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    ADIVERSIDADEEODIREITO:UMACONTRIBUIODAHISTRIADO

    DIREITOPARAUMDEBATECONTEMPORNEO

    DIVERSITYANDTHELAW:ACONTRIBUTIONFROMTHEHISTORYTOA

    CONTEMPORARYDEBATE

    Ricardo Marcelo Fonseca1

    RESUMO: Esse artigo trata do tema da diversidade em sua relao com o direito,

    partindo do pressuposto que a histria do direito um campo privilegiado para abord-

    la. A relao entre a diversidade e o direito ento tratada em trs etapas histricas

    diversas: na pr-modernidade, na modernidade jurdica e nos tempos atuais, perodos

    em que os termos dessa complexa relao mudaram substancialmente.

    Palavras-Chave: Histria do Direito, Diversidade, Direito.

    ABSTRACT:This article deals with the issue of diversity in its relation to the law, on

    the assumption that the history of law is a privileged field to address it . The relationship

    between diversity and the law is then treated in three different historical stages: pre-

    modernity, legal modernity and in current times , periods when the terms of this

    complex relationship changed substantially.

    KEYWORDS:History of Law, Diversity, Law

    INTRODUO

    Para o jurista, pensar a diversidade um desafio que no simples. De um lado,

    pareceria que a diversidade uma condio inerente prpria esfera jurdica: afinal, a

    diferena de posies e s vezes at a oposio de interesses geralmente algo

    pressuposto quando se instala um conflito que reclama a soluo do direito. Sem

    diferenas de interesses e sem conflitos o direito no seria chamado a atuar. Mas a essa

    diversidade (de interesses, de posies, de pontos de vista), que prpria das partes que

    litigam judicialmente, geralmente se ope uma lgica da prprio instncia jurdica que,

    1Professor do curso de graduao e do programa de ps-graduao em direito da Universidade Federal do Paran(UFPR). Diretor da Faculdade de Direito da UFPR. Pesquisador do CNPq.

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    por sua prpria natureza (ao menos na nossa modernidade), tende a deter umalgica,

    uma maneira de conceber e de resolver controvrsias; tende, em suma, a umaracionalidade que deve ter critrios unificados que sirvam para todos, que sejam

    reconhecidos como legtimos por quem ganha e por quem perde, justamente para poder

    instalar a paz social e poder resolver um determinado conflito de interesses; o direito

    deve, assim, deter uma lgica interna que v alm das divergncias individuais, deve ter

    critrios que transcendam a diversidade que se d no campo concreto dos conflitos, deve

    deter uma racionalidade que alcance a legitimidade de todos. O direito, enfim, deve

    tender a resolveros conflitos, os litgios, as diversidades, a partir de critrios legtimos

    que sejam compartilhados por todos (ou ao menos por uma grande maioria). O direito,

    enfim, justamente para resolver as diferenas que existem na conflitualidade que

    prpria da sociedade, deve ter uma lgica interna que, para atribuir certeza, segurana e

    legitimidade, busque eliminar e limitar a diversidade.

    Ou seja: a questo da diversidade complexa para o jurista justamente porque,

    de um lado, a existncia de controvrsias, de litgios numa palavra, das diferenas

    quase um pressuposto para que o direito seja chamado a atuar; de outro lado, porm,

    quando chamado a atuar, o direito deve se orientar por critrios que limitem, regulem

    e valorem a conflitualidade e deve buscar uma lgica que torne homogneas as

    diferenas, deve buscar critrios nicos do que justo e que correto; em suma, no

    momento de sua aplicao, o que o direito deve fazer eliminar as diferenas. De fato,

    os topoiinterpretativos, as formas de aplicao da aequitas, as convices doutrinrias,

    e as exegeses dadas pelos tribunais ao contedo do direito nada mais so do que

    esforos para eliminar as diferenas, para chegar, ao final, numa interpretao que,

    estando acima da conflitualidade de um caso concreto, seja capaz de superar (e

    pacificar) toda a diversidade do mundo social.

    O que parece existir, portanto, uma tenso interna no direito no que diz

    respeito ao tema da diversidade: ao mesmo tempo em que trabalha com ela, o direito

    busca elimin-la, justamente para estabilizar-se, para resolver-se e para legitimar-se.

    Mas o modo como se d essa tenso entre direito e diversidade, de outro lado,

    mostra-se muito variada a depender das muitas experincias jurdicas. No se pode dizer

    que essa tenso se d da mesma forma hoje, ontem e anteontem. Diversidade e direito, a

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    depender do tempo histrico, podem conviver implicados e em relativo equilbrio ou, ao

    contrrio, podem buscar se excluir reciprocamente. Claro que para isso tambmcontribui o modo como cada poca, em suas respectivas configuraes discursivas e na

    forma de expresso de seu pensamento jurdico, colocar o problema da relao entre

    direito e diversidade. Por essa razo que a histria do direito, a meu ver, tem uma

    contribuio importante a dar nesse debate.

    Seguindo ento essas premissas, o presente texto buscar delinear alguns

    modelos na relao entre o direito e a diversidade, buscando, com isso, historicizar essa

    complexa questo. Ao seguir esse caminho, e ao tentar compreender os influxos tericos

    a respeito do tema da diversidade na sua relao com o direito, espera-se que brotem

    alguns apontamentos de cunho metodolgico, sobretudo para o campo da histria do

    direito.

    1 DIREITO E DIVERSIDADE NA PR-MODERNIDADE

    A experincia jurdica do ius commune, como se sabe, teve vida longa tanto

    na Europa quanto a seu modo na Amrica Latina. No primeiro caso, embora com

    fraturas e diferenas histricas relevantes ao longo de sete sculos, teve vigncia desde

    as seminais elaboraes dos juristas medievais da segunda Idade Mdia a partir da

    redescoberta do Corpus Iuris Civilis (glosadores e comentadores) at o advento da

    era da codificao, j no sculo XIX (Grossi, 1995; Hespanha, 2012). J no caso da

    Amrica Latina, que naturalmente recebe o direito europeu de seus colonizadores, mas

    lhes d tonalidades prprias, vrias formas e modos do ius commune sobrevivem, seja

    naquilo que os hispano-americanos chamaro de experincia do derecho indiano

    (Anzotegui, 1982), seja na especificidade sempre plural e heterognea no modo

    particular como os luso-americanos (brasileiros) se apropriaram dessa herana

    (HESPANHA, 2006; FONSECA, 2013 e FONSECA, 2014).

    De todo modo, o ius commune europeu, como se sabe, uma experincia

    complexa, frequentemente mal compreendida e que tem um modelo muito distante

    daquele que experimentamos hoje. O ius commune no era um sistema fechado, no

    era um direito codificado ou legalizado, no era ligado a uma fora estatal e sequer se

    pretendia como um direito de aplicao exclusiva num determinado territrio. Tratava-

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    se, isso sim, de um direito doutrinrio ou cientfico, elaborado pelos juristas, sobretudo

    aqueles das recm-nascidas universidades (doctores legum), que tinham como pontode partida de autoridade de textos clssicos (romanos e cannicos). A partir deles,

    surgia um direito comum nas tcnicas discursivas utilizadas, comum na lngua utilizada

    (o latim) e comum a um largo espao geogrfico europeu. Como diz Paolo Grossi, o

    ius commune era um depsito quase inexaurvel de anlises e solues tcnico-

    jurdicas, mas tambm de conceitos e de princpios, ao mesmo tempo abstratos e

    dcteis, de cuja complexa realidade scio-econmico do tardo-medievo tinha uma

    necessidade urgente (GROSSI, 2007B, p. 56/57).

    A natureza do direito comum no simplificvel e o debate em torno de sua

    caracterizao no pequeno2. Contudo, pode-se tentar resumir, junto com o esforo de

    sntese de Adrianno Cavanna, que a experincia do ius commune compreendia a) um

    direito fortemente jurisprudencial (no sentido de doutrinrio, cientfico) que buscava

    adaptar-se s novas exigncias do tempo em que ele surge; b) um papel central do

    jurista enquanto personagem encarregado de fazer a mediao entre o texto do corpus

    iuris civilis, de um lado, e a praxe, de outro, enquanto aquele encarregado de

    estabelecer um nexo entre autoridade dos textos antigos e a criatividade na

    adaptao/reinveno/traduo destes textos num mundo historicamente muito distinto

    daquele em que ele foi produzido (CAVANNA, 1982, pgs. 116/117 e 102). Isso tudo

    2No mbito da historiografia juridical europia h estudos j clssicos e de referncia sobre o tema: CALASSO,Francesco (1954). Medio Evo del diritto. I Le Fonti. Milano, Giuffr; CALASSO, Francesco (1964). Gliordinamenti giuridici del renascimento medievale (ristampa). Milano, Giuffr; CALASSO, Francesco (1970).Introduzione al diritto comune (ristampa). Milano, Giuffr; ASCHERI, Mario (2005). Medioevo del potere: leistituzioni laiche ed ecclesiastiche. Bologna, Il Mulino; ASCHERI, Mario (2007). Introduzione storica al dirittomedievale. Torino, Giappichelli; CONTE, Emanuele (2009).Diritto comune. Bologna, Il Mulino; CORTESE, Ennio

    (1996).Il renascimento giuridico medievale. 2aed. Roma, Bulzoni editore; CAVANNA, Adriano (1982). Storia deldiritto moderno in Europa. Milano, Giuffr; SBRICCOLI, Mario (1969). Linterpretazione dello statuto: contributoallo studio dela funzione dei giuristi nellet comunale. Milano, Giuffr; PADOA SCHIOPPA, Antonio (2007).Storia del diritto in Europa: dal medioevo allet contempornea. Bologna, Il Mulino; CAPPELLINI, Paolo (2010).Storia di concetti giuridici. Torino, Giappichelli (sobretudo pgs. 123 e segs.; COING, Helmut (1985). EuropischesPrivatrecht. I: lteres Gemeines Recht (1500 bis 1800). Mnchen, C. H. Becksche Verlagsbuchhandlung (traduo lngua espanhola: Derecho privado Europeo. T. I Derecho Comn ms antguo. Madrid, Fundacin cultural delnotariado, 1996) alm do j referido GROSSI, Paolo (1995). Lordine giuridico medievale. Roma/Bari, Laterza. Nombito ibrico, valem as referncias a CLAVERO, Bartolom (1994). Historia del derecho: derecho comn.Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca; TOMS Y VALIENTE, Francisco (2003). 4 aed.Manual de histriadel derecho espaol. Madrid, editorial Tecnos; LORENTE, Marta e VALLEJO, Jesus (orgs.) (2012). Manual dehistoria del derecho. Valencia, Tirant lo blanch; HESPANHA, A. M. (2012). Cultura jurdica europeia:sntese deum milnio. Coimbra, Almedina; HESPANHA, A. M. (1994). As vsperas do Leviathan: Instituies e poderpoltico, Portugalsc. XVII. Coimbra, Almedina, alm do recentssimo e j essencial HESPANHA, A. M (2015).

    Como os juristas viam o mundo (1550-1750):direitos, estados, coisas, contratos, aes e crimes. Lisboa, Amazonbooks.

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    leva a um elemento crucial na compreenso e caracterizao do ius commune: o fato

    dele ser um direito permevel aos direitos particulares, um direito que no traz para siuma pretenso de completude, de abstrao ou de exclusividade. O direito comum, em

    suma, coloca-se como um direito universalmente subsidirio e portanto dotado de

    profunda relatividade. Como diz Cavanna,

    ... o direito comum assume com total clareza as suas clssicas caractersticashistricas de relatividade: a relatividade de uma normativa subsidiria,supletiva onde quer que seja com relao s concorrentes e no maissubordinadas normas locais que tm relao com a fora dos fatos comeficcia prevalente. Todavia, isso no implica no fato de que o direitocomum, como direito subsidirio, perca seu lugar de protagonista. Ele

    comum justamente porqu postula uma pluralidade de sistemas normativosque dele participam justamente em funo de sua prpria insuficincia: comdireito qualificado sobretudo por princpios gerais e por categorias abstratascapazes de compreender genericamente um nmero indefinvel de fatos

    pertencentes experincia, ele se eleva sem rivais sobre os esquemaselementares, lacunosos e prevalentemente casusticos do direito estatutrio(CAVANNA, 1982, p. 61)

    No Brasil as coisas no eram to diferentes. Embora fossem muito mais escassos

    os meios de circulao de uma cultura jurdica letrada, a prpria dinmica colonial

    facilitava que a aplicao do direito ocorresse a partir de uma dialtica em que a

    tendncia descentralizao de ordens normativas e a existncia de uma referncia

    metropolitana no direito acabassem por se integrar e a funcionar, em modo mais ou

    menos homlogo ao que ocorria na experincia europeia do ius commune. Como nos

    lembra Hespanha, ao estudar o caso brasileiro na poca colonial, o modelo de

    ordenamento jurdico proposto pelo direito comum europeu no punha grandes

    obstculos doutrinais s tenses centrfugas da realidade colonial. Pelo contrrio,

    fornecia uma srie de princpios doutrinais e de modelos de funcionamento normativo

    que se acomodavam bem a uma situao como a do serto brasileiro (HESPANHA,

    2006, p. 80). Na mesma linha, Luis Fernando Pereira, quando se debrua sobre os juzos

    ordinrios enquanto ns da cultura jurdica colonial brasileira, aduz que os concelhos

    eram o centro da formao de uma cultura jurdica colonial que no se apresentou

    necessariamente como algo oposto alta cultura jurdica dos letrados, mas, em uma

    complexa circularidade, ofereceram e receberam elementos que foram utilizados como

    base para tais construes, de modo que o que se percebe uma boa assimilao das

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    regras formais e das tcnicas procedimentais, embora cada cmara tenha constitudo

    um contedo mais adequado sua realidade (PEREIRA, 2013, p. 594/595).Ou seja: tanto a experincia jurdica medieval quanto a experincia jurdica

    colonial brasileira (e que duram, ambas, mais ou menos at o fim perodo do chamado

    Ancien rgime europeu, ou at mesmo depois) so marcadas por estruturas poltico-

    jurdicas descentralizadas e plurais, nas quais o direito se coloca justamente no papel de

    mediadorentre a grande pluralidade de iurisdictiones(e, portanto, na grande pluralidade

    de ordens produtoras de juridicidade) e um modelo doutrinrio que tendia a uma certa

    universalidade (universalidade de princpios, de mtodos, de formas de aplicao, etc.)

    que incidia, porm, de modo suplementar. Como exemplos emblemticos dessa tarefa

    de mediao entre as diferentes ordens particulares, de um lado, e um direito doutrinrio

    de carter comum, de outro, temos as figuras que eram ento centrais da aequitas

    quanto do arbitrium, que mereceram, ambas, ateno competente da nossa

    historiografia (GROSSI, 20133; MECCARELLI, 19984). Tanto uma quanto a outra

    pendem para que o intrprete no tenha como premissa o primado absoluto de uma

    norma geral e abstrata, mas sim que leve em considerao o particular, o tpico, o

    concreto, o histrico. Enfim, que leve em conta a diversidade.

    O direito desse perodo (seja na Europa ou no Brasil) traz para si a tarefa de ser

    o campo de convergncia entre as muitas e naturais diversidades co-existentes que

    formam, juntas, a ordem jurdica desta poca. O direito dessa poca, assim, o lugar do

    convvio e da conciliao entre uma ordem universal e as inmeras ordens particulares,

    entre as tendncias centrfugas e as centrpetas, entre o um e os muitos. A

    diversidade, enfim, resolvida no interior do prprio direito, acolhida pelo direito

    como uma parte integrante de sua estrutura, como um natural componente seu. Mais do

    que isso, a existncia de tantas diversidades sistmicas uma condio constitutiva e

    necessria do funcionamento dessa experincia jurdica.

    3Ao falar da aequitas, cannica, Paolo Grossi nos ensina que onde o juiz vislumbrar a existncia de um periculumanimae, existe o dever ineludvel de desaplicar a norma abstrata em vista do carter concreto do caso (GROSSI,2013, p. 225).

    4Ao demostrar que o arbitrium no era, no bojo do direito medieval, uma mera voluntas, mas sim uma voluntasiustificata, Massimo Meccarelli aponta que o arbitrium no representa um fator evasivo dos equilbrios dosistema e das suas regras, nem constitui uma esfera de liberdade atribuda a algum para colocar-se fora a ou para

    alm do ordenamento vigente. O arbitrium, enquanto vontade justificada, enquanto voluntas submissa fraenorationis, mostra-se, muito mais, como elemento fisiolgico do sistema, onde tem sua razo de ser(MECCARELLI, 1998, p. 11)

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    Nessa poca, enfim, diversidade no algo que se contrape ao direito; algo

    que com ele convive, que o integra e o constitui. O direito, aqui, parece no poder viversem a diversidade.

    2 DIREITO E DIVERSIDADE NA MODERNIDADE JURDICA.

    Como se sabe, o momento revolucionrio que se inicia na Europa ao final do

    sculo XVIII implica em rupturas importantes na ordem poltica e tambm na ordem

    jurdica. Aparece uma nova linguagem dos direitos (FIORAVANTI, 2014; COSTA,

    2000) e uma radicalmente nova maneira de funcionamento das fontes do direito

    (GROSSI, 1998; GROSSI, 2007A; CAPPELLINI, 2003; CAZZETTA, 2011; CARONI,

    1998; CAPPELLINI e SORDI, 2002). Depois de todo um momento setecentista no qual

    h uma tenso no espao jurdico no qual as fontes rgias (fontes centralizadores, como

    emblematicamente o caso da Lei) buscam diminuir o espao do costume, da tradio

    doutrinal romanstica, da tradio canonstica, etc., culmina-se com o momento no qual

    vai prevalecendo a concepo, embalado por um racionalismo otimista, de que a lei

    cristalizao da razo em preceitos concisos, claros e objetivos deve eliminar as

    inseguras fontes do direito prevalentes no antigo regime.

    O Code Civil napolenico, de 1804, emblemtico nesse processo, ao buscar

    condensar num s livro e num s sistema racional toda a regulao privada do cidado.

    Nada mais, nem mesmo no mundo privado, poder caber fora desse livro. E ainda mais

    emblemtica a radical modificao que se impe atuao do intrprete, que a partir

    de agora ter por obrigao utilizar a lei escrita, e somente ela, na soluo de quaisquer

    conflitos, chegando-se ao ponto de se apontar para a responsabilizao do juiz que, num

    modoAncien Rgime, resolva recorrer aos princpios, ao costume, doutrina. o que se

    deduz rapidamente pelo teor (to repetido) do art. 4odo Titre prliminaire do novo

    Code Civil des franais.5

    O mundo em geral, e o mundo do direito em particular, a partir de agora ser

    modelado (CAPPELLINI, 2010, p. 113), encartado num formato, encerrado num

    sistema. O jurista, antes livre intrprete e dotado de voz privilegiada da expresso da

    ordem jurdica, agora deve se conformar em ser um mero exegeta da vontade soberana e

    5Art. 4o. Le juge qui refusera de juger sous prtexte du silence, de lobscurit ou de linsufficance de la loi, pourratre poursuivi comme coupable de dni de justice.

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    mitologizada do legislador. O juiz, por seu lado, restringe-se a ser a mera boca

    inanimada da lei, conforme a expresso conhecida de Montesquieu. Como ensinaGrossi, a lei, a partir de ento, ser a nica fonte capaz de exprimir a vontade geral e

    graas a essa qualidade que o seu primado se impe, que o sistema das fontes se fecha

    num modelo hierrquico com a inevitvel desvitalizao de qualquer outra produo

    jurdica (GROSSI, 2007A, p. 97).

    Se comparamos o que est a acontecer com o sistema jurdico nesse momento

    burgus ps-revolucionrio com as caractersticas do j analisado ius commune,

    verificaremos que aqui vai se operar um movimento de reduo: reduo de toda a

    plural e coral juridicidade e um modelo, a uma racionalidade, a uma fonte. No se

    entender mais como algo natural, a partir daqui, que o sistema jurdico funcione de

    modo tpico, que atue sobre problemas concretos, que esteja coligado ao confuso e rico

    crepitar da histria; o direito a partir daqui dever, mais do que nunca, ser sistemtico,

    ser concebido de modo formal e abstrato, justamente para subsumir da multiplicidade

    das situaes empricas um modelo nico a ser universalmente aplicado. Trata-se to

    somente do desdobramento num mbito jurdico do que acontece, nesse mesmo

    momento de consolidao da modernidade, em tantos outros mbitos, como por

    exemplo na filosofia e na poltica. Trata-se de uma operao para tomar emprestada a

    linguagem dos antroplogosde reduo ao um: a partir de agora a reflexo gira em

    torno de um sujeito mondico (cartesiano ou kantiano) e a poltica deve girar somente

    em torno de uma autoridade (o Estado), considerada a nica legtima e aquela que deve

    se encarregar de exprimir a autoridade por meio de Leis. A obsesso de todo o processo

    revolucionrio francs em eliminar qualquer ordem intermdia que se colocasse como

    uma autoridade entre o indivduo e o Estado Nao bem indicativa a esse respeito.6

    A diversidade de ordens jurdicas , portanto, cancelada. Mais do que isso,

    vista como inconveniente e nociva. Alm da reduo da dimenso do direito a uma s

    voz (a estatal), essa voz s pode ter um timbre: o momento oitocentista (ao menos at o

    final do sculo XIX) no admitir pluralidade exegtica, no admitir a possibilidade de

    que a voz da Lei seja equvoca. A lei tem o seu esprito, que s precisa ser revelado e,

    6 Assim dispunha o art. 3o da Declarao dos direitos do homem e do cidado, de 1793: o princpio de todasoberania reside essencialmente na nao. Nennhum corpo, nenhum indivduo pode exercitar uma autoridade quedela no emane expressamente.

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    depois, aplicado. Esse momento histrico, de radical reduo da juridicidade a uma

    unidade, sequer se coloca o problema da interpretao da lei. Sendo dotada deracionalidade intrnseca, certa e infalvel, no podem caber aqui dubiedades.

    A diversidade (seja das muitas ordens jurdicas, seja das interpretaes possveis

    diante de uma nica ordem jurdica) proscrita do mundo do direito. Na modernidade

    jurdica oitocentista no h lugar para a diversidade. Sob o manto de um racionalismo

    universalista, o mundo planificado, as condutas so planificadas, os critrios so

    planificados. O direito passa a no mais tratar, dentro de sua lgica interna, da

    diversidade radical e contraditria do mundo histrico, passa a ignorar o carter

    transbordante da realidade emprica. O mundo abstrato e formal, j que ungido por um

    racionalismo que no colocado em dvida, deve se impor ao mundo real e histrico.

    interessante notar como esse alheamento entre direito e a diversidade, dentro

    do mundo histrico oitocentista, acaba por ser percebido inclusive por um personagem

    que no estava preocupado em examinar o mundo das leis, mas o mundo dos conflitos

    (os conflitos de classe): Karl Marx. No corao do sculo XIX, em vrios pontos de sua

    anlise, sua teoria chega ao ponto de separar o mundo do direito do mundo real: o

    direito se transforma, na sua reflexo, em epiderme, em efeito, em mero reflexo do que

    ocorre na dinmica histrica. Mais do que isso, o direito se transforma em algo

    intrinsecamente ligado esfera poltica estrita e, nessa qualidade, coloca-se como

    instrumento burgus de dominao de classe. Ou seja: tambm para Marx, existe um

    alheamento entre o efetivo mundo histrico (que o lugar dos conflitos, das lutas, das

    diferenas) e o mundo do direito (que busca impor um conjunto de valores e critrios

    essencialmente burgueses, portanto parciaispara o complexo conjunto da sociedade).

    Isso explica, para dar somente um exemplo, a tremenda desconfiana de Karl

    Marx para com a linguagem dos direitos (que hoje celebrada, inclusive pelas

    esquerdas, como um importante marco progressista) contidas na Declarao dos

    Direitos francesa de 1798 (MARX, 1991), que eram tidas por ele como uma linguagem

    meramente burguesa, uma linguagem que era somente de uma parte da sociedade (a

    parte dominante). Ou seja: mesmo para um observador como Marx, o direito havia se

    transformado, naquele tempo, numa esfera que no dava conta dos conflitos e da

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    complexidade da sociedade; para ele, o direito no era uma instncia capaz de perceber

    a profunda diversidadeinscrita no mundo social.

    Na experincia brasileira tampouco as coisas se passam do modo diverso:

    tambm aqui a insero de um padro poltico e normativo em detrimento da profunda

    diversidade de ordens existentes foi um processo pesado e muito conflitivo. Como

    exemplo eloquente, temos a chamada Revolta da Vacina, ocorrida em 1904 na capital

    da jovem Repblica, no Rio de Janeiro: tambm ali toda a conflitualidade que eclodiu

    quando o governo central buscou aplicar autoritariamente medidas sanitrias, bem como

    toda a intensa resistncia dos mais pobres invaso em suas casas por estranhos

    agentes oficiais vestidos de branco, podem ser claramente interpretadas como faces

    emblemticas do tenso processo de imposio de uma norma, de uma conduta e de uma

    lei num ambiente ainda em grande medida acostumado com outras formas de poder e

    normao (SEVCENKO, 1984; CARVALHO, 1987). A imposio da modernidade

    jurdica no Brasil, em seu processo de reduo da pluralidade unidade foi, como em

    outros lugares, tremendamente conflitiva e violenta.

    Nessa etapa, em suma, temos uma relao entre direito e diversidade que

    diferente (e at mesmo oposta) ao que se assistia na experincia histrica anterior. De

    parte integrante da prpria juridicidade que era, a diversidade torna-se aquilo que deve a

    todo custo ser proscrito do mundo do direito.

    3 DIREITO E DIVERSIDADE EM NOSSO TEMPO.

    O racionalismo compacto que marcou o pensamento do sculo XIX sofre

    importantes transformaes com o advento do novo sculo e, nesse processo, o tema da

    diversidade tambm redesenhado de modo importante.

    O final do sculo XIX o momento em que, na cultura filosfica, produzida a

    reflexo nietzscheana que, ao longo do sculo XX, ver alguns de seus desdobramentos

    mais importantes (crtica razo, crtica verdade, crtica moral). O incio do sculo

    XX ver tambm florescer, nesse campo mesmo filosfico, a reflexo hermenutica

    (Heidegger, e depois Gadamer) que igualmente vai se constituir num aporte terico

    eminentemente crtico do modo moderno de conceber a operao do conhecimento.

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    impossvel, evidentemente, resumir a efervescncia terica crtica do sculo

    XX (com personagens como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Arendt, Levinas, dentretantos outros que poderiam ser lembrados) em algumas poucas linhas. Tampouco

    possvel resumir as densas e pesadas circunstncias histricas (que incluem as

    experincias dos totalitarismos e o advento de um Estado Constitucional) que,

    naturalmente, subjazem a todas as mudanas de sensibilidade terica ocorrem nesses

    tempos extremos (HOBSBAWM, 1995). Mas, para os fins que aqui nos interessam,

    considero que um dos momentos talvez mais emblemticos na discusso cultural foi a

    passagem dos anos 1960 para os anos 1970, em que novas ideias histricas, filosficas7

    e, por que no, da prpria histria do direito, acabam dando um aporte diferente para

    seus respectivos campos e, junto com eles (e isso que aqui interessa), um novo influxo

    no que se refere prpria questo da diversidade.

    No mbito filosfico, quem traz uma contribuio decisiva, a meu ver, Michel

    Foucault. Em grande medida herdeiro de intuies nietzscheanas e de premissas

    estruturalistas, Foucault ser um pensador que ter grande influncia em diversos

    campos do conhecimento trazendo no seu pensamento contribuies metodolgicas

    importantes no que diz respeito questo da diversidade.

    Foucault, por exemplo, analisa as configuraes discursivas (enunciado =>

    discurso => episteme) de cada poca a partir de um modelo que ele, ao menos nos anos

    1960, denominava de arqueolgico (FOUCAULT, 2000). Para ele isso significava,

    em primeiro lugar, que a discursividade em cada momento histrico dotada de uma

    espessa materialidade, que no era algo etreo e meramente abstrato, mas sim que

    define posies entre os indivduos, estabelece zonas de interdio e de privilgio de

    fala, demarca lugares de poder. Em segundo lugar, essa discursividade de cada poca

    entendida no num sentido teleolgico, no num sentido de progresso, no num sentido

    evolutivo, mas como verdadeiros estratos (da a arqueologia) que tm, cada qual, as

    suas prprias regras de produo de verdades. Ou seja, cada configuraodiscursiva,

    em um dado momento histrico (e em seu respectivo contexto) produz seus saberes e

    define seus critrios de validao discursiva, conferindo o atributo de verdadeiro de

    acordo com os critrios epistmicos ento vigentes. Nota-se claramente que a noo de

    7Como mero exemplo dessa nova ambincia terica, veja-se o conhecido livro de FERRY, Luc e RENAULT, Alain.La pense 68: essai sur lanti humanism contemporain. Paris, Gallimard.

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    verdade relativizada e profundamente historicizada (a partir de agora fala-se em

    poltica da verdade) ao mesmo tempo em que os saberes so sempre colocados emcontexto(FOUCAULT, 2002). A construo daquilo que normal em dada poca (e

    nos anos 1970 suas reflexes sobre as formas de normalizao vo lev-lo a tematizar

    questes como opoder disciplinare a biopoltica) no passa, para ele, de uma operao

    discursiva, colocada em ao por eficazes e insidiosos dispositivos. Talvez no seja por

    outra razo que a teoria de Foucault pende para a anlise de temas como a

    anormalidade, a loucura, a doena, a priso. Suas reflexes acabam desembocando para

    o territrio que refoge ao padro normal, certamente para o fim de colocar

    historicamente em questo o prprio tema da normalidade. Por isso, enfim, que o

    problema da diversidade to central em seu pensamento. A diversidade o ndice

    necessrio para analisar as artificiais formas de imposio (por meio da discursividade e

    pelos dispositivos que lhe so conectados) de um padro nico, de uma normalidade

    que em verdade artificial e produtora de formas de sujeio. A busca da

    normalizao do mundo (no mbito da chamada sociedade disciplinar, a partir do

    sculo XVIII, por exemplo) nada mais do que uma artificiosa e nociva forma de

    acabar com a diversidade que, essa sim, inerente ao mundo em que vivem os

    indivduos. Nota-se, portanto, como o tema da diversidade, para esse autor (como, em

    verdade, para tantos outros de sua gerao), absolutamente constitutivo e central de

    reflexo.

    Dentro desse Zeitgeist, no mbito da historiografia, sobretudo a partir dos

    anos 1970, a diversidade tambm parece tomar um papel crescente. de se notar, por

    exemplo, o diagnstico de Franois Dosse sobre a historiografia francesa: para ele, a

    partir dessa poca, foi completamente perdido o ideal de busca de histria total de

    Fernand Braudel. O que ele nota uma grande disperso na historiografia, que agora se

    concentra em pesquisas parcelares e especficas, que o faz diagnosticar a nova poca

    como a da histria em migalhas (DOSSE, 1992). De fato, ao contrrio dos perodos

    anteriores, temas como juventude, infncia, morte, odores, medo, lgrimas, etc.,

    comeam a merecer anlises historiogrficas especficas e desprendidas de uma

    preocupao com a compreenso de todo o contexto e do sentido geral da histria. E

    possivelmente isso acontea justamente porque entra em crise a crena na existncia de

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    um sentido geral para a histria. No por acaso, nos anos 1970 nascem ou tomam

    grande impulso a micro-histria (em particular na Italia), a anlise das mentalidades, dasrepresentaes e do imaginrio. E a grande disciplina aliada dessa historiografia, nesse

    momento, ser a antropologia, tomando o lugar que um dia j tinha sido da sociologia

    ou da geografia. Os vrios mtodos da antropologia (usados originalmente para

    compreender culturas diferentes numa mesma poca) so agora empregados largamente

    pelos historiadores para estudar culturas de outros tempos. Percebe-se que estudar a

    diferena cultural entre povos de uma mesma poca no essencialmente diverso de

    estudar diferentes culturas em pocas distintas. nessa trilha que caminharam e

    caminham tantos historiadores do porte de Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff,

    Georges Duby, Roger Chartier, Natalie Zemon Davis, Edward Thompson, Carlo

    Ginzburg e Robert Darnton. Esse movimento notado por Peter Burke que indica, com

    razo, que nesse perodo h uma verdadeira descoberta da antropologia pelos

    historiadores, que chamaram a ateno para o simbolismo inscrito na vida de todos

    os dias, no parentesco, na sexualidade, na poltica, etc. (podemos mesmo perguntar o

    que que no simblico para este grupo de estudiosos, que alargaram a noo de

    simblico at fazer coincidir com o cultural). (BURKE, 1992, p. 21) Em resumo:

    a historiografia comea a tomar, mais do que jamais havia feito, o tema da alteridade e

    da diferena cultural como sua matria prima bsica. A historiografia insere na sua

    agenda o tema da diversidade.

    De modo correlativo a esses movimentos nos campos da filosofia e da histria, o

    tema da diversidade, depois de ter sido praticamente proscrito do mundo jurdico

    oitocentista, como vimos, reingressa tambm no mbito jurdico. O final do sculo XIX

    e incio do sculo XX so momentos de crise profunda no direito. Grossi, por exemplo,

    identifica esse perodo exatamente como o tempo de crise aguda da modernidade

    jurdica (GROSSI, 2007B) com claros sinais de crise do modelo liberal oitocentista de

    juridicidade. Vai se desfazendo a crena no carter monoltico e exaustivo da

    legalidade, que comea a demonstrar com mais clareza os seus limites. O carter

    fechado do sistema de direito privado codificado reclama aberturas que sejam aptas a

    responder aos desafios de uma poca mais complexa: o advento do direito comparado

    (Saleylles, Lambert), a insero do problema da interpretao (Gny), as mudanas nos

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    temas da responsabilidade civil (CAZZETTA, 2013; SABBIONETI, 2014) e a

    introduo no prprio sistema codificado das chamadas clusulas gerais (no BGBalemo, vigente a partir de 1900) so ndices claros de transformaes importantes que

    esto ocorrendo nesses tempos de crise. J no direito pblico, Santi Romano diagnostica

    a crise do Estado moderno e de seu monoplio jurgeno. As constituies mexicana

    (1917) e de Weimar (1919) inserem novos temas e redesenham de modo importante

    alguns temas (como o trabalho e a propriedade, por exemplo), deixando aparentemente

    para trs o rgido modelo monista, que tinha como pilares a autonomia da vontade

    privada, a propriedade privada e o legalismo estrito. E aps a marcante experincia

    totalitria (COSTA, 2002) (certamente reduzindo enormemente a complexidade de um

    processo tortuoso e nuanado), surge no segundo ps-guerra a experincia do Estado

    Constitucional. Esta experincia nova, ao erigir como protagonista do sistema a

    Constituio, ao estabelecer critrios de controle de constitucionalidade das leis e ao

    delimitar alguns temas como impassveis de serem alterados mesmo pela maioria (como

    os direitos e garantias fundamentais), acaba por inserir no prprio sistema jurdico e

    poltico uma principiologia e um conjunto de valores complexos. O Estado e sua ordem

    jurdica, nesse novo momento devem acatar a pluralidade, conviver com ela. Ou, em

    outros termos, o sistema jurdico ter como um dos seus vetores principais justamente a

    tarefa de compatibilizar um sistema social caracterizado essencialmente pela

    complexidade e multiplicidade. No por acaso a Constituio brasileira de 1988, a

    exemplo de tantas outras, coloca como fundamento da Repblica o pluralismo poltico

    (art.1o, inciso V). Do mesmo modo a Constituio italiana reconhece o pluralismo das

    formaes sociais (art. 2o), das minorias lingusticas (art. 6o), das associaes (art. 18),

    etc. Ou, em casos ainda mais eloquentes sempre lembrados pelo constitucionalismo

    latino-americano, temos at mesmo o caso de Constituies multitnicas e pluriculturais

    (como o caso da Bolvia)8, que buscam abarcar no mesmo documento jurdico a imensa

    8Assim dispem os arts. 1o e 171 da Constituio boliviana:Art. 1. Bolivia, libre, independiente y soberana, mul-titnica y pluricultural, constituida en Repblica unitaria, adopta para su gobierno la forma democrtica representativa,multitnica y pluricultural, fundada en la unin y la solidaridad de todos los bolivianos.Art. 171. Se reconocen, respetan y protegen en el marco de la Ley los derechos sociales, econmicos y culturales de los

    pueblos indgenas que habitan en el territorio nacional y especialmente los relativas a sus tierras comunitarias de origen,garantizando el uso y aprovechamiento sostenible de sus recursos naturales, su identidad, valores, lenguas, costumbres e

    instituciones.El Estado reconoce la personalidad jurdica de las comunidades indgenas y campesinas y de las asociaciones y sindicatoscampesinos.

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    diversidade cultural e tnica daquelas sociedades. Tudo isso, nem necessrio recordar,

    culmina justamente numa fase histrica (j em fins do sculo XX) de imensas trocas econfrontos entre culturas, mercados e sociedades (a assim chamada era globalizada)

    acompanhada no raramente de esforos de unificao de grandes espaos polticos e

    econmicos (como a Europa e a Amrica do Sul) que antes eram definidos

    essencialmente pelo conceito de Estado Nacional. Os novos arranjos polticos e

    jurdicos, ao que parece, pretendem compatibilizar e fazer conviver as diversidades.

    O que se quer aqui dizer que nessa nova fase histrica, amadurecida sobretudo

    na segunda metade do sculo XX e que mostra grandes desdobramentos na

    contemporaneidade, reintroduz o tema da diversidade. Mas no sem certas tenses e

    mesmo com certos paradoxos: que muito embora o ambiente poltico ainda tenha

    como premissa bsica a existncia dos Estados Nacionais e muito embora o direito

    ainda derive em grande medida dos modelos modernos colocados em ao no sculo

    dezenove (legalidade, soberania, tripartio dos poderes, etc.), esse ambiente e esse

    modelo devem necessariamente funcionar de modo permevel, flexvel e aderente a

    uma realidade social complexa que no aceita mais ser reduzida a uma lgica nica e

    exclusiva. Em outros termos: o modelo burgus, concebido para ser o lugar da aplicao

    unvoca de um modelo racional e para ser o ambiente da planificao, da modelao e

    da reduo ao um, deve agora funcionar como um espao de pluralidade, como um

    espao que seja permevel aos muitos valores circulantes, como um espao que aceite

    de braos abertos a diversidade. Da o desafio contemporneo: fazer funcionar essas

    desafios modernos, embora sob as mesmas bases criadas em outro contexto e elaboradas

    para responder reptos de outra poca. Compatibilizar a velha estrutura com as novas

    funes.

    A PROPSITO DE CONCLUSO: A HISTRIA DO DIREITO E A

    DIVERSIDADE

    Las autoridades naturales de las comunidades indgenas y campesinas podrn ejercer funciones de administracin y apli-cacin de normas propias como solucin alternativa de conflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos,

    siempre que no sean contrarias a la Constitucin y a las leyes. La Ley compatibilizar estas funciones con las funciones delos Poderes del Estado.

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    Concluo como comecei: reafirmando que a relao complexa entre o direitoe a

    diversidade to nuanada e to desigual a depender da experincia jurdica passadacom a qual se defrontatem no historiador do direito um observador privilegiado. Esse

    tema , tipicamente, daqueles que no podem ser tratados de modo abstrato, idealizado,

    metafsico. daqueles que s adquirem sentido quando agarrados a uma concretude

    histrica, quando referidos a um determinado contexto.

    Claro que isso a anlise histrico-jurdica, por si s, no resolve a questo e nem

    mesmo garantia de que o prprio tema da diversidade no seja eventualmente

    maltratado. Como sabemos, afinal, a historiografia jurdica pode, ela mesma, assumir

    caminhos muito diferentes e, eventualmente, at contraditrios. Uma abordagem

    positivista meramente factual, linear e teleolgica do devir jurdico seguramente

    aniquilar a possibilidade de uma anlise adequada de um tema como a diversidade.

    Por isso tudo concluo com essa nota, que em certa medida um exerccio de

    metalinguagem: aparentemente a histria do direito ser to mais capaz de abordar o

    tema da complexa relao entre diversidadee direito, quanto mais ela mesma seja capaz

    de, no interior de suas prprias anlises, captar a radical alteridade entre contextos

    histricas e experincias jurdicas passadas. Ou seja: quanto mais a histria do direito

    for capaz de reconhecer no passado a sua profunda alteridade, quanto mais puder

    radicalmente perceber a profunda diversidade existente no prprio passado com relao

    ao presente, tanto mais ser capaz de, ela mesma, avaliar o tema da diversidade. Ao

    contrrio, quanto mais a historiografia jurdica for orientada somente uma nica lgica,

    quanto mais ela adquirir um formato linear que v o passado do direito como uma

    atualidade inacabada, quanto mais ela padecer de anacronismo (considero por Lucien

    Febvre como o grande pecado de um historiador) e for contaminada por presentismo,

    tanto mais o reconhecimento e a compreenso do tema da diversidade ficar distante.

    Exemplos eloquentes de como faz-lo, em termos metodolgicos, para ns no faltam:

    desde a convico de que o historiador do direito tem como misso ser a conscincia

    crtica de qualquer outro jurista, por ser capaz de ver o ponto que compe a linha

    (GROSSI, 2010), passando pelas intuies sobre a absoluta necessidade de combater o

    presentismo na abordagem da poltica (o Estadualismo) e na insistncia de evitar

    uma apresentao do presente como o resultado lgico e progressivo da experincia

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    histrica (HESPANHA, 2012), ou considerando a riqueza da alteridade presente numa

    abordagem hermenutica da historiografia jurdica (COSTA, 2010), chegando at aabertura de uma abordagem da disciplina em termos no estritamente europeus (DUVE,

    2014). Parodiando um filsofo do sculo XIX, a partir da certamente a disciplina

    poder engendrar interessantes receitas para os caldeires do futuro.

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