/10/2014).

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2. Como subproduto da redefinição do princípio da legalidade e da consagração do direito fundamental à boa administração pública, ampliou-se a margem de controle dos atos administrativos. Isso invoca a complexa questão metodológica atinente aos parâmetros de tal controle, sobretudo no âmbito do direito administrativo sancionador. O espectro de condutas passíveis de serem enquadradas como ofensivas aos deveres ine-rentes ao direito fundamental à boa administração pública é muito amplo, demandando do intérprete uma contínua e difícil atividade depuradora.

3. Na necessária tentativa de densificar os deveres ínsitos ao ad-ministrador, ganha relevo o papel da moralidade administrativa, como princípio jurídico que encerra a promoção de um estado ideal de coisas, do qual se extraem funções positivas e negativas. Positivamente, a moralidade atua como cânone hermenêutico e como mandamento de otimização da atividade administrativa, direcionada ao dever de bem administrar; negativamente, tal princípio estabelece um limite entre a discricionariedade e o arbítrio, permitindo o controle efetivo do desvio de finalidade. No âmbito positivo e subjetivo, o princípio da moralidade administrativa suscita o dever de probidade administrativa.

4. A imediata transposição dos deveres conexos à densificação do princípio da moralidade administrativa para o dever de probidade é incor-reta, porque nem todo desvio de finalidade, sob o prisma da moralidade, é ímprobo. A improbidade exige atos inequivocamente desonestos ou desleais com o poder público, suficientemente graves para invocar san-ções que se aproximam das de caráter penal, em ultima ratio do direito administrativo sancionador. Visto que a improbidade administrativa exige um enquadramento de situações-limite – e não corriqueiras – que passam pela testagem da imoralidade, faz-se necessário adentrar a com-plementação mais densa de tais situações.

5. Tal tarefa não prescinde, como um primeiro passo, da análise da proporcionalidade da ação/omissão do administrador ao fim a que se propõe, permitindoidentificar standards mínimos de conduta que devam ser seguidos pelo administrador para a não prática de atos ímprobos. Para caracterização da improbidade, contudo, à reprovação do teste da proporcionalidade na atuação administrativa (que basta à ilegalidade), deve se seguir um elemento adicional, conexo à gravidade do agir do administrador.

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6. Entre os elementos da proporcionalidade, cujo cotejo é neces-sário para a obtenção dos standards mínimos de atuação, merece des-taque o exame da adequação da conduta do administrador aos fins dele exigíveis. No exame de adequação da conduta administrativa (inerente à proporcionalidade), deve-se ter presente certo grau de deferência, porquanto isso é exigência da separação de poderes e do princípio democrático, dando ensejo à reprovação no teste de adequação apenas das condutas manifesta e inequivocamente inadequadas. Daí deriva que a existência de um direito fundamental à boa administração pública não se confunde com o direito fundamental à melhor administração pública, sobretudo para fins de incidência das sanções pertinentes à improbidade administrativa.

7. Ultrapassado o exame da proporcionalidade, para que se ingresse na seara da imoralidade reprovável – e, em última instância, na impro-bidade –, elementos adicionais, conexos à esfera subjetiva do agente, devem ficar caracterizados. A improbidade exige condutas inequivoca-mente contaminadas por finalidade alheia ao próprio interesse público e, adicionalmente, qualificadas por suficiente gravidade por importar enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação manifesta aos demais princípios da atividade administrativa (artigos 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92).

8. O âmbito de condutas sancionadas pela improbidade, dessa maneira, é bem reduzido comparativamente às condutas acoimadas de ilegais em seu sentido estrito e imorais. É a gravidade da conduta praticada à luz da moralidade administrativa, desvelada sempre em seu aspecto subjetivo e após ultrapassado o necessário exame da pro-porcionalidade do ato, que permite a caracterização da improbidade administrativa, respeitada sua posição de última instância no sistema punitivo administrativo.

DIREITO FUNDAMENTAL à BOA ADMINISTRAÇÃO PúBLICA, MORALIDADE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVAS

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qUADRO nORMAtIVO InDIGEnIStA

ALEXANDRE GONÇALVES LIPPELJuiz Federal

Mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER)Especialista em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO: O presente trabalho, após um retrospecto histórico, apresenta em linhas gerais os fundamentos e a estrutura dos principais diplomas normativos contemporâneos dedicados aos direitos dos índios, no intuito de demonstrar a evolução do tema e enfatizar a mudança de paradigma envolvendo o tratamento dispensado a eles.

ABSTRACT: This paper, after a historical retrospective, provides na overview of the Fundamentals and structure of the main contemporary regulatory instruments dedicated to indian rights in order to demonstrate the evolution of the theme and emphasize the paradigm shift involving their treatment.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A formação do Estado moderno. 3. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 4. Constituição Federal de 1988. 5. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 6. Conclusão.

1 IntroduçãoO presente artigo pretende traçar um panorama dos principais do-

cumentos jurídicos que versam sobre direitos indígenas, a saber: Con-venção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, Constituição Federal de 1988 e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Na exposição do sistema normativo indigenista, adotou-se um critério cronológico de apresentação, tendo por referência o advento dos sucessivos arcabouços normativos, com o intuito de permitir um melhor entendimento da evolução do tema ao longo do tempo. Essa é a razão pela qual o exame da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho antecede o da Constituição Federal, muito embora a Convenção tenha sido incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro após a entrada em vigor da Constituição. A narrativa não se resumirá a elencar os diplomas legais que se sucederam com o passar dos anos, pois dará ênfase aos fatores teleológicos de con-

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formação do sistema, o que ensejará uma melhor compreensão da quebra de paradigma representada pelo seu advento.

2 A formação do Estado modernoA soberania em seu sentido clássico e o etnocentrismo marcaram

a formação dos impérios coloniais na América Latina e projetaram sua influência nos Estados surgidos com a emancipação política das colônias.

A noção de Estado moderno e o conceito de soberania foram cons-truídos ao longo do tempo, durante o processo de transformação política ocorrido na Europa durante a passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Nesse processo, afirmou-se uma nova formatação do poder e desenvolveu-se um discurso político e jurídico adequado a essa nova realidade1.

O processo de formação do Estado Moderno, desencadeado a partir do final da Idade Média, caracterizou-se pelo declínio da autoridade temporal da Igreja Católica e do feudalismo, com a centralização do poder político na figura do monarca absoluto.

A titularidade da soberania e os modos de exercício do poder transformaram-se ao longo do tempo, mas a noção de soberania como atributo essencial do Estado permanece até hoje.

A formação histórica da América Latina é tributária do triunfo do modelo de Estado Nacional Absolutista. Espanha e Portugal, os pri-meiros estados europeus consolidados a lançarem-se na aventura dos descobrimentos, trouxeram para as Américas o modo de organização política que moldou a sua própria estruturação. O colonialismo deixou como herança sociedades organizadas em forma de Estados com poder político altamente especializado e central, que considera a gênese do Direito na lei do Estado, e não nos costumes do grupo social que tutela, com jurisdição sobre um território indiviso e determinado2.

1 KRITSCH, Raquel. Soberania – A construção de um conceito. São Paulo: Humanitas – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. 2002.2 BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e terras indígenas no Brasil. São Paulo: Plêiade; FAPESP, 2001.

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A outra característica da colonização na América Latina foi o et-nocentrismo3, a ideia de que o desenvolvimento empreendido pelo con-quistador deveria ser unilinearmente seguido pelo conquistado. Nesse processo de homogeneização, empregou-se a violência física e cultural nas colônias, seja por intermédio de uma postura assimilacionista, seja mediante a simples exclusão ou eliminação. O uso da violência era ad-mitido como um mal necessário, e os índios eram duplamente culpados por sua “inferioridade” e por recusarem o modo “civilizado” de vida ou a “salvação”, enquanto os europeus eram “inocentes”, pois tudo o que fizeram foi visando atingir o melhor4.

O vezo do conquistador de considerar o seu grupo étnico ou sua cultura num plano mais importante que as culturas e as sociedades conquistadas gerou, em relação aos povos indígenas no Brasil, postu-ras de eliminação e assimilação, a ideia da infantilidade dos índios, o integracionismo, o mito do “bom selvagem” e a institucionalização do poder tutelar5.

O dilema para o conquistador não consistiu em definir se os povos autóctones deveriam ou não ser incorporados à civilização europeia, mas sim a forma da incorporação, como evidencia o hoje célebre em-bate de Valladolid entre Juan Gines de Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas. Sepúlveda alegou o primitivismo e a inferioridade dos índios como justificativas para a dominação, visto que o perfeito deve pre-ponderar sobre o imperfeito. A conquista seria um ato emancipatório, pois permitiria ao bárbaro sair de sua barbárie, ainda que para isso

3 O etnocentrismo significa tornar minha identidade e meus valores o centro de tudo. A própria etnia é tomada como referência absoluta de humanidade. A etnia do outro, quando não perseguida, é inferiorizada por meio de estigmas, segregações e genocídio, o qual pode ser físico ou cultural, este conhecido por etnocídio (BRITO, Antonio José Guima-rães. Etnicidade, Alteridade e Tolerância. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 50).4 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais de hoje: O discurso da “inferioridade” latino-americana. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. p. 271-316.5 BECKHAUSEN, Marcelo. Etnocidadania, Direitos Originários e a Inconstitucionali-dade do Poder Tutelar. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 525-558.

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fosse necessário o uso de extrema violência6. Enquanto Sepúlveda professava a via da eliminação, o jesuíta Las Casas defendia uma postura assimilacionista, em que a anexação seria feita por padres, e não por soldados. Não via justificativa para uma guerra com o fito de subjugar os índios com vista à sua evangelização e reconhecia o índio como sujeito na medida em que exigia sua compreensão e aceitação racional, e não apenas submissão7.

Centralização da autoridade política e etnocentrismo geraram uma postura dúbia do Estado em relação aos povos indígenas desde os pri-mórdios da colonização portuguesa8. O elemento indígena foi delineado com preocupações variadas: extermínio, exploração e integração são modelos políticos utilizados nos diferentes períodos da história brasileira, todos eles comprometidos com uma visão discriminatória e autoritária de como o Estado e a sociedade não indígena deveriam se relacionar com as populações autóctones9.

Ao longo do período colonial e do império brasileiro, o tratamento dispensado pelo conquistador aos povos autóctones e, posteriormente, pela sociedade majoritária à minoria indígena oscilou da eliminação com o uso de violência física e moral, caso se entendesse necessário, para uma postura assimilacionista de incorporação à “comunidade nacional”.

A visão etnocêntrica predominante, já no período republicano, era a de que os índios encontravam-se em um estágio inferior de desenvol-vimento, e os direitos que lhes eram reconhecidos visavam à preserva-

6 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais de hoje: O discurso da “inferioridade” latino-americana. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009. p. 287.7 Ibidem, p. 289.8 A rigor, considerando-se o Tratado de Tordesilhas, firmado em 07 de junho de 1494 e aprovado por bula papal de 24 de janeiro de 1504, pelo qual as coroas portuguesa e espa-nhola dividiram entre si o domínio sobre terras descobertas e a descobrir fora da Europa, o etnocentrismo europeu manifestou-se antes mesmo da chegada portuguesa ao Brasil. 9 BECKHAUSEN, Marcelo. Etnocidadania, Direitos Originários e a Inconstitucio-nalidade do Poder Tutelar. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 526.

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ção dos grupos indígenas durante sua transição do primitivismo para a civilização, tendo em mira sua integração e absorção pela sociedade majoritária10.

O panorama somente viria a mudar com o advento da Convenção nº 169 da OIT e a partir da vigência da Constituição Federal de 1988.

3 Convenção nº 169 da Organização Internacional do trabalho (OIT)

Embora a Convenção nº 169 tenha sido internalizada no ordena-mento jurídico nacional mediante ratificação em 2002 – portanto após a promulgação da Constituição Federal de 1988 –, os debates que ante-cederam sua criação ocorreram antes do advento da carta constitucional vigente e sua adoção na 76ª Conferência Internacional do Trabalho de 1989. A Convenção e a Carta Magna vigente são contemporâneas, e os princípios que inspiraram a Convenção nº 169 influenciaram o conteúdo do texto constitucional reservado aos direitos dos índios, o que justifica, no âmbito desse trabalho, que seu estudo anteceda o da Constituição. Apesar de constituir um novo paradigma no trato dos direitos indígenas, não foi a primeira Convenção dedicada ao tema.

Deveras, desde a sua criação, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem considerado entre suas principais preocupações a situação das chamadas “populações indígenas”, que representavam parte da força de trabalho nos domínios coloniais.

Em 1921, a OIT deu início a uma série de estudos sobre as condi-ções de trabalho dessas populações e, em 1926, instituiu uma Comissão de Peritos em Trabalho Indígena para dar continuidade aos trabalhos já iniciados e emitir recomendações com vistas à adoção de normas inter-nacionais sobre a matéria.

Desses estudos resultaram diversas Convenções, entre as quais se destaca a de n° 29, sobre Trabalho Forçado, celebrada em 1930.

10 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve Balanço dos Direitos das Comunidades Indígenas: Alguns Avanços e Obstáculos Desde a Constituição de 1988. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 569-604.

qUADRO NORMATIVO INDIGENISTA

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A Segunda Guerra Mundial e o ambiente conturbado que a precedeu interromperam tais esforços, que só foram retomados após o conflito e deram origem à Convenção n° 107, de 195711. O documento tratava especificamente de populações indígenas e tribais, sobretudo de seus direitos à terra e de suas condições de trabalho, saúde e educação.

quando de sua criação, imperava a visão integracionista, vigente entre os anos 1940 e 197012. Seu marco inicial foi o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano sediado no México, em 1940, com reflexo em âmbito mundial na criação da Convenção nº 107 de 1957, da Organização Internacional do Trabalho13.

Propugnava dois enfoques para os povos indígenas: o culturalista e o estruturalista. Pela mirada culturalista, haveria hierarquia entre culturas, com a cultura indígena em posição de inferioridade em relação à cultura nacional dominante. Logo, a homogeneização cultural resultante da exe-cução de políticas assimilatórias seria vantajosa para os índios. A visão estruturalista enxergava o tema indígena pelo viés socioeconômico, e não pelo aspecto cultural. A integração deveria ocorrer pela via econômica. Tanto em um quanto no outro enfoque, a finalidade era a assimilação por meio da integração dos povos indígenas a partir de um paradigma

11 No Brasil, a Convenção nº 107 da OIT foi ratificada por intermédio do Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966.12 A visão assimilacionista não era aplicada exclusivamente aos povos indígenas. Kymlicka registra que, até a década de 1960, países de língua inglesa adotavam um modelo de imigração designado por “angloconformidade”: esperava-se que os imigrantes assimilassem as normas culturais existentes e, com o tempo, não pudessem ser distin-guidos dos cidadãos naturais por sua fala, suas vestimentas, suas atividades de lazer, sua culinária, o número de integrantes da família e assim por diante. Era uma política fortemente assimilatória, considerada necessária para que os imigrantes se tornassem membros leais e produtivos da sociedade e justificada por um etnocentrismo que dene-gria outras culturas. Recusava-se a entrada no país a determinados grupos considerados inassimiláveis. O autor cita como exemplos as restrições impostas à imigração chinesa no Canadá e nos Estados Unidos e a política de uma imigração “somente para bran-cos” seguida na Austrália (KYMLICKA, Will. La política vernácula: Nacionalismo, multiculturalismo y ciudadanía. Tradução de Tomás Fernández Aúz y Beatriz Eguibar. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001).13 IKAWA, Daniela. Direitos dos Povos Indígenas. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 497-524.

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tido pela sociedade dominante como o mais adequado à ideia de nação e de desenvolvimento14.

Embora a Convenção espelhasse preocupação pelo reconhecimento de direitos aos indígenas, ainda pressupunha certa inferioridade da mi-noria indígena e atribuía ao Estado o papel decisório sobre as políticas a serem aplicadas aos indígenas.

A partir dos anos 1960, ganhou força um movimento etnodesenvol-vimentista, pugnando pela superação da ideia de que a cultura indígena seria um obstáculo ao desenvolvimento cultural e econômico. A cultura indígena mereceria ser preservada e fortalecida em benefício do fortale-cimento das culturas nacionais, dos direitos humanos e da democracia.

A crítica à orientação integracionista que informou a Convenção nº 107 ensejou sua revisão, culminando na elaboração da Convenção nº 169 da OIT, celebrada em 1989 à luz do questionamento ao quinto centenário da penetração europeia nas Américas por um movimento indígena emer-gente. Seu advento deu-se em uma época de reformas constitucionais na América Latina que ocorreram paralelamente aos processos nacionais de ratificação da Convenção nº 169. As reformas constitucionais abrangeram, de um lado, programas de reforma e ajuste estruturais dos Estados e, de outro, um conjunto de demandas democratizantes dos novos movimentos sociais e indígenas e o discurso do multiculturalismo15.

14 Os primeiros artigos da Convenção nº 107 espelham sua inspiração assimilatória: “Art. 1º 1. A presente Convenção se aplica aos membros das populações tribais ou semi--tribais em países independentes, cujas condições sociais e econômicas correspondem a um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidade nacional e que seja regidas, total ou parcialmente, por costumes e tradições que lhes sejam pecu-liares por uma legislação especial.Art. 2º 1. Competirá principalmente aos governos pôr em prática programas coordena-dos e sistemáticos com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração progressiva na vida dos respectivos países.” (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Planalto, Brasília, DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm>. Acesso em 02 de abril de 2013). O ainda vigente Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973) foi inspirado pela Convenção nº 107 da OIT.15 YRIGOYEN Fajardo, Raquel. Aos 20 anos da Convenção 169 da OIT: balanços e desafios da implementação dos direitos dos povos indígenas na América Latina. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009. p. 09-62.

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A Convenção nº 169 da OIT constitui até agora o mais completo acordo internacional relativo à preservação dos povos indígenas, e o fato de a Convenção nº 169 não ser oriunda da Assembleia Geral da ONU não lhe retira o caráter de instrumento protetivo de direitos humanos.

Nesse aspecto, cumpre referir que a criação, em 1919, da Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT), juntamente com a fundação da Cruz Vermelha, na Convenção de Genebra de 1864, e a luta contra a escravatura, corresponde à primeira fase de internacionalização dos di-reitos humanos, com início na segunda metade do século XIX e término com o fim da Segunda Guerra Mundial16. A Organização Internacional do Trabalho é mais antiga que a Organização das Nações Unidas, evi-denciando que a regulação dos direitos do trabalhador assalariado foi um dos primeiros temas a merecer uma ação concertada dos Estados no plano internacional. Até o início da Segunda Guerra Mundial, a OIT havia aprovado 67 convenções internacionais, das quais apenas três não contaram com nenhuma ratificação17.

A OIT atualmente integra o sistema das Nações Unidas, criado em 1945, em substituição à Sociedade das Nações18. É um dos organismos especializados da ONU.

16 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.17 Ibidem, p. 68.18 “A OIT foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Pri-meira Guerra Mundial. Fundou-se sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada na justiça social. É a única das agências do Sistema das Nações Unidas com uma estrutura tripartite, composta de representantes de governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores. A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e recomen-dações). As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião.No final da guerra, nasce a Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de manter a paz através do diálogo entre as nações. A OIT, em 1946, se transforma em sua primeira agência especializada.No Brasil, a OIT tem mantido representação desde a década de 1950, com programas e atividades que refletem os objetivos da Organização ao longo de sua história. Além da promoção permanente das Normas Internacionais do Trabalho, do emprego, da melhoria

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O preâmbulo da Convenção nº 169 revela a identidade de propósi-to e a sinergia entre a ONU e a OIT, ao observar que suas disposições foram estabelecidas com a colaboração das Nações Unidas, da Organi-zação das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) e que existe o propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a aplicação de suas disposições. Ademais, alude aos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação19.

A Convenção nº 169 representa um avanço em relação à sua prece-dente, a Convenção nº 107, pois introduziu tanto alterações conceituais quanto a tentativa de evolução das obrigações dos Estados signatários perante os povos indígenas. Relegou ao passado o paradigma da incor-poração pelo aculturamento, substituindo-o por um princípio de respeito a esses grupos populacionais e suas culturas20.

das condições de trabalho e da ampliação da proteção social, a atuação da OIT no Brasil tem se caracterizado, no período recente, pelo apoio ao esforço nacional de promoção do trabalho decente em áreas tão importantes como o combate ao trabalho forçado, ao trabalho infantil e ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e comercial, à promoção da igualdade de oportunidades e tratamento de gênero e raça no trabalho e à promoção de trabalho decente para os jovens, entre outras.” (Fonte: www.oit.com.br acesso 14 de setembro de 2012).19 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Planalto, Brasília, DF, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em 06 fev. 2012.20 A mudança de enfoque no tratamento dos índios e nos seus direitos manifesta-se já no preâmbulo da Convenção: “A Conferência Geral da Organização do Trabalho.Convocada em Genebra pelo Conselho da Repartição Internacional do Trabalho e tendo ali se reunido a 7 de junho de 1989, em sua septuagésima primeira sessão;Observando as normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação sobre populações indígenas e tribais, 1957;Lembrando os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacio-nal dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação;

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A Convenção nº 169 proscreve as políticas de assimilação ou in-tegração forçada que alienavam os povos indígenas da capacidade de tomar decisões sobre o seu destino. Reconhece as aspirações dos povos indígenas a assumirem o controle de suas próprias instituições,formas de vida e do seu desenvolvimento econômico e a manterem e fortalecerem suas identidades, línguas e religiões, dentro dos Estados em que vivem. Garante também o direito dos povos indígenas de definirem suas priorida-des de desenvolvimento, de onde se extrai a necessidade de processos de consulta prévia e de participação em todas as políticas ou em programas que os venham a afetar. Reconhece direitos a terra e território e o acesso aos recursos naturais, bem como o direito consuetudinário dos indígenas e direitos relativos a trabalho, saúde e comunicações, o desenvolvimento das próprias línguas e educação bilíngue intercultural.

Uma leitura da Convenção nº 169 da OIT é suficiente para constatar--se que o instrumento estabelece, em favor dos povos e dos indivíduos

Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobre-vindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação, das normas anteriores;Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias insti-tuições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde mo-ram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão frequentemente;Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e compreensão internacionais;Observando que as disposições a seguir foram estabelecidas com a colaboração das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, da Organização das Nações Unidas, Saúde, bem como o Instituto Indigenista Interame-ricano, nos níveis apropriados e nas suas respectivas esferas, e que existe o propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a aplicação destas disposições;Após ter decidido adotar diversas propostas sobre a revisão parcial da Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957 (nº 107), o assunto que constitui o quarto item da agenda da sessão, e Após ter decidido que essas propostas deveriam tomar a forma de uma Convenção Internacional que revisse a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957, adota, neste vigésimo sétimo dia de junho de mil novecentos e oitenta e nove, a seguinte Convenção, que será denominada Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989:”

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indígenas, direitos sociais (art. 2º), liberdades fundamentais (art. 3º), direito ao meio ambiente (art. 4º), direitos gerais de cidadania (art. 4º), direito de petição (art. 12), direitos de propriedade e posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 14)21, direito de consulta prévia (arts. 6º e 17), direito à não discriminação (art. 20), direito à seguridade social (art. 24), direito à saúde (art. 25) e direito à educação (art. 26). Outrossim, em diversas passagens da Convenção, identifica-se o objetivo de proteção à identidade cultural dos povos indígenas (arts. 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10, 13, 27, 28 e 30). Pelo seu alcance e escopo, a Convenção indubitavelmente constitui um diploma internacional de direitos humanos.

Importante referir que, para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Convenção nº 169 da OIT é o instrumento inter-nacional de direitos humanos específico mais relevante para os povos indígenas, por sua pertinência direta para a interpretação do alcance dos direitos dos povos indígenas, das tribos e seus membros, em particular sob a Declaração Americana de Direitos Humanos. A Convenção tem sido uma referência normativa importante para os processos de reforma cons-titucional, legislativa e institucional em países membros da Organização

21 Para os fins deste estudo, importante transcrever os artigos da Convenção nº 169 da OIT que versam a respeito dos direitos dos índios sobre suas terras e territórios, visto que este constitui o problema de pesquisa que se enfrenta. “Art. 13 1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.2. A utilização do termo ‘terras’ nos arts. 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.Art. 151. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos existen-tes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.

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dos Estados Americanos (OEA). A Convenção também tem auxiliado os próprios povos indígenas na fundamentação de seus pleitos e na luta por mudanças legislativas consistentes com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos indígenas. A CIDH considera que as disposições da Convenção nº 169 da OIT são um fator relevante para a interpretação das normas interamericanas de direitos humanos no tocante a queixas apresentadas contra todos os Estados integrantes da OEA22.

A Convenção nº 169 da OIT, como único tratado em matéria de povos indígenas, segue constituindo o “núcleo duro” dos direitos indí-genas, graças à sua exigibilidade para os países que o ratificaram. Serviu

Art. 161. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente artigo, os povos interes-sados não deverão ser trasladados das terras que ocupam.2. quando, excepcionalmente, o traslado e o reassentamento desses povos sejam conside-rados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento.4. quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na au-sência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais àqueles das terras que ocupavam anteriormente, em que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indeni-zação deverá ser concedida com as garantias apropriadas.5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.”6 ORGANIZAÇÂO DOS ESTADOS AMERICANOS. 2010. Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: Normas y juris-prudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Comissión Interamericana de Derechos Humanos. 2010.22 ORGANIZAÇÂO DOS ESTADOS AMERICANOS. 2010. Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: Normas y juris-prudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Comissión Interamericana de Derechos Humanos. 2010.

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de fundamento para reformas institucionais e legais internas, políticas públicas e desenvolvimento jurisprudencial.

Firmada a premissa de que a Convenção nº 169 da OIT constitui um tratado internacional de direitos humanos, sua incorporação ao or-denamento jurídico nacional enseja o debate acerca da sua posição na hierarquia normativa brasileira. Apesar de existirem várias correntes sobre o tema da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, todas calcadas em respeitáveis argumen-tos23, nesse artigo sustenta-se a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna.

Tal entendimento decorre, em primeiro lugar, de uma interpretação sistemática e finalística do texto constitucional, tendo como referencial o princípio da dignidade humana. A Constituição de 1988, a partir da preeminência que atribuiu ao princípio da dignidade humana24, consagrou a ideia da abertura material do catálogo constitucional dos direitos e

23 Há quatro diferentes correntes sobre o tema da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, sustentando: a) hierarquia supracons-titucional dos tratados de proteção dos direitos humanos; b) hierarquia constitucional; c) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; d) paridade hierárquica entre tratado e lei federal. No Supremo Tribunal Federal, o entendimento tradicional é o da equiparação de todos os tratados internacionais celebrados pelo Brasil e integrados ao ordenamento jurídico nacional, inclusive tratados de direitos humanos, à lei federal ordinária. (BRA-SIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 72.131- RJ. Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 23 de novembro de 1995). No Recurso Extraordinário nº 466.343, o Ministro Gilmar Mendes sustentou a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico pátrio antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004 (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 03 de dezembro de 2008). No Habeas Corpus nº 87.585 – TO, o Ministro Celso de Mello sustentou a qualificação constitucional dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, ressalvada a Supremacia da Constituição sobre todos os tratados internacionais celebrados pelo Estado brasileiro, inclusive os que versarem os direitos humanos, desde que estes mostrem-se mais gravosos ou restritivos do que o texto constitucional (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 03 de dezembro de 2008).24 O art. 1º, caput e inciso III, da Constituição Federal, estabelece que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e adota como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana.

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das garantias fundamentais. Além de direitos e garantias expressamente reconhecidos na Constituição, em razão do disposto no § 2º do seu art. 5º25, a Constituição também dá guarida a direitos fundamentais implícitos e integra ao sistema constitucional os direitos positivados nos tratados internacionais em matéria de direitos humanos26.

A preeminência conferida pela Constituição Federal em vigor aos tratados de direitos humanos também pode ser extraída do contraste entre o tratamento a eles atribuído e o conferido aos demais tratados in-ternacionais. Com efeito, enquanto a vigência de tratados internacionais na ordem jurídica nacional depende, em regra, de decreto legislativo editado pelo Congresso, no caso dos tratados de proteção internacional de direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos neles garantidos têm aplicação imediata, por força do previsto no art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, integrando o elenco dos direitos constitucional-mente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno27. Ademais, no tocante aos tratados inter-nacionais comuns, a Constituição, em seu art. 102, III, ‘b’, estabelece o cabimento de recurso extraordinário contra a decisão que declarar sua inconstitucionalidade, o que não é previsto em relação aos direitos enunciados em tratados internacionais de direitos humanos, dada a sua hierarquia de norma constitucional.

O relevo constitucional dos tratados de direitos humanos abrange in-clusive os incorporados ao ordenamento jurídico nacional anteriormente ao advento da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a qual acrescentou ao art. 5º da Constituição Federal o § 3º, estabelecendo que “os tratados e [as] convenções sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

25 “Os direitos e as garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decor-rentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”26 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudên-cia do Supremo Tribunal Federal. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo (Coord.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 37-73.27 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Di-reitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. v. 1. 640 p.

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três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição”28, pois os tratados aprovados anteriormente à vigência desse dispositivo seguiram o trâmite vigente à época de sua aprovação29. Ou seja, não é o quórum ou o procedimento de votação que qualificam um tratado internacional de direitos humanos como norma constitucional, e sim o seu conteúdo material30.

4 Constituição Federal de 1988No plano jurídico interno, a ruptura do quadro normativo consti-

tucional e infraconstitucional, de índole integracionista, ensejador de mudanças nas relações entre Estado, sociedade e populações indígenas, ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1988.

à luz do texto constitucional31, pode-se afirmar que o direito indige-nista brasileiro rege-se por alguns princípios, quais sejam: a) princípio do reconhecimento e proteção do Estado à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no terri-tório nacional; b) princípio do reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e proteção

28 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 45. ed. São Paulo: Saraiva. 2011.29 RAMOS, André de Carvalho. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo (Coord.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 3-35.30 PIOVESAN, Flávia. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel; BINEMBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 459-477.31 Na história constitucional brasileira, a Carta Magna vigente foi a que mais se ocupou dos temas relativos aos índios e aos seus direitos: a) manteve as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios sob o domínio da União (art. 20, XI), bem como sua competência para legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV); b) atribuiu ao Congresso Nacional competência exclusiva para autorizar a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas (art. 49, XVI); c) definiu a competência da Justiça Federal para processar e julgar disputas sobre direitos indígenas (art. 109, XI); d) conferiu ao Ministério Público a função de defender judicialmente os direitos e os interesses das populações indígenas (art. 129, V); e) subordinou a pesquisa

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de sua posse permanente em usufruto exclusivo para os índios; c) prin-cípio da igualdade de direitos e da igual proteção legal; d) princípio da proteção da identidade32.

Os princípios da igualdade formal de direitos e de igual proteção legal significam que os índios estão sob o pálio de todos os princípios e direitos constitucionais comuns aos demais brasileiros.

Ao princípio da proteção identitária corresponde o direito à alterida-de, ou o direito à diferença. A Constituição Federal estimula o respeito à diversidade cultural brasileira, assegurando aos índios o direito a serem e permanecerem diferentes e de não sofrerem qualquer forma de dis-criminação por suas escolhas. Por força desse princípio, não se admite qualquer exegese jurídica que acarrete a afirmação direta ou indireta de superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas.

O princípio da proteção da identidade articula-se com o princípio do reconhecimento e proteção do Estado à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no território nacional. Com efeito, o último decorre do primeiro, pois consubstancia

e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica à observância de condições específicas legalmente previstas quando tais atividades se desenvolverem em terras indígenas (art. 176, § 1º); f) assegurou às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, inclusive no ensino fundamental regular (art. 210, § 2º); g) determinou que o Estado protegerá as manifestações culturais indígenas (art. 215, § 1º); h) consagrou a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições indígenas (art. 231, caput); i) reconheceu aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocu-pam (art. 231, caput); j) incumbiu a União de proteger e fazer respeitar os índios, seus bens e suas terras (art. 231, caput); j) conceituou as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e conformou seu regime jurídico (art. 231, §§ 1º a 7º); k) atribuiu à União a competência para demarcação das terras indígenas, fixando o prazo máximo de cinco anos para demarcá-las (art. arts. 231, caput, e 67 do ADCT); l) outorgou legitimidade às comunidades indígenas e organizações indígenas para ingressarem em juízo na defesa de seus direitos e interesses, impondo a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo (art. 232). 32 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve Balanço dos Direitos das Comunidades Indígenas: Alguns Avanços e Obstáculos Desde a Constituição de 1988. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 569-604.

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o dever do Estado de respeitar, proteger e valorizar o estilo de vida dos índios, o exercício dos seus direitos culturais e as manifestações de sua cultura.

Por sua vez, o reconhecimento e proteção da cultura indígena am-param o reconhecimento dos seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a proteção estatal de sua osse permanente em usufruto exclusivo para os índios, a partir da constatação da essenciali-dade do vínculo dos povos indígenas com suas terras para a manutenção de sua identidade cultural.

Ao articular esses princípios, a Constituição Federal reconhece a correlação e a interdependência entre organização social, costumes, línguas e tradições indígenas e as terras por eles ocupadas33. Os direitos conferidos aos índios no sistema constitucional em vigor explicitam--se em três dimensões: os territoriais, os de organização social e os de cultura, vinculados de tal maneira que, em regra, a violação a uma das dimensões viola as demais34.

No âmbito cultural, os arts. 210, 215, 216 e 23135 da Constituição vigente reconhecem o valor da contribuição indígena à cultura brasi-leira e a necessidade do respeito à diferença. Correspondem a direitos poliétnicos, ou de diversidade cultural. Sua finalidade é a redução da situação vulnerável dos grupos minoritários, possibilitando o respeito e a valorização dos traços culturais distintos. Objetivam oportunizar aos

33 Ibidem, p. 574.34 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Direito de ser Povo. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2010. p. 475-496.35 “Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º. [...] § 2º. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e aces-so às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

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grupos étnicos exprimirem suas particularidades e seu orgulho cultural e fomentar a integração da sociedade em conjunto.

A organização social indígena refere-se à estrutura de suas socie-dades, suas instituições e suas formas de relacionamento entre seus membros, o que envolve questões de natureza moral, ética, familiar, econômica, religiosa e política.

Os direitos territoriais correspondem ao regime jurídico próprio das terras indígenas, estruturado a partir do reconhecimento de sua impor-tância para a preservação da organização social e da cultura indígenas. O prestígio conferido pela Constituição à cultura indígena envolve o reconhecimento de sua organização social, fundada em usos, costumes e tradições próprios. E, no caso dos índios, cultura e organização social relacionam-se também com as terras que tradicionalmente ocupam36.

A Constituição vigente rompe o paradigma da assimilação, da in-clusão ou da provisoriedade da condição de indígena, assim como das terras por eles ocupadas. Permanece a possibilidade de integração se o indivíduo assim o desejar, mas o Estado nacional reconhece o direito individual e coletivo, grupal, de permanecer índio.

Com o advento da Carta Política de 1988, superou-se a visão inte-gracionista com finalidade assimilatória em prol de uma nova perspectiva

§ 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro- brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.” “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, [...].” “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições [...].” (BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2011). 36 O regime jurídico das terras indígenas recebeu tratamento diferenciado do constituinte de 1988. O art. 231, §§ 1º a 6º, da Constituição em vigor, disciplinou o regime jurídico das terras indígenas a partir dos requisitos da originariedade, tradicionalidade e ocupa-ção permanente, de cujo reconhecimento decorrem os direitos à posse permanente, ao usufruto exclusivo e a vedação à remoção, bem como os atributos de inalienabilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade das terras indígenas.

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quanto ao reconhecimento do valor de sua cultura e de seus direitos territoriais. As normas constitucionais relativas aos direitos dos povos indígenas inseridas na Constituição de 1988 são resultado dessa nova visão.

5 Declaração das nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi gestionada por mais de duas décadas. Em 1982, o Conse-lho Econômico e Social autorizou a construção do Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas dentro da subcomissão para a Prevenção da Discriminação e a Proteção de Minorias. A partir de 1985, esse Grupo foi encarregado de redigir um rascunho da Declaração, tarefa que contou com a participação de organizações de povos indígenas. A Declaração foi aprovada primeiramente pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas em 29 de junho de 2006. E, em 13 de setembro de 2007, após algumas alterações, foi adotada pela Assembleia Geral da ONU com 143 votos a favor, 4 contra e 11 abstenções37.

Por seu conteúdo, a Declaração estabelece um novo patamar in-ternacional no tocante aos direitos dos povos indígenas. Constitui um ponto de chegada, pois consolida e sintetiza os avanços realizados no direito internacional dos direitos dos povos indígenas, aprofundando e ampliando direitos que estão na Convenção nº 169 da OIT, e incor-pora demandas indígenas. Mas é também um ponto de partida, pois sua efetividade depende do compromisso dos estados e do sistema das Nações Unidas.

Ainda que a Declaração não estabeleça novos direitos em relação a anteriores instrumentos de direitos humanos da ONU, é manifesta quanto à vinculação de tais direitos às condições específicas dos povos

37 YRIGOYEN Fajardo, Raquel. Aos 20 anos da Convenção 169 da OIT: balanços e desafios da implementação dos direitos dos povos indígenas na América Latina. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2009. p. 09-62.

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indígenas38. Já em seu Preâmbulo, a Declaração reconhece a essencia-lidade do vínculo dos índios com suas terras e seus territórios. Afirma a necessidade de respeito e promoção dos direitos dos povos indígenas que derivam de suas estruturas políticas, econômicas e sociais, bem como de suas culturas, tradições espirituais, história e concepção de vida. Expressa a convicção de que o controle, pelos povos indígenas, dos acontecimentos que os afetam e das suas terras e seus territórios e recursos lhes permitirá manter e reforçar suas instituições, culturas e tra-dições e promover seu desenvolvimento de acordo com suas aspirações e necessidades. Proclama o direito à autodeterminação, a ser exercido em conformidade com o direito internacional, em virtude do qual os povos indígenas podem determinar livremente sua condição política e buscar seu desenvolvimento econômico, social e cultural39.

A partir dessas premissas, a Declaração estabelece o direito dos povos indígenas à autodeterminação, expressado no direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões referentes a seus assuntos internos e locais40. Portanto, a Declaração representa uma nova etapa para o reco-nhecimento, a promoção e a defesa dos direitos dos povos indígenas e propõe às próprias minorias indígenas, ao restante das sociedades e aos Estados o desafio de redefinirem os termos de suas relações.

As origens da Declaração vinculam-se por um lado à emergência dos movimentos sociais e políticos dos povos indígenas na segunda metade do século XX e, de outra banda, ao crescente debate na comunidade internacional sobre direitos civis, sociais, políticos e culturais. De seu texto, extraem-se duas perspectivas: a reparadora e a protetiva.

38 STAVENHAGEN, Rodolfo. Los Pueblos Indígenas Como Nuevos Ciudadanos del Mundo. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva; GARCIA--FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 19-36. 39 UNESCO, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Rio de Janeiro: UNIC, 2009.40 Artigo 3. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Artigo 4. Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.

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Pela ótica da reparação, afirma-se que a Declaração existe devido ao desejo de se reparar os efeitos até hoje percebidos da prática de violações massivas de direitos humanos. O propósito da Declaração é eliminar desigualdades que não deveriam existir. Seu objetivo final é algum dia tornar-se irrelevante41 (ANAYA, 2009, p. 37).

A Declaração não define o que são povos indígenas; porém, evi-dencia a pauta comum de afronta a direitos humanos. Ao aludir a essa trajetória de violações, a Declaração revela seu caráter de instrumento reparador42. Não privilegia os povos indígenas com uma série de direitos exclusivos, mas afirma que tais povos são titulares dos mesmos direitos desfrutados por outros povos, ainda que compreendidos dentro do con-texto das características particulares comuns aos grupos compreendidos como povos indígenas43.

Pelo aspecto protetivo, destaca-se que a Declaração visa a promover a aplicação de princípios universais de direitos humanos no sentido de valorizar não somente a humanidade das pessoas indígenas, mas também os laços que os índios constituem com as comunidades a que pertencem. A Declaração contextualiza os direitos humanos com atenção particular aos padrões de identidade44 e pertencimento dos grupos indígenas que os constituem como povos45.

41 ANAYA, James. Por qué no debería existir una Declaración sobre Derechos de Los Pueblos Indígenas. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva; GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 37-50.42 Nesse aspecto, o Preâmbulo da Declaração afirma a inquietude com o fato de os povos indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado da colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos, o que lhes têm impedido de exercer seu direito ao desenvol-vimento em conformidade com suas necessidades e seus interesses (UNESCO, 2009, p. 8).43 Ibidem, p. 41.44 O Preâmbulo da Declaração define que os povos indígenas são iguais a todos os demais povos; porém, ao mesmo tempo possuem o direito comum a todos os povos de serem dife-rentes, considerarem-se diferentes e a serem respeitados como tais (UNESCO, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Rio de Janeiro: UNIC, 2009).45 ANAYA, James. Por qué no debería existir una Declaración sobre Derechos de Los Pueblos Indígenas. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva; GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 37-50.

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Esse fundamento repousa na consideração de que os povos indígenas constituem formas de cultura inteiramente diversas, arraigadas em um modo de vida que deve ser protegido. A base para a proteção internacional dos povos indígenas não residiria tanto nas considerações de práticas pretéritas de maus tratos cujos efeitos estruturais permanecem até hoje, mas nas dimensões de diferença cultural46.

O art. 1º da Declaração deixa claro que o documento constitui um instrumento internacional de proteção dos direitos humanos ao dispor que os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e todas as liberdades fundamentais.

As especificidades da cultura e da organização social indígenas leva-ram ao reconhecimento de direitos humanos no âmbito coletivo, rompendo um modelo clássico de direito internacional e de relações internacionais que compreende os direitos humanos apenas no plano individual.. A De-claração é considerada o principal instrumento internacional que afirma e articula os direitos coletivos de entidades que não constituem Estados.

A Declaração não constitui um tratado e, em consequência, tampouco se trata de espécie legislativa de direito interno. Não é um instrumento jurídico vinculante e obrigatório. No entanto, espelha o desenvolvimento dinâmico de normas legais internacionais e reflete o comprometimento dos Estados a adotarem certas diretrizes no tocante aos direitos indígenas, a partir de princípios nela reconhecidos.

Nesse sentido, constitui um instrumento de soft Law, ou seja, sem a vinculatividade própria de um tratado, o que não o despe de qualquer caráter jurídico, pois reflete o estado de desenvolvimento de normas consuetudinárias e poderá servir de base para tratados futuros, bem como, por sua própria natureza, gerar expectativas de comportamento47.

46 KYMLICKA, Will. La política vernácula: Nacionalismo, multiculturalismo y ciu-dadanía. Tradução de Tomás Fernández Aúz y Beatriz Eguibar. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001. 47 HUERTA, Mauricio Iván del Toro. El Fenómeno del soft law y las nuevas perspectivas del Derecho Internacional. In: Anuario Mexicano de Derecho Internacional. México D.F: Instituto de Investigaciones Jurídicas de La UNAM. v. VI. 2006. p. 513-549. Disponível em <http://biblio.juridicas.unam.mx/revista/pdf/DerechoInternacional/6/art/art12.pdf>. Acesso em 15 mar. 2013.

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É com essa compreensão que deve ser entendido o art. 42 da Decla-ração, que exorta as Nações Unidas e os Estados a promoverem o respeito e a plena aplicação das suas disposições e a zelar por sua eficácia48.

Apesar de não ser um instrumento jurídico vinculante, a Declara-ção serve para estabelecer diretrizes para as políticas e as legislações nacionais concernentes aos índios, servindo de referência para projetos de leis, políticas públicas e decisões judiciais sobre assuntos indígenas. Deve ser entendida como um instrumento de interpretação dos direitos humanos no contexto cultural, social e histórico dos povos indígenas49.

Por seu importante valor hermenêutico, a Declaração constitui um paradigma na configuração das relações entre as comunidades indígenas, o Estado e a sociedade envolvente.

6 ConclusãoA Constituição em vigor representou a quebra do paradigma assi-

milatório em prol de uma nova perspectiva quanto ao reconhecimento do valor da cultura e da organização social indígenas. Sua promulgação insere-se em um ciclo de reformas constitucionais em matéria indígena caracterizado pelo reconhecimento do direito individual e coletivo à identidade cultural, além da previsão de direitos indígenas específicos nos textos constitucionais. A Constituição brasileira de 1988 antecede em um ano a adoção do Convênio nº 169 da OIT sobre direitos indígenas, mas já adota algumas das suas concepções.

A Convenção nº 169, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia de norma constitucional – em razão de sua natureza de tratado internacional de direitos humanos –, proscreve as políticas de assimilação ou integração forçada que alienavam os povos indígenas da

48 “Artigo 42. As Nações Unidas, seus órgãos, incluindo o Fórum Permanente sobre ques-tões Indígenas, e organismos especializados, particularmente em nível local, bem como os Estados, promoverão o respeito e a plena aplicação das disposições da presente Declaração e zelarão pela eficácia da presente Declaração.” (UNESCO, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Rio de Janeiro: UNIC, 2009).49 RODRIGUEZ-PIÑERO, Luis. La Implementación de La Declaración: Las Implica-ciones Del Artículo 42. In: MOLINERO, Natalia Álvarez; MARTINEZ, J. Daniel Oliva; GARCIA-FALCES, Nieves Zúñiga. Declaración Sobre Los Derechos de Los Pueblos Indígenas: Hacia un Mundo Intercultural y Sostenible. Madri: Catarata, 2009. p. 65-106.

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capacidade de tomar decisões sobre o seu destino. Ademais, reconhece as aspirações dos povos indígenas a assumirem o controle de suas próprias instituições, de suas formas de vida e do seu desenvolvimento econô-mico e a manterem e fortalecerem suas identidades, línguas e religiões dentro dos Estados em que vivem. Garante também o direito dos povos indígenas de definirem suas prioridades de desenvolvimento, de onde se extrai a necessidade de processos de consulta prévia e de participação em todas as políticas ou em programas que possam afetá-los, reconhecendo direitos a terra e território e o acesso a recursos naturais.

O quadro normativo indigenista é completado pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Apesar de care-cer de força vinculativa por tratar-se de um documento de soft Law, a Declaração possui força principiológica e relevo hermenêutico. Funda-menta o estabelecimento de diretrizes para as políticas e as legislações nacionais concernentes aos índios, servindo de referência para projetos de leis, políticas públicas e decisões judiciais sobre assuntos indígenas.

Esses três diplomas – Convenção nº 169 da OIT, Constituição Federal de 1988 e Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas – constituem o quadro normativo indigenista. O conhecimento e a interpretação do alcance e da eficácia de seus dispositivos são in-dispensáveis para a resolução de conflitos de interesse entre a minoria indígena e a sociedade envolvente.

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Revista da aJUFeRGs / 09204

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O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORtE DOS

EStADOS UnIDOS DA AMÉRICA

GABRIEL WEDYJuiz Federal. Visiting Scholar na Columbia Law School. Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS.

Professor de Direito Ambiental na Escola da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), na Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul (ESMAFE/RS) e Professor

Visitante no Curso de Pós-Graduação de Direito Ambiental da UNISINOS. Ex-Presidente da AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e da AJUFERGS/ESMAFE

(Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul/Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul).

JUAREZ FREITASProfessor das Faculdades de Direito da PUCRS e da UFRGS.

Presidente do Instituto Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público. Pós-Doutorado pela Universidade Estatal de Milão.

Autor de diversos livros e artigos jurídicos. Advogado.

RESUMO: O artigo aborda tema pouco versado na doutrina constitucio-nal brasileira até o momento: o legado dos votos vencidos na jurisprudên-cia da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. É esquadrinhada, em tom crítico, a influência de tais votos no fomento do debate público e, ainda, no embasamento para alteração da jurisprudência daquela Corte em casos futuros. Nessa perspectiva, alguns dos mais prestigiados lea-ding cases da história norte-americana são avaliados com o foco não na posição firmada pela maioria dos Justices, mas no conteúdo externado pelos votos vencidos.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Votos vencidos. Prece-dentes. Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Os dissensos no direito norte-americano. 2. Exame de dissensos na Suprema Corte norte-americana. 3. Casos célebres e recentes com dissensos que serão avaliados pelas futuras gerações. Conclusão. Referências.

IntroduçãoOs precedentes judiciais ostentam notável prestígio argumentativo,

em especial nos países da Common Law, marcados pelo sistema do stare decisis. Não é exagero afirmar que o direito desses países, em boa medida, é construído com base nos precedentes e que estes balizam a

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estrutura jurídico-institucional. Ali, a segurança jurídica é alcançada mercê da observância, em larga escala, de precedentes sólidos, ao me-nos tidos como aceitáveis culturalmente. Graças a isso, a Constituição norte-americana logrou adaptar-se às novas realidades, sem deixar de se preservar formalmente, mantendo-se quase intacta desde a versão dos Founding Fathers1, em 1787.

Os leading cases da Suprema Corte americana tornam-se, assim, regras a serem acatadas pelo Executivo, pelo Judiciário e pelo Le-gislativo, de maneira que os votos que formam a posição majoritária das opiniões dos Justices são festejados ou lamentados, pois entram na história de modo positivo ou negativo, com certa tendência à du-ração por largo período. Talvez por isso, quando se estuda o direito constitucional americano, costuma-se, em geral, esquecer o outro lado da moeda: os votos vencidos. Tende-se a diminuir a importância dos votos perdedores, negligenciá-los ou simplesmente esquecê-los. Não obstante, ao longo da história, foram justamente alguns dos votos ven-cidos que veicularam as melhores razões e mantiveram aceso o debate público, não apenas na academia. Tornaram-se contribuições seminais para alterar o entendimento norteador de futuras decisões da Suprema Corte norte-americana.

É, pois, justamente sobre o legado dos votos vencidos, em célebres leading cases, que se debruça o artigo, analisando, inicialmente, decisões com suficiente distanciamento histórico. Ato contínuo, serão mencio-nados votos dissidentes em casos recentes, que não receberam ainda o temperado julgamento da história e cujos efeitos não foram sopesados com maior segurança no tocante aos seus efeitos. Neste último caso, o que se almeja realizar são projeções, com argumentos contrafactuais, sobre o possível legado na construção do direito norte-americano, o qual, goste-se ou não, irradia critérios e influências para Tribunais e doutrinadores de boa parcela do mundo.

1 Sobre a elaboração da Constituição americana e os seus “pais”, ver: McCLANAHAN, Brion. The Founding Fathers. Washington: Regnery Publishing, 2012. Para aprofunda-mento sobre a base, a consolidação e a origem do direito constitucional norte-americano, ver: HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. The Federalist Papers. China: Sweetwater Press, 2010.

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DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

1 Os dissensos no direito norte-americano O constitucionalismo norte-americano, desde a Declaração de Virgí-

nia (1776), passando pela Constituição de 1787 (vigente até hoje) e pelas emendas que emanaram do Bill of Rights2, confere expressivo significado aos precedentes judiciais. No sistema da Common Law e do stare decisis, o direito constitucional é construído a partir da determinação interpreta-tiva do conteúdo ligado à vaga vontade popular e de seus representantes e, com pronunciado destaque, por meio de precedentes judiciais.

A doutrina norte-americana, notadamente a professada por Bruce Ackerman, classifica o constitucionalismo americano em três etapas inovadoras, quais sejam: a fundação, a reconstrução e o New Deal. Para Ackerman, é equívoco estabelecer ordem decrescente dos três períodos mais relevantes do constitucionalismo, levando em consideração o aspecto criativo, como se apenas a fundação e a reconstrução configu-rassem fontes de novas soluções constitucionais para hard cases. Diver-samente, Ackerman propõe solução narrativa na qual os republicanos da Reconstrução e os democratas do New Deal aparecem como iguais em importância aos The Framers, na geração de processos legislativos e de soluções substantivas em nome do povo norte-americano3.

Com acerto, pois a fonte do direito constitucional norte-americano certamente tem que ser levada a sério nesses três ricos períodos de inter-pretação e criação. Negligenciar a Corte do New Deal implica não em-prestar o devido valor a um momento crucial, seja no atinente à regulação das liberdades, seja no que concerne à consolidação dos direitos civis.

2 Sobre The Bill of Rights, é obra referencial: AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights. New Haven: ale University Press, 1998.3 Como refere Ackerman, “[...] The professional wisdom arrays these periods in de-scending order of constitutional creativity: the Founding was creative both in process and substance; Reconstruction was creative only substantively; The New Deal was not creative at all. To fix ideas, call this a two-solution narrative, since it recognizes only the Founding and Reconstruction as sources of new constitutional solutions. In contrast, I shall be proposing a three-solution narrative- in which both Reconstruction Republicans and New Deal Democrats appear as the equals of the Fonding Federalists in creating new higuer lawmaking processes and substantive solutions in the name of We the People of The United States.” (ACKERMAN. We the people. Foundations, Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 58).

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Nesse pano de fundo, não apenas as posições defendidas pelas maio-rias da Suprema Corte devem ser escrutinadas. Claramente, as decisões majoritárias não têm sido a causa única de impactos e mudanças sociais, tampouco podem ser consideradas como fontes isoladas. Uma decisão tomada, por maioria, pode ser – frequentemente é – iníqua, arbitrária, percebida como teratológica, às vezes até no tempo em que foi ultimada. Tal decisão pode ser injusta, embora apoiada por ampla maioria da so-ciedade contemporânea. Pode, é claro, ocorrer que a decisão permaneça respeitável ao longo do tempo, recebida como justa inclusive pelas ge-rações posteriores a ela. Apenas nesse último caso, o dissenso pode não ter maior peso para o direito constitucional, isto é, não passar de registro nas atas da Suprema Corte como mera divergência.

Naturalmente, a última circunstância não é a que causa inquietação, porém as primeiras: as decisões da Suprema Corte majoritárias, apoia-das ou não pela sociedade de seu tempo e que, no futuro, são reputadas injustas ou capturadas por fatores extrajurídicos inaceitáveis. Nesse contexto, avultam os votos dissidentes, muitas vezes incompreendidos, ridicularizados e esmagados pela maioria da Corte. No entanto, à luz do Tribunal da História, podem encarnar vitórias morais.

Sem dúvida, o escrutínio intertemporal das decisões da Suprema Corte, que jamais se confunde com desacato, autoriza afirmar que de-terminado voto dissidente é que era o melhor, merecendo servir como inspiração para mudança de opinião, a par de alento para movimentos em defesa dos direitos civis, novas posturas ambientais e abordagens morais civilizatórias.

Não são inusuais os casos em que a maioria da Corte entendeu de acordo com tendências epocais e tomou rumos interpretativos que confli-tam com os anseios das gerações futuras. Em contrapartida, alguns votos dissidentes deixaram transparecer que foram prolatados com visão de longo prazo, amparados em perspectiva que faltou à maioria.

A propósito, em boa hora, Mark Tushnet empreendeu minuciosa análise de célebres votos dissidentes da Suprema Corte norte-americana4

4 Ver: TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008.

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em casos como: Dred Scott v. Sanford5 (1857), com base no voto do Justice Benjamin R. Curtis; The Civil Rights Cases (1883), com base no voto do Justice John Marshall Harlan; Plessy v. Ferguson6 (1896), com base, novamente, no voto do Justice John Marshall Harlan; Lochner v. New York7 (1905), com base no voto do Justice John Marshall Harlan, um dos mais conhecidos dissenters da Suprema Corte, e de outro famoso prolator de votos vencidos, o Justice Oliver Wendell Holmes; Whitney v. California8 (1927), com base no voto do Justice Louis D. Brandeis; National Labor Relations Board v. Jones & Laughlin Steel Corp. (1937), com base no voto do Justice James McReynolds; Korematsu v. United

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

5 No caso, que até hoje é considerado a maior mácula moral da Suprema Corte norte--americana, a decisão foi a de que os indivíduos da raça negra não seriam considerados cidadãos no sentido constitucional. Nesses termos: “Rule of Law – Individuals of the Negro race are not to be considered citizens in the constitutional sense” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 52).6 A decisão, no caso, foi a de que a segregação dos negros seria razoável, se baseada em usos, costumes e tradições do povo no Estado. Assim: “Rule of Law-Segregation of the races is reasonable if based upon the established custom, usage, and traditions of the people in the state” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 53).7 A decisão para o caso foi de que, para ser justo, razoável e apropriado o uso do poder de polícia pelo Estado, o ato deve ter relação direta, entre meios e fins, para que possa alcançar um apropriado e legítimo objetivo estatal. Nesse sentido: “Rule of Law – To be a fair, reasonable, and appropriate use of a state’s police power, an act must have a direct relation, as a means to an end, to an appropriate and legitimate state objective” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76).8 No caso, restou definido que o Estado pode, no exercício do poder de polícia, punir abusos na liberdade de discurso quando tais declarações são hostis ao bem-estar público como tendendo a incitar o crime, o distúrbio da paz ou colocar em perigo o governo organizado através de subversão violenta. Nesse sentido: Rule of Law: “A state may, in the exercise of its police Power, punish abuses of freedom of speech where such utter-ances are inimical to the public welfare as tending to incite crime, disturb the peace, or endanger organized government through threats of violent overthrow” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET AND KARLANS]. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 114).

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States9 (1944), com base no voto dos Justices Frank Murphy e Robert H. Jackson; Goesart v. Clearly (1948), com base no voto do Justice Wiley Rutledge; Brown v. Board of Education10 (1954), com base no voto do Justice Robert H. Jakson; Baker v. Carr11 (1962), com base nos votos dos Justices Felix Frankfurter e John Marshall Harlan; Abington School District v. Schempp (1963), com base no voto do Justice Potter Stewart;

9 No caso, a decisão foi a de que o receio pelas autoridades militares competentes de grave e iminente perigo para a segurança pública, em tempos de guerra, pode justificar a redução dos direitos civis de um único grupo racial. Nesse sentido: Rule of Law – Appre-hension by the proper military authorities of the gravest imminent danger to the public safety can justify the curtailment of the civil rights of a single racial group (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 58).10 Nesse caso, ficou definido que a doutrina do “separate but equal” não tinha aplicação no campo da educação, e a segregação de crianças em escolas públicas, baseada apenas na raça, violava a cláusula constitucional da igual proteção (STONE, SEIDMAN, SUNS-TEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 54). Pouco se fala na doutrina brasileira, em matéria de direito constitucional comparado, no desdobramento do caso Brown v. Board of Education of Topeka (349 U.S. 294), também chamado na doutrina norte-americana de Brown II, que foi decidido posteriormente, em 1955, no sentido da implementação do decidido no caso Brown v. Board of Education of Topeka (Brown I), no ano de 1954, portanto, um ano antes. No Brown II, foi determinado que os processos na Suprema Corte em matéria de segregação fossem devolvidos para que as Cortes inferiores determinas-sem, em suas decisões, ordens consistentes com princípios equitativos de flexibilidade e exigissem que os réus iniciassem uma total integração racial nas escolas públicas. Nesse sentido: “Rule of Law – The ‘separate but equal doctrine’ has no application in the field of education and the segregation of children in public schools based solely on their race violates the Equal Protection Clause” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 55).11 A decisão, no caso em tela, foi de que questões sobre proporcionalidade na compo-sição dos Legislativos nos Estados poderiam ser apreciadas pelo Poder Judiciário sem invasão de competência constitucional dos demais Poderes. O caso envolvia o estatuto do Estado do Tennesse, que foi impugnado judicialmente como obsoleto, após 60 anos de vigência, por distribuir desproporcionalmente as vagas de membros da assembleia ocupadas por representantes dos municípios. De fato: Rule of Law – Reapportionment issues present justiciable questions (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 11).

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Griswold v. Connecticut12 (1965), com base nos votos dos Justices Hugo L. Black e Potter Stewart; Morrison v. Olson13 (1988), com base no voto do Justice Antonin Scalia e Lawrence v. Texas14 (2003), com base no voto, outra vez, do Justice Antonin Scalia, caracterizado pelo originalismo15, o qual, ao que tudo indica, não será consagrado pela história.

Tushnet chega a analisar como dissensos, ainda que impróprios, o voto do Pennsylvania Supreme Court Justice, John Bannister Gibson, em Eakin v. Raub (1825), que critica o poder das Cortes de invalidar legisla-ções como reconhecido em Marbury v. Madison16 (1803). Como dissenso

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

12 A decisão foi de que o direito à privacidade, embora não explicitamente declarado no Bill of Rights, é uma penumbra formada por outras garantias explícitas. Como tal, ela é protegida contra a regulação do Estado quando esta é desnecessariamente ampla. Nesse sentido: “Rule of Law: The right to privacy, although not explicitly stated in the Bill of Rights, is a penumbra, formed by certain other explicit guarantees. As such, it is protected against state regulation that sweeps unnecessarily broad” (STONE, SEI-DMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and Karlan’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 87). 13 A decisão foi de que o Conselho Independente de Ética no Governo era órgão ad-ministrativo admitido pela Constituição e não violava a independência dos Poderes. O caso foi discutido após ser alegado por Olson, advogado da Environmental Protection Agency (EPA), que estava com a sua conduta sob investigação do referido Conselho. A questão ficou delimitada pela Suprema Corte, nos seguintes termos: “Rule of Law – The independent counsel provisions of the Ethics in Government Act are constitutional” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 47).14 A decisão desse leading case foi no sentido de que a legislação que criminaliza a sodomia entre adultos do mesmo sexo dentro de sua própria residência viola a causa do devido processo. A Suprema Corte fixou: “Rule of Law – Legislation that makes con-sensual sodomy between adults in their own dwelling criminal, violates due process” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 93).15 Sobre o originalismo, ver: SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. New Jersey: Princeton University Press, 1997.16 A decisão do caso foi de que a Suprema Corte tem o poder implícito, previsto no artigo 6º, § 2º, da Constituição, para revisar atos do Congresso e, se eles forem entendidos como contrários à Constituição, para declará-los nulos. De fato: “Rule of Law – The Supreme Court has the Power, implied from Article VI, § 2º of the Constitution, to review acts of Congress and if they are found repugnant to the Constitution, to declare them avoid” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 2).

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impróprio, também entende o veto do Presidente Andrew Jackson [1832] à legislação embasada no caso MacCulloch v. Mariland17 (1819).

Interessa notar que, no embate jurídico, os Justices tiveram acesso aos mesmos documentos e às alegações das partes, mas tomaram decisões diametralmente opostas ou, ao menos, pronunciadamente distintas, não raro com toques de extremismo. A partir daí, procuraram convencer os seus colegas, com as armas da retórica, de que suas posições seriam as corretas, invocando o texto da Constituição, a teleologia ou os preceden-tes, sem deixar de incorrer, às vezes, na chamada “avareza cognitiva”18.

É certo que a decisão tomada pela maioria produz efeito direto sobre as Cortes Federais e Estaduais. A publicação do voto dissidente, entretanto, provavelmente leva a que cidadãos, que venham a compartilhar da posição derrotada, justifiquem individualmente as suas crenças, as quais persistirão objeto de debate, senão mais jurídico em sentido estrito, político e cultural.

quando um Justice publica o dissenso, para que este fique consig-nado para a “história”, ele o faz com a presumida expectativa de que, algum dia, os atores do processo político modificarão o entendimento dominante e, assim, os Justices, em composições futuras, compartilharão sua leitura constitucional19.

Claro, os votos dissidentes guardam vinculação (longe de inelutável) com o contexto em que os Justices foram nomeados para a Suprema Cor-te, seja por um Presidente Democrata, seja por um Republicano. Mais:

17 A decisão do caso foi de que certos poderes federais que dão ao Congresso a dis-cricionariedade e o poder para escolher e aprovar os meios para desempenhar deveres impostos sobre ele são decorrentes da cláusula necessária e adequada. A Constituição Federal e as leis feitas de acordo com ela são supremas e controlam as Constituições e as leis dos Estados. De fato: “Rule of Law – [1] Certain federal powers giving Congress the discretion and power to choose and enact the means to perform the duties imposed upon it are to implied from the Necessary and Proper Clause. [2] The federal Constitution and the laws made pursuant to it are supreme and control the constitutions and the laws of the states” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 5).18 Vide, sobre “cognitive miser”, Susan Fiske e Shelley Taylor in Social Cognition. 2. ed., New York: McGraw-Hill, 1991.19 Para Tushnet, “[...] if you wrote your dissent for history, your assumption is that someday the players will change — that is, that there will be new Justices on the Supreme Court who might share your constitutional vision” (TUSHNET. Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. XVII).

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uma depressão econômica (como o Crash de 1929 ou a crise de 2008)20, uma guerra popular ou impopular, intensas migrações demográficas ou fatores dessa ordem costumam influenciar politicamente as decisões.

Exemplo de enraizamento político nas decisões da Suprema Corte foi a plataforma do Partido Republicano que, já em 1860, tratava a es-cravatura como heresia política, em face da vergonhosa decisão no caso Dred Scott. Outro exemplo foi a campanha de Richard Nixon para a presidência da República, com o jargão Law and Order, cujas prometidas nomeações de Justices para a Suprema Corte teriam objetivo de reverter os precedentes criados pela Court Warren, que acolhiam normas liberais e garantistas em matéria criminal.

Por sua vez, os democratas, nos anos 90, tentaram ostensivamente atrair os votos dos eleitores afirmando que, se os candidatos republicanos fossem eleitos, seriam nomeados para a Suprema Corte Justices que substituiriam o decidido, no caso Roe v. Wade21.

Em outras palavras, a muitas vezes negada relação entre a política e as decisões da Suprema Corte revela-se insofismável. Nessa medida, como é induvidoso que o dissenso é importante para o aperfeiçoamento do jogo político e para a diminuição de riscos e vieses associados à tomada das decisões, no âmbito da Suprema Corte não se verifica exceção. A Suprema Corte, na chamada Corte Roberts, encontra-se dividida, com cinco juízes conservadores (nomeados por Presidentes Republicanos) e quatro juízes liberais (nomeados por Presidentes Democratas). Constata--se viés conservador nas decisões da Corte; todavia, isso não significa que haja completa previsibilidade dos julgados22.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

20 Sobre a comparação entre a grande depressão e a crise de 2008, ver necessariamente: KRUGMAN, Paul. The return of depression economics. London: Penguin Books, 2008. No mesmo sentido, na defesa de uma regulamentação racional do mercado para que se evitem as falhas do capitalismo, ver: POESNER, Richard. A failure of capitalism. The Crisis of 08 and the Descent into Depression. Cambridge: Harvard University Press, 2009. E, também, mais recentemente: POESNER, Richard. The crisis of capitalism democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2010.21 Ver: TUSHNET. Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. XVII-XVIII.22 Sobre a divisão atual da Suprema Corte, Corte Roberts, e sua tendência conservadora, ver: TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013.

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Sem dúvida, o dissenso pode causar imprevisibilidade, conquanto tenha o mérito inegável de mitigar a polarização. Uma das razões para a assertiva é que juízes que pensam de igual modo apresentam a tendência de tomar decisões extremadas em órgãos colegiados23. Como refere Sunstein, o sólido debate entre juízes é crucial para assegurar que os argumentos sistemáticos (textuais e consequenciais) encontrem contra-argumentos razoáveis. Os juízes, onde o dissenso é aceito, tendem a levar em conta não apenas a visão dos seus colegas, mas a da sociedade como um todo. É que a voz da sociedade ecoa no voto descoincidente, algo que pode trazer informações relevantes para os juízes que inevitavelmente preocupam-se com sua própria reputação24. A possibilidade do dissenso enseja, portanto, novas angulações do enquadramento25 e garante vitalidade democrática aos Tribunais.

De fato, está demonstrado estatisticamente que a possibilidade de dis-senso tende a produzir decisões mais ponderadas nos órgãos colegiados do Poder Judiciário americano. Nas Cortes Federais, por exemplo, compostas de três membros por painel de julgamento, tal fenômeno pode ser comprovado. quando as decisões são tomadas por painéis compostos apenas por demo-cratas ou só por republicanos, existe boa chance de decisões extremadas no sentido de posições ora liberais, ora conservadoras, muito mais radicais do que seriam se os juízes decidissem a causa sozinhos. É que três magistrados, ao pensarem em uníssono (liberais ou conservadores), sofrem a propensão de radicalizar se não receberem o contraponto de visão divergente.

Nessa lógica, em painéis compostos por juízes republicanos, há forte inclinação para que sejam adotadas decisões mais extremadas26 no sentido

23 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 212. 24 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 168.25 Vide Amos Tversky e Daniel Kahneman in “The Framing of decisions and the psy-chology of choice”. Science, v. 211, p. 453-458, 1981.26 Como refere Sunstein, “a tendência ideológica dos juízes tende a ser amplificada se uma juíza compõe um painel com outros juízes do mesmo partido político. Por exemplo, um juiz Republicano deveria ser mais tendente a votar num estilo estereótipo mais conservador se acompanhado por dois republicanos”. Nesse sentido: “A judge’s ideological tendency is likely to be amplified if she is sitting with two judges from the same political party. For example, a Republican Judge should be more likely to vote in a stereotypically conservative fashion is accompanied by two Republicans” (SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 168).

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da vedação de ações afirmativas, da negação de pleitos que envolvam dis-criminação sexual, menor regulação sobre a poluição ambiental, desregu-lamentação dos mercados e proibição do aborto. Contudo, se o painel for apenas de democratas, a tendência será de que a posição sobre tais matérias seja invertida e assuma posições extremadas no sentido oposto. Ou seja, havendo painéis que mesclem juízes republicanos e democratas, as decisões tendem a ser mais ponderadas em virtude do tempero das cosmovisões distintas sobre o direito e a sociedade27, salvo se a técnica do confronto erístico, em vez do argumento persuasivo, acirrar ainda mais os ânimos.

Logo, ao menos à primeira vista, no atual estágio, os dissensos são mecanismos valiosos para evitar polarizações e efeitos cascata negativos, os quais, por ausência de contraste dialético, levam às decisões equivo-cadas28, desmedidas e unilaterais. Com acerto, refere Sunstein que as sociedades funcionam melhor se tomarem medidas para desencorajar o conformismo e promover o dissenso, via proteção dos direitos daqueles que expõem posição divergente29.

Mais: é manifesta a ligação entre a confiança excessiva e o extremis-mo. Pessoas confiantes em excesso são mais predispostas às polarizações de opinião30. Os juízes não fogem a essa regra quando deliberam em órgão colegiado avesso ao dissenso.

A Suprema Corte, influenciada por inevitáveis biases, aplica o direito levando em conta o texto da Constituição, princípios, valores, razões históricas, contextos econômicos, sociais e sensivelmente políticos, haja vista a sua origem. Negar esse fato seria escamotear evidências históricas e debilitaria uma reflexão crítica acerca da hermenêutica constitucional, que não se resume a dogmas e cânones impotentes para superar assuntos difíceis que desafiam os olhares ortodoxos.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

27 Ver sobre o tema: SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 168. E, também, POESNER, Richard A. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2010.28 Nesse sentido, ver: SUNSTEIN, Cass. Going to Extremes. How Like Minds Unite and Divide. New York: Oxford University Press, 2009.29 SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 213.30 Como refere Sunstein, “[...] because of the link between confidence and extremism, the confidence of particular members also plays an important role; confident people are more prone to polarization” (SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 129).

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2 Exame de dissensos na Suprema Corte norte-americanaDeterminados votos vencidos na Suprema Corte já podem ser ava-

liados com relativa segurança pela doutrina e pela sociedade não apenas americana, mas de todo o mundo. Nesses casos, ao que tudo indica, existe distanciamento histórico suficiente que permita apreciação razoavelmente precisa da motivação e dos efeitos diretos e indiretos da decisão tomada.

Nessa linha, a escolha recairá sobre rumorosos votos vencidos nos casos Dred Scott v. Sanford, Plessy v. Ferguson e Lochner v. New York, muito embora dezenas de outros dissensos, em casos relevantes, fossem dignos de reflexão, em face do contributo à formação plural do consti-tucionalismo norte-americano.

2.1 Dred Scott v. Sanford (1857)31

Dred Scott considerava-se um homem livre, pois o seu antigo “pro-prietário”, John Emerson, cirurgião militar, o havia levado do Estado do Missouri, localidade em que a escravatura era permitida, para o Illinois, onde a escravidão era vedada. Passados alguns anos, Dred Scott, após passar por vários Estados onde a escravatura havia sido banida, retornou ao Missouri e requereu sua liberdade perante a justiça local em processo ajuizado contra a viúva de John Emerson. Venceu a demanda, no primeiro grau, em 1850.

Todavia, a Corte do Estado do Missouri substituiu a decisão, em grau de recurso, alegando que Dred Scott havia retornado voluntaria-mente para o Estado. Após novo casamento da então viúva de Emerson, a “propriedade” de Scott passou ao irmão dela, John Sanford, que residia em Nova York.

Dred Scott, desta vez, processou Sanford, requerendo a sua liberdade em Corte Federal, em virtude da diversidade de jurisdição (o autor e o réu eram de diferentes Estados), tendo sido o caso decidido, em 1854, contra a pretensão de Scott. Compreensivelmente inconformado, Scott levou a questão à Suprema Corte, que conheceu o recurso e o julgou. A lamentável maioria dos membros da Corte entendeu que o fato de Scott

31 Scott v. Sandford, 60 U.S. [19 How] 393 [1857].

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ter vivido em Estado no qual não se admitia a escravatura não o tornava um homem livre e, sendo negro, não teria sequer o direito de propor uma ação judicial. A Corte acolheu o argumento da defesa de que o proprietário de escravos não poderia ser privado de sua propriedade, “o escravo”, sem o devido processo legal. Os votos da maioria foram capitaneados pelo voto condutor do Justice James Wayne, que considerou não ter o Congresso o poder de proibir a escravatura nos territórios e de privar os donos dos escravos da propriedade sobre eles quando mudassem de Estado, sem o devido processo legal32.

Justice Curtis dissentiu suscitando o debate sobre questões como raça, igualdade, federalismo, o papel do Judiciário e, em especial, ca-racterísticas básicas da política americana. O voto de Curtis pode ser criticado no ponto em que sustenta a autoridade dos Estados para qua-lificar quem são os seus cidadãos, mas é correto quando insiste que a visão da sociedade americana era fundamentalmente igualitária. Nesse aspecto, bem referiu que a raça não era uma qualificação de cidadania, segundo a Constituição.

Em resposta ao Justice Taney (pró-escravatura), que entendia que os negros não podiam votar porque não teriam a qualificação de elei-tores em alguns Estados, Curtis fez constar no voto dissidente a sua irresignação com essa posição supostamente “intencionalista” e, com base em evidências históricas, observou que, quando da promulgação da Constituição, em 1787, cinco das treze Colônias já reconheciam os negros como cidadãos. Os negros desses Estados, de fato, ratificaram a Constituição como cidadãos e, desse modo, restava rechaçado o frágil argumento de que seriam incapazes de autodeterminação.

Ainda em resposta à afirmação do Justice Taney, no sentido da ausên-cia de cidadania pela incapacidade de votar dos negros em determinados Estados, Justice Curtis referiu que o conceito de cidadania era mais amplo

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

32 Segundo Mark Tushnet, o caso Dred Scott v. Sanford é usualmente citado como a primeira decisão que utilizou a cláusula do devido processo como justificativa para negar os poderes do governo para regular a propriedade e a liberdade. Nesse sentido, o devido processo substantivo floresceu no início do século 1920 como uma proteção ao direito de propriedade, mas esteve desacreditado até o final de tal século, quando ele retornou como um veículo para a proteção da privacidade e a autonomia individual (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 42).

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do que o simples exercício do voto e, mais ainda, a ausência desse direito não seria determinante para a definição do cidadão. Outra nota significativa do dissenso do Justice Curtis foi o reconhecimento da competência do Judiciário Federal para reforçar e reconhecer direitos civis.

No centro do debate, estava uma das grandes causas da Guerra Civil33, sobre a qual Justice Curtis manifestou-se se opondo à posição do Justice Taney, no sentido de que o Congresso não teria poderes para banir a escravatura dos territórios e o direito de propriedade sobre os escravos. O voto dissidente reconheceu a prevalência dos poderes da legislatura nacional sobre as estaduais.

A visão exposta no voto dissidente estava impregnada da mistura entre a discrição legislativa com o escrutínio judicial mínimo. No entanto, o voto foi relevante e, por certo, auxiliou o fomento da luta antiescrava-gista. Apesar disso, não enfrentou de maneira frontal questões nevrálgicas que poderiam ser ventiladas com maior robustez, tais como os direitos de igualdade e liberdade de todos os seres humanos, sem distinção.

A tentativa de convencer a posição majoritária, exposta no voto dis-sidente, é marcada por evidentes subterfúgios e não foi clara em defender a autodeterminação e a isonomia características da liberdade. Como atenuante, teve o mérito de se levantar contra a engrenagem social da época, tendo presente que vários dos Framers, incluindo abolicionistas, eram proprietários de escravos, como Thomas Jefferson34. Como quer que seja, uma afronta mais dura aos argumentos majoritários dos Justices poderia ter ocorrido, embora com escassa chance de convencimento à vista da maioria obscurantista que dominava a Corte.

No Tribunal da História, a decisão da maioria foi extremamente criticada e tornou-se um dos principais alvos de Abraham Lincoln, em sua campanha presidencial, no discurso da Casa Dividida, em 185835. Posteriormente à guerra civil entre norte e o sul, o Congresso aprovou a

33 Para a consulta de uma das melhores obras recentes sobre a história da Guerra Civil Ame-ricana, ver: MCCULLOUGH, David. 1776. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2005.34 Sobre a vida de Thomas Jefferson, ver MEACHAN, Jon. Thomas Jefferson: the art of power. New York: The Randon House Publishing Group, 2012.35 LINCOLN, Abraham. House Divided Address. Chicago: Illinois State Historical Society, 1957. Ver também: LINCOLN. Abraham. Collected Works of Abraham Lincoln. v. 1. New Brunswick: Rutgers University Press, 1953.

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13ª Emenda, que aboliu a escravatura, no ano de 1865, e a 14ª Emenda, que outorgou cidadania aos antigos escravos, no ano de 1868.

Eis exemplo de decisão majoritária infame, que envergonha a maioria do povo americano e mancha a história da Suprema Corte. Poderia ter sido evitada, como prova o voto vencido, que afasta a tese dos fatalistas retrospectivos. A decisão foi o resultado do viés do status quo iníquo e lesivo à Rule of Law, revelando o fracasso do estrito construcionismo, eis que o seu “fundamento” alicerçou-se numa pretensa intenção dos Framers.

É instigante a reflexão de Tushnet quando, ao mesmo tempo em que admite a pouca relevância do caso no cotejo com os efeitos da Guerra Civil e das 13ª e 14ª Emendas, suscita o questionamento contrafactual sobre se a Guerra Civil, trágica como todas as guerras, teria ocorrido se a posição dissidente do Justice Curtis tivesse prevalecido36.

Impossível saber a resposta exata. Entretanto, é viável imaginar que a Guerra poderia ter sido evitada se outra fosse a decisão da Suprema Corte, embora seja certo que a irresignação diante da maioria dos juízes auxiliou Lincoln na sua defesa do abolicionismo, nos célebres debates contra Stephen Douglas na corrida presidencial.

Ainda que se possam fazer críticas pontuais à timidez do Justice Curtis, é inegável que esse julgador entrou positivamente para história por ter tido a coragem e a lucidez de dissentir e não se deixar contagiar pela maioria racista, arbitrária e insensível que optou pela escravatura, chaga até hoje não cicatrizada na sociedade norte-americana (e não só nela).

2.2 Plessy v. Ferguson (1896)37

Mesmo após a abolição da escravatura nos Estados Unidos, com a 13ª Emenda e com a 14ª Emenda, que outorgou cidadania aos ex-escravos,

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36 Afirmou Tushnet que “the effects of the Civil War and the Thirteenth and Fourteenth Amendments made the Dred Scott case seem irrelevant for many years, and the deci-sions remains the one Supreme Court decision that only a handful of scholars attempt to defend. In one sense, then, the most interesting question about the decision is this: would the Civil War have occurred – when it did, earlier, later – had Justice Curtis’s position prevailed?” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 42).37 Plessy v. Ferguson 163 U.S. 537 [1896].

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os direitos humanos dos negros continuaram violados, com complacência jurisprudencial, em face da interpretação conferida à cláusula da equal protection, à vista da bárbara segregação dos negros prevista em leis de diversos Estados. No ano de 1890, o Poder Legislativo da Louisiana aprovou lei determinando que brancos e negros ocupassem vagões se-parados, mas iguais, nos trens.

Essa medida desagradou os proprietários dos trens pelo aumento do custo na operação e, claro, os afro-americanos de Louisiana. Um grupo, em New Orleans, resolveu impugnar a constitucionalidade do Estatuto em juízo. Como autor o escolhido foi Plessy, que era 7/8 caucasiano (bisneto de um negro) e possuía a cor da pele branca. Ainda assim, pela tez amorenada, tinha sido impedido de sentar em um assento de vagão reservado apenas para brancos e preso por resistência à ordem de sair do trem. Plessy foi condenado, pois a cláusula da equal protection permitiria, segundo interpretação esdrúxula da Corte Estadual, a segregação racial.

Plessy foi representado em juízo pelo famoso advogado, escritor e diplomata, Albion Tourgee38. Este alegou que a segregação estigmatizava “pessoas de cor” e as colocava sob o prisma da inferioridade. Também invocou a violação das 13ª e 14ª emendas da Constituição. A Suprema Corte, apesar desses argumentos irrespondíveis, entendeu que Plessy não tinha razão e que a lei estadual previa razoável poder de polícia do Estado baseado nos costumes locais.

Justice Brown, autor do voto condutor, alegou que a segregação era razoável desde que baseada “em costumes, usos e tradições das pessoas dos Estados, com uma visão de manutenção do seu conforto e serviria para preservar a ordem e a paz pública”39. Assinalou – de modo bizarro, segundo o Tribunal da História – que aquela lei não seria derivativao da escravatura e que as Emendas 13ª e 14ª não haviam sido violadas. Referiu que a separação das raças não seria característica da inferioridade e da servidão dos negros, como referido por Plessy, nas suas alegações pe-

38 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 69.39 “In determining the question of reasonable-ness, [the legislature] is at liberty to act with reference to the promotion of their comfort, and the preservation of the public peace and good order” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 671).

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rante a Suprema Corte40. Para o referido Justice, o objeto da 14ª Emenda foi o de reconhecer a absoluta igualdade de raças perante a lei, mas, de acordo com a “natureza das coisas”, não poderia ter sido a intenção do Congresso abolir as distinções baseadas na cor.

A maioria da Suprema Corte, nessa toada irracionalista, entendeu que a 14ª Emenda protegia apenas direitos civis, e não “direitos sociais”. Os “direitos civis” incluíam os direitos de o proprietário formalizar contratos, e, por outro lado, os “direitos sociais” seriam reconhecidos apenas como direitos de associação. Nessa perspectiva enviesada, e hoje tida como grotesca, a Lei de Louisiana não impediria o direito de Plessy formalizar contrato com a empresa de trem para comprar um ticket de passagem; contudo, os vagões, iguais, deveriam ser separados entre as raças (equal but separate) para ocupação e uso.

A infame posição majoritária defendeu que uma legislação não poderia erradicar o preconceito nem poderia anular instintos humanos. Ou seja, a maioria firmou o entendimento anticientífico e conservador de que se “uma raça é inferior a outra socialmente, a Constituição dos Estados Unidos não pode colocá-las no mesmo plano”41.

No entanto, Justice Harlan dissentiu. Ponderou que a lei estadual segregacionista interferia, sim, como era evidente, com na liberdade dos indivíduos de se associarem livremente. Para o prolator do voto dissiden-te, todos os cidadãos deveriam ser tratados igualmente. Como cidadãos, os negros deveriam ter todas as prerrogativas e todos os direitos previstos na Constituição, e a segregação seria inadmissível opressão sobre tais prerrogativas e liberdades42. Para Justice Harlan, com senso correto dos deveres de universalização, nos Estados Unidos “não existe uma classe dominante ou de cidadãos superiores. Não existem castas aqui. Nossa

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40 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 673.41 “Laws are powerless to eradicate racial instincts... If one race be inferior to the other socially, the constitution of the United States cannot put them upon the same plane” (Plessy v. Ferguson – 1896).42 Ver: STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 53.

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Constituição é cega em relação à cor, e nem conhece ou tolera classes entre cidadãos”43.

Enfatizou corretamente que os destinos estão indissociavelmente li-gados e os interesses de todos, brancos e negros, exigem governo comum, que não deve permitir que o ódio racial seja alimentado pela sanção de uma lei (no caso a lei segregacionista)44. Para Justice Harlan, a condenação de Plessy deveria ser revertida e a lei do Estado da Louisiana anulada.

Harlan foi profético, durante o julgamento, ao alertar para as externa-lidades nocivas daquela decisão majoritária. De fato, após a teratológica decisão, várias leis locais permitiram a segregação dos negros, com am-paro na doutrina sofística e falaciosa do equal but separate, em escolas, restaurantes, banheiros, transportes públicos e hotéis. Insistente no erro, a Suprema Corte continuou permitindo a segregação nos casos Berea College v. Kentucky (1908), Corrigan v. Buccley (1926) e Gong Lum v. Rice (1927)45. Tushnet observa, com propriedade, que a decisão da Corte, em Plessy, incentivou várias legislações e medidas segregacionistas no sul, notadamente em relação às escolas46.

Paradoxalmente, a declaração do Justice Harlan de que “a Cons-tituição é cega quanto à cor” tem sido utilizada, nos Estados Unidos, para alegar a inconstitucionalidade de leis que estabelecem programas de ações afirmativas com base na raça. Trata-se de distorção, uma vez que a pretensão do Justice Harlan era bem outra: defender a igualação. Ora, nada impede que uma ação afirmativa desempenhe papel iguala-

43 “But in view of the Constitution, in the eye of the law, there is in this country no superior, dominant, ruling class of citizens. There is no caste here. Our Constitution is color-blind, and neither knows nor tolerates classes among citizens” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 671).44 “The destinies of the two races [are] indissolubly linked together, and the intests of both require that common government of all shall not permit the seeds of race hate to be planted under the sanction of law” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 673).45 WEDY, Gabriel. Tinga e a intolerância globalizada. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, p. 15, 09 abr. 2014.46 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 78.

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dor, ainda que transitória. quer dizer, Justice Harlan estava preocupado com leis que considerassem uma raça dominante sobre as outras ou que reconhecessem uma raça como inferior47.

Conforme adverte Tushnet, “como todas as grandes opiniões, a do Justice Harlan está aberta a interpretações e o seu significado depende do que os seus últimos leitores querem fazer com ela”48. Esse, porém, foi um voto vencido de legado superavitário. Nada obstante, embora para o Justice Harlan a Constituição fosse cega para as cores (color-blind), ele dificilmen-te o seria para outros preconceitos de sua época. Com efeito, no seu voto, manifestou preocupação com o fato de que os “chineses” residentes nos Estados Unidos pudessem entrar nos carros reservados para os brancos, enquanto afro-americanos, que eram cidadãos dos Estados Unidos, estavam proibidos. No sentido do asseverado por Tushnet, não é difícil notar traços de segregacionismo no fato de que o próprio Justice Harlan esperava que a raça branca permanecesse dominante no país, embora não legalmente49.

Hoje, a visão dos direitos civis é mais robusta: a Rule of Law tem de garantir aos direitos civis exercício e pleno gozo, como uma condição fundamental. Não há dúvida de que o voto dissidente do Justice Harlan, em que pesem fragilidades pontuais, foi de grande importância para fomentar o debate público sobre a perversa segregação que privou os negros de compartilharem locais públicos e privados com os brancos em menoscabo à igualdade e à dignidade. O voto anteviu e serviu de esteio para o céle-bre julgamento de Brown v. Board of Education, que, em 1954, reputou inconstitucional a segregação nas escolas públicas nos Estados Unidos.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

47 Para Tushnet: “There is no caste here, and other phrases in the opinion suggest that Justice Harlan was concerned about laws that made one race dominant over others or that assumed that one race was inferior and degraded – characterizations that can be applied only with some difficulty to affirmative action’s programs” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 79).48 Segundo Tushnet: “Like all great opinions, Justice Harlan’s is open to interpretation, its meaning depending on what later readers want to make of it” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 79).49 Refere Tushnet que “it is not hard to feel some racism in that concern. And Justice Harlan expected “the white race” to remain dominant in the country — socially, but not legally” (TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 79-80).

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Aliás, quando o caso Brown foi julgado, a situação era irreversível para a Suprema Corte norte-americana, uma vez que os julgamentos nos casos McCabe v. Atchison, Topeka & Santa Fe Railway (1914), Gaines v. Canada (1938), Sweat v. Painter (1950) e MacLaurin v. Oklahoma State Regents, decidido no mesmo dia do caso Sweat, já haviam minado a interpretação do equal but separate.

No caso McCabe, a Corte entendeu inconstitucional a lei do Estado de Oklahoma que desobrigava as empresas exploradoras das vias férreas de oferecerem instalações como cabines de dormir, sala de jantar e ca-deiras individuais para os vagões dos negros, ainda que oferecessem tais vantagens para os brancos. O argumento do Estado de Oklahoma foi de que havia pouca demanda dos negros para viagens de trem50.

Em Gaines, após a NAACP (National Association for Advancement of Colored People) ter iniciado uma campanha contra as leis segregacio-nistas (Jim Crown Laws), a Suprema Corte decidiu ser inconstitucional lei do Estado do Missouri que permitia ao Estado matricular os negros, com o fornecimento de voucher, em Universidades de Estados vizinhos e não segregadas. Esse julgamento ocorreu pelo fato de ter sido negada, a um afro-americano, a admissão na Faculdade de Direito da Universidade do Missouri, destinada apenas para brancos, isso porque a Universidade destinada aos negros no Estado, a Lincoln University, não tinha faculda-de de Direito para os afro-americanos. A Suprema Corte entendeu que referida lei violava a cláusula do equal but separate51.

50 Segundo Strauss: “In MacCabe v. Athinson, Topeka & Santa Fe Railway, decided in 1914, the Court dealt whit an Oklahoma law requiring separate-but-equal railroad facilities. This law, however, said, that a railroad could have sleeping, dining, and chair cars for whites even if it did not have those kinds of cars for blacks. The state defended the law by arguing that there was essentially no demand from blacks for those facilities. The Court rejected the state’s argument and struck down the law” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 86).51 Como refere Strauss: “In Missouri ex rel. Gaines v. Canada, an African-American student was denied admission to the all-white University of Missouri Law School. Mis-souri operated an all-black state university, Lincoln University, that did not have a law school. Instead, Missouri law authorized state officials to arrange for blacks to attend law school in neighboring states and to pay their tuition. The Court rule that this voucher scheme not satisfy separate but equal” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 87).

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No caso Sweatt, a Suprema Corte decidiu que a Faculdade de Direito que o Estado do Texas tinha disponibilizado para os negros não era igual a Texas Law School, frequentada apenas por brancos52.

O caso McLaurin talvez tenha sido o mais emblemático e decisivo para o fim do equal but separate, porquanto foi decidido que essa regra, emanada de Plessy e criticada pelo Justice Harlan, não bastava. George McLaurin foi admitido em uma Universidade apenas para brancos; toda-via, tinha um lugar especial na sala de aula, deveria sentar-se sozinho na cafeteria e tinha uma mesa especial na biblioteca. A Corte entendeu que tais condições eram “prejudiciais à capacidade de estudo de McLaurin e no seu engajamento nos debates e troca de visões com outros estudantes e, em geral, para a sua formação profissional”53.

Esses casos foram minando as leis segregacionistas que, no início, tiveram a enfrentá-las voz dissidente – e quase solitária – do Justice Har-lan. Contudo, mesmo após a decisão do caso Brown, vários Estados do sul dos Estados Unidos continuaram a desafiar a decisão até a aprovação do Civil Rights Act of 196454, que foi uma referência no plano legislativo em defesa dos direitos civis, por haver declarado de modo expresso a ilegalidade de qualquer discriminação baseada em raça, cor, religião, sexo ou origem nacional.

Como bem observado por Ackerman na recente obra que completa sua trilogia, We the People, inicialmente, com o Civil Rights Act of 1964, os americanos começaram a resolver uma década de debates provocados por Brown para dar a ele apoio sustentado por uma legislação de referência que repetidamente reafirmou os princípios de Warren. E, nesse exemplo-chave, o esforço para redefinir o rumo interpretativo constitucional e incluir estatutos de referência teve a paradoxal consequência de exigir que os advogados/

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

52 Segundo Strauss: “In Sweatt v. Painter, the Court held that a law school that Texas had established for African Americans was not equal to the University of Texas Law School... The newly established school could not possibly match the University of Texas in those respects” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 89).53 Assinala Strauss: “The Court explained that these conditions harmed McLaurin’s ability to study, to engage in discussions and exchange views with other students, and, in general, to learn his profession” (STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010, p. 89-90).54 Pub.L. 88-352, 78 Stat. 241, enacted July 2, 1964.

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operadores do Direito levassem a Suprema Corte mais a sério e tratassem o caso Brown pelo que ele foi: a maior decisão judicial do século XX55.

É de reiterar que o Justice Harlan teve importante papel nesse pro-cesso de consolidação da defesa dos direitos civis, a despeito das críticas que se possam fazer à mencionada timidez dos argumentos utilizados naquele momento histórico.

2.3 Lochner v. New York (1905)56 Posteriormente à Guerra da Secessão, os efeitos da revolução industrial

atingiram os Estados Unidos de modo intenso. Espalharam-se pelo país grandes e pequenas indústrias e negócios privados de todo o tipo, gerando crescimento econômico e aumentando as populações nas grandes cidades.

Incrementaram-se as relações contratuais entre empregadores e em-pregados, baseadas na lei da oferta e procura, seguindo a teoria econômica do laissez-passer e do laissez-faire vigente na época. Os trabalhadores passaram a se sindicalizar para aumentar o seu poder de barganha em favor de melhores salários e condições laborais, inclusive limitação na jornada de trabalho.

Nesse cenário, o Estado de Nova York aprovou lei limitando a jor-nada dos padeiros em dez horas por dia e sessenta horas por semana com a finalidade de proteger a saúde dos empregados. As grandes padarias não foram tão atingidas com a lei das dez horas; todavia, as pequenas padarias, sem muitos recursos, sentiram-se afetadas.

Joseph Lochner, proprietário de pequena padaria em Utica, Nova York, descumpriu a lei “das dez horas” e sofreu multa de U$ 50,00, pre-vista na legislação do Estado. Irresignado, contratou, ironicamente, um

55 Para Ackerman: “Beginning with the Civil Rights Act of 1964, Americans began to resolve the decade of debated provoked by Brown by giving their sustained support to landmark legislation that repeatedly reaffirmed Warren’s principles. In this key instance, the effort to redefine the constitutional canon to include landmark statutes has the par-adoxical consequence of requiring lawyers to take the Supreme Court more seriously and treat Brown for with it was: the greatest judicial opinion to the twentieth century” (ACKERMAN, Bruce. We the People. The Civil Rights Revolution. v. 3. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University, 2014, p. 317).56 Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905).

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ex-líder sindical dos padeiros, Henry Weissmann, que, nessas alturas, possuía a sua própria padaria, para impugnar em juízo a legislação.

A Suprema Corte dos Estados Unidos acolheu por cinco a quatro o pedido de Lochner. Segundo o Justice Rufus Peckham, prolator do voto condutor, não seria justo e razoável o exercício do poder de polícia do Estado. E, ao contrário, referiu que seria interferência desnecessária na liberdade do indivíduo para avençar contratos de trabalho que possam ser apropriados para o sustento seu e de suas famílias57.

A Corte afastou a alegação de que uma jornada com mais de dez horas pudesse ter alguma conexão e causar prejuízos à vida e à saúde dos trabalhadores. A maioria dos Justices rejeitou o argumento de que as longas jornadas de trabalho, superiores a dez horas, colocariam em risco a higiene e a qualidade dos pães e, por extensão, a segurança dos consumidores. O Justice Peckham afirmou “que os empregados não eram mais explorados que outros trabalhadores, nem eram os padeiros uma classe desigual em inteligência e capacidade do que os homens dos outros comércios”. Os padeiros “poderiam reivindicar os seus direitos e zelar, eles próprios, por estes na barganha com os seus empregadores”58, sem a necessidade de regulação estatal. O direito de contratar restou garantido como parte da liberdade do indivíduo tutelada pela 14ª Emenda, e o direito de comprar ou vender a força de trabalho foi reconhecido como parte da liberdade pro-tegida pela referida emenda59. Referiu o Justice, ainda, que a 14ª Emenda limitava o poder de polícia dos Estados60.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

57 Ver TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.58 Para o Justice Peckham: “Bakery employees were no more exploited than any other workers, nor were bakers as a class [un] equal in intelligence and capacity to men in other trades. They could assert their rights and care for themselves in their bargaining with their employers”. Ver: TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.59 Como afirmado pelo Justice Peckham: “The general fight to make a contract in relations to one’s business is part of the liberty of the individual protected by the Fourteenth Amend-ment. The right to purchase or sell labor is part of the liberty protected by this amendment” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76).60 Ver: STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76.

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A inclemente posição majoritária foi no sentido de que não existia relação direta entre a limitação da jornada de trabalho e a saúde dos empregados que pudesse justificar uma regulação do Estado de Nova York por via legislativa. A crítica à lei formulada pela maioria foi de que seu real objetivo e seu propósito era regular as horas de trabalho entre empregadores e empregados, em negócio privado, não perigoso para a moral ou para a saúde dos empregados. Em tais circunstâncias, a liberdade de empregador e empregado ajustarem a relação de emprego não poderia sofrer intervenção sem violar a Constituição61.

Em boa hora, os Justices Harlan, White e Day dissentiram no sentido de que a liberdade de contratar não poderia ser violada, mas estaria, sim, sujeita a uma política de regulação razoável. A intenção da lei aprovada, para os dissidentes, foi a de proteger o bem-estar daqueles que trabalham nas padarias62. Citaram o festejado tratado do Professor Hirt, intitulado Doenças dos Trabalhadores, que descrevia os efeitos nefastos do trabalho dos padeiros sobre a saúde, dado que realizavam grande esforço físico, em locais superaquecidos, por longas horas e labutando grande parte do tempo durante a noite para atender à demanda do público63. Constou nos votos dos Justices, embasados em referências médicas, que a continuada inalação de poeira causava inflamação nos pulmões e nos brônquios, afetando também os olhos dos padeiros. Tal trabalho extenuante causava reumatismo, câimbras e fraqueza nas pernas. Os padeiros ficavam com o rosto pálido, a saúde debilitada – decorrente de seu modo irregular e pouco natural de vida – e privados do sono reparador. A média da expec-tativa de vida dos padeiros era menor que a dos demais trabalhadores,

61 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 463.62 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 463.63 Segundo os Justices Harlan, White e Day, “Professor Hirt in his treatise on the ‘Dis-eases of the Workers’ has said: The Labor of the bakers is among the hardest and most laborious imaginable, because it has to be performed under conditions injurious to the health of those engaged in it. It is hard, very hard work, not only because it requires a great deal of physical exertion in an overheated workshop and during unreasonably long hours, but more so because of the erratic demands of the public, compelling the Baker to perform the greater part of his work at night” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464).

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não atingindo eles, em sua maioria, os cinquenta anos de idade64. Para os três dissidentes, a decisão deveria levar em consideração o poder inerente dos Estados para zelar pela vida, pela saúde e pelo bem-estar dos seus cidadãos65.

Justice Holmes foi o quarto a dissentir, só que por outros fundamen-tos. Referiu que o caso estava sendo decidido pela maioria com base em teoria econômica (laissez-faire, laissez-passer), que grande parte do país não aprovava. Aduziu que a Suprema Corte já havia reconhecido, como constitucional, a regulação, em vários casos, como na lei de usura, na lei dos domingos, na proibição de loterias, na lei de vacinação obrigatória no Estado do Massachusetts e na decisão que limitou a oito horas a jornada de trabalho nas minas66.

Como referem Gunter e Sullivan, desde a decisão de Lochner, de 1905 até meados dos anos 1930, a Suprema Corte invalidou várias leis com base no substantive due process. Como no caso Lochner, as invalidações pela Corte de leis regulatórias provocaram dissensos, mais frequentemente capitaneados pelo Justice Holmes e, mais tarde, pelos Justices Brandeis, Stone e Cardoso. Durante a Era Lochner, cerca de duzentas leis regulatórias foram anuladas67.

Os votos dissidentes tiveram papel de notável peso nos debates públicos que se seguiram e, em especial, o voto dissidente do Justice Holmes, na decisão de Williamson v. Lee Optical Co.68, que praticamente sepultou a Era Lochner. O uso do (in)devido processo legal, utilizado para justificar a autonomia da vontade privada, foi afastado. Passou-se, finalmente, a exigir do legislador uma adequação entre os meios e os fins, atendendo ao princípio da razoabilidade.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

64 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464.65 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464.66 TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 88.67 GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 466.68 Williamson v. Lee Optical Co. 348 U.S. 483, 75 S.Ct. 461, 99 L. Ed. 563 (1955).

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No mencionado caso, o Estado de Oklahoma regulou, via legislativa, a obrigatoriedade da prescrição médica de oftalmologista ou optometrista para a substituição, duplicação e instalação de lentes em novas armações. Os oculistas (não médicos) alegaram que a legislação violava o princípio do devido processo legal, pois o procedimento era mecânico. A Supre-ma Corte entendeu que caberia ao Poder Legislativo, e não ao Poder Judiciário, ponderar as vantagens e as desvantagens da nova exigência. A Corte considerou que, em alguns casos, as orientações contidas nas prescrições médicas eram essenciais para que os óculos fossem regulados para corrigir problemas de visão e aliviar as condições oftalmológicas de modo a corrigir os defeitos particulares de visão.

Constou no voto da maioria que o legislador pode ter concluído que exames oftalmológicos eram tão importantes não apenas para a correção da visão, mas também para a detecção de males ou doenças latentes. Assim, cada mudança de armações e cada duplicação de lentes deveriam ser acompanhadas pela prescrição de especialista médico. O voto foi claro no sentido de que “[...] é passada a época em que esta Corte usava a cláusula do devido processo legal para anular leis esta-duais, reguladoras de condições comerciais e industriais, porque elas eram consideradas insensatas, inoportunas ou contrárias a uma particular escola de pensamento”69.

Não existe dúvida de que os votos dissidentes contribuíram para a mudança de jurisprudência da Suprema Corte, isto é, para que fosse ad-mitida a regulação estatal sobre atividades econômicas. Evidentemente, as regulações devem ocorrer com proporcionalidade a ponto de atender ao interesse público genuíno, respeitadas as vedações do excesso e da ino-perância. Razoabilidade, sim, manifestada pela permissão de regulação pelos Estados das relações laborais entre empregados e empregadores. Esse, talvez, seja o grande legado do dissenso do caso Lochner, deixando expressa a defesa de regulação razoável, não inoperante e, tampouco, excessiva ou prejudicial ao dinamismo econômico.

69 Ver também: GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 481-482.

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3 Casos célebres e recentes com dissensos que serão avaliados pelas futuras gerações

Nos últimos anos, tivemos casos polêmicos julgados pela Suprema Corte norte-americana, caracterizada por uma tênue maioria conserva-dora. Os casos julgados podem ser avaliados mediante prognósticos de impactos das decisões e, também, dos dissensos manifestados. As escolhas dos casos Bush v. Gore, do financiamento público de campanha e do não menos polêmico Obamacare não foram realizadas por acaso, senão em virtude da repercussão pública, não apenas dentro dos Estados Unidos, com argumentos contraditórios esgrimidos, de modo retorica-mente contundente, pelos Justices. Os três casos foram decididos por apenas um voto, deixando estampada a divisão da Suprema Corte entre conservadores e liberais, ainda que com fronteiras incertas70.

3.1 Bush v. Gore71

A eleição entre Bush e Gore estava muito apertada naquele 08 de novembro de 2000, e o candidato que ganhasse as eleições, no voto popular e direto, no Estado da Flórida, estaria eleito. A Lei Eleitoral da Flórida, após os resultados divulgados, exigia que se realizasse uma recontagem de votos, a menos que o candidato derrotado a dispensasse. Gore, logicamente, não aceitou a vitória de Bush e requereu a recontagem de votos na justiça local. A diferença pró-Bush, posterior à recontagem, encolheu de 1.782 para 327 votos. Somado a esse fato, as cédulas dos eleitores que votavam no exterior ainda não haviam sido contadas72.

O tema chegou ao Tribunal Estadual da Flórida, que: (i) ordenou que os resultados da recontagem de Palm Beach, juntamente com os resultados parciais da recontagem interrompida de Miami-Dade, fossem somados às totalizações dos candidatos, uma providência que diminuiu a vantagem de Bush em mais 200 votos; (ii) ordenou que todos os votos

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

70 TRIBE, Laurence; MATZ, Joshua. Uncertain Justice. New York: Henry Holt and Company, 2014.71 Bush v. Gore. 531 U.S. 98 [2000].72 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2003, p. 251-273.

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em branco, cerca de 60.000, fossem recontados à mão, inclusive o saldo dos votos em Miami-Dade; (iii) ordenou que a recontagem fosse feita por técnicos judiciários no Estado, em lugar de juntas eleitorais dos condados ou, ainda, por representantes eleitorais oficiais do Estado; (iv) recusou-se a estabelecer critérios, para a recuperação de votos de cédulas danificadas, mais específicos que a intenção do eleitor; e (v) recusou-se a autorizar uma recontagem de cédulas com excesso de votos, isto é, cédulas que continham votos ou marcações interpretáveis como votos para mais de um candidato para o mesmo cargo. Havia cerca de 110.000 votos em excesso no Estado da Flórida73.

Bush recorreu à Suprema Corte, que suspendeu a decisão do Tribunal da Flórida, no dia 12 de dezembro, com os votos dos Justices Rehin-quist, O’Conor, Scalia, Kennedy e Thomas, formando a maioria. Para a Suprema Corte, a recontagem de votos seria uma negação da proteção igualitária das leis. A decisão entendeu que as determinações (i), (ii), (iv) e (v) criavam diferenças no tratamento das cédulas de eleitores diferentes.

Os Justices Souter74 e Breyer75 concordaram que a ordem de reconta-gem levantava problemas de proteção igualitária (algo que exigia reparo), mas entenderam que o melhor seria enviar o assunto de volta para o Tribunal da Flórida determinar uma recontagem apropriada dos votos. Os Justices Stevens76 e Ginsburg77 dissentiram da maioria, porque entenderam que a ordem de recontagem não violava qualquer disposição legal78.

73 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2003, p. 255.74 De acordo com o Justice Souter: “The case should be remanded to the Florida Courts with instructions to establish uniform standards in any further recounting”.75 Consta no voto do Justice Breyer: “This Court should resist the temptation to resolve tangential legal disputes, where doing so threatens to determine the outcome of the election”.76 Segundo o Justice Stevens: “While the use of differing substandards for determining voter intent counties employing similar voting systems may raise serious concerns, those concerns are alleviated by the fact that a single impartial magistrate will ultimately adjudicate all objections arising from the recount process. The loser in this Presidential election is the Nation’s confidence in the judge as an impartial guardian of the rule of law”.77 Para a Justice Guinsburg: “The Court contradicts the basic principle that a State may organize itself as it fit Article II does not call for the scrutiny taken by this Courts”.78 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2003, p. 256.

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Para Posner, a decisão da maioria da Corte foi acertada, visto que uma recontagem poderia ter levado à eleição de Gore e gerado uma crise institucional no país. Até a nomeação de Gore estaria ameaçada, pois, dependendo do modo como a Lei Eleitoral fosse interpretada, o Congresso poderia ter de decidir a questão. Houve quem sugerisse o risco de caos79.

De fato, é difícil saber o que aconteceria se a Suprema Corte devolvesse a questão para o Tribunal da Flórida, este determinasse a recontagem de votos e Gore fosse o eleito. Teria ocorrido o atentado de 11 de setembro no caso da eleição de Gore? Como ele teria reagido a esse fato80? Será que a dita guerra preventiva “contra o terror” teria sido declarada e o Iraque e o Afeganistão invadidos? A postura de Gore teria sido mais positiva que a de Bush para enfrentar essas questões? São respostas realmente difíceis, mas parece inegável que a maioria se pautou por um consequencialismo enviesado do tipo conservador.

Em temas como o aquecimento global, Gore provavelmente teria assinado o pacto de Kyoto e promoveria uma regulação mais incisiva sobre os gases de efeito estufa nos Estados Unidos. Tratando-se de um democrata, se reeleito (partindo do pressuposto de sua eleição em 2000), possivelmente providenciaria uma regulação mais ativa do mercado, com chances de ter evitado a crise de 2008, ao menos nas proporções que tomou. Muitos acreditavam que as credenciais e as qualificações de Gore eram muito superiores às de George W. Bush, apesar de haver vozes céticas81.

Embora a decisão da Suprema Corte a favor de Bush tenha sido ataca-da pelos democratas, curiosamente não levou a um abalo considerável da imagem da Corte. Pelo contrário, em junho de 2000 (antes das eleições), 47% dos americanos tinham uma boa confiança na Corte. Um ano mais tarde, seis meses após o julgamento de Bush v. Gore, esse número tinha se elevado para 50%. A Suprema Corte foi mais bem avaliada do que a Presidência da República (47%) e Congresso (26%)82.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

79 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2003, p. 258.80 Para Poesner, vários eleitores de Gore ficaram aliviados depois dos ataques de 11 de setem-bro de 2001 pelo fato de que Bush, em vez de Gore, era o Presidente (POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 261).81 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2003, p. 261.82 Gallup Organization, Confidence in Institutions, June 8-10, 2001.

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Seja como for, não por acaso, a Corte mereceu duras críticas de Dworkin, para quem “no infame caso de 2000, Bush v. Gore, cinco juízes conserva-dores votaram em conjunto para legitimar a eleição de George W. Bush, apresentando apenas argumentos frágeis. Eles chegaram a declarar que aquela decisão não poderia ser considerada como precedente em casos futuros”83.

Em suma, por ora, o que parece incontestável é que a Suprema Corte adotou visão eminentemente voluntarista em sua decisão majoritária, sopesando consequências a seu talante e deixando de lado os deveres mínimos de fundamentação jurídica consistente. Nesse caso, os dissi-dentes parecem ter a razão. O Tribunal da História dirá.

3.2 National Federation of Independent Business v. Sebelius, 576 U.S. (Obamacare)

A Suprema Corte decidiu, pela escassa margem de cinco votos contra quatro, pela constitucionalidade, quase que total, do Affordable Care Act do Presidente Obama. Juristas como Dworkin comemoraram a decisão: “os Estados Unidos finalmente satisfizeram um requisito fundamental de decência política que toda e qualquer democracia madura já encontrou há muito tempo, e que uma sequência de presidentes democratas, desde Franklin D. Roosevelt até Bill Clinton, tentaram e falharam em assegurar para nós. Finalmente temos um regime de provisões nacionais para assistência médica (health care) destinado a proteger todo o cidadão que deseje ser protegido”84.

Tradicionalmente, os americanos utilizam o seguro-saúde privado para custear os tratamentos médicos, circunstância que não foi alterada pelo Obamacare. Essa concepção de seguridade social, como referido por Dworkin, tem sido a lógica de democracias sociais da Europa e do Canadá, e a tributação tem sido o meio tradicional – quiçá o único efetivo – de agregar tais riscos. A seguridade tem sido a lógica, nos Estados Uni-dos, de todos os grandes programas de bem-estar (welfare): seguridade social, Medicare, Medicaid, socorro federal para desastres, entre muitos

83 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].84 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].

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outros. O Affordable Care Act é diferente, mas apenas na superfície. Ele usa seguros privados, em vez de públicos, e evita o rótulo de imposto85.

Debateram-se no leading case dois pontos fulcrais: o individual mandate, que impõe o pagamento de multas para aqueles que não con-tratarem seguro-saúde, público e privado, e a constitucionalidade da cláusula de comércio.

Entre os votos vencidos, chama atenção o voto do Justice Clarence Thomas, rejeitando a Cláusula do Comércio que, na prática, poderia levar a uma completa desregulamentação da atividade econômica no país. Como bem apontado por Dworkin, “teria sido uma catástrofe se o voto de Thomas tivesse prevalecido: teríamos sido enviados de volta ao modelo de economia não regulada da Era pré New Deal”86.

A impugnação à Cláusula de Comércio foi acompanhada pelos Justices dissidentes Kennedy, Scalia, Thomas e Alito, que assinalaram: “Se o Congresso pode alcançar e comandar mesmo aqueles que estão afastados de um comércio interestatal a participar no mercado, a cláusula de comércio se tornou uma fonte de poder ilimitado ou, nas palavras de Alexander Hamilton, o monstro horrível cujas mandíbulas devora-doras não poupam nem sexo ou idade, nem altos ou baixos, nem sacro ou profano”87. É de se notar que os Justices vencidos manifestaram-se contra a ampliação do Medicaid e o repasse de recursos federais para os Estados, no caso de não aceitarem a ampliação do Medicaid, conforme reconhecido no voto vencedor do Chief Justice Roberts. Para Dworkin, se a posição dos Justices vencidos tivesse prevalecido, o Ato teria sido esvaziado88 e a saúde dos americanos estaria a descoberto, contrariando a principal proposta de campanha do Presidente Obama.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

85 Tradução publicada em Interesse Público, v. 76, 2012. Originalmente publicado como: A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012]. Traduzido para o português por Anderson Vichinkeski Teixeira.86 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].87 Tradução publicada em Interesse Público, v. 76, 2012. Originalmente publicado como: A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012]. Traduzido para o português por Anderson Vichinkeski Teixeira.88 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].

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Embora o Chief Justice Roberts tenha afastado a Cláusula de Co-mércio interestatal, reconheceu o Ato como válido exercício do poder do Congresso de impor tributos e argumentou que a única sanção que o Ato estabelece para aqueles que se recusem a comprar seguros é um ônus imposto nas declarações de imposto de renda. Para o Chief Justice Roberts, a ordem de compra do seguro que emanou do Affordable Care Act opera como tributo, sendo, por isso, constitucional89.

Em suma, a opinião central do Chief Justice Roberts, bem apanhada por Tushnet, foi a de que o Congresso não tinha poderes para exigir que as pessoas comprassem o seguro-saúde. Também sustentou, entretanto, que o Congresso poderia impor tributos sobre as pessoas que não com-prassem o seguro-saúde, e isso seria suficiente para fazer o Affordable Care Act (Obama Care) uma lei90 de acordo com a Constituição.

Na prática, os americanos, em sua maioria, salvo os que estão abaixo da linha de pobreza, se não adquirirem planos de seguro-saúde, terão de pagar multas. Para quem se recusar a adquirir cobertura médica, a multa mínima é de US$ 285 por família, ou 1% da renda familiar, o que for maior, a partir de 2014. Em 2016, a multa deverá chegar a US$ 2.085 por família, ou 2,5% da renda familiar, o que for maior.

É quase certo que, se o Obamacare tivesse sido julgado inconstitu-cional ou esvaziado pela Suprema Corte, o Presidente Obama não teria sido reeleito e um candidato republicano estaria hoje na Presidência dos Estados Unidos. Quanto à eficiência e os custos do Obamacare, somente os anos poderão conferir resposta segura, seja positiva ou negativa; toda-via, à primeira vista, estima-se que, na hipótese em tela, não haverá legado consistente, em termos de fundamentação jurídica, da minoria vencida, eis que insiste em descurar os mais comezinhos direitos fundamentais.

89 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].90 De fato, para Tushnet, “As correctly reported, the central opinion, written by John Roberts, said that Congress didn’t have the power to require people to buy health care insurance. But it also said that Congress could impose a tax on people who didn’t buy health care insurance, and that was enough to make the Affordable Care Act the law of the land” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 1).

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No caso Lochner v. New York, por exemplo, é de perceber que a Suprema Corte vivia sob a influência social e política do laissez-passer e do laissez-faire, em quadro de liberalismo econômico agudo, levando a graus máximos o respeito aos contratos e à propriedade privada. Pre-ponderava a desregulamentação, quadro que foi modificado pela Corte na Era do New Deal. Nos anos 1980, na Era Reagan, os Estados Unidos voltaram a dar maior preferência às regras de mercado livre e à dimi-nuição da intervenção estatal na economia, com resultados sabidamente ruinosos. Como quer que seja, a cláusula do comércio, impugnada pelo Justice Clarence Thomas, por permitir a regulação por parte do Estado, pode não ser aceita hoje em maior extensão, mas não é inimaginável que seja aceita no futuro, se a doutrina liberal retornar com força total a ponto de provocar sistólica desregulamentação de determinados setores da economia e, no caso, do plano de seguro-saúde colocado à disposição do povo americano.

Compreensivelmente, o sistema de saúde do povo americano é motivo das principais críticas da população que observam países como Canadá, Inglaterra e, em especial, países nórdicos, aproximarem-se de um nível de excelência em políticas de saúde pública, educação e previdência. Tivesse prevalecido a posição minoritária, certamente essa tentativa de levar ao povo americano um patamar superior de saúde estaria sepultada. Naturalmente, a eficiência do Affordable Care Act e a sua aceitação ou rejeição pela sociedade serão avaliadas com o passar dos anos; porém, os votos vencidos muito provavelmente servirão, nesse caso, como provas eloquentes de posições negativas que padeceram do conhecido viés da confirmação91, ou seja, viram apenas o que queriam ver para confirmar as suas crenças de partida. Assim, ao que tudo indica, entrarão para a história como votos de quatro republicanos conservadores que se opuseram às políticas públicas necessárias para aperfeiçoar os índices do desenvolvimento humano. Aqui, o legado dos votos vencidos, se houver, tende a ser negativo.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

91 Vide, sobre viés de confirmação, NICKERSON, Raymond in “Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon” in Many Guises, Review of General Psychology (Educational Publishing Foundation) v. 2, n. 2, p. 175-220, 1998.

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3.3 Citizen United v. Federal Election Commission (130 S. Ct. 876 [2010], at 887, 909)

A Suprema Corte dos Estados Unidos, no Citizens United v. Federal Election Commission Case, decidiu, pela maioria de cinco votos contra quatro, no sentido de afastar o teto (limite de doações) para o financia-mento de campanhas eleitorais por parte de empresas, associações e sindicatos.

É relevante destacar que o Congresso legislou sobre a matéria, em 1970, ao aprovar o The Federal Election Campaign Finance Act, a fim de regular as contribuições e os gastos de campanhas eleitorais como resposta às revelações escandalosas que surgiram durante o caso Water-gate, em especial de como o Presidente Nixon arrecadou recursos para a sua campanha92.

Boa parte da sociedade americana temia – e teme – que o uso ilimi-tado de recursos financeiros e doações nas campanhas eleitorais possa tornar desiguais os pleitos e favorecer bandeiras plutocráticas apoiadas por grandes grupos econômicos e, em especial, pelo partido republicano, defensor do ideário conservador, mais ao gosto de setores financeiramente poderosos. Outro ponto colocado pelos defensores da limitação de doa-ções nas campanhas eleitorais é a de que o excesso de recursos doados pode levar à corrupção do sistema eleitoral e à consequente diminuição de credibilidade da democracia representativa. Ademais, os defensores da limitação dos gastos nas campanhas eleitorais eram e são, na maioria, democratas que, tradicionalmente, observam o seu partido receber menos recursos de grandes corporações que o partido republicano nas eleições.

A maioria da Corte, ao apreciar a causa em sede recursal, ajuizada por organização conservadora, a United Citizens, entendeu por aplicar a Primeira Emenda da Constituição, que protege o direito ao discurso. No entendimento da maioria, o discurso não pode ser impedido pela re-gulação estatal ao limitar as doações para as campanhas eleitorais, pois seria o mesmo que tolher a liberdade de expressão nos pleitos próprios do jogo democrático.

92 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 250.

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De acordo com a maioria da Suprema Corte, dizer que a Primeira Emenda tem influência sobre se o uso do dinheiro nas campanhas eleito-rais pode ser regulado não é o mesmo que dizer que todas as regulações seriam inconstitucionais. Entretanto, significaria que deve haver boas razões para implementar uma regulação que tenha o potencial de limitar o discurso político. E, segundo essa maioria, as justificações do governo para restringir os gastos de campanha terão que ser melhores que as justificações para restringir as contribuições, sob o argumento de que as contribuições poderiam levar à corrupção93.

Outro ponto foi a discussão sobre o direito ao discurso dos sindicatos ou das corporações (potenciais doadores) e se eles estariam protegidos pela Primeira Emenda. Afirmou o Justice Kennedy, fortalecendo a po-sição majoritária, que a Primeira Emenda protege o discurso, o orador e as ideias que fluem de cada qual. Para Tushnet, tal entendimento tem como consequência que as regulações, as quais limitam o discurso ba-seadas em quem é o orador – pessoa física ou corporação – têm que ter justificativas muito fortes94.

A maioria da Suprema Corte, desde o início da regulação do moderno financiamento de campanha, tem entendido que as regulações não podem ser justificadas por interesse em tornar a competição eleitoral mais igual95. Restou afastado, pois, o argumento da teoria da proteção dos acionistas,

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

93 Como referido por Tushnet sobre a posição da maioria da Suprema Corte: “To say that the First Amendment has some bearing on whether money in politics can be regulated isn’t to say that all such regulations are unconstitutional, only that government has to have pretty good reasons for regulations that have the potential of limiting political speech addressed to the general public. And, according to the Supreme Court, the government’s justifications for restricting campaign spending – a form speech because money is speech – have to be better than its justifications for restricting contributions, because contributions might lead do corruption” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 251).94 Segundo o Justice Kennedy: “[...] the First Amendment protects speech and speaker, and the ideas that flow from each”. O que implica, segundo Tushnet, “that regulations which limited speech based on who the speaker was – a natural person or a corpora-tion – had to have quite a strong justification” (TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 270).95 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 257.

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segundo o qual os acionistas não dão o consentimento para que os recur-sos da empresa sejam endereçados a determinado partido ou candidato.

Dissentiram do voto da maioria os Justices Stevens, Ginsburg, Breyer e Sottomayor. A divisão da Corte restou clara com os Justices conservadores, nomeados por Presidentes republicanos, votando a fa-vor da não limitação das doações para campanhas eleitorais e os juízes democratas votando pela imposição de limites às doações.

O dissenso do Justice Stevens veiculou argumentos significativos e frases duras sobre como “a democracia não pode funcionar efetivamente quando os membros que a constituem acreditam que as leis estão sendo compradas e vendidas”96. Stevens argumentou que a posição da maioria contra a regulamentação não deu ênfase suficiente à necessidade de im-pedir a corrupção nas eleições. Asseverou que, como já reconhecido no caso Bucley, reafirmado no caso Belloti, é crucial preservar a confiança pública na democracia.

Enfatizou, com propriedade, que a maioria ignorou os perigos que representam as corporações como doadoras, porquanto estas não possuem cidadania, tendo, além disso, enormes somas de dinheiro, cos-tumeiramente sem propósitos outros além de obter lucro. Relembrando o caso Austin, o Justice Stevens ponderou que as corporações possuem influência injusta no processo eleitoral ao doar vastas somas e que isso distorce o debate público.

Em relação à Primeira Emenda, Stevens, ao contrário da maioria, entendeu que ela protege a liberdade de imprensa de modo diverso da liberdade de discurso e de expressão das corporações. A posição vencedora entendeu que a liberdade de imprensa é direito aplicável a todos os cidadãos ou grupos de cidadãos que buscam publicizar as suas visões, como fez Citizens United em relação ao documentário crítico à Senadora Hillary Clinton, chamado de Hillary: The movie (que deu azo ao Citizens United v. FEC). Para Stevens, a posição da maioria não conferiu a apropriada deferência ao Poder Legislativo e restringiu o legislador dos Estados no emprego de diferentes métodos para dimi-nuir a corrupção eleitoral. No voto dissidente, Stevens foi categórico

96 Como referido pelo Justice Stevens em seu voto: “A democracy cannot function effectively when its constituent members believe laws are being bought and sold”.

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ao referir que a opinião da maioria ignorou o direito dos acionistas das corporações doadoras, pois eles não podem ser compelidos a doar recursos para discurso ao qual se opõem97.

Como diagnosticado por Sunstein, em recente resenha do livro lançado por Stevens aos 94 anos, concordando em parte com o dissenso em Citizens United, o objetivo do financiamento público de campa-nha não é o de proteger o pensamento da maioria, mas assegurar que as desigualdades econômicas não transformem os políticos. Numa sociedade que tolera disparidades acentuadas de riqueza, a regulação não é apenas objetivo digno, e sim essencial. Como tais disparidades continuam e até aumentam, existe sério risco de que as pessoas ricas tenham condições não apenas de comprar os seus bens e serviços preferidos, mas a política de sua predileção98. As sociedades admitem a desigualdade de renda; todavia, não podem admitir a desigualdade política sob pena de cada vez mais marginalizar os cidadãos e alijá-los da definição de uma vida boa.

A votação sobre o financiamento público de campanha revelou a divisão entre os Justices conservadores e liberais com nitidez. Os Justices conservadores votaram contra a limitação das doações para as campanhas eleitorais realizadas pelas corporações, pelas associações e pelos sindi-catos, e os Justices liberais votaram a favor da regulação pelos motivos expostos no voto vencido do Justice Stevens. A Justice Kagan, liberal, pode, futuramente, assumir protagonismo maior na Suprema Corte, as-sim que o Presidente Obama nomear outro Justice liberal. Isso tem sido demonstrado pela firmeza com que se tem contraposto aos argumentos conservadores, inclusive os do Chief Justice Roberts. E se poderia, sob certo aspecto, começar a falar sobre a Corte Kagan em vez da Corte Roberts99. Fora disso, as expectativas de modificação, por nova decisão da Suprema Corte, ou por Emenda Constitucional, são remotas, cenário agravado pela recentíssima decisão que libera os limites de doação para

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

97 Citizen United v. Federal Election Commission [130 S. Ct. 876 (2010), at 887, 909].98 SUNSTEIN, Cass. The Refounding Father. In: The New York Review of Books. 05, p. 22-26, jun. 2014.99 TUSHNET, Mark. In the balance. Law and Politics on the Roberts Court. New York: W.W. Norton & Company, 2013, p. 280.

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campanhas eleitorais pelas pessoas físicas100, a qual complementa e aprofunda o erro anterior da maioria.

O voto dissidente do Justice Stevens pode, sem dúvida alguma, entrar para a história como legado positivo, eis que parece indiscutível que o abuso do poder econômico contamina o debate político e faz com que as pessoas deixem de acreditar na democracia e enxergar o Estado como promotor e garantidor equitativo e inclusivo do bem-estar social. O dinheiro acaba por substituir o espaço da participação desinteressada na esfera pública, indispensável para o aperfeiçoamento da Rule of Law.

É indisfarçável que a suspeita de corrupção ou de patrocínio é deletéria para a democracia representativa. Os interesses econômicos e das grandes corporações acabam por interagir de modo pernicioso com a formulação de políticas públicas. A Primeira Emenda da Constituição americana visa a garantir a liberdade de expressão, mas isso não sig-nifica que não possam existir limites impostos pelo Estado às doações para campanhas eleitorais, que impedem a livre expressão política sem manipulação do dinheiro. Com isso, não se pretende (de modo utópico) tornar iguais aqueles que são desiguais economicamente, porém impedir que a desigualdade econômica acabe por gerar uma desigualdade política

100 A Suprema Corte dos Estados, ao apreciar McCutcheon v. Federal Election Commis-sion, decidiu, por cinco votos a quatro, no dia 02.04.2014, acabar com o limite do valor total dos recursos que uma pessoa física pode destinar para as campanhas dos candidatos em nível federal. O prolator do voto condutor, Chief Justice Roberts, fez consignar em seu voto que “o teto infringe direitos de liberdade de expressão e não se justifica pelo interesse público no combate à corrupção”. Referiu que “não existe direito mais básico na democracia do que o direito de participar na eleição dos nossos líderes políticos” e que “o Congresso não deve regular as contribuições simplesmente para reduzir a quan-tidade de dinheiro na política e nivelar o campo de disputa entre forças mais ricas e as de menos recursos”. No voto dissidente, o Justice Stephen Breyer, acompanhado pelas Justices Ginsburg, Sotomayor e Kagan, referiu que as decisões que acabam com as leis regulatórias do financiamento de campanha deixam “um remanescente incapaz de lidar com os graves problemas de legitimidade democrática que a legislação pretendia resol-ver” e que “a decisão cria uma brecha que vai permitir a uma pessoa física contribuir com milhões de dólares para um partido político ou para a campanha de um candidato”. A ação analisada pela Corte foi ajuizada originalmente pelo empresário republicano do Estado do Alabama, Shaun McCutcheon, que queria fazer doações para mais candida-tos, mas restou impedido por lei eleitoral regulatória (McCutcheon v. Federal Election Commission, 572 U.S.).

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que redunde no acirramento da desigualdade social, que seria nefasta e trágica para a consolidação do Estado de Direito justo e solidário.

Parece, portanto, muito provável que o voto dissidente do Justice Stevens, que já fomenta o debate na sociedade norte-americana (e além dela), acabe por servir de fundamento para futura decisão da Suprema Corte no sentido de substituir o atual e equivocado entendimento.

ConclusãoO direito constitucional norte-americano está embasado na Decla-

ração de Virgínia de 1776, na Constituição de 1787, nas emendas do Bill of Rights, posteriores emendas à Constituição e, principalmente, nos precedentes da Suprema Corte. Ao longo da história, contudo, votos dissidentes tiveram enorme peso, para o bem ou para o mal, na construção do direito constitucional americano. Com legado positivo, a título de exemplo, os votos externados pelo Justice Benjamin R. Curtis, em Dred Scott v. Sanford e pelo Justice John Marshall Harlan, em Plessy v. Ferguson, foram úteis e generosas contribuições para a vitória antiescravagista e antissegregacionista e para mudança do entendimento da Suprema Corte em matéria de reconhecimento dos direitos civis dos afro-americanos.

Hoje se pode afirmar, ainda, que os votos vencidos dos Justices John Marshall Harlan e Oliver Wendell Holmes101 foram fundamentais, em Lochner v. New York, para manter aceso, na sociedade e no mundo acadêmico, o reconhecimento dos direitos sociais e da necessidade de regulação dos contratos que culminou, tempos depois, na alteração de posição da Corte na época do New Deal, rompendo com a quase crista-lizada lógica do laissez-passer e do laissez-faire.

O LEGADO DOS VOTOS VENCIDOS NAS DECISõES DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

101 Como refere Sunstein, o Justice Oliver Wendel Holmes, conhecido como The Great Dissenter, fez com que juízes seguissem os seus grandes dissensos especialmente em áreas como a liberdade de discurso e do judicial restraint. Os dissensos de Holmes tornaram-se lei (influenciando inúmeras decisões da Suprema Corte) após a sua morte. Nesse sentido: “In the context of judicial opinions, Justice Oliver Wendell Holmes, known as the Great Dissenter, did just that; eventually judges followed his great dissents, especially in the areas of free speech and judicial restraint, and his views became law after his death”. SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 66.

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Para evocar caso mais recente, no caso da regulação do financiamen-to público de campanha, o voto vencido do Justice Stevens, em Citizen United v. Federal Election Commission, poderá servir de base, pelos seus fundamentos, para derrubar a posição desastrada da Suprema Corte. A desigualdade de recursos econômicos não pode gerar a desigualdade política que provoca a erosão de confiança na democracia e no Estado de Direito.

Resta demonstrado, acima de tudo, que o dissenso nos tribunais pode não ser garantia de legado positivo, embora frequentemente o seja. Certo, o voto vencido pode ser tão enviesado como o voto vencedor, mas, não raro, contribui para a redução da pressão de conformidade. Ou seja, o dissenso, ao menos quando resulta de boas e consistentes razões, contribui, no plano deliberativo judicial, para minimizar o risco de po-larizações e cascatas que costumam levar ao extremismo e às decisões repletas de externalidades nocivas. O apreço exagerado pelo consenso e por decisões unânimes pode conduzir ao tolo excesso de confiança dos julgadores e ao otimismo exacerbado que se mostra pernicioso para a busca colaborativa de decisões justas. É sabido que o silêncio de um magistrado muitas vezes é fruto de preocupações estratégicas de não causar tensões internas no colegiado102 ou para não afetar a sua reputação com a pecha de votar vencido constantemente. No entanto, é indispen-sável assimilar que, sem cultivo da disputa erística, o dissenso tende a ser ingrediente de decisões mais ponderadas, uma vez que contribui ao pluralismo cooperativo e dialético. Não se deve, é claro, edulcorá-lo e sucumbir ao mito, destituído de qualquer comprovação empírica, de que o dissenso, por si só, seria sempre benéfico.

Muitos outros célebres votos dissidentes, para além dos abordados neste estudo, poderiam ser colacionados. O mais relevante, entretanto, é reconhecer a valia do balanço científico sobre o legado, positivo ou negativo, dos votos vencidos como campo promissor de pesquisa para o direito constitucional. Essa linha de investigação, se desenvolvida entre nós, poderá ser muito rica de nuanças e cientificamente reveladora.

102 Sobre os juízes, Sunstein refere que “[...] they might silence themselves simply because they do not want to cause internal tension” (SUNSTEIN, Cass. Why Societies Need Dissent. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 124).

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the legacy of Dissents in the United States Supreme Court

ABSTRACT: This paper brings to debate a subjetc which is the strange to the Brazilian constitutional Law so far: the legacy of dissents in the leading cases of the United States Supreme Court. The influence of dis-sents in the promotion of public debate in society is analyzed, as well as in the foundation for changing the Court’s jurisprudence in future cases. Some of the most prestigious leading cases in the history of the United States are analyzed by the authors, aiming not at the decisions of the majority of Justices, but at the externalized content of the dissents.

KEY WORDS: Constitutional Law. Dissents. Supreme Court of the United States. Leading cases.

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