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2.2 Guiné: A Caminho de um Mundo Novo O avanço ao longo do Atlântico traria novas paisagens, novas terras e novas gentes ao conhecimento dos letrados europeus. As caravelas portuguesas anunciavam a existência de um novo mundo ao sul do Equador e as viagens de Diogo Cão auguravam uma grande renovação na concepção do espaço africano. Diogo Cão seria assim o primeiro navegador a comprovar a existência de um mundo para além da linha equatorial 1 e, mais, que este seria habitado. As primeiras informações relativas ao reino da Guiné chegavam a Portugal com as viagens que, a partir de 1434 com a passagem do Cabo Bojador, do Cabo Branco e do Cabo Verde (1445), alcançavam a denominada região da costa da pimenta, do ouro e dos escravos. Procurando descrever e apontar tudo o que se lhes apresentava perante os seus olhos: a costa, as árvores, as plantas, os animais, os habitantes bem como os produtos existentes, os viajantes anotariam as impressões iniciais relativamente à paisagem africana, deixando que o sabor vivencial das etapas das viagens se reflectisse e tornasse visível na estrutura narrativa dos seus textos. Estes homens ambicionavam dar a conhecer a novidade que, como viajantes, tinham a oportunidade de observar em primeira mão, fixando-a assim de uma forma tão exacta quanto lhes era possível, a fim de que o seu esquisso fosse também compreensível para aqueles que não a podiam ver. Na leitura destes textos sobressai, especialmente, o fascínio que a paisagem exerce sobre os novos observadores. Luís de Cadamosto escreve que a costa do Cabo Verde seria tão bela que, ele próprio que já tinha viajado por muitos sítios, nunca tinha visto um litoral tão bonito e tão rico. 2 A sua entusiástica descrição enche-se de adjectivos e de expressões qualificativas na tentativa de encontrar palavras que correspondam inteiramente à sua observação e apreciação. 1. Que a região ao sul do Equador seria considerada como um "outro mundo" ou um "mundo novo", testemunha por exemplo, Luís de Cadamosto, bem como uma série de fontes coevas. Veja-se W. G. L. Randles, L' image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959, pp. 18-20 e W. G. L. Randles, Le Nouveau Monde, L'Autre Monde et la Pluralité des Mondes, in: Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, Lisboa, 1969, pp. 1-39. 2. Luís de Cadamosto, Navegações de Luís de Cadamosto, ed. G. C. Rossi, Lisboa, 1944, p. 60.

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2.2 Guiné: A Caminho de um Mundo Novo O avanço ao longo do Atlântico traria novas paisagens, novas terras e novas gentes ao conhecimento dos letrados europeus. As caravelas portuguesas anunciavam a existência de um novo mundo ao sul do Equador e as viagens de Diogo Cão auguravam uma grande renovação na concepção do espaço africano. Diogo Cão seria assim o primeiro navegador a comprovar a existência de um mundo para além da linha equatorial1 e, mais, que este seria habitado. As primeiras informações relativas ao reino da Guiné chegavam a Portugal com as viagens que, a partir de 1434 com a passagem do Cabo Bojador, do Cabo Branco e do Cabo Verde (1445), alcançavam a denominada região da costa da pimenta, do ouro e dos escravos. Procurando descrever e apontar tudo o que se lhes apresentava perante os seus olhos: a costa, as árvores, as plantas, os animais, os habitantes bem como os produtos existentes, os viajantes anotariam as impressões iniciais relativamente à paisagem africana, deixando que o sabor vivencial das etapas das viagens se reflectisse e tornasse visível na estrutura narrativa dos seus textos. Estes homens ambicionavam dar a conhecer a novidade que, como viajantes, tinham a oportunidade de observar em primeira mão, fixando-a assim de uma forma tão exacta quanto lhes era possível, a fim de que o seu esquisso fosse também compreensível para aqueles que não a podiam ver. Na leitura destes textos sobressai, especialmente, o fascínio que a paisagem exerce sobre os novos observadores. Luís de Cadamosto escreve que a costa do Cabo Verde seria tão bela que, ele próprio que já tinha viajado por muitos sítios, nunca tinha visto um litoral tão bonito e tão rico.2 A sua entusiástica descrição enche-se de adjectivos e de expressões qualificativas na tentativa de encontrar palavras que correspondam inteiramente à sua observação e apreciação.

1. Que a região ao sul do Equador seria considerada como um "outro mundo" ou um "mundo novo", testemunha por exemplo, Luís de Cadamosto, bem como uma série de fontes coevas. Veja-se W. G. L. Randles, L' image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959, pp. 18-20 e W. G. L. Randles, Le Nouveau Monde, L'Autre Monde et la Pluralité des Mondes, in: Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, Lisboa, 1969, pp. 1-39. 2. Luís de Cadamosto, Navegações de Luís de Cadamosto, ed. G. C. Rossi, Lisboa, 1944, p. 60.

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Este frémito entusiasmo encontra-se em muitos outros textos referentes a esta região, principalmente quando se trata de louvar uma paisagem de tão grande beleza e riqueza. Diogo Gomes, que participou em várias viagens a partir de 1444, refere-se à fartura e fertilidade da Guiné nos seguintes termos: "E aquela terra meridional está cheia de árvores de frutos, mas outra espécie de frutos, e as árvores são tão grossas e de tamanha altura que só vendo se pode crer. E eu digo com verdade que vi grande parte do mundo, mas não vi coisa parecida".3 Ao descreverem a paisagem natural guineense, os autores salientam em primeiro plano dois elementos que se lhes apresentam determinantes desta natureza, ou seja, por um lado, trata-se da abastança e, por outro lado, na qualidade em que esta se exprime, aludindo, em especial, às plantas e animais até então desconhecidos e mais, às muitas espécies diferentes das "nossas".4 A natureza de uma multiplicidade estonteante incita ao registo. Só que para a descrição de muitas destas espécies faltam pura e simplesmente conceitos e denominações. Daí que os autores recorram, muitas vezes, a comparações com a realidade conhecida, a fim de melhor descreverem e ilustrarem a novidade de além-mar.5 Se, de início, constituira uma grande surpresa verificar que esta região era habitada, pois segundo os autores clássicos era impossível a existência humana nestas paragens, os nautas portugueses traziam agora, para Portugal, alguns habitantes como prova do contrário.6 Se nas primeiras viagens ouvimos, entre outros Diogo Gomes, afirmar que é tanta a multidão de gentes que é difícil de acreditar, pouco a pouco os mareantes portugueses estabelecem estreitos contactos com os reinos do Senegal e do Gâmbia. O veneziano ao serviço do Infante D. Henrique, Luís de Cadamosto, descreve a relação efectiva e permanente que se foi criando com os habitantes destes reinos, deixando transparecer, no seu texto, algumas das formas de organização, bem como usos e costumes destes íncolas.7 Quanto ao rei do Senegal refere que "é senhor de gente selvagem e muito pobre; e na verdade não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, senão aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de

3. Diogo Gomes/ Martin Behaim, Do primeiro Descobrimento da Guiné, in: José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 35. 4. Luís de Cadamosto, op. cit, p. 48. 5. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo Situ Orbis, 1505 ed. Augusto Epifânio da Silva Dias, Lisboa, 1975 chama aos crocodilos "grandes laguartos", p. 111. 6. Veja-se Luís de Cadamosto, op. cit., p. 20 e Diogo Gomes, op. cit. p. 32; Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné, ed. A. Dias Dinis, Lisboa, 1949, pp. 67-72. 7. Luís de Cadamosto, op. cit. p. 41 e segs.

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paredes porque não têm cal e têm falta de pedras)" e sobre a organização político-social afirma que: "O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para estarem de bem com ele; os quais presentes são de cavalos que lá são muito apreciados, por deles haver falta, arreios de cavalo e algum gado, isto é, vacas e cabras, e alguns camelos e coisas semelhantes a estas".8 Para além destas considerações, Cadamosto faz referência ao facto de o soberano ter por costume muitas mulheres, assim como os senhores da terra, pelo que estas viveriam, em várias aldeias, tendo ao seu dispor um grande número de escravos. E quando o rei as pretende visitar não leva consigo qualquer mantimento, pois elas tem a obrigação de o acolher, e assim andam de localidade em localidade. Este costume encontra-o também no Budomel, reino onde permanece perto de vinte e oito dias. Eis o que nos diz: "Neste lugar [casa de Budomel] Budomel tinha nove mulheres (e outras muitas mulheres ele tem, que estão repartidas, como disse, por vários lugares). Cada uma destas suas mulheres tem 5 ou 6 raparigas negras que a servem. E é lícito ao senhor dormir tanto com as servas da mulher como com as próprias mulheres; nem as ditas suas mulheres têm [isso] por injúria por ser assim o costume".9 O facto de o rei, um verdadeiro senhor da cerimónia e etiqueta, ser acompanhado por uma escolta numerosa de dedicados acólitos, surpreende o mareante, pois, tal elevado respeito e dedicação seria pouco usual na Europa.10 Os contactos na Guiné intensificam-se, uma vez que as relações comerciais se tornam cada vez mais rentáveis, especialmente desde que os portugueses começaram a edificar feitorias na terra guineense (Arguim

8. Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro Sintra, ed. Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1948, p. 117. 9. Idem, p. 129. 10. É interessante o episódio em que Cadamosto descreve quais os usos e costumes na audiência ao rei de Budomel: "Usam, também, de grandes cerimónias, quando estes tais senhores dão audiência a alguém: porque, quando vinha perante este Budomel alguém para lhe falar, por principal que ele fosse ou por muito seu parente, à entrada da porta do quintal haviam de lançar-se de joelhos com ambas as pernas, e com a cabeça bem para baixo, até ao chão, e com ambas as mãos a lançar areia para trás das costas e para cima da cabeça, estando inteiramente nu. Desta maneira saúda o seu senhor, pois ninguém se atreveria a vir, perante, ele, para lhe falar, que não se pusesse nu, apenas com as ceroulas de couro, que trazem para cobrir as vergonhas. E deste modo estão, bom espaço, atirando com aquela terra para as costas. Depois, aproximam-se mais dele, não se levantando nunca, mas rojando-se com os joelhos por terra, e [assim] as pernas. E quando ele está junto do senhor dois passos, detém-se falando e expondo o seu caso, lançando sempre areia para as costas, de cabeça baixa, como disse, em sinal de muita humildade. " Idem, pp. 130-131.

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1445; Mina 1481).11 Sobre a feitoria de Arguim, construída em 1445, diz-nos a mesma fonte que o Infante D. Henrique (1394-1460) arrendara esta região por dez anos ao comerciante Fernão Gomes, a fim de controlar as iniciativas comerciais dos arábes e ainda para obter uma base de apoio para novas viagens e descobertas ao longo da costa africana. Em troca de panos, prata e cereais, os portugueses adquirem, sobretudo, ouro e escravos, os produtos mais cobiçados. As estreitas relações comerciais criam progressivamente condições para um ambiente propício a novos diálogos e a medidas de actuação efectiva no sistema africano. O confronto com estes povos é compreendido, de um modo geral, como um encontro entre cristãos e possíveis cristãos. Os portugueses esperavam que os gentios que tinham vivido até este momento "em perdição das almas e dos corpos" recebessem, através do zelo cristão, o "lume da Santa Fé".12 Neste sentido, escreve o cronista Zurara: "[...] E assy que onde ante vivyam em perdiçom das almas e dos corpos, viinham de todo receber o contrairo; das almas, em quanto eram pagaãos, sem claridade e sem lume da sancta fe; e dos corpos, por viverem assy como bestas, sem alguna ordenança de criaturas rezoavees, ca elles nom sabyam que era pam nem vinho, nem cobertura de pano, nem alloja-mento de casa, e o que peor era, a grande ignorancia que em elles avya, pella qual nom avyam alguun conhecimento de bem, soomente viver em huna occiosidade bestial".13 A perspectiva proselitista de que os mareantes portugueses teriam levado a luz civilizacional aos africanos é uma vertente constante nos relatos portugueses coevos; é o enorme regozijo no papel de mensageiro de Cristo, oferecendo aos gentios a libertação do sacramento do baptismo. O avanço no Atlântico e a chegada à Guiné traduziam-se ainda em novos dados geográficos, cuja aquisição se reflecte ao longo dos diversos textos. Os autores-viajantes procuram definir e integrar geograficamente esta região na visão tradicional, apoiando-se, maioritariamente, para a

11. Sobre o significado das actividades comerciais na Guiné, veja-se A. Teixeira da Mota, Alguns Aspectos da Colonização e do Comércio Marítimo dos Portugueses na África Ocidental nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1976 e Marília Lopes, A exploração económica da Guiné e de Cabo Verde nos séculos XV e XVI, in: Luís de Albuquerque (Ed.), Portugal no Mundo, Lisboa, 1989, 1 vol., pp. 250-263. Sobre a feitoria da Mina, veja-se por exemplo, o apontamento de Duarte Pacheco Pereira, op. cit. 12. Gomes Eannes de Zurara, Crónica dos Feitos da Guiné, ed. de A. Dias Dinis, Lisboa, 1949, p. 129 e ainda João de Barros, Ásia, ed. A. Baião e Luís F. L. Cintra, 4 vols, Lisboa, 1945. 13. G. E. de Zurara, Crónica dos Feitos da Guiné, op. cit., p. 129.

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elaboração dos seus textos, na fundamentação teórica dos autores clássicos referente a esta zona sul do continente africano. Persiste assim a ideia de que a Etiópia corresponderia a todo o sul de África. No testemunho de Diogo Gomes compilado por Martin Behaim podemos ler que aqui se escreve sobre o descobrimento da "Etiópia do Sul", que Ptolomeu considerava Agizimba, e que depois das descobertas portuguesas se denominaria Guiné.14 Fornecendo os princípios teóricos considerados básicos para a definição dos contornos geográficos, bem como de toda a nomenclatura do continente africano, os autores clássicos e, em particular Ptolomeu, seriam uma referência frequente nos escritos portugueses. A sua influência mostra-se ainda relevante, quando os autores portugueses abordam o sistema fluvial da costa ocidental africana. Visto como um braço do Nilo, o Senegal viria dos Montes Lunas, onde brotam as suas fontes, para a costa ocidental; formulando-se conjuncturas alusivas à possível localização das suas fontes e dos percursos fluviais até à costa ocidental. O facto de a Guiné se apresentar como uma região densamente povoada, indo contra as afirmações das teorias clássicas, constituiria naturalmente um motivo de reflexão e discussão nas obras dos autores portugueses. Na opinião de Duarte Pacheco Pereira a experiência dos navegadores lusitanos teria superado a dos antigos, pois estes tinham escrito que na zona meridional do Equador não existia vida humana e os nautas lusos testemunharam uma experiência contrária.15 As novas concepções sobre o espaço terrestre ultrapassam as fronteiras nacionais e encontram, além-Pirinéus, muitos espíritos curiosos. A Alemanha, ávida de notícias, procura entrar tão rápido quanto possível em contacto com as novas informações.16 O interesse pela novidade dos Descobrimentos desperta a sua atenção no que respeita a textos esclarecedores das novas descobertas. De uma fase inicial em que se divulgavam pequenos textos noticiosos, depressa livreiros, comerciantes e eruditos testemunhavam a necessidade de conhecer escritos mais informativos e capazes de apresentar uma visão de conjunto da empresa marítima. A primeira região sobre a qual se difundiram novas notícias foi precisamente a zona ao sul do Equador denominada Guiné. Uma das

14. Diogo Gomes, op. cit., p. 29. 15. Duarte Pacheco Pereira, op. cit., p. 127. 16. Convém mencionar o contacto entre Valentim Fernandes e Konrad Peutinger e referenciar o denominado Manuscrito de Valentim Fernandes que se veio a encontrar na posse de Peutinger. Veja-se os primeiros capitulos.

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primeiras obras a tratar esta região foi a já referenciada relação de Luís de Cadamosto, relação esta que viria a lume, na Itália, na célebre colecção de viagens: Paesi novamente retrovati no ano de 1507.17 Um ano mais tarde aparecia já em alemão, nomeadamente, em Nuremberga com o título Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden. O autor da tradução, Jobst Ruchamer, esclarece no prólogo que, a pedido de um amigo, se propusera verter este livro para o alemão e que, de imediato, se dera conta da urgência do seu trabalho, pois as informações aí reveladas mereciam uma rápida divulgação. Neste escrito fala-se de "ilhas maravilhosas, belas e divertidas com gente nua e negra, com maneiras e usos estranhos e nunca vistos, também animais e aves estranhos e maravilhosos, árvores deliciosas, especiarias, muitas pedras preciosas, pérolas e ouro...",18 isto é, das terras e gentes recém-descobertas. Estas informações estonteantes, que contradiziam os dados até então conhecidos, vinham, além disso, enriquecer significativamente a obra do Criador. Esta antologia inclui não só o texto de Luís de Cadamosto, mas também os de Américo Vespúcio, Cristovão Colombo e Fernando Cortês, bem como alguns relatos sobre as viagens orientais, sendo assim a primeira colêctanea sobre as viagens dos Descobrimentos. Entretanto, em 1509, vinha a lume um outro texto, desta vez da autoria de Balthasar Springer, um alemão que participou na expedição de D. Francisco d'Almeida à Índia (1505). Agente das casas comerciais Welser, Fugger, Hochstetter e Imhoff, Springer não só cuida dos interesses destas empresas, como ainda se inteira da viagem, deixando um importante relato, onde apontou particularidades da costa africana e decreveu aspectos dos povos visitados. Publicado em latim, viria ainda a prelo em flamengo, alemão19 e inglês.20

17. Fracanzio da Montalboddo, Paesi novamente retrovati, Vicenza, 1507. 18. "[...] wunderbarliche schöne und lustige inseln/ mit nackenden schwartzen lewten seltzamer und unerhörten sitten und weyse/ auch seltzame wunderbarlichen thyeren/ geflügeln köstlichen Bawmen/ Spetzereyen/ mancherley edeln gestayne/ berlen und golde/ " Newe unbekanthe Landte und ein newe weldte in kurz verganger zeythe erfunden, Nuremberga, 1508, prólogo. 19. Publicação esta que teria um título bastante elucidativo: Die Merfart nd erfahrung nüwer Schiffung und Wege zu viln onerkanten Inseln und konigreichen/ von dem großmechtigen Portugalichen Kunig Emanuel Erforscht/ bestritten und Ingenommen/ Auch wunderbarliche Streyt/ ordenung/ leben wesen handlung und wunderwercke/ des volcks und Thyrer darin wonende/ findstu in diessein Buchlyn warhaftliglich beschrybern un abkunterffeyt/ wie ich Balthasar Sprenger sollichs selbs: in kurtzuerschynenzeiten. gesehen un erfahren habe, etc. (Encontras neste livro a navegação e conhecimento de novas rotas e caminhos disputados e conquistados pelo magnífico rei de Portugal Emanuel, a maravilhosa luta, ordem, vida ser,

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Na costa ocidental africana, a região que Balthasar Springer descreve, como mais pormenores é a que denomina de "Byssegicks" (Bezeguiche). No dia sete de Abril lançam ferro perto de um local chamado "Byssegicks"; o rei e a população, como informa, usariam os troncos de árvores como navios para pescarem. Alguns africanos aproximar-se-iam em dois navios e como falavam muito bem o português logo compreenderam perfeitamente o negócio. Springer relata ainda que viu neste reino e ilhas muita gente - de ambos os sexos - maravilhosa e sem vergonha, pelo que andavam uns com os outros como os animais selvagens; alguns tapavam somente as vergonhas, outros nus, todos negros; as casas compara-as às cabanas da gente pobre nas aldeias da sua terra e conta que eles levariam as casas para onde queriam e conforme lhes dava mais gosto; nesta terra encontrar-se-ia ouro, do qual o rei de Portugal mandaria fazer moeda e curiosamente os íncolas destas terras não o trabalhavam nem nele reparavam; eles não precisariam de dinheiro, mas apenas de coisas como espelhos, argolas de latão, cristais azuis, ou muitas outras coisas idênticas, e o que acha mais estranho é que, quando lhe as levam, dão em troca boas mercadorias das que têm e do que ali cresce apesar do cuidado e atenção que lhes tem.21 Cotejando esta realidade com a sua, parte do seu padrão de conhecimento que assim o ajuda a julgar a

trato e obras maravilhosas dos povos sírios que aí moram, verdadeiramente descrita e desenhada como eu Balthasar Sprenger próprio vi e conheci em pouco tempo, etc. 20. A edição latina foi publicada em 1507, não se sabendo o local, a flamenga em Anvers, 1508, a alemã provavelmente em Augsburgo, 1509 e a inglesa sem local no ano 1520/21. 21. "Uff dem Siebenden tag des Aprillen da furen wie den Kaben ferrehynein inn der Moren land vnd wurffen vnser aencker vß/ vff drey meyln bey einem marckt heißt Byssegicks do ist der Moren kunig wohnafftig/ das volck hat hol bawn zu schiffung dar inn sie fischen Ir fyer furen mit tzweien der angetzeigten schiflein zu vns/ vnd retten gut Portugalisch sprach mit vns also das wir ein ander ganz in allen hendeln wol verstunden/ Wir sahen auch in diessetz Kungreich vnd Inseln wunderbar onschamhafft menschen beyderlei geschlecht vndereinander als die wilden Thyr: etlich allein die Scham bedecken die andern nackend/ all schwartz als die wir bei vns Moren nennen vmbaluffen: der Moren land sich auch da anheben: Ire wonungen und hüser geleichen sich den hütten als die armen dorfleut in vnsern landen über die backöffen machen: welch hüser die inwohner noch irem willen tragen wo hyn sie zu wonen lust haben. [...] Und sunderlich erscheint und felt der ende vil golts/ do von der Portugalisch Kunig sein Guldin Muntz schlagen und muntzen leßt Aber die ynlendischen diesser Inseln das golt nit arbeiten noch verwercken kunnen. Diß Volck braucht noch nympt bei ynen gantz kein gelt/ sunder allein seltzam auenturige ding/ als Spigel Messing ring/ lang blawe Cristallein &c. vnn der geleichen manigerlei was yn seltzam ist vnd ynen do hyn bracht wirt/ do geben sie ware umb ware/ vnnd was sie haben vnd bei yn wechst stuck vor stuck: noch yrer liebe vnd zymlicher achtung der selben ding/ Gewechs der bawm seyn übertreffener grösse". Balthasar Springer, Merfart, 1509. Veja-se Adam Jones, The Earliest German Sources for West African History (1504-1509). In: Paideuma 35, 1989, pp. 145-154.

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novidade; daí que a inexistência de determinados elementos seja compreendida como uma falta. Se durante o século XVI o Oceano Atlântico pertencia às caravelas portuguesas, já nos finais do século vão chegar a estas águas navios de outras nacionalidades interessados em comerciar na costa ocidental africana. E, para recolher informações sobre as potencialidades deste comércio, nada mais fácil do que embarcar em navios portugueses. O holandês Jan Huyghen van Linschoten22 foi um dos primeiros a trabalhar com entidades lusitanas. Já na viagem até à Índia, Linschoten aponta algumas informações alusivas às povoações da costa ocidental africana. De harmonia com a divisão feita pelos autores clássicos, isto é, em Barbária, Numídia, Líbia e Etiópia ou Terra dos Mouros, Linschoten afirma, quando se aproximam da Guiné, estarem a chegar à Terra dos Mouros. Numa pequena resenha informa que os portugueses teriam sido os primeiros a chegar a estas terras e que já tinham construído uma fortaleza e feitoria, o conhecido castelo da Mina. Refere que seria muito fácil negociar com o povo da Guiné, em especial, com aqueles que não vivem em terra dominada pelos portugueses, ou que não estão sob o seu jugo; a Guiné seria um reino populoso, mas os seus habitantes nada saberiam sobre Deus, nem de alguma boa polícia, sendo gentios adoravam ídolos; não usavam leis, nem qualquer ordem na sua maneira de viver; ouro, marfim, pimenta, arroz, algodão e alguns frutos seriam as mercadorias que os íncolas traziam do interior e, a seu ver, muitos destes produtos seriam completamente desconhecidos e nunca teriam sido descri-tos. Por fim, conclui que, segundo o que escreveu, se poderia dizer que não haveria qualquer falta ou necessidade nestas paragens, a não ser o facto de os íncolas não conhecerem a mensagem de Cristo, sendo assim um povo miserável que ansiava a felicidade eterna.23

22. Jan Huyghen van Linschoten parte de Lisboa em 1583 em direcção à Índia, onde deveria entrar ao serviço do bispo de Goa. Fica nesta cidade até 1588, onde reune um grande número de informações sobre a rede comercial dos portugueses. Depois do seu regresso à Holanda escreveria o Itinerario, que se iria tornar uma enciclopédia do Oriente, encontrando-se em todas as viagens da VOC para a Índia Oriental um exemplar a bordo dos seus navios. Sobre a política comercial e expansionista dos holandeses, veja-se E. Schmitt, T. Schleich, T. Beck (ed.), Kaufleute als Kolonialherren: Die Handelswelt der Niderländer vom Kap der Guten Hoffnung bis Nagasaki 1600-1800, Bamberg, 1989. 23. "Es ist mit dem Landvolck in Guinea gar wohl zu handieren/ insonderheit mit den jenigen so nicht vnder der Portugaleser gebiet vnd zwang sind/so die leut hinweg fuhren/ vnnd darumb gehasset werden, daß land ist Volckreich/ sie wissen aber alle sampt nichts von Gott/ noch von einiger guten Disciplin/ sind Heiden/ vnd ehren die Abgötter/ haben wieder Gesaß

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Testemunhando a riqueza e as potencialidades comerciais desta região, Linschoten constata a vida idolátra dos seus habitantes, facto que virá a confirmar na próxima paragem da sua viagem, nomeadamente, no reino da Gâmbia, onde os habitantes também adoram o sol e a lua e vivem como animais, dormindo no chão e alimentando-se do que a natureza lhes dá. Recebidos com grande entusiamo e cordialidade, Linschoten sente-se atraído e, ao mesmo, receoso perante esta recepção tão afável e estranha. Segundo o costume local, os íncolas acenam e dois deles batem as mãos em sinal de paz e amizade.24 Seguindo este ritual, iniciar-se-ia um contacto amistoso entre os habitantes e os mareantes; segundo conta, eles seriam os primeiros brancos com quem estes povos teriam comerciado. Esta foi a última estação no reino da Guiné, antes de chegar ao cabo da Boa Esperança. Mais uma vez é com um visível fascínio que descreve a fertilidade destas regiões repleta de grande variedade de árvores de frutos desconhecidos e rica em produtos negociáveis, características de uma paisagem aprazível, onde os habitantes permitem estabelecer contactos pacíficos. O holandês Pieter de Marees relata, igualmente sobre a sua viagem pela costa ocidental africana, descrevendo a terra e os seus habitantes segundo informações que ele próprio recolheu quer junto dos povos africanos quer junto dos europeus que aí habitariam. A edição alemã datada de 160225 informa sobre os inícios da viagem até ao Cabo Verde, onde o autor encontra gente de grandes qualidades. Com efeito, Marees considera este povo muito inteligente,26 visto que muito percebem de agricultura, nomeadamente do cultivo de cereais e de arroz, e das grandes riquezas que

noch Ordenung zu leben/ Golt/ Helffenbein/ Geltsand/ Aegyptischer Pfeffer/ Reiß/ Gersten/ Baumwol/ vnd mancherley Frucht/ deren Sie vnseren vber der hundert forten/ alle zuuor vnbekand vnd vnbeschrieben/ von dannen auß dem Landt mit bracht haben [...] In summa da ist kein mangel einßiger Notdurfft/ als nur allein daß sie die Erkantnuß von Christo vnd seinem Wort nicht haben/ dadurch daß arme Volcklein die ewige Seligkeit erlangen mögte." Theodor de Bry, Ander Theil der Orientalischen Indien, Frankfurt, 1598, p. 9. 24. "[...] kloppen alle in de hände / wie da im land der gebrauch ist/ den vnseren aber war es etwas frembts vnd selßames [...] Sie wincketen mit beyden händen/ vnd die zwen Männer plaßten mit ihren händen zusammen/ dadurch sie ihren frieden vnd freundschaft/ nach ländlichen gebrauche wolten anzeygen/ vnd den vnseren verkündigen" Idem, p. 12. 25. Marees viria a publicar esta sua descrição do reino da Guiné em Amsterdão no ano de 1602. Gothhard Arthus verterá alguns capítulos para o alemão que surgem ao público, um ano mais tarde, na obra de Theodor de Bry. 26. Gotthardt Arthus von Dantzig, Des orientalischen Indien, 6 parte, Wahrhaftige Historische Beschreibung deß gewaltigen Goltreichen Königreichen Guinea, Frankfurt/M. 1603, p. 5.

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possuiem em gado. Além disso, já sabiam trabalhar o ferro, com o qual fariam instrumentos para a pesca, bem como armas. Não obstante considere que tenham pouco conhecimento de Deus, Marees conclui que este povo já estaria apto a tirar partido de uma terra tão fértil. Daqui prossegue até à terra do ouro, até à Mina. Ao passar o reino de Mali assinala tratar-se de uma terra também muito rica em trigo, arroz, algodão e carne. No que tange aos seus habitantes, estes seriam gente má e cruel, apesar de saberem falar português e francês e de também serem grandes conhecedores da lavoura. Após algumas considerações sobre as regiões e as origens do nome do continente africano, destacando que, no norte de África, viveriam mouros, no sul, perto do Cabo da Boa Esperança, povos muito selvagens, a oeste os cristãos e a este os povos de influência judaica, debruçar-se-á em vários capítulos mais pormenorizadamente sobre os usos e costumes dos povos da Guiné. Em primeiro lugar conta como estes festejam o casamento, aludindo aos usuais ajustamentos acertados entre os pais dos noivos. Nesta região seria, todavia, costume os homens terem tantas mulheres quantas pudessem sustentar, embora, como anota, fizessem uma distinsão entre a primeira mulher e as outras mulheres. No que tange à vida familiar do casal repara, de modo intrigado, que nem comem nem dormem juntos. O problema da educação das crianças também o interessa; menciona, por exemplo, que desde pequenos trazem consigo muitos feitiços,27 artefactos estes que, como protecção, os acompanham em todos os momentos do dia. Acrescenta que rapazes e raparigas crescem juntos como selvagens, sem qualquer orientação dos pais. A partir dos oito, dez anos começam a trabalhar e, enquanto os rapazes, por volta dos dezoito anos, começam a negociar nas "canoe", as raparigas fazem trabalhos caseiros. Os homens desta região são corpulentos, fortes e cheiram a oléo de palma. No que respeita às mulheres, Marees afirma que, desde que os europeus começaram a frequentar estas costas, elas criaram uma certa vergonha e aprenderam a arranjar-se. Além disso, de uma maneira geral, tanto as mulheres como os homens, teriam muito cuidados com o aspecto, pelo que usariam oléo de palma no arranjo dos cabelos. A terminar estas notas de carácter etnográfico, Marees dedica-se, nos últimos capitulos da edição alemã, às trocas comerciais. Junto de uma listagem dos produtos trazidos pelos holandeses, o autor explica

27. A palavra portuguesa feitiço será adoptada e referenciada na maioria das fontes alemãs. No capítulo 3.5.1. deste trabalho serão analisados alguns aspectos relacionados com os problemas linguísticos na descrição das realidades estranhas e diferentes.

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pormenorizada e concisamente como se efectuam os tratos nestas terras de África. Já nos primeiros relatos ficara um alerta. O facto de o povo guineense acatar a idolatria pagã interpretava-se como um desafio à cristandade ocidental predestinada para chamar estes filhos perdidos à fé cristã. No ano de 1609 Aegidius Albertinus publicava a sua Historische Relation/ (...) kurtze Beschreibung deß Landts Guinea vnd Serra Lioa in Africa ligendt precisamente com a intenção de actualizar as informações sobre estas regiões africanas. Dadas algumas dificuldades na localização geográfica destas terras em África, o autor decide reunir algumas notícias capazes de fornecer uma imagem mais correcta. Motivado pela quantidade de informações chegadas diariamente sobre a empresa descobridora, Albertinus intenta traçar um debuxo dos contactos estabelecidos, contactos estes que não seriam só de cariz comercial, mas também de índole cultural e religiosa. Aegidius Albertinus preocupa-se, especialmente, com a acção missionária dos cristãos e relata sobre alguns êxitos alcançados entre estes povos africanos. Uma vez que eles teriam costumes antigos muito enraízados e seriam muito dados à superstição, o letrado germânico considera que muito haveria ainda para fazer no que respeita à evangelização das populações locais. E, o que acha ainda de maior acuitamento: não os deixar sem orientação. Para uma verdadeira cristianização, não chega, na sua opinião, baptizá-los, visto que a sua conversão não deverá ser apenas "um sinal exterior do cristianismo".28 Neste contexto dever-se-ia ter em atenção que, desde o rio Senegal até à província da Serra Leoa, habitariam diversas nações com diferentes usos e várias práticas religiosas. Os primeiros, que se encontrariam nestas regiões, seriam os denominados Jalofos, cujo reino de grandes dimensões seria bem abastecido de toda a espécie e qualidade de frutos; os íncolas, bem constituídos e proporcionados, seriam, na generalidade, bons guerreiros.29 Já no reino da Gâmbia viveriam os Mandigas, selvagens, infíeis e muito dados à idolatria e à superstição, 30 no rio Casamanga os

28. "[...] ein eusserliches Zeichen deß Christenthumbs". Aegidius Albertinus, Historische Relation..., Munique, 1609, p. 326. Algumas passagens recordam o texto de Fernão Guerreiro, Relaçam annual das cousas que fizeram os Padres da Companhia de Iesus..., 5 vols, Évora, 1603, Lisboa 1605 e 1607; obra que viria a ser publicada em Lisboa, 1611, e em grande parte vertida para o alemão. 29. "[...] mit menschlicher Vnderhaltung vnd allerhandt früchten wol versehen/ die Inwohner sein proportioniert / wol gestattet vnnd gemeingklich gute Kriegsßleute..." Idem, p. 330. 30. "[...] wild/ ungetrew/ der Abgötterey vnd Abergalube fast ergeben seynd". Idem, p. 333.

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"Ariotos" e os "Falupos", no rio São Domingos os "Baramas" e perto do rio Grande, os "Beasares". Por fim, os "Copes" e os "Cuamas" da Serra Leoa que "em toda a Guiné é a terra mais fértil e mais divertida, e onde se encontra toda a espécie de árvores. Item vinha e uvas selvagens com grandes e lindos bagos".31 Na Serra Leoa, missionaria o padre Baltasar Barreira, a quem caberia a honrosa missão de converter, vitoriosamente, a família real. No escrito de Albertinus iremos assim encontrar a reprodução da carta que o rei da Serra Leoa dirige ao então monarca português, D. Filipe, exprimindo-lhe a sua grande alegria por se ter tornado cristão e o seu profundo e penhorado agradecimento pelo envio da missão do padre Barreira. Albertinus publica ainda um outro texto, desta vez, assinado por Bartholomei Andres, onde se defende entusiasticamente o povoamento desta região. Na verdade, sendo a Serra Leoa tão fértil em ouro, prata, am-bar, marfim e peles, sugeria-se a fundação de uma colónia de europeus nesta terra de tanta abastança, acentuando-se vigorosamente o grande interesse e utilidade desta iniciativa. Assim, chega-se a pedir ao rei Filipe que apoie e dê um aval para a construção de um forte.32 Neste caso, Albertinus aflora uma temática que, nos meados do século XVI, iria gerar uma grande discussão, em Portugal. Trata-se de um projecto levado a cabo por alguns dos maiores conhecedores da terra que, apelando para uma série de iniciativas concretas contra a invasão estrangeira, entendiam desenvolver e perservar esta região. Ao mesmo tempo fazem uma crítica aos lançados ou tangomãos, portugueses que, trazendo do interior mercadorias de grande valor para os estrangeiros, criavam situações, conflituosas e mesmo perigosas, para os interesses dos portugueses.33 Entre os estrangeiros, eram os holandeses que ofereciam mais perigo para a presença portuguesa, aparecendo cada vez mais assiduamente por estas paragens. Na verdade, a costa ocidental africana tornar-se-ia, a partir dos finais do século XVI, um ponto de passagem e também de grande interesse comercial por parte, em especial, dos mercadores holandeses.

31. "Im ganßen Guinea ist diß das aller fruchtbarest vnd lustigiste Landt/ hal allerley art von Dannen vnd Feuchtenbäumen. Item reben vnd wilde Trauben/ mit schönen grossen Beeren...". Idem, p. 341. 32. Sobre estas iniciativas, veja-se A. Teixeira da Mota, op. cit. 33. Esta posição defensiva quanto ao povoamento da Serra Leoa e a simultânea crítica aos lançados é ainda tema nas obras de André Álvares de Almada, Tratado breve dos Rios de Guiné (1594), ed. Luís Silveira, Lisboa, 1946 e Francisco de Lemos Coelho, Duas Descrições seiscentistas da Guiné, ed. Damião Peres, Lisboa, 1953.

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As publicações posteriores são efectivamente relatos de nautas, mormente alemães que, precisamente, ao serviço da Companhia Holandesa das Índias (VOC) navegam e comerciam nas águas e costas guineenses. É o caso de Andreas Josua Ultzheimer,34 Samuel Braun35 e Michael Hemmersam,36 que viriam a noticiar sobre a experiência a bordo dos navios da VOC. O médico Andreas Ultzheimer zarpa, em 1603, para a costa ocidental africana. Após alguns contactos esporádicos, para adquirir alguns produtos como pimenta e marfim, será na baía de Gabão, já na viagem de regresso, que Ultzheimer e os seus companheiros se vão demorar mais tempo para negociar com os habitantes, que, de tal modo, se mostram receptivos que Andreas Ultzheimer decide ir a terra. Embora seja bem recebido pelo chefe local, o mareante vai ter de ficar algum tempo em terra, no meio deles, pois os íncolas estavam convencidos que os holandeses os tinham enganado nas trocas. Ultzheimer metido numa interessante e atribulada experiência terá a possibilidade de apreciar alguns aspectos do dia-a-dia deste povo, aspectos estes que iria apontar, pois "eu trago sempre comigo papel e lápis, para que assim que vejo algo de estranho ou extraordinário possa rapidamente anotar ou desenhar".37 É certamente durante esta sua estada em terra que Andreas Ultzheimer recolhe a grande parte das informações da sua relação, que assim irá dividir em duas partes: na primeira descreve pura e simplesmente o percurso da viagem, na segunda apresenta o reino da Guiné nas suas formas de organização e nos seus costumes. Tal como o autor anuncia, são os aspectos extraordinários, diferentes, ou seja, aqueles que sobressaiem como novidade que ele quer descrever. Relata, assim, que os governadores das aldeias podem ter as mulheres que quiserem e que, quando já não as querem, as mandam embora; que estes povos vendem os seus próprios filhos e que quando um rei morre, os escravos, cortados aos pedaços,

34. Andreas Josua Ultzheimer, Wahrhaffte Beschreibung ettlicher Reisen in Europa, Africa, Asien und America 1596-1610, Tübingen, 1616, ed. fac-simile Heidenheim, 1971. 35. Samuel Braun (Brun), Schiffarten: Welche er in etliche newe Länder und Insulen/ zu fünff underschiedlichen malen/ mit Gottes hülff/ gethan, Basileia, 1624. ed. Graz, 1969. 36. Michael Hemmersam, West-Indianische Reise von Amsterdam, nach St. Jorius de Mina, so ein Castell in Africa, Nuremberga, 1663. Editado por S. P. L'Honoré Naber Reisebeschreibungen von deutschen Beamten und Kriegsleuten im Dienst der Niderländischen West-Und Ost-Indischen Kompagnien 1602-1797, 1 vol., Haag, 1930. 37. "[...] ich habe allzeit Papier und Bleistift bei mir gehabt, damit ich, wenn ich etwas seltsames oder Sonderbares sehe, es sogleich aufschreiben oder zeichnen konnte". Andreas Josua Ultzheimer, op. cit., p. 77.

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seriam lançados pelos campos, pois "acreditam que as suas gentes depois de mortos iriam para a terra dos brancos e também aí o rei teria criados."38 As suas observações relativamente ao comportamento dos africanos levam-no a afirmar que se trata de um povo bárbaro, como podemos testemunhar na descrição que faz dos povos da costa do Ouro: "Assim como este povo é barbaro nos seus modos, também é bestial na maneira de comer. Eles comem toda a carne seja vaca, ovelha, cabra ou caça brava juntamente com as tripas e as imundíces".39 Alguns anos mais tarde, em 1624, é a vez de Samuel Braun (Brun) trazer a lume a sua Schiffarten. Oriundo da ciadade de Basileia, Samuel Braun parte da sua terra natal em direcção a Amsterdão, onde irá ter a possibili-dade de zarpar para uma longa viagem por mar com o intuito de conhecer terras longínquas e desconhecidas. Samuel Braun embarca como médico nos navios holandeses e a sua primeira viagem (1614) levá-lo-ia à Guiné, onde negoceia ouro, marfim e algodão. Na sua opinião trata-se de uma terra fértil, embora pouco aproveitada. Tal como nas primeiras relações, também aqui se expressa a surpresa perante a variedade de frutos, muitos deles totalmente desconhecidos em terras europeias. Samuel Braun voltaria a fazer duas outras viagens à Guiné, embora uma apenas de passagem em direcção ao Congo. Mas na terceira viagem que realizou, em 1617, ficaria mais tempo na terra guineense, tendo assim oportunidade de relatar sobre o castelo da Mina e o seu papel nas trocas comerciais da região, bem como de visitar Nassau, o primeiro forte dos holandeses na costa africana. A vida do povo guineense despertar-lhe-ia também grande atenção pelo que descreve os casamentos, a educação dos filhos ou ainda o trabalho no campo. Vejamos como descreve um casamento entre "selvagens". Braun conta que os africanos não só tem muitas mulheres, como também casam com meninas de apenas seis anos de idade; estas ficam, no entanto, com as mães até que atinjam a idade de se concretizar o casamento. Quando, por fim, querem festejar a boda, a noiva vai com as outras moças para a praça ou mercado e, aí aguardam a chegada do noivo e dos pais. Quando estes chegam, desfilam segundo o uso: o noivo leva um grande colar de ouro ao pescoço e tem um vestido de pano de linho branco que recebeu dos

38. "[...] sie glauben ihre Leute kämen nach dem Tode in das Land der Weißen und dort müßte der König auch Bediente haben". Idem, p. 81. 39. "So wie dieses Volk sonst in seinem Tun barbarisch ist, so unflätig und viehisch sind sie auch im Essen. Sie essen alles Fleisch, ob von Kühen, Schafen, Ziegen oder Wild samt den Därmen und dem Kot." Ulsheimer, op. cit, p. 84.

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[nossos] europeus e que, como nos diz, considera uma preciosa roupagem. Na cabeça usa ornamentos feitos de ouro. A noiva que nada tem no corpo, apenas um pano à volta da anca, tem alguns pedaços de ouro no cabelo. Quando se encontra com o noivo, ele tira um colar que trás e coloca-lho no pescoço; a noiva, por sua vez, tira-lhe o vestido branco e tapa-se com ele. A seguir pega no colar e dá-o ao pai que o levará para casa. Depois deste ritual, as moças correm com a noiva até à água e lavam-na. Se o noivo possuie alguma riqueza oferece um precioso banquete e uma festa, a que chamam "Aura Jaba" e, em português, chamam-lhe "Die de Vitalgos", ou seja, o dia dos fidalgos nobres. Para isso compram uma vaca ou um boi e três ou quatro cabritos ou carneiros, muito vinho que chega a custar doze barras de ouro. Dos animais comem tudo menos a pele e as pernas; da pele fazem a cama e o escudo. Quanto às tripas também as comem pois as consideram como a melhor parte de toda a vaca. Eles gostam ainda da carne de cão, já morto, mais do que de ovelha, que trocam alegremente por cães mortos, um costume bem estranho. No fim da festa vão ao fei-ticeiro perguntar-lhe se correu tudo bem."40 Ao longo dos três anos que fica no forte Nassau, Samuel Braun recolherá atenta e pormenorizadamente muitas informações sobre os hábitos dos habitantes, como, por exemplo, o modo de construirem as suas casas, ou de fazerem pão.

40. "Sie nemmen nicht nur viel weber/ sondern auch junge Meidlin von 6. jahren zur Ehe. Dieselben aber behalten ihre Müteren bey sich/ biß sie suff ihre jahr kommen. Wann dann einer will Hochzeit halten / so nimmt die Braut alle Meidlin mit ihro auff den platz oder marckt/ allda ihr Mann auff sie vnd ihre Elteren zusammen wartet. Vnd wann dann die Elteren zusammen kommen seind/ so zieren sie sich gar artlich. [...] Die Braut hat gantz nichts an den Leib/ dann nur ein ein band vmb die wäiche/ hat etliche stücklin Gold im haar hangen. So bald sie aber zum Bräutigam kommt/ so zeucht er den ring von seinem halß ab/ vnd legt denselben an der Braut halß: das weisse gewandt des Manns nimmt sie selber/ vnd bedecket sich darmit. Darnach nimmt sie den ring von ihrem halß/ vnd gibt denselben ihrem Vatter/ welcher ihne auch behaltet/ vnd heim tregt. Hierauff lauffen die Meidlin mit der Braut ins wasser/ wäschen sie gar wol auff der schawarzen haut. Wann dann der Bräutigam etwas vermögen ist/ so haltet er ein köstliches Pancket vnd Fest/ welches sie Aura Jaba/ vnd auff portugalisch Die de Vitalgos, das ist/ einen Adels-tag nenen. Da kauffen sie etwan ein Küh oder Ochsen mit 3. oder 4. Capriten oder Böcken: viel Infan oder Wein/ welches etwã 12. bände Gold/ bey vnd anderhalb pfund Gelts kostet. Sie essen alles biß an die haut vnd bein. Auß der haut machen sie ihr beth/ vnd schildt: Die därm essen sie auch/ vnd haltens für das allerbeste am gantzen Rinde/rc. Auff Hundsfleisch/ ob schon es gestorben/ halten sie mehr dann auff den Shaaffen. Vertauschen sie deßwegen gern vmb die todten Hünd/ welche ein frömbde tracht bey ihnen seind. Wann sie nun ihr hochzeitliches Fest verrichtet/ gehen sie zum Fytysi (feitticeros)/ vnd fragen ihn/ ob alles recht beschehen seye?". Samuel Braun, op. cit., pp. 73-74. Esta obra viria a ser editada, em 1625, por Bry e por Hulsius com ilustrações.

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Michael Hemmersam que viajará, entre 1639 e 1645, até à Guiné, deixa igualmente um relato escrito desta sua viagem. O nuremburguês, artífice em ouro e prata, resolve embarcar, em Amsterdão, num grande navio, a fim de, como nos informa, "conhecer e ver algo de notável".41 A caminho do Oriente, a embarcação aproxima-se da costa já perto do Cabo Verde, dada a falta de água a bordo. Perto da Serra Leoa vivia um enviado da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais que, como agente comercial, estava em permanente contacto com os africanos. Hemersam, o capitão e mais onze homens vão a terra procurá-lo e encontram-no a comprar dentes de elefante ao rei africano; cheios os barris, prosseguem a viagem. Alguns dias mais tarde, vêm alguns negros africanos que "quando se aproximam do navio começam a gritar Qua qua, o que, entre eles, quer dizer bem vin-dos. Eles não tinham, contudo, confiança para se chegarem, pelo que chapinhavam com a mão na água do mar e deixavam que as gotas de água lhes caissem nos olhos. Como alguns pilotos já conheciam este costume, pois já o tinham observado mais vezes, faziam o mesmo, pois era sabido ser um sinal de amizade entre estes povos, que assim se aproximavam e nos traziam ao navio muitos dentes de elefante, toda a espécie de frutos, também vinho de palma para negociar; traziam ainda muitos dos panos de algodão riscado em azul e branco, a que chamam Catun, e que do tamanho de um lenço são negociados, na Guiné, em grandes quantidades".42 A descrição de episódios como este que ocorreu perto da Serra Leoa entre os habitantes nas suas canoas e os navios da VOC são o principal assunto do texto de Hemmersam. O viajante vai ficar no Castelo da Mina - já em posse dos holandeses, desde há dois anos, altura em que o tomaram aos portugueses -, onde vai trabalhar durante cinco anos como soldado e ourives. Jacob Ruychaver, que chega no mesmo navio de Hemmersam, vai ser o comandante do forte durante a sua estada ali.

41. "[...] etwas Ehrliches zu sehen und zu erfahren". Michael Hemmersam, op. cit., p. 17. 42. "[...] und als sie an unser Schiff nahe kamen, schrien sie zugleich: Qua qua, welches so viel, als Wilkomm bey ihnen heißt. Doch trauten sie sich nicht, auf uns zu kommen, sondern schöpften Wasser mit der Hand auß dem Meer, und liessens in die Augen tropfen. Da dann etliche von den Schiffleuten, so ihrer Gebräuch gewohnt, und schon mehr gesehen hatten, dergleichen thaten, welches sie für ein Zeichen der freundschafft halten, bei uns zu kommen, wie sie dann thaten, und brachten viel Elephanten Zähn, uns allerhand Frucht, auch palmwein, auf unser Schiff, verhandleten, auch viel von den weiß- und blaugestreimten Baumwollen Tuch, so sie Catun nennen in der grösse eines Haartuchs, so zu Guinea mit menge wider verhandelt wird. Idem, p. 26.

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Também ele vai recolher, como os autores anteriores,43 algumas informações sobre os usos e costumes do povo africano, dando mais uma vez atenção a temas como o casamento e a família. Vejamos o que nos diz acerca do nascimento. Quando se aproxima o parto, os homens mandam as mulheres ao médico ou quiromante, que lhe dá uma bebida de ervas, na qual elas acreditam dado que tem feitiço; e aguardando que esta os ajude no nascimento da criança fazem o trabalho, sem qualquer receio. Chegada a hora vão buscar um balde com água que deitam por cima do corpo da mulher grávida para que a criança apanhe um susto; assim que ela nasça vão lavá-la; no corpo da parturiente deitam uma colher de óleo onde misturaram malagueta ou grão e prosseguem o trabalho como até aí".44 Michael Hemmersam mostra-se ainda impressionado pela forma como trazem as crianças às costas e conta que se elas querem beber apenas poisam a cabeça no ombro da mãe, que logo lhe dá o peito; alude ainda ao facto de, desde há uns tempos, e devido a influência portuguesa, os africanos darem nomes cristãos aos filhos. Chama também a atenção para o facto de terem mais do que uma mulher, embora não vivam todos juntos. Tal como os seus antecessores, também Hemmersam se interessa por as-pectos da vida quotidiana, como fazem o pão, quais os produtos que cultivam45 ou ainda sobre os costumes usados, entre estas populações africanas, no que respeita à forma de eleição de um rei, de aplicar a justiça ou de acatar o credo. Em 1673, vinha a público o texto do pastor Wilhelm Johann Müller: Die Africanische auf der Guineisischen Gold-Cust gelegene Landschafft

43. Em parte Hemmersam teria transmitido alguns dados das obras anteriores, em especial, de P. De Marees; veja-se Adam Jones, German Sources for West African History 1599-1669, Wiesbaden, 1983, pp. 97-98. 44. "Wann sie merckt, daß sie schwanger sey, und die Zeit zu gebähren ankombt, so schickt Sie nach ihrem Doctor oder Waarsager, der ihr ein Tranck von Kräutern zu trincken gibt, da sie dan glauben, weil es von ihrem Fetisso kombt; es werde ihnen zum Kindhaben gewißlich dienlich seyn, und lauffen im wärender Arbeit, Mann und Weib, Alt und Jung, Knäblein und Mägdlein, daselbst, ohne cheu oder Zucht, auß und ein. Wann es dann hart und langsam daher gehet, holen sie einen Eymer Wasser, giessen solchen unversehen der gebährenden Frauen über den Leib, das Kind dadurch abzuschrecken, und so es zur Welt geboren, gehen Die gleich hin, sich zu waschen, nehmen dann ein Löffel mit Oel und Manigette oder Grain darunter, giessens der Kinderbetterin in Leib, und verrichten des andern Tags ihre Arbeit, wie vorhin." Idem, p. 37-38. 45. Para além do milho, cerais, algodão e açúcar, os autores fazem uma curiosa referência, à batata doce, produto que também já Linschoten tinha mencionado. Veja-se Hemmersam, op. cit, p. 44.

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Fetu.46 O teólogo Müller não viaja com a Companhia Holandesa, mas antes com a Dinamarquesa, da qual seria funcionário durante oito anos, nomedamente, no forte de Frederiksborg, no Fetu. A Dinamarca e a Suécia começam, a partir de 1640, a navegar no Atlântico Sul, impondo uma forte concorrência, ao procurarem entrar nestes tratos comerciais; daí que, em 1658, fosse erigido o forte Frederiksborg para demarcar a presença dinamarquesa na costa ocidental africana. A Dänischen Africanischen Compagnie recebera, em 1659, do rei Frederico III da Dinamarca e Noruega, o privilégio para negociar na costa ocidental africana. Wilhelm Johann Müller designado, em 1661, padre da Dänischen Africanischen Compagnie, parte no ano seguinte de Glücktadt, sede da Companhia, para a costa africana, onde irá ficar até 1670. Müller começa o seu apontamento sobre esta região, dando algumas indicações sobre os diferentes castelos e fortes erigidos na costa africana. Após uma pequena caracterização da natureza física, que também ele con-sidera muito fértil, diz-nos que os habitantes seriam "inteligentes", mas que desconheceriam totalmente a palavra de Deus, vivendo em perfeita idolatria. De facto, eles regulamentariam o seu dia-a-dia segundo os feitiços - palavra que, como refere, seria portuguesa e que os autóctones teriam adoptado. W. J. Müller dedica seguidamente mais de cinquenta páginas do seu texto a descrever as múltiplas funções e utilizações dos feitiços. Relata, assim, por exemplo, que em caso de guerra os habitantes de Fetu se aconselham junto do feitiço;47 em caso de um delito, se alguém é culpado de um roubo, que não se pode esclarecer rapidamente, chamam um feiticeiro, o qual, deitando água quente nos olhos do acusado, irá exercer justiça: se o acusado se queixa com dores, ou se os olhos começam a inchar, ele será, sem dúvida, o autor do crime.48 Outro processo utilizado pelo feiticeiro para encontrar o culpado é obrigá-lo a beber um líquido feito de plantas, ao mesmo tempo que vai dizendo: "Se eu tiver praticado o acto que me acusem, que Summàn me mate".49

46. W. J. Müller, Die Africanische auf der Guinesischen Gold-Cust gelegne Landschafft Fetu, Hamburgo, 1673. 47. W. J. Müller, op. cit., p. 59. 48. "[...] sprüßet nach geschehener Beschwerung der beschuldigten Person dreymal warm Wasser in die offene Augen. Klaget als dann die Beschuldige über Schmerßen/ oder beginnen die Augen derselben auffzuschwellen/ so muß sie ohnfehlbarlich der Thäter seyn". Idem, pp. 78-79. 49. "Dafern ich die That/ welcher ich beschuldiget werde/ außgeübet habe/ so tödte mich Summàn". Idem, p. 84.

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Os íncolas do Fetu têm de tal modo um estreito relacionamento com os feitiços que os alimentam diariamente. Como Müller afirma: "É raro que se vá por um caminho, que não se veja uma grande panela com vinho de palma, bem como cereais e toda a espécie de frutos da terra, em grandes cabaças, ou presos a um saco. Também não se vê ninguém beber, antes de encher a boca com o líquido e de o ter deitado fora, três vezes, através dos dentes. Tudo isto são sacrifícios de comida ou bebida oferecidos ao O-Bossum, Summàn ou Feitiço".50 Os habitantes ofereciam-lhes, além disso, muitas vítimas. Müller, em face destes usos e costumes, expõe, o vivo desejo de evangelizar este povo africano. Diz-nos que desejava, que aprendessem com os eleitos de Deus e exemplares doutrinadores cristãos, letrados, corajosos e trabalhadores que arriscam a sua vida em honra de Cristo e cuja intenção nada mais é do que converte-los. Muitos padres ter-se-iam dedicado aplicadamente à oração e à tradução da Bíblia nas línguas indígenas, em especial, do Novo Testamento e que muitos gostariam de converter cem ao cristianismo se estes também pregassem e consolidassem a fé cristã, entre eles.51 W. J. Müller procura também deixar um retrato da vida deste povo, dando informações sobre a sua alimentação, o seu vestuário, a família, o trabalho e as formas governamentais. Assim, embora muitos autores os considerem bárbaros, o certo é que eles não andam completamente nus, como é costume em muitos outros locais, "mas, pelo contrário, eles usam roupas especiais, com as quais tapam a nudez, sobretudo de alguns membros, e com que escondem as vergonhas".52 Tal como os brancos, também estes se distinguem, através do vestuário, do sexo, da sua condição e riqueza. Informa ainda sobre o casamento e a educação das crianças, que são

50. "[...] selten gehet man einen Weg/ an welchem man nicht grosse Täpffe mit Palm=Wein/ auch Getreide und allerhand Früchte des Lands/ entweder in grossen Calabassen stehen/ oder an einem Sack angebunden siehet. So trincket auch niemand unter ihnen/ er habe dann zuvor drey Mund voll des Getranckes durch die Zäne auff Erden gesprüßet. Dieses alles ist Speiß=und Tranck= Opfer/ welches dem O -Bossum, Summàn oder Fitiso gebracht wird". Idem, p. 72. 51. "Zu wünschen wäre es/ ob es zuhoffen sey/ kan ich nicht sagen/ daß von Christlichen/ gelehrten/ tapffern/ eifferigen/ Gottseligen und exemplarischen Lehrern/ die ihr Leben umb der Ehre Christi willen/ wageten/ dazu reichlich zu leben hätten/ und auff nichts anders als ihre Bekehrung intent wären eßtlicen dazu vielen zugleich/ nechst eiferigem Gebet/ und Uberseßung der Bibel/ insonderheit des N. Test.in ihre Sprache/ eßliche 100 möchten zum Christenthum bekehret/ und wieder zu predigern unter ihnen bestätiget werden." Idem, p. 89. 52. "[...] sondern sie haben ihre besondere kleidungen/ mit welchem sie ihre Blösse/ insonderheit die jenigen Gliedmassen/ welche die Scham wil verborgen haben/ bedecken". Idem, p. 150.

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também entregues aos feitiços que assim as devem proteger. No que respeita aos seus ofícios, refere, principalmente a lavoura - Müller chega a compará-los a Adão, o primeiro homem, que também soubera arranjar o seu alimento - e a construção de barcos para a pesca, uma das maiores actividades de economia de subsistência. No final da relação, Müller apresenta um dicionário com mais de 400 palavras, na língua nativa e em alemão, dividido em diferentes campos temáticos: Deus, serviços religiosos pagãos, tempo, família, animais, aves, peixes, designações de trabalhos, comércio, pesos e medidas, números, etc. Esta divisão denota a orientação prática que originou o conhecimento da língua, ficando à disposição de quem queira e precise de entrar em contacto com os povos da Costa do Ouro. O texto de W. J. Müller não é simplesmente um relato pessoal de uma estada no Fetu, mas acima de tudo, é uma monografia sobre uma longínqua e distante região em África. Otto Friedrich von der Gröben viaja até Guiné em serviço do rei de Brandenburgo. Nos finais do século XVII, o monarca Friedrich Wilhelm de Brandenburgo, na ânsia de participar no comércio africano, organiza uma expedição marítima que deverá escolher o local mais estratégico para a futura presença alemã na costa africana. Escolhido como diplomata do príncipe para realizar este projecto, Otto Friedrich von der Gröben, deixa na sua Guinesische Reise=Beschreibung53 o relato da viagem de reconhecimento do local estratégico para a construção de um forte. Nas instruções, dadas ao comandante Voß, determina-se que, mal cheguem à costa da Guiné e, depois de passar o cabo das Três Pontas, logo devem lançar âncora; aqui compete ao senhor von der Gröben, enviado do príncipe, ir a terra e presentear o rei local com prendas príncipescas, a fim de confirmar o contrato feito para a construção de um forte. Dever-se-á assegurar-lhes que voltam, no ano de 1683 e, desde já, embora ainda falte algum tempo, devem visitar o local escolhido, podendo abater algumas ár-vores para dar início aos preparativos.54

53. Otto Friedrich von der Gröben, Guinesische Reise=beschreibung, Marienwerder, 1694. 54. "Wenn sie aud fer Guineisischen Küste sind, sollen sie en passant an die Capo tres Puntas laufen, daselbst ankern und der von der Gröben, den Wir dahin senden, daß er die Ratification des mit denen Mohren gamchten Contracts befestige und Unsere Churfürstliche Geschenke praesentire, an's Land gehen lassen. [...] Diese Mohren sollen sie zugleich versichern, daß man ohnfehlbar Anno 1683 wieder dahin kommmen würde, jedoch die Zeit darzu so weit hinausseßen, damit man gegen deren Ausgang auch gewiß das einkann, sie wohl tractiren und ihnen den authentischen Contract, den sie selbst unterschrieben, vorzeigen, mit dem Begehren, daß sie inzwischen eine große Menge Bäume fällen und an den Ort, welchen die beiden Ingenieurs zu der erbauenden Vestung anweisen werden, bringen

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O Major Otto von der Gröben, responsável pelos contactos com os habitantes da região, deverá também elaborar um diário-jornal da viagem. Daí que o seu registo acompanhe fielmente o percurso ao longo da costa ocidental africana, tecendo algumas ilações sobre os aspectos naturais e humanos. O capítulo mais completo e pormenorizado é o que dedica à descrição da Serra Leoa e aos seus habitantes. Aponta, entre outros, que os íncolas se besuntam, de tal modo, com gordura e óleo que a pele brilharia como um espelho. Quanto ao vestuário pouco pode referir pois estes andam quase nus, só um pano com que tapam "vergonhas"; os que vivem perto da praia usam um chapéu velho ou uma touca de linho colorida. No que respeita às mulheres refere que "o povo feminino é divertido de ver, dado que usam a parte superior do tronco completamente nua, na inferior atam um pano colorido ou branco e andam descalças."55 As cerimónias rituais dos autóctones despertam-lhe grande curiosidade. Gröben conta que quando um deles morre, os amigos do falecido reunem-se para o enterro e que, ao terceiro dia, se gera um impressionável tumulto: "Assim um salta, o outro chora, o terceiro ri, o quarto brinca; e todos gritam numa confusão".56 Por aquilo que se pode aperceber do povo da Serra Leoa, Gröben encontra vários aspectos positivos na maneira de ser e estar destas populações, mostrando-se curioso pelo modo de viver da sociedade africana. A certa altura da sua descrição refere que, de certo, se poderá afirmar que estes homens são felizes, uma vez que a sua natureza se contenta com pouco. E especifica: eles não precisam de se preocupar com sapatos, meias, chapéus nem fato, bebem água, comem um pouco de farinha ou arroz das suas culturas, nínguem lhes rouba os frutos maravilhosos que crescem silvestres nos desertos e, além disso, são pessoas divertidas cantam, saltam, exprimem júbilo e pouco conhecem de preocupações ou da ânsia de riqueza.57 Esta passagem recorda certos tópicos inerentes à imagem do

lassen möchten" citado por C. Grotenwold, Geleitwort der Reprint Leipzig 1907, p. 10. Veja-se ainda Adam Jones, Brandenburg Sources for West African History 1680-1700, Estutgarda, 1985 e Eberhard Schmitt, Die brandenburgischen Überseehandelskompanien im XVII. Jahrhundert, in: Schiff und Zeit, 11, pp. 6-20. 55. "Das Weiber=Volck ist lustig anzusachauen/ indem es mit dem Ober- Leibe ganß nacend gehet/ umb den Unter-Lieb ein bunt oder weiß Tuch tragende/ ganß Barfuß." Otto von der Gröben, op. cit., p. 20. 56. "Dann der Eine springet / der Ander weinet/ der Dritte lachet/ der Vierte spielet; Und schreyen alle durcheinander". Idem, p. 24. 57. "Und ich mag wohl billig diese Leute glückseelig schäßen/ weil dero Natur mit so Wenigen zu frieden ist. Sie sorgen vor keine Schuhe/Strümpffe/ Hut noch Kleider/ trincken

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bom selvagem,58 homem que vive feliz, sem grandes preocupações e conforme a natureza lhe dita. Mais adiante, já na Costa do Ouro, Gröben volta ao tema, levantando a questão se o amor pela pátria pode influenciar o rumo da vida humana. E neste contexto, refere o que teve ocasião de observar entre os africanos selvagens. Assim diz-nos que em vários locais encontrou muitos negros que, ao décimo dia da sua estada entre europeus, em casas de gente distinta com grande liberdade e clemência, voltavam à sua terra natal e ao deserto, preferindo a vida pobre africana, do que a luxúria europeia. E quando lhes teria perguntado com curiosidade, qual a razão deste regresso, um deles teria respondido que um homem que se contenta com pouco é o mais rico e contente, pois enquanto na Europa se vive separado dos amigos, se tem de procurar para comer e beber, eles, pelo contrário, ali vivem na sua terra entre familiares, tapam as vergonhas com trapo e com um trago de água e uma mão cheia de farinha vivem como os mais felizes e ricos homens do mundo. A esta resposta, Gröben acrescenta que teve de reconhecer esta verdade e teve de lhe dar razão, pelo que terminaria dizendo felizes daqueles, cuja natureza se contenta com pouco.59 O claro elogio à lei da natureza, não é contudo, uma declarada aceitação pela forma de viver dos africanos, mas sim com o facto de que também aqui se trata de uma curiosidade - expressão que, aliás, surge várias vezes neste seu texto e que, de certo modo, reflecte o carácter deste seu apontamento. Nas suas apreciações sobre o povo desta

Wasser/ essen ein wenig Milie oder Reiß/ so ihnen ihre Plantagen häuffig dargeben/ niemand wehret ihnen die Köstlichen Früchte/ so ganß wilde in der Wüsten wachsen/ dabey seyn sie lustig/ singen/ springen/ jauchßen/ und jubiliren/ wissen nichts von Sorge oder Begierde des Reichthums". Idem, p. 26. 58. Veja-se Karl-Heinz Kohl, Entzauberter Blick, Das Bild vom Guten Wilden, Frankfurt/M., 1986; em particular a primeira parte, pp. 12-32. 59. "Was die Liebe des Vaterlands wircken kan habe ich füglich an den Wilden Africanern abnehmen können. Dann ich an verischiedene orten viel Mohren gefunden/ so in die 10. Jahren bey den Europaern in der vornehmsten Leute Häuser/ (gleich denen ansehnlichsten Hausgenossen) nicht ohne die gröste Freyheit und Herren=Gnade gelebet/ jedoch sich wieder in ihr Vaterland begeben/ und das wüste/ ja armseelige Africanische Leben der Europaeischen Wollust vorgezogen. Als ich die Ursache von ihnen zu wissen begehrete/ ward geantwortet: Ein Mensch/ der sich mit Wenigen behelffen könne/ sey der Reichste und Vergnügteste; In Europa müssen sie von ihren Freuden entfernet leben/ vor Essen und trincken sorgen/ da sie hergegen in ihrem Lande bey ihren Verwandten seyn/ die Scham mit einem von Biesem geflochtenen Lappen bedecken/ mit einem Trunck Wasser und Hand=voll Milie, wie die vergnüglichsten und reichesten Leute der Welt leben können. Die Warheit zu bekennen/ muß ich ihnen Beyfall geben/ und schließlich sagen; Die jenigen seyn die Glückseeligen/ com quorum natura paucis contenta (deren Natur sich mit wenigem begnüget". Idem, p. 61.

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costa não se poderá falar, com efeito, de uma adesão ou entusiasmo, nem de uma especial simpatia pelos africanos, como nos confirmam muitos trechos do seu relato, em que fala de um povo mau, que não só vendem os prisioneiros, mas também mulheres e crianças, até porque, como Gröben acrescenta, eles as consideram como cães.60 Será oportuno ainda referir que tanto neste passo, como ao longo do texto, aparece pela primeira vez, numa relação de viagem, a oposição clara entre Europa e África. Já não é mais um relato escrito por nós, isto é, portugueses, holandeses, franceses, alemães que entram em contacto com os povos africanos, entendidos como potenciais europeus (cristãos), mas sim um confrontro entre dois continentes e as suas polícias, entendidas como um confronto entre a maneira de ser europeia e a africana. Depois da surpresa estonteante, formulada nos primeiros textos sobre a Guiné, gera-se um certo distanciamento que, quer na forma de relatar e apresentar os diferentes povos, quer na forma como se avalia o Outro,61 já não pretende destacar a novidade, mas antes confirma intimativa e apreciativamente a diferença. Vista como um milagre das navegações, como algo novo e estonteante, a zona geográfica da Guiné iria, pouco a pouco, adquirindo contornos mais claros e precisos. A descoberta desta região constituira, para os mareantes, uma surpresa agradável e fascinante, dado que encontraram uma terra fértil e rica que oferecia gratuitamente muitos dos produtos procurados. Para além disso, os crescentes contactos revelavam múltiplas etnias cul-turais, cuja observação contribuia para a paulatina definição de um estranho, de um outro continente. Enquanto a percepção do Norte de África, em especial, do Egipto seria bem determinada pela perspectiva europeia - o declarado antinomismo entre cristãos e muçulmanos - o encontro com a Guiné, entendido originariamente como uma abertura ao Novo, só pouco a pouco daria expressão a contradições resultantes da existência de uma outra realidade que não se reconheceu, se ignorou, ou, por certo, não se compreendeu.

60. Idem, p. 57. 61. É ainda referenciar uma publicação similar da autoria de G. Bosman, Reyse nach Guinea, Hamburg 1708. Dividida em cinco livros, esta descrição da costa de Guiné aborda a terra, os habitantes, no que se refere aos costumes, à religião, ao governo e à economia, o negócio da Companhia Holandesa, a fauna e, por último, demora-se numa análise de alguns reinos em particular. Nesta obra surge pela primeira vez o uso do léxico raça.