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Explicação e reconstrução do Capital

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Explicação e reconstrução do Capital

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Universidade Estadual de Campinas

Reitor

Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade

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Conselho Editorial

Presidente

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Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

coleção marx 21

Comissão Editorial

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Marco Vanzulli – Sedi Hirano

Conselho Consultivo

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Luiz Eduardo Motta – Reinaldo Carcanholo – Ruy Braga

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JACQUES BIDET

EXPLICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO

DO CAPITAL

TRADUÇÃO

Lara Christina de Malimpensa

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Índices para catálogo sistemático:

1. Marx, Karl, 1818-1883 330.122

2. Capitalismo 330.122

3. Organização 658

4. Mercado 330.12

Título original: Explication et reconstruction du Capital

Copyright © 2004 by Presses Universitaires de France

Copyright da tradução © 2010 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em

sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0901-7

B474e

Bidet, Jacques.

Explicação e reconstrução do Capital / Jacques Bidet; tradução: Lara Christina

de Malimpensa. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Capitalismo. 3. Organização. 4. Mercado. I. Título.

cdd 330.122

658

330.12

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

Editora da Unicamp

Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp

cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil

Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

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Para Annie, por sua constante e impiedosa crítica.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 9

PRIMEIRA PARTE

EXPLICAÇÃO

PREÂMBULO AO TEXTO DE MARX — OS CONCEITOS PRÉVIOS ................................................ 33

SEÇÃO I — A MERCADORIA E A MOEDA ............................................................................................... 51

CAPÍTULO 1 — A MERCADORIA ............................................................................................................ 59

CAPÍTULO 2 — DAS TROCAS ................................................................................................................... 93

CAPÍTULO 3 — A MOEDA OU A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS ..................................... 101

SEÇÃO II — A TRANSFORMAÇÃO DO DINHEIRO EM CAPITAL .................................................... 111

SEÇÃO III — A PRODUÇÃO DA MAIS-VALIA ABSOLUTA ............................................................... 125

EPÍLOGO — SEÇÕES DE IV A VIII: REPRODUÇÃO E REVOLUÇÃO............................................ 137

SEGUNDA PARTE

RECONSTRUÇÃO

ETAPA PRELIMINAR — RECONSTITUIÇÃO DOS CONCEITOS PRÉVIOS DO CAPITAL ........ 169

SEÇÃO I — A METAESTRUTURA: O MERCADO E A ORGANIZAÇÃO ....................................... 177

SEÇÃO II — A METAESTRUTURA E O SALARIADO ........................................................................... 217

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SEÇÃO III — A ESTRUTURA: TEORIA AMPLIADA DA EXPLORAÇÃO ...................................... 247

EPÍLOGO — RUMO A UMA TEORIA GERAL DA SOCIEDADE MODERNA ................................ 285

CORRESPONDÊNCIAS POR PARÁGRAFOS DAS REFERÊNCIAS CITADAS .................................. 325

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................................ 331

ÍNDICE DAS NOÇÕES ........................................................................................................................................... 341

ÍNDICE DOS NOMES ............................................................................................................................................. 347

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INTRODUÇÃO

Tudo retomar do início

Não devemos nos surpreender com o fato de que a teoria de Marx suscite, nos dias de hoje, o interesse de uma nova geração. Sua atualidade está relacio-nada — paradoxalmente — à fulgurante reestruturação do capitalismo, que, em sua fase presente de mundialização, recupera o caráter selvagem de seus primórdios ao mesmo tempo em que renova, desta vez numa escala derradeira, os sinais de seu anunciado fi m.

A opinião dos estudiosos admite de bom grado que devemos reter algumas lições do Capital. O capitalismo seria com certeza o sistema menos ruim. Mas o marxismo — considerado como sua crítica utópica, inspiradora da “grande ilusão” do século XX e de seu cortejo de horrores — teria, contudo, o mérito de ressaltar algumas patologias inerentes à economia moderna, produtora de desigualdades e exclusões. Arranjamos-lhe, assim, um lugar respeitável no edifício da cultura, tendo em vista a instrução da juventude. Acreditamos, no entanto, que ele já tenha dito o que tinha a dizer.

Defenderei aqui, ao contrário, que a teoria de Marx não somente é indis-pensável para a análise do mundo contemporâneo como tem um grande fu turo. Sem dúvida ela comporta insufi ciências e erros insignes, que não deixaram de ter repercussões históricas deploráveis. No entanto, se conseguirmos identifi cá-los rigorosamente, seremos capazes de reabilitar seu potencial cognitivo e político, e de levá-lo a seu pleno desenvolvimento; seremos capazes de distin-

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guir entre o que se pode e o que não se pode esperar dela. Este é, pelo menos, o desafi o que será aqui enfrentado. Diversas críticas, correções e extensões, que encontraremos no caminho, foram propostas por economistas. Mas trata-se, aqui, de algo completamente distinto: trata-se de retomar o trabalho concei tual produtivo no nível que é o de Marx, no próprio início de sua explanação. Os fi lósofos contentaram-se em interpretar de diversas maneiras O capital — agora, trata-se de transformá-lo.

Aparentemente, manter-me-ei distante, ao longo deste livro, de toda a atualidade. No entanto, este “trabalho com a teoria” pretende ser — e o leitor poderá julgar sobre isso ao fi nal — uma forma de participar da transformação real do mundo, do “movimento por um outro mundo”, no interior do qual ele se situa de acordo com uma divisão de tarefas e, portanto, na dependência de muitas outras pesquisas e práticas. Trata-se aqui de ler O capital no período, longo, da altermundialização.

De fato, existe atualmente um modo de salvar o marxismo como sublime “utopia” que por vezes se assemelha muito a uma sublimação da ilusão. Em oposição a esse modo de renunciar, proponho neste livro — e isso em contra-posição às “interpretações”, que a neutralizam — uma “refundação” da teoria de Marx. Pretendo, é claro, aproveitar as lições de diversos marxistas contem-porâneos. Mas isso pressupõe, antes de mais nada, que o torpor dogmático — a nota dominante — seja abalado. Proponho-me, portanto, retomar do co-meço o empreendimento teórico iniciado por Marx, na esperança de conduzi-lo a sua conclusão.

Pode-se ler este livro como uma introdução ao Capital. Mas ele constitui, inseparavelmente disso, no jogo entre suas duas partes, uma tentativa de expli-cação e de reconstrução dessa obra. Um tal trabalho encontra evidentemente suas fontes de inspiração na história e na cultura do século XX, no choque das experiências e das vicissitudes históricas, na emergência de novos paradigmas fi losófi cos e científi cos, em todo o leque da pesquisa empírica. No entanto, sua principal ambição é uma reconstrução teórica coerente.

A explicação, proposta na primeira parte, refere-se aos principais conceitos e ao encadeamento da explanação, sendo complementada pelo exame crítico de diversas interpretações. Diferentemente de outros comentadores, não busco a “verdade” do Capital em versões anteriores. Considero que Marx trabalhou co mo um pesquisador comum, produzindo uma nova versão apenas quando a an-terior se mostrava insufi ciente em vista do projeto que ele perseguia, e que ele não tinha motivo algum para se explicar sobre as alterações efetuadas. Eis por

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INTRODUÇÃO

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que, sem negligenciar os esboços preparatórios nem as edições originais alemãs, privilegiei com frequência a versão francesa, traduzida por J. Roy, mas inteira-mente revista por Marx, que realizou, nessa ocasião, as últimas modifi cações.

Gostaria de pôr em evidência o conteúdo político-fi losófi co dessa teoria, algo que os diversos exegetas, a meu ver, não souberam reconhecer em toda a sua amplitude. A introdução que proponho difere, portanto, daquela que um economista poderia oferecer. É preciso, sem dúvida, ler O capital como um texto de economia; num sentido novo, que o designa, de acordo com seu sub-título, como uma “crítica da economia política”. Essa crítica consiste em ins-crever a economia nas ciências sociais e históricas. Contrariamente ao que proporia uma economia pura, abstrata e anistórica, Marx — precursor, nesse aspecto, das “heterodoxias” contemporâneas — concebe a estrutura econô mica como uma parte envolvida numa forma sempre particular de sociedade, no caso, o capitalismo. Ao construir sua teoria “econômica”, que é o tema do con-junto da obra, ele pressupõe e esboça assim, necessariamente, os traços de uma “teoria geral” dessa forma de sociedade, com suas características jurí dico-políticas, sociológicas e ideológicas próprias. E é principalmente no Livro I que se concentra essa matriz teórica, que o trabalho de “explicação” se em-penhará em explicitar.

A questão da ordem da explanação é, aqui, primordial. Ela não apenas governa o sentido e a pertinência (o emprego possível) das categorias sucessi-vamente introduzidas, e, portanto, a própria substância da teoria; a posição dos conceitos na sequência da explanação representa, além disso, as relações reais entre os diversos níveis de relações sociais que eles defi nem. Representa, na sucessão discursiva, a arquitetura social compreendida de acordo com seu con-teúdo estrutural e, portanto, de acordo igualmente com sua dinâmica real. Nes-se sentido, a ordem da explanação remete sempre a seu início, o ponto ao qual é preciso sempre poder retornar para considerar, teórica e praticamente (poli-ticamente), todo o resto.

Sob esse aspecto, um dos principais problemas de interpretação do Capital decorre precisamente do fato de que existe uma discrepância entre, de um lado, a Seção I do Livro I, que apresenta um caráter mais geral (mais “abstrato”, diz Marx) — tratando da lógica da produção mercantil como tal, ou do capitalismo, na medida em que este está implicado numa lógica de mercado —, e, de outro, a Seção III (e o restante da obra), que versa sobre o que é próprio do capitalis-mo, caracterizado pelo salariado privado e pela orientação para o acúmulo da mais-valia. Para designar essa discrepância, emprego o termo “meta/estrutura”. A “metaestrutura” designa o objeto dessa Seção I, “meta” signifi cando esse

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nível superior de abstração, em oposição ao da “estrutura” (de classe capita-lista), apre sentada a partir da Seção III. A questão toda consistirá em saber como com preender a relação entre esses dois níveis: o mercado e o capitalismo. Pode-se imaginar o que está em jogo nesse desafi o.

Introduzi o termo, mas não inventei a ideia, em absoluto: essa articulação meta/estrutural — isto é, entre a metaestrutura e a estrutura — é uma desco-berta essencial de Marx, um dispositivo teórico inédito, problemático, mas, a par tir daí, incontornável. O marxismo ulterior certamente o apreendeu e levou em consideração, de modo diverso e desigual, mas sem lhe dar uma formula-ção adequada. A meu ver, isso se deve, por um lado, às incertezas que, na tradição marxista, pesam sobre a relação entre mercado e capitalismo, e, por outro — e ambos os fatores estão estreitamente ligados —, à própria insu-fi ciência da teorização aqui proposta por Marx, que deve, de fato, ser recons-truída sobre uma base mais ampla, cuja ambição é assumir a dupla exigência expressa pela tradição estruturalista e pela tradição dialética.

A reconstrução proposta na segunda parte fundamenta-se numa ampliação do conceito de “metaestrutura”, que repercute sobre o conjunto da teoria, ou seja, sobre a “estrutura” e também sobre a relação, prática, entre esses dois termos.

Ela comporta dois segmentos.Inspira-se nas economias “heterodoxas” que se recusam a enxergar no “mer-

cado” o paradigma exclusivo da economia. Formula, nesse sentido, um con-ceito de “organização”, que designa a outra forma racional da coordenação social da produção. Essas duas categorias são tratadas como representação dos dois polos da instituição econômica, de mesmo nível epistemológico, antité-ticos e coimbricados, sem serem, contudo, estritamente homólogos. Esse par mercado/organização já constitui, conforme veremos, o pivô da problemática de Marx, que, no entanto, não soube fazer dele um uso adequado. O conceito será defi nido progressivamente, ao longo da explanação, à medida que a teoria se desenvolver em todas as suas dimensões.

Acrescento, e este é o outro segmento da inovação que proponho, que essas categorias “econômicas” têm, no plano da relação jurídico-política, sua contra-partida (sua outra “face”) classicamente refl etida no par constituído pela “li-berdade dos modernos” de estabelecer contratos com qualquer um e pela “liberdade (também moderna, como sabemos) dos antigos” de se organizarem de acordo com as vias defi nidas em comum.

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INTRODUÇÃO

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Os dois “polos” apresentam, portanto, duas “faces”. Dessa dupla ampliação do ponto de partida resulta todo um corpo de consequências, de um lado quan-to à análise da “estrutura” da sociedade moderna, na condição de sociedade de classe, em seu teor econômico, sociológico e jurídico-político, e, de outro, quanto à interpretação do “sistema do mundo” próprio ao capitalismo, cuja fi gura (em certo sentido) derradeira é desenhada atualmente pelo processo chamado “mundialização”.

Eu havia esboçado esse programa em meu livro Théorie générale. Retomo-o aqui, do início. A confrontação direta com a explanação de Marx em seu desenrolar, o projeto sistemático almejado de remodelação das grandes articu-lações de sua construção a partir de uma base assim ampliada (e, dessa manei-ra, aberta a diversas contribuições das ciências sociais e fi losofi as contempo-râneas), constitui um novo desafio, um teste decisivo para a perspectiva teórica que proponho. E, espero, uma via mais segura para a compreensão de minhas palavras. Ela ilumina diretamente numerosas perguntas oriundas das tradições marxistas e pós-marxistas, que conduzem, todas elas, à questão de saber em que espécie de “mundo” e em que espécie de “tempo” vivemos, e que espécie de alternativa podemos considerar pôr em prática1.

Como ler este livro

É escusado dizer que a leitura deste livro caminha de mãos dadas com uma leitura ou releitura do Capital, particularmente do Livro I, cujo plano é aqui rigorosamente seguido*. Pode-se acompanhar a sequência: 1. Explicação, 2. Reconstrução, ou considerar sucessivamente cada ponto tal como é tratado no Capital, seguindo meu Comentário on-line, e em cada uma das duas partes.

1 Uma Terceira parte, Comentário meta/estrutural do Capital, que completa este livro, propõe uma leitura acompanhada das Seções I e II do Livro I. Destina-se a apoiar tanto a “explicação” quanto a “reconstrução”, ilustrando em especial as críticas por mim dirigidas às diversas in-terpretações. Pode ser encontrada na Internet: <http://netx.u-paris10.fr/actuelmarx/>, na ru-brica Actuel Marx en ligne. Em razão da grande diversidade de edições, as referências ao Capital remeterão aqui a uma numeração por parágrafo, cuja chave se encontra na página 325 deste livro.

* A maior parte das referências feitas nesta obra a parágrafos, itens, capítulos e seções do Ca-pital baseia-se nas subdivisões adotadas na tradução francesa de Joseph Roy. Nos raros casos em que o autor se serve de outras versões, o leitor é advertido. (N. da T.)

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A obra se dirige tanto aos que se propõem a ter um primeiro contato com a obra de Marx quanto àqueles que desejam se confrontar com as difi culdades que ela suscita, com os debates que provoca atualmente. Pode ser lida, portan-to, em vários níveis diferentes.

A primeira parte, estritamente analítica, visa, é claro, a explicar em termos elementares a teoria de Marx. Mas procura, ao mesmo tempo, extrair algumas teses essenciais, que motivam a “reconstrução”. As afi rmações que ela contém, por vezes surpreendentes, só são plenamente inteligíveis — e, portanto, even-tualmente convincentes — à luz dos fatores teóricos e políticos explicitados na segunda parte.

Em suma, este livro, em razão de seu caráter sistemático, só pode ser lido “a crédito”. Ou melhor, ele exige uma leitura que circula de uma parte a outra, em variados sentidos. Daí as múltiplas remissões a parágrafos por vir ou já vistos. Pode-se eventualmente, numa primeira leitura, negligenciar o “preâm-bulo” e as “controvérsias” da “Explicação”. Mas a necessidade de voltar a eles será sentida.

Conhecemos os conselhos que Marx dava a seu leitor, na célebre carta por ele dirigida a seu editor Maurice La Châtre:

O método de análise que empreguei, nunca antes aplicado aos assuntos econômicos,

torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é de recear que o público fran-

cês, sempre impaciente de concluir, ávido por conhecer a relação entre os princípios

gerais e as questões imediatas que os apaixonam, desanime, antes de mais nada, por não

ser possível avançar.

Seria essa uma desvantagem contra a qual nada posso fazer, exceto prevenir e pre-

caver os leitores ciosos de verdade. Não existe caminho fácil para a ciência e somente

terão chances de alcançar os seus píncaros luminosos os que não recearem se cansar

com a subida de suas trilhas íngremes.

Parece-me que essas palavras continuam atuais, particularmente no que diz respeito ao “público francês”. No entanto, os leitores que penarem no caminho íngreme encontrarão — assim espero — algum consolo reportando-se de tem-pos em tempos ao quadro sintético da página 267: a ser decifrado como a “chave de interpretação dos sonhos”.

A não ser que seja melhor começar o livro pelo fi m...Para “explicar” o que Marx faz, não podemos nos basear no que ele acre-

dita fazer, nem no que diz fazer. É preciso justifi car a maneira como seu texto funciona efetivamente, o que se esclarece em particular pelo exame das modi-

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INTRODUÇÃO

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fi cações que ele realiza de uma versão a outra. Marx descarta os conceitos que o auxiliaram no processo de elaboração, mas que lhe parecem, ao fi nal, inade-quados.

Esse foi um dos princípios diretores da “explicação” fornecida em Que faire du Capital? (1985). Quanto à ideia de “reconstrução”, ela se desenvolve em Théorie générale (1999) e em diversos trabalhos posteriores.

Que faire du Capital?, Théorie générale e Explication et reconstruction du Capital formam, assim, uma trilogia cujos elementos se completam. Por essa razão, as notas de rodapé são exclusivamente dedicadas a tais autorreferências. As remissões aos escritos de Marx, aos comentadores e intérpretes são, por sua vez, inseridas no interior do texto.

Minha perspectiva provocou várias confusões, desde o capítulo que D. Ben-saïd (1995) lhe consagra, e que concentra todos os mal-entendidos possíveis, até a análise que dela faz L. Sève (2004). Estranhamente, um desses autores me atribui uma posição “contratualista” e o outro, a tese de um “socialismo de mercado”. Assim nascem e correm as lendas. Empreguei no passado a expres-são paradoxal “contratualismo revolucionário” para transmitir a ideia de que nenhum “contrato social” é legitimável exceto aquele que se realiza no âmbi-to de um processo revolucionário. Nunca assumi a responsabilidade pelo con-ceito de “socialismo de mercado”: argumentei que o socialismo não se defi ne pela substituição das relações mercantis por relações organizacionais, mas pela luta de classe contra esses dois fatores de classe que são o mercado e a orga-nização. De modo mais geral, a explanação sobre a “metaestrutura” foi fre-quentemente tomada por uma análise do Estado moderno, e assimilada a uma “superestrutura”. A tendência de uma primeira leitura é naturalmente a de re-duzir o novo ao já conhecido. Eis por que, na esperança de evitar o ressurgi-mento de tais contrassensos, assinalo de saída o que se deve esperar aqui. Um antiliberalismo (econômico) radical. Um anticontratualismo consequente: uma crítica da contratualidade que não foi realizada nem por Hegel, nem por Marx, e que vincula a estrutura moderna de classe às próprias formas da contratuali-dade, interindividual-mercantil e central-organizacional. Uma refundação da teoria das classes sociais e do Estado de classe, isto é, uma teoria da estrutura (de classe). A esta se articula uma teoria do sistema (do mundo), que conduz ao conceito de mundo hoje, como “ultimodernidade”*, Estado-mundo em ges-tação sob o imperialismo, em relação a essa novidade correlativa que é preciso

* De “ultimodernité”, neologismo que designa a última, derradeira expressão da modernidade. (N. da T.)

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designar, num sentido que não é o de T. Negri (2000), como “império”. Uma rejeição de todo tratamento formal da teoria social. Uma integração defi nida da dialética num contexto estruturalista materialista. Mas nem referência a um “socialismo de mercado”, nem recurso a um Estado-mundo, nem posição mo-ral, nem projeção de um sentido ou de um fi m da história.

Breve descrição do Capitaldestinada aos iniciantes

Estudaremos aqui o Livro I do Capital, e principalmente suas quatro primeiras seções. Mas é evidente que só podemos apreciar seu conteúdo se o relacionar-mos ao conjunto da obra.

Sabemos que O capital, cujo subtítulo é Crítica da economia política, é a obra principal de Marx, na qual ele trabalhou durante 15 anos, a partir de 1857, e que esse texto contrasta com seus outros escritos, quer de caráter fi losófi co, quer de caráter político. Sua redação se realiza após um grande número de trabalhos preparatórios, entre os quais os mais importantes são os Grundrisse (Manuscritos de 1857-1858), a Contribuição à crítica da economia política (publicado em 1859, que é uma primeira versão da Seção I do futuro Capital), as Teorias sobre a mais-valia (Manuscritos de 1861-1863), os Manuscritos de 1863-1865, que comportam uma nova redação do conjunto. A primeira edi-ção do Livro I aparece em 1867. A segunda, em 1873, e comporta principal mente uma recriação do primeiro capítulo. A edição francesa, cuidadosamente revi-sada pelo próprio Marx, aparece em fascículos de 1872 a 1875. Os Livros II e

III serão publicados por Engels, a partir de manuscritos — atualmente dispo-níveis na MEGA* — deixados por Marx.

De acordo com o projeto inicial de Marx, O capital deveria ocupar um lugar num conjunto mais amplo, que incluiria em especial a explanação dos conceitos socioeconômicos universais, das formas próprias à sociedade bur-guesa, da relação entre capital, trabalho assalariado e propriedade fundiária, das classes sociais, do crédito, do imposto e do Estado, da população, das colônias, das relações internacionais de produção e de troca, do mercado mundial e das crises (Grundrisse, tomo I, p. 43, ver também pp. 204 e 216).

* MEGA — Edição completa das obras de Marx. (N. da T.)

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INTRODUÇÃO

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Esse esquema se modifi ca ao longo da redação. O mesmo ocorre com o plano do Capital, uma vez que Marx abandona em parte o apoio, por vezes artifi cial, que havia buscado numa lógica dialética de caráter geral. Ater-me-ei aqui ao texto fi nal, recebido como um clássico, que as recentes edições da MEGA es-clarecem, mas sem suscitar questões novas e substanciais.

Nele, Marx apresenta uma “crítica da economia política”, que é a um só tempo uma crítica dessa disciplina e uma teoria crítica da sociedade capitalis-ta, apreendida em sua dimensão econômica. Ele compreende três livros, dedi-cados respectivamente à “produção”, à “circulação” e ao “processo de conjun-to”. A Seção I do Livro I, que versa sobre a forma mercantil de produção e de troca como base do capitalismo, mas não sobre as estruturas e os fenômenos especifi camente capitalistas, apresenta uma forte autonomia em relação ao restante da obra.

O Livro I, dedicado à produção, compõe-se de oito seções.A Seção I trata da mercadoria e da moeda. O primeiro capítulo diz respeito

à produção mercantil em geral, fundada na propriedade privada e na troca. A mercadoria é analisada no âmbito da relação constitutiva entre um valor de uso (ou utilidade) e um valor de troca. O objeto da análise é mostrar que o primei-ro é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção da mercadoria (item I). À produção de diversos valores de uso corresponde uma forma sempre particular de “trabalho concreto”. Não é a natureza parti-cular deste último que determina o valor, mas algo que é comum a todos os trabalhos: o dispêndio de força de trabalho exigido por eles, e que Marx desig-na como trabalho abstrato (item II). A forma mercantil de produção pressupõe a moeda, que Marx caracteriza como uma mercadoria (no sentido em que ele defi niu esta última) posta de lado para desempenhar o papel de equivalente universal (item III). Um tal universo é dominado pelo “fetichismo da mercado-ria”: os produtores trocam seus trabalhos, mas aparentemente o que se permu-tam são coisas, de acordo com uma ordem que parece provir da natureza (item IV). Os capítulos 2 e 3 tratam das trocas e das funções da moeda nesse contex-to geral de uma sociedade ainda exclusivamente defi nida como mercantil.

A Seção II tem por objeto relacionar o conceito geral de sociedade mercan-til ao de sociedade propriamente capitalista. Na primeira, o dinheiro funciona apenas como dinheiro (D), isto é, permite a troca de mercadorias (M) e, por-tanto, segue o esquema M-D-M. Na segunda, ele opera como capital: ele deve, assim, de acordo com a sequência D-M-D’, obter a mercadoria M especifi ca-mente capaz de produzir mais valor do que o que ela possui. Essa mercadoria não pode ser senão a “força de trabalho”, colocada no mercado por seu pro-

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prietário, o trabalhador desprovido dos meios de produção. É ao assumir essa função que “o dinheiro se transforma em capital”.

A Seção III analisa o processo de produção propriamente capitalista, como aquele que, precisamente, tende a produzir não riquezas (ou “valores de uso”), mas um “sobrevalor”, ou mais-valia. A força de trabalho assalariada é compra-da por seu valor, que corresponde ao dos produtos de subsistência que seu salário lhe permite comprar. Suponhamos, por exemplo, que os bens consumi-dos cotidianamente pelo assalariado sejam produzidos em seis horas. Se ele trabalha 12 horas, trabalha seis em troca de seu salário, e as outras seis cons-tituem um “sobretrabalho”, não pago, que proporciona ao capitalista a mais-valia por ele procurada. Ao trabalhar, o assalariado transfere igualmente para o produto o valor incluído nos meios de produção. O valor da mercadoria pro-duzida se decompõe, assim, em “capital constante” (c) incluído nos meios de produção, “capital variável” (v), correspondente ao salário, e “mais-valia” (mv), produzida pelo sobretrabalho: c + v + mv. A relação mv/c+v constitui a “taxa de lucro”, e mv/v, a “taxa de mais-valia”, ou taxa de exploração. Esta cresce se a jornada de trabalho se prolonga. Esse é o conceito de mais-valia absoluta.

A Seção IV apresenta a “mais-valia relativa”. Ela corresponde particular-mente à tendência do capitalismo de produzir os bens-salário em um tempo cada vez menor. Essa tendência se explica estruturalmente pelo fato de que, em cada segmento, cada capitalista está em concorrência com todos os outros, e busca, por isso, aumentar sua produtividade e, portanto, reduzir o valor de sua mercadoria, a fi m de realizar uma “mais-valia diferencial” em relação a eles. Trata-se aí de um fenômeno geral por meio do qual se manifesta o caráter historicamente “progressista” do capitalismo. Desse contexto de revolução técnica permanente resulta, tendencialmente, uma redução no valor dos bens-salário e um aumento proporcional da mais-valia. Passamos, assim, do estudo da estrutura do capital ao das tendências históricas dessa estrutura, da manu-fatura ao maquinismo e à grande indústria.

As Seções V e VI trazem diversos aprofundamentos sobre a mais-valia e o salário.

A Seção VII analisa o processo de reprodução e acumulação do capital. É o próprio processo de produção capitalista que reproduz a estrutura, já que ao fi nal de cada fase, pela venda da mercadoria, veem-se ao menos reproduzidos o capital, em seu valor inicial, propriedade do capitalista, que assim subsiste graças à mais-valia, e o trabalhador assalariado desprovido de tudo e disposto a vender novamente sua força de trabalho. O conceito de “reprodução simples” é defi nido por essas condições estruturais mínimas (capítulo 23). Certos capi-

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talistas são eliminados, mas a estrutura permanece na qualidade de estrutura de classe ou macroestrutura. A tendência do capitalismo, porém, é de acumu-lação, por meio do processo de concentração do capital (nas condições micro-estruturais da concorrência apresentadas na Seção IV), que implica a elevação da produtividade e o aumento do número de assalariados. Esse processo deter-mina uma “lei de população” própria do modo de produção capitalista, que gera uma superpopulação fadada ao desemprego e à miséria (capítulo 25).

A Seção VIII é dedicada à “acumulação primitiva”, isto é, ao estudo das condições nas quais o modo de produção capitalista, assim estruturalmente defi nido, pôde emergir historicamente. No entanto, a partir daí, ela orienta também para o fi m derradeiro. O capitalismo tende, inexoravelmente, a engen-drar seu coveiro: em razão da concentração monopolista crescente, o conjunto dos assalariados, cada dia mais forte em número e em competência, unifi cado pelo próprio processo de produção, acabará por expropriar os capitalistas e instaurar uma nova forma de sociedade fundada na propriedade comum dos meios de produção (capítulo 32).

O Livro II estuda a circulação, isto é, a reprodução do capital por meio de um processo cíclico representado pela sequência:

D – M (meios de produção + forças de trabalho)... P... M’ – D’. O ciclo é o itinerário que vai de uma forma ao retorno para essa mesma

forma. A sigla P designa o capital em processo de produção. O capital se sub-divide, assim, em três frações: o capital industrial percorre toda a sequência, o capital comercial se limita a D-M-D’ e o capital fi nanceiro (no sentido de “portador de juros”), a D-D’. Estes dois últimos, funcionalmente necessários, pelo fato de não produzirem mercadorias, também não produzem valor, nem, portanto, mais-valia: recolhem sua parte do capital industrial. Os esquemas de reprodução enunciam as condições de equilíbrio entre o setor A de bens de pro dução e o setor B de bens de consumo necessárias à reprodução do sistema e a sua ampliação.

O Livro III examina vários aspectos do processo de conjunto da produção capitalista. A Seção I nos convida a passar do ponto de vista abstrato e geral das relações de classe ao do indivíduo capitalista como tal. O que interessa a este último, no fi m das contas, não é especifi camente a elevação da taxa de mais-valia, mv/v, mas a da taxa de lucro, mv/c + v. Trata-se, então, de um nível mais concreto de análise, voltado para a taxa de lucro. A Seção II, por sua vez, mostra como se estabelece entre os diversos segmentos uma taxa média de lucro. Com efeito, se os capitalistas de diversos segmentos usufruíssem da mais-valia neles produzida, dirigir-se-iam para as atividades em que a mão de

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EXPLICAÇÃO E RECONSTRUÇÃO DO CAPITAL

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obra, única a gerá-la, é maior. Esse movimento de transferência provocaria a superprodução desse tipo de mercadoria “à base de mão de obra” e a queda de seu preço — e inversamente. Em última análise, portanto, as mercadorias não são trocadas com base em seu valor, tal como ele é defi nido no Livro I, mas sempre, de modo tendencial, com base num preço diferente dele, o “preço de produção”: c + v + lucro médio. A Seção III orienta então a análise para a “queda tendencial da taxa de lucro”, decorrente da elevação da relação c/v, inerente ao desenvolvimento do maquinismo e, portanto, ao próprio progresso do capitalismo. Examina igualmente os fatores mobilizáveis em sentido inver-so, tais como, em particular, o prolongamento e a intensifi cação do trabalho, a pilhagem de matérias-primas e a colonização. O capítulo 15 versa sobre as crises, fenômenos cíclicos, que manifestam tensões internas à estrutura, e tam-bém sobre a capacidade desta última de resistir a elas, reproduzindo suas con-tradições, porém, em escala mais ampla. As Seções IV, V e VI estudam as condições complexas da repartição da mais-valia entre o capital industrial (cha-mado produtivo), o capital comercial, o capital portador de juros e a renda fundiária, assim como as diferentes representações ideológicas ligadas a eles. A obra termina nesse ponto, visivelmente incompleta.

Breve nota a respeito dos usose das leituras do Capital

Tanto quanto qualquer outro clássico, O capital não nos é imediatamente aces-sível. Já não podemos alcançá-lo senão através da espessura da história e da cultura. As perguntas formuladas a seu respeito, as conclusões práticas que acreditamos poder tirar dele, as objeções que lhe foram feitas, as implicações atribuídas às proposições que o constituem, tudo isso — que chega a nós por meio da vulgarização e do rumor público — condiciona nossa leitura. A diver-sidade possível de acolhimento do Capital provém ao mesmo tempo das dis-sensões entre marxistas, da divisão do trabalho entre diversos corpos de espe-cialistas e, mais amplamente, de diversos tipos de interesse dirigidos a essa teoria, a partir de lugares distintos do espaço mundial — social e cultural — ao longo do século XX. E é todo esse conjunto que será preciso tirar a limpo se quisermos, hoje, “explicar” O capital, e, sobretudo, se nos propusermos a “reconstruí-lo”. Ora, nada é menos simples. É bem difícil dissociar, entre os usos que se fi zeram dessa obra, os que visam à “prática”, ou à política, e os