222
A publicação da obra “O capital no século XXI” de Thomas Piketty
(2014),1 embora não tivesse tal pretensão2 como principal, aflorou
as discussões sobre a relação da tributação com a desigualdade.
Isso porque o economista francês, analisando dados de diversos
países, escancarou a concentração de renda mundo afora, ao mostrar
que, por exemplo, nos Estados Unidos da América, 1% da população
possuí mais de 30% das riquezas do país,3 bem como, na Europa, os
10% mais ricos controlam cerca de 60% do capital do
continente.4
Outro ponto importante levantado por Piketty é a relação da
desigualdade com a tributação, inclusive, quanto ao tema, ele
concluiu que o Estado deve onerar mais aqueles que possuem maior
capacidade contributiva,5 sob pena de um colapso geral do próprio
sistema capitalista. Por essa razão, afirma que uma das soluções
para se consertar o capitalismo seria a criação de um imposto
global sobre a renda, pois este teria como função reduzir a
disparidade de bens entre a população, evitando maiores
crises.
Contudo, a discussão sobre a tributação e a desigualdade não é um
mérito ou uma inovação de Piketty, pelo contrário, no cenário
brasileiro, por exemplo, Misabel Derzi6 e Valcir Gassen7 há muito
tempo discorrem sobre os problemas de uma tributação tida como
regressiva. Ou seja, aquela que, em termos relativos, onera de
forma mais gravosa aqueles que possuem menos riquezas. Defendem que
no Brasil a opção do legislador pela tributação mais pesada na base
tributária do consumo,8 em detrimento da renda e do patrimônio,
leva à ampliação da desigualdade histórica do país, o que, em
termos de justiça, revela-se inadmissível.9
1 PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. 1ª Edição. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2014. 2 Piketty não tinha como intenção
inicial escrever sobre desigualdade ou tributação, mas sim
descrever o comportamento
do capital na história, bem como suas perspectivas de futuro, de
modo que, fosse possível demonstrar uma saída para se salvar, ou
melhor, controlar, o capitalismo. Contudo, no caminho para explicar
que o sistema capitalista não estaria perdido, Piketty acaba por
desenvolver uma teoria distributiva do capital por meio da
tributação, mas que, na verdade, tem por objetivo trazer certa
pacificação social, e não “justiça por justiça”. Noutros termos,
buscar a igualdade por questões de justiça é tangencial para o
autor, sendo sua intenção precípua alcançar uma sociedade em que o
capitalismo opere de forma mais estável, menos vulnerável às
possíveis revoltas e revoluções. Nesse sentido ver: PIKETTY,
Thomas. Op cit. p. 352-359 e 466-468.
3 Ibidem, p. 329 4 Ibidem, p. 341 5 “(...) exige o Princípio da
Justiça Fiscal ancorado na regra da igualdade geral (Art.3 I GG)
que os ônus fiscais sejam
distribuídos aos sujeitos passivos em proporção à capacidade
contributiva econômica; (...) O reconhecimento do princípio da
capacidade contributiva como princípio fundamental da justiça
fiscal e consequentemente o mais elevado critério comparativo
(Vergleischsmaβtab) de isonomia de encargos tributários (s. Rz. 76)
vale-se de uma evolução de séculos.” (LANG e TIPKE. Direito
tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto
Alegre: Fabris, 2008. 199-200)
6 DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e
silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da
Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64
7 GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária
brasileira: diálogos sobre estado, constituição e direito
tributário. Brasília: Consulex, 2012
8 Pesquisas recentes, divulgadas pela Receita Federal, vêm
confirmando que, no Brasil, a tributação acaba por onerar por
demais o consumo; em 2015, cerca de 50% dos valores arrecadados
provêm da comercialização de bens e serviços, enquanto os tributos
incidentes sobre a renda representam apenas 18,1%. Sobre o tema
ver: BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Carga
tributaria no Brasil 2015: Análise por Tributos e Bases de
Incidência. Brasília, 2016 p.6. Disponível em:
https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-
estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2015.pdf Acesso em:
27/02/2017.
9 Mais à frente será trabalhado o conceito de justiça utilizado
pelo autor.
223
Nesse contexto, explorando as consequências de uma tributação
regressiva e sob a ótica de justiça, o presente artigo pretende
analisar qual a relação da carga tributária brasileira com o
Programa Bolsa Família, criado pela Lei Nº 10.836/200410 com o
intuito de reduzir a pobreza e dar fim ao seu ciclo
intergeracional, a partir de transferência de renda direta à
parcela menos abastada da população quando cumpridos determinadas
contrapartidas.11 Em suma, deseja-se investigar em que proporção o
Bolsa Família é “autofinanciado” pela população mais pobre do
Brasil, isto é, saber se o programa é ou não mitigado pela
regressividade da matriz12 tributária brasileira.
Assim, para melhor compreensão do tema, serão analisados diversos
textos e dados estatísticos no decorrer do presente trabalho, que
será divido em três partes:
(i) Primeiramente, será apresentado sob qual recorte teórico será
tratado o tema, ou seja, como o autor observa o direito e qual o
conceito de justiça a ser utilizado;
(ii) Em seguida, serão debatidas as características da matriz
tributária brasileira, bem como seus reflexos na desigualdade do
país, a partir de dados empíricos;
(iii) Por fim, irá se analisar a função da tributação e sua relação
com o programa Bolsa Família.
Antes de se entrar na discussão da justiça do programa
bolsa-família frente à desigualdade e à regressividade do sistema
tributário nacional, é importantíssimo compreender sobre qual
recorte o autor irá pautar as discussões.
Dessa forma, serão utilizados como marco teórico os ensinamentos de
John Rawls, autor americano que, dentre outras obras, escreveu o
livro “Uma teoria da justiça”, em que buscou discorrer sobre uma
releitura do contrato social a partir da ideia de que a estrutura
básica de uma sociedade é a justiça.13
Em síntese, o autor defende que, na celebração do contrato social,
o povo14 escolhe, a partir da racionalidade, quais são os critérios
de justiça que serão utilizados para
10 BRASIL, Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa
Bolsa Família. Presidência da República, Brasília, Fevereiro de
2013. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm
Acesso em 29/12/2016.
11 Segundo o Art. 27 do Decreto Nº 5.209/2004, são medidas
necessárias para enquadrar-se como beneficiário do programa: a
realização de exames pré-natal, acompanhamento nutricional,
acompanhamento à saúde e de frequência escolar dos assistidos e de
sua família.(BRASIL, Decreto Nº 5.209de 17 de setembro de 2004.
Regulamenta a Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o
Programa Bolsa Família, e dá outras providências. Presidência da
República, Brasília, 2004. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5209.htm
Acesso em 29/12/2016.)
12 Matriz tributária é um conceito utilizado por Valcir Gassen que
pode ser definido como as escolhas feitas em um determinado momento
histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno
tributário. Abarca não só as opções no momento de arrecadação, mas
também de emprego da receita pública. (GASSEN, Valcir. Matriz
tributária: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e
a tributação no Brasil. Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 935, p
243-266, 2013.)
13 “Meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que
generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida
teoria do contrato social como se lê, digamos, em Lock, Rousseau e
Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como
um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece
uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora
é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade
são o objeto do consenso original.” (RAWLS, John. Uma teoria da
justiça. Tradução de Almiro Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves.
São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 12-13)
14 Rawls utiliza o termo povo para se referir a coletividade
pertencente às sociedades organizadas (Estados), pois para
224
aquele Estado formado, bem como que, acaso estas balizadas não
fossem pautadas pela equidade,15 jamais os cidadãos aceitariam
privar-se de sua liberdade total para sujeitar-se ao poder do
estatal.16
Assim, explica que a escolha correta desses pilares da justiça deve
ser feita enquanto os cidadãos estão cobertos pelo véu da
ignorância, uma espécie de posição original, na qual todos fossem
iguais, onde o dinheiro, o poder, as características físicas, as
capacidades intelectuais e os preconceitos não pudessem exercer
influência alguma. Neste momento, hipotético, é claro, o povo iria
optar pela justiça como equidade, ou seja, apenas quando não
houvesse interesse particular na definição do que seria justo,
poder-se-ia conceber o melhor critério para a justiça na celebração
do contrato social.17
Então, a utilização do véu da ignorância, o que esconderia do
cidadão todas suas características, é um pressuposto da teoria
rawlsiana, pois sem ele jamais haveria uma posição original que
permitisse ao povo decidir sobre a justiça. Por exemplo, observe
que os senhores de escravos, sabendo de sua posição social, jamais
decidiriam que a escravidão era injusta, provavelmente
argumentariam que faz parte das escolhas da vida ou algo nesses
termos, a despeito de a história revelar a inexistência de qualquer
senso de justiça em privar-se alguém de sua liberdade para servir a
outro, seja por sua descendência, seja por dívidas. Contudo, esse
mesmo senhor de escravo se não soubesse qual seu papel na
sociedade, dificilmente julgaria justa a escravidão, uma vez que
ele próprio poderia ser aquele que sofreria a mazela deste
regime.18
Noutros termos, a equidade só seria alcançada a partir do véu da
ignorância, pois do contrário, os desejos, poderes, propensões e
riquezas influenciariam o povo a escolher o critério de justiça que
lhes fosse mais vantajoso, a despeito daquele que, muitas vezes,
por serem menos dotados de poder, não conseguem ter sua voz
ouvida.
Nesse sentido, a justiça, para Rawls, seria escolhida como o
desdobramento de dois princípios básicos:
ele tal distinção é relevantíssima ao tratar-se do tema justiça.
(RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
p. 3-5.)
15 Equidade é um conceito trabalhado por Rawls para exemplificar
que a justiça deve ser imparcial, ou seja, os critérios não podem
ser definidos por pessoas que tenham qualquer viés subjetivo. Sobre
o tema, ver: (SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 86-89)
16 Observe a narração do próprio autor quanto a esse momento de
escolha: “Assim, devemos imaginar que aqueles que se comprometem na
cooperação social escolhem juntos, numa ação conjunta, os
princípios que devem atribuir os direitos e deveres básicos e
determinar a divisão de benefícios sociais. Os homens devem decidir
de antemão como devem regular suas reivindicações mútuas e qual
deve ser a carta constitucional de fundação de sua sociedade. Como
cada pessoa deve decidir com o uso da razão o que constitui o seu
bem, isto é, o sistema de finalidades que, de acordo com sua razão,
ela deve buscar, assim um grupo de pessoas deve decidir de uma vez
por todas tudo aquilo que entre elas se deve considerar justo e
injusto. A escolha que homens racionais fariam nessa situação
hipotética de liberdade equitativa, pressupondo por ora que esse
problema de escolha tem uma solução, determina os princípios da
justiça.” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro
Pisetta, Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes,
2002. p. 13)
17 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
127-128.
18 Vale destacar que este exemplo não é utilizado por Rawls em sua
obra, sendo uma dedução deste autor sobre o pensamento do filósofo
americano.
225
“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as
desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo
que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para
todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e
cargos acessíveis a todos.”19
O primeiro princípio da justiça, para Rawls, estaria presente
quando todo o povo dispusesse de um mínimo existencial, ou seja,
bens primários, compostos de sua liberdade, direitos subjetivos
(autoestima) e riquezas suficientes para subsistência,20 os quais
permitiriam a cada cidadão usufruir de oportunidades, isto é,
decidir se abririam mão ou não de alguns de seus direitos em troca
do enriquecimento.21
Por outro lado, o segundo pilar, chamado de “Princípio da
Diferença” consistiria em que toda a desigualdade deve gerar
benefícios ao povo em geral. Nesse ponto, Rawls afasta-se da
corrente utilitarista, em voga à época,22 pois refuta a máxima de
que uma ação seria moralmente aceitável, e, portanto justa, quando
a maior parte do povo dela se beneficiar.
Isso porque, conforme o Princípio da Diferença, não há como
conceber que uma pequena parcela da população seja privada de seus
direitos fundamentais para que outra maior se engrandeça sem
qualquer modo subjetivo de distribuição desse ônus.23 Rawls destaca
que o correto seria que a desigualdade fosse utilizada como
mecanismo de distribuição, sendo certo que, quando necessário,
aqueles com mais condições devem ser privados de alguns de seus
bens/direitos, para que a parcela mais pobre seja
beneficiada.24
Em síntese, Rawls modifica a teoria utilitarista para inserir uma
ordem nela: a privação não pode ser aleatória, devendo focar
naqueles que possuem mais recursos, pois a desigualdade deve gerar
benefícios à população menos abastada.
Portanto, concluísse que teoria política da justiça, estabelecida
por Rawls nada mais é do que um exercício prático, no qual se deve
retornar à posição original e
19 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
64.
20 Amartya Sem ressalta que, embora Rawls tenha se referido de
forma genérica ao povo, é compatível com sua teoria a ideia de que
seu desejo que esses bens primários fossem medidos subjetivamente.
Por exemplo, uma mulher grávida, durante a gestação, inspira mais
cuidados do que um homem de 19 anos, de forma que a ela devem ser
garantidos o mínimo necessário para sua existência digna. O mesmo
raciocínio é aplicável aos portadores de necessidades especiais ou
físicas, pois com os mesmos bens que um homem saudável eles jamais
conseguiram alcançar as mesmas oportunidades. (SEN, Amartya. Op
cit. p. 96)
21 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p.
66-69.
22 Sobre o tema ver: ESTEVES, Julio. As críticas ao utilitarismo
por John Rawls. In Ethic@, Revista Internacional de Filosofia
Moral, Florianópolis, v.1, nº 1, p. 81-86, junho de 2002.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/
ethic/article/viewFile/14536/13310 <Acesso em:
26/12/2016.>
23 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p.
81-82.
24 RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes,
2001. p. 155-156.
226
racionalmente responder, a partir dos princípios delineados, se
aquela ação seria benéfica para a sociedade como um todo.
Apresentado o recorte teórico da discussão, é necessário
primeiramente entender o Programa Bolsa Família, e em qual contexto
político-social este benefício foi criado, para, somente assim,
verificar sua relação com a tributação.
Primeiramente, o Brasil, em razão de suas características
históricas de escravidão e concentração de terras e capitais,25
pode ser considerado um país em que a desigualdade chega a níveis
alarmantes. Exemplificando isso, o Censo Demográfico de 201026
apresentou que, dos cerca de 160.000.000 (cento e sessenta milhões)
de entrevistados, cerca de 104.000.000 (cento e quatro milhões) ou
não possuem rendimento algum ou recebem menos de 1 salário-mínimo
por mês.
Segundo o mesmo estudo, levando em conta apenas aqueles que
informaram possuírem rendimentos, chega-se ao seguinte
gráfico:
A desigualdade no país é tão evidente que, enquanto 83% da
população com renda vive com até 3 salários-mínimos mensais, apenas
1% recebe salários ou rendimentos superiores a 20
salários-mínimos.
Nesse mesmo sentido, o Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e
da Riqueza da População Brasileira, publicado pelo Ministério da
Fazenda em 2016, aponta que os 0,1% mais ricos da população
brasileira detém cerca de 6% da renda auferida e
25 Sobre o tema, ver: VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a
pobreza (urbana) no Brasil. In: BOSCHI; Renato R.(Org).
Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no
Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo,IUPERJ, 1991.
26 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico
de 2010: Trabalho e rendimento. Brasília, 2016. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/censo2010/rendimentos_preliminares/rendimentos_preliminares_tab_pdf.shtm
Acesso em: 31/12/2016.
227
declarada no Brasil.27 Comparando este dado com os trazidos por
Piketty,28 é possível extrair o seguinte resultado:29
Desse modo, constata-se que a renda no país é extremamente mal
distribuída, pois pensar-se que 0,1% de uma sociedade detêm 6% é,
quando comparado com outros países globo afora, algo surreal. Não
por outra razão, o Índice de Gini, medidor da desigualdade,30 do
Brasil é um dos piores entre os países “chamados de emergentes”,31
bem como sequer pode ser comparado com os índices daquelas nações
tidas como desenvolvidas. Veja gráfico utilizado pelo Ministério da
Fazenda do Brasil:32
27 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Relatório da
distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira,
Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p. 15-16. Disponível em:
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-
conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf
Acesso em: 30/12/2016.
28 PIKETTTY, Thomas. Op cit. p. 310-313. 29 Todas porcentagens
utilizadas são aproximadas a partir do seguinte critério: quando o
algarismo da casa centesimal for
maior ou igual a 5, acrescenta-se 1 unidade ao algarismo da casa
decimal. 30 O índice vai de 0 a 1, sendo que quanto maior o número,
mais desigual, em termos de distribuição de riquezas, é o país. 31
“Esses países experimentam crescimento pujante e estável, impelidos
por abundante poupança local, frequentemente
superior a 30% do Produto Interno Bruto (PIB), que financia elevado
volume de investimentos e que permite mudanças econômicas e
tecnológicas significativas. (...)Os países emergentes têm regimes
políticos diversificados mais ou menos autoritários, mais ou menos
democráticos. Neles, o Estado de bem-estar social é mais ou menos
generoso e realiza políticas sociais diversificadas: as
transferências sociais são mais ou menos importantes e variam
segundo os meios orçamentários que as políticas fiscais contrárias
permitem. As populações desses países variam de 15 milhões a 1,3
bilhão. O verdadeiro papel da variável demográfica: as variáveis
japonesas e chinesas transformam a repartição econômica mundial.
Uma classe média em constante fortalecimento transforma
progressivamente os modelos culturais e de consumo e modifica
gradualmente as regras do jogo político.” (BENACHENHOU, Abdellatif.
Países emergentes, tradução de Sérgio Duarte. Brasília: FUNAG,
2013.p. 14-15)
32 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Relatório da
distribuição pessoal da renda e da riqueza da população brasileira,
Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p. 3. Disponível em:
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-
conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.
pdf Acesso em: 30/12/2016.
228
Fonte: Banco Mundial (World Development Indication) Dados de 2013
ou último disponível. Para Brasil, IBGE/PNAD 2013.
Breve análise dos dados permite constatar que os países
desenvolvidos ostentam índices de Gini menores que 0,41 e os
emergentes estacionam no intervalo de 0,41 a 0,5 (indicador
brasileiro). Ou seja, o Brasil, além de estar longe dos países tido
como “de 1º mundo”, ainda é um dos piores no quesito emergentes, o
que reforça o quão desigual é a sociedade brasileira.33
Portanto, a criação do Bolsa Família se dá em um contexto de má
distribuição de renda, no qual há uma concentração de riqueza na
mão de poucos, enquanto a maior parte da população vive à margem a
pobreza.
Para se compreender o benefício, é necessário primeiro entender que
o Bolsa Família é um programa assistencialista de transferência
direta de renda para famílias de baixa renda que, como
contrapartida, exige a prática de ações que visam encerrar o ciclo
intergeracional da pobreza, como, por exemplo, a comprovação de
frequência escolar das crianças e adolescentes beneficiados.
O programa abarca famílias em situação de extrema pobreza ou
pobreza, as quais são definidas atualmente pelo Decreto nº
8.794/201634 como aquelas em que a renda per capita mensal seja
inferior a R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) e R$ 170,00 (cento e
setenta reais), respectivamente.
Desse modo, retomando ao marco teórico aqui empregado, como seria
possível que uma pessoa tivesse suas necessidades mínimas, ou
melhor, acesso aos bens primários
33 Há que se ressaltar que o índice de Gini do Brasil vem sendo
reduzido sistematicamente, de 2004 até 2013, observou-se uma queda
de 0,54 até 0,5. BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal.
Relatório da Distribuição pessoal da renda e da riqueza da
população brasileira, Dados do IRPF 2014/2015. Brasília, 2016. p.
6. Disponível em: http://www.
fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-
da-renda-2016-05-09.pdf Acesso em: 30/12/2016.
34 BRASIL, Decreto Nº 8.794, de 29 de junho de 2016. Altera o
Decreto No 5.209, de 17 de setembro de 2004, que regulamenta a Lei
Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa
Família. Presidência da República, Brasília, Junho de 2016.
Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8794.
htm#art1 Acesso em 29/12/2016.
229
com uma renda mensal de apenas R$ 85,00 (oitenta e cinco reais)? A
resposta é que não será, esse cidadão viverá à margem de seus
direitos mínimos, pois os valores sequer são suficientes para a
subsistência adequada.35
Assim, é neste cenário que o bolsa-família se insere, buscando dar
a esses cidadãos acesso ao mínimo existencial, sendo que, em muitas
vezes, mesmo com o recebimento do benefício, a família sequer
alcança uma renda mensal maior do que o salário mínimo.36-37
Ademais, é importante notar que o benefício é subdivido em:
(i) 1 parcela fixa de R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) (ii) 1
parcela variável de 39,00 (trinta e nove reais) por crianças e
adolescentes
entre 0 e 15 anos, gestantes ou nutrizes, limitada à R$ 195,00
(cento e noventa e cinco reais)
(iii) 1 parcela variável vinculado ao adolescente entre 16 e 17
anos que esteja matriculado em Instituição de Ensino, no valor
mensal de R$ 46,00 (quarenta e seis reais) por beneficiário, até o
limite de R$ 92,00 (noventa e dois reais) por família.
Destacando-se que a parcela fixa é paga apenas para famílias em
extrema pobreza, constata-se que os beneficiários do programa são
famílias cuja renda per capita mensal gire em torno de 7,6% a 15%
da média nacional, a qual, segundo o Instituo Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE),38 em 2015 alcançou R$ 1.113,00 (mil
cento e treze reais).
Assim, enquanto o 0,1% mais ricos da população vivem com mais de 60
vezes39 da média mensal, os beneficiários do programa bolsa-família
recebem cerca 1/10 desse valor médio. Em números concretos, o 0,1%
mais ricos recebem cerca de 360 vezes mais do que as famílias tidas
como pobres, e 720 vezes mais do que as extremamente pobres.
35 Isso porque, segundo o Ministério da Saúde, a alimentação
adequada é composta de (i) 3 refeições completas + 2 lanches; (ii)
ingerir diariamente 6 cereais, 3 leguminosas e 1 porção de carnes,
aves ovos ou peixes. Contudo, é certo que a família que recebe
menos do que R$ 190,00 (cento e noventa reais) jamais poderá
alcançar este patamar de alimentação. (BRASIL, Ministério da Saúde.
Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a
alimentação saudável. Brasília: 2008. Disponível em
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2008.
pdf. Acesso em 31/12/2016)
36 Ressalte-se que são diversas as criticas ao salário mínimo, uma
vez que esse, na visão de alguns autores, sequer consegue atender
às necessidades básicas da população. Nesse sentido ver:
VASCONCELOS, Inessa. A teoria do mínimo existencial e o direito
tributário brasileiro. In MURTA, Antônio; MACHADO SEGUNDO, Hugo de
Brito e FEITOSA, Raymundo (coordenadores) Direito tributário e
financeiro. XXIV Encontro do CONPEDI, Florianópolis: 2015. p.
127-157. Disponível em:
http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/z6ga0z97 Acesso em
01/01/2017.
37 Imagine uma situação hipotética, na qual uma família com 6
integrantes, mãe solteira e 5 filhos entre 0 e 15 anos. Caso a mãe
seja uma diarista cuja renda mensal seja de R$ 500,00 (quinhentos
reais), a família faria jus ao recebimento do benefício por estar
qualificada como pobre. Mas mesmo que os 5 filhos estejam
matriculados em instituição de ensino, o valor recebido será de 5
vezes R$ 39,00(trinta e nove reais),o que dá R$ 195,00. Logo, a
renda mensal da família será de R$ 695,00 (seiscentos e noventa e
cinco reais), valor inferior ao salário mínimo vigente em 2016 (R$
937,00). (BRASIL, Decreto Nº 8.948, de 29 de dezembro de 2016.
Regulamenta a Lei Nº 13.152, de 29 de julho de 2015, que dispõe
sobre o valor do salário mínimo e a sua política de valorização de
longo prazo. Presidência da República, Brasília, Dezembro de 2016.
Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8794.htm#art1>
Acesso em 01/01/2017).
38 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Renda domiciliar
per capita 2015. Brasília, 2016. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/
pnad_continua/default_renda_percapita.shtm Acesso em:
31/12/2016.
39 Isso sem contar os valores sonegados pela população mais
abastada, pois os dados utilizados pelo Relatório da Distribuição
Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira provêm da
renda efetivamente declarada pelos cidadãos brasileiros em seu IRPF
dos anos-calendários de 2014 e 2015.
230
Portanto, pelos números apresentados, resta evidenciada a
desigualdade no Brasil, bem como que o benefício do Bolsa Família40
tem como intuito abarcar a parcela da população cuja a renda
encontra-se em níveis que não permitem o acesso ao mínimo
existencial.
Constatado o perfil da desigualdade no Brasil, é necessário
entender um pouco sobre a estrutura da tributação no país. Sobre o
tema, diversos autores reforçam a regressividade41 como
característica marcante da tributação brasileira, sendo importante
ressaltar que alguns afirmam que o sistema seria regressivo,42
enquanto outros que a própria matriz tributária43 assim
seria.
Isso porque, segundo eles, a opção do legislador local pela base
tributária do
consumo criou uma estrutura em que os mais pobres são onerados,
proporcionalmente aos seus sacrifícios, de forma mais intensa do
que os mais abastados. Tal percepção decorre da impossibilidade de
dotar de pessoalidade44 os tributos incidentes sobre a
comercialização de bens, pois, dessa forma, independentemente da
condição financeira do contribuinte, o valor a ser recolhido será o
mesmo.
Exemplificando o exposto, um médico que cobre quase mil reais por
uma consulta, ao adquirir um saco de arroz, ou um pacote de pasta
de dentes, produtos tidos como essenciais para o conceito do mínimo
existencial já exposto,45 pagará o mesmo valor de tributos sobre
sua compra que qualquer outro trabalhador que receba um salário
mínimo. Nesse sentido, a questão a ser debatida, posteriormente, é
exatamente qual o papel do Programa Bolsa Família nesse contexto de
regressividade da tributação.
40 Ainda, é importante notar que, em 2015, os valores dispendidos
pela União com o programa representam apenas 0,4% do PIB, enquanto,
por exemplo, cerca de 1,2% foi destinado ao oferecimento de
benefícios fiscais e mais de 4% ao pagamento de juros da dívida
pública. Ou seja, os gastos públicos com o Bolsa Família, quando
comparado as demais despesas, revelam-se relativamente baixos.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Relatório de análise econômica dos
gastos públicos federais: evolução dos gastos públicos federais no
Brasil, uma análise para o período 2006-15. Brasília, maio de 2016.
Disponível em:
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/analise-economica-
dos-gastos-publicos-federais/relatorio_gasto_publico_federal_site.pdf
Acesso em 27/02/2017.
41 Sobre a construção da matriz regressiva brasileira ver:
(D’ARAÚJO, Pedro Júlio Sales. A regressividade da matriz tributária
brasileira: debatendo a tributação a partir de nossa realidade
econômica, política e social. 2015. 166 f.. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília,
Brasília, 2015.
42 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de
tributar. 8ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 2010. p. 1344-1345.
43 Valcir Gassen defende que a ideia de sistema tributário não é
suficiente para descrever a tributação, pois não permite conceber
as relações dessa com a História e próprio o Estado democrático de
direito. (GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz
tributária brasileira: diálogos sobre estado, constituição e
direito tributário. Brasília: Consulex, 2012. p. 32)
44 Sobre a pessoalização dos tributos, ou seja, a adequação da base
de cálculo e alíquota ao sujeito passivo da obrigação tributária é
importante ressaltar que até pouco tempo o Supremo Tribunal Federal
vedava a adoção de critérios pessoais para os impostos incidentes
sobre o patrimônio, uma vez que alegava que o se grava não era o
proprietário, mas a coisa. Assim, é interessante perceber que, com
a mudança de jurisprudência, e a “autorização do Judiciário” para a
utilização de alíquotas progressivas, em especial no Imposto
Predial Territorial Urbano (IPTU) que fora o caso de fundo
analisado, há, ao menos uma atenuação da regressividade do sistema.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário Nº
423768, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em
01/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT
VOL-02518-02 PP-00286. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
listarJurisprudencia.asp
45 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes p.
66-69
231
Apesar de em regra não ter sua renda sujeita a incidência de
impostos, essa parcela da população, ao utilizar praticamente toda
suas economias na aquisição de bens de subsistência, é exposta a
cargas tributárias altíssimas. Ressalte-se que o consumo não se
restringe ao famoso ICMS, mas também abarca outros tributos como o
IPI, PIS, COFINS entre outros.
Reforçando a predileção do legislador pela base do consumo, a
Receita Federal publicou um estudo afirmando que o Imposto sobre a
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) foi responsável pela
arrecadação de cerca de 6,72% do Produto Interno Bruto Nacional, ou
seja, quase R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais).46 A
título de comparação, perceba que todos os tributos incidentes
sobre a renda não chegam a 6% do PIB, ou seja, somente o ICMS é
responsável por uma arrecadação superior a toda a tributação sobre
a renda no país.
Quando se compara os tributos por base de incidência, o quadro é
ainda mais grave, pois, se as exações cobradas sobre as folhas de
salário forem consideradas como parte integrante do consumo, uma
vez que seu ônus também é repassado ao cidadão sem a utilização de
critérios pessoais,47 chega-se a conclusão de que mais de 75% da
tributação privilegia a manutenção da pobreza e da desigualdade,
porquanto possuam características regressivas.48 Observe:
Portanto, o cenário apresentado evidencia que no Brasil a
tributação é pautada no consumo, em detrimento da renda e do
patrimônio, de forma que o Programa Bolsa Família insere-se em uma
realidade cuja desigualdade é latente e a regressividade marca do
modelo de arrecadação adotado pelo Estado.
46 BRASIL. Ministério da Fazenda e Receita Federal. Carga
tributaria no Brasil 2015: análise por tributos e bases de
incidência. Brasília, 2016 p.6. Disponível em:
https://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-
e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2015.pdf
Acesso em: 27/02/2017.
47 Ressalvada a parcela que deve ser recolhida pelo próprio
empregador que, em tese, funciona como um adicional de imposto de
renda para a pessoa jurídica.
48 A relação da manutenção da pobreza e da regressividade será
objeto de análise mais a frente, mas desde logo importa salientar
que, conforme o marco teórico utilizado, expressado no conceito do
princípio da diferença, a tributação deveria ser um meio para a
redução das desigualdades, o que se revela inviável quando se está
a frente de uma matriz regressiva. (RIBEIRO, Ricardo Lodi. O
capital no século XXI e a justiça fiscal: uma contribuição de
Thomas Piketty para uma reforma tributária no Brasil. Revista de
Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 13, n. 50,
p. 197-228, abr./jun. 2015
232
Até o momento foram apresentadas as características da tributação e
da desigualdade no Brasil, mas sem tecer tantas críticas
fundamentadas ao regime, agora passa-se a analisar a tributação do
país sob o prisma do conceito de justiça apresentado por Johw
Rawls, bem como qual a relação desta com o programa bolsa
família.
Inicialmente, é preciso retomar que, segundo Rawls, as
desigualdades existentes na sociedade devem, por força dos
princípios da diferença e da equidade, ser utilizadas como
mecanismo de distribuição dos ônus do Estado, privando em maior
parte aqueles com mais recursos.49 Igualmente, Nigel e Murphy, em
sua obra o Mito da propriedade, afirmam que a tributação, além de
buscar a arrecadação para financiar as atividades do Estado, deve
almejar a redução das desigualdades50 inerentes à
sociedade.51
Assim, por essa teoria, o fenômeno da tributação deveria se dar com
base na igualdade e justiça, sendo certo que, pelo critério da
equidade,52 não é possível vislumbrar uma oneração que se paute em
um conceito formalista de igualdade,53 na qual todos os
contribuintes são compelidos a contribuir com os mesmo
valores.
Pelo contrário, deve-se buscar a igualdade material, horizontal e
vertical, em que os contribuintes são estratificados em classes,
conforme sua capacidade contributiva,54 devendo aqueles com mais
riquezas contribuírem mais para o Estado55 para que todos sejam
privados de suas riquezas em níveis proporcionais
semelhantes.
49 RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo, Martins Fontes,
2001. p. 155-156. 50 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da
propriedade – os impostos e a justiça. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
p. 101-103. 51 Mais que isso, os autores revolucionam o prisma da
tributação, que antes era vista como a oneração das posses do
contribuinte,
para defenderem que, na verdade, a propriedade é a renda/patrimônio
que resta após o fenômeno da tributação. Inclusive, a partir deste
conceito, é possível desenvolver que não há direito pré-adquirido à
propriedade, sendo esta conquistada somente após a tributação,
sendo certo então que a oneração não poderá ser justa ou injusta
com base nos valores retidos, mas sim conforme a distribuição
destes ônus pela sociedade. (MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas.Op cit. p.
11-12)
52 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011. p. 84-85. 53 “Assim, repetindo a velha formula
aristotélica, podermos dizer que o princípio da igualdade fiscal
exige o que é essencialmente
igual, seja tributado, igualmente, e o que é essencialmente
desigual, seja tributado desigualmente na medida dessa
desigualdade. (...) os contribuintes com a mesma capacidade
contributiva pagarão os mesmos impostos (igualdade horizontal) e os
contribuintes com diferente capacidade pagarão diferentes impostos,
seja em termos qualitativos, seja em termos quantitativos
(igualdade vertical).” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental
de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do
estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p.
442-443.”
54 Vale ressaltar que alguns autores defendem que o constituinte
entendeu a utilização do princípio da capacidade contributiva é
direcionada, no ordenamento jurídico, ao momento de formulação da
norma – escolha das hipóteses de incidência dos tributos, bem como
no arbitramento de alíquotas progressivas ou seletivas – não sendo
possível se analisar caso a caso a existência ou não da
manifestação de poder econômico. Nesse sentido: BECKER, Alfredo
Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5. ed. São Paulo:
Editora Noeses, 2010. p. 529-536.
55 “O Princípio da Igualdade adquire, nessa fase, o caráter
positivo – dever de distinguir –para conceder tratamento menos
gravoso àqueles que detêm menor capacidade econômica ou para
distribuir rendas mais generosas às regiões mais pobres ou menos
desenvolvidas no federalismo cooperativo. Princípios como
progressividade ou seletividade servem às democracias que se dizem
compromissadas com a igualdade e a justiça social.” (BALEEIRO,
Aliomar. Limitações constituicionais ao poder de tributar. 8ª ed.
Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro:
Forense, 2010. p. 9 e 11)
233
Isso porque, com a mudança do paradigma do Estado Social,56 em que
se deixa de observar o fenômeno tributação como mera
arrecadação/invasão do direito da propriedade do contribuinte para
a entender como mecanismo de distribuição dos ônus estatais,57 o
princípio da capacidade contributiva passa a ser o próprio
fundamento da imposição, devendo estar presente em toda a pauta
política constitucional fiscal do Estado.58
Dessa forma, a tributação tida como justa e adequada ao Estado
Democrático de Direito é aquela qualificada como progressiva, que
permita àqueles com maiores posses contribuírem mais para as
atividades do Estado,59 ou melhor, efetuarem sacrifícios iguais
àqueles mais pobres.
Mais que isso, constata-se uma espécie de dever geral de pagar
tributos,60 haja vista que, no Estado Fiscal, a concreção dos
direitos fundamentais a cargo do Poder Público está condicionada à
arrecadação, sendo certo que o recolhimento não pode ser mais
observado como um sacrifício econômico de uma parte da sociedade,
mas sim como o pressuposto dessa coletividade.61
Então, sendo a tributação um mecanismo para a concreção de direitos
fundamentais, por meio da arrecadação e redução das desigualdades,
sua análise deve ser realizada a partir da realização de tais
objetivos.62 Por essa razão que se defende a inadequação da
56 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2ª ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1978. p. 127 57 “(...) exige o
princípio da justiça fiscal ancorado na regra da igualdade geral
(Art.3 I GG) que os ônus fiscais sejam
distribuídos aos sujeitos passivos em proporção à capacidade
contributiva econômica; (...) O reconhecimento do princípio da
capacidade contributiva como princípio fundamental da justiça
fiscal e consequentemente o mais elevado critério comparativo
(Vergleischsmaβtab) de isonomia de encargos tributários (s. Rz. 76)
vale-se de uma evolução de séculos.” (LANG e TIPKE. Direito
tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto
Alegre: Fabris, 2008. 199-200)
58 Assim, entendem: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constituicionais
ao poder de tributar. 8ª ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado
Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 9 e 11; LANG, Joachim e
TIPKE, Klaus. Direito Tributário. Volume I. Tradução de: Luiz Dória
Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p. 198; NABAIS, José Casalta.
O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra:
Almedina, 2004. p. 439-448; TORRES, Ricardo Lobo. O Princípio da
Tipicidade no Direito Tributário. Revista de Direito
Administrativo, v. 235, 2004. p. 193-232.
59 Perceba que é função do Estado, pelo marco teórico e
argumentação até então desenvolvida, promover a redução das
desigualdades, sendo certo que a tributação não é o único meio para
tanto. Destacando-se os programas sociais como uma opção adequada
também a concreção da finalidade estatal. (CARVALHO NETTO,
Menelick. A contribuição do direito administrativo enfocado da
ótica do administrado: para uma reflexão acerca dos fundamentos do
controle de constitucionalidade das Leis no Brasil. Um pequeno
exercício de teoria da constituição. Fórum Administrativo, Belo
Horizonte, v. 1, n. 1, 2001. p. 11-20.)
60 “É que não podendo o estado dar (realizar prestações sociais),
sem antes receber (cobrar impostos), facilmente se compreende que,
quanto menos ele confiar na autorresponsabilidade dos cidadãos
relativa à satisfação das suas necessidades(autossatisfação), mais
se descura o princípio da subsidiariedade. (...) Pelo que, o dever
de pagar impostos constitui um dever fundamental como qualquer
outro, com todas as consequências que uma tal qualificação
implica.” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar
impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado
fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004. p. 185-186)
61 Nigel e Murphy aduzem que “a propriedade privada é uma convenção
jurídica definida em parte pelo sistema tributário; logo, o sistema
tributário não pode ser avaliado segundo seus efeitos sobre a
propriedade privada, concebida como algo dotado de existência e
validade independentes. Os impostos têm de ser avaliados como um
elemento do sistema geral de direitos de propriedade que eles
mesmos ajudam a criar” (MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas.Op cit. p.
11-12). Igualmente, Nabais também afirma: “Noutros termos, o
imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o
Estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos,
mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e
próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.
Com efeito, um estado, para cumprir suas tarefas, tem de
socorrer-se de recursos ou meios a exigir de seus cidadãos,
constituindo justamente os impostos esses meios ou instrumentos de
realização das tarefas estaduais.”. (NABAIS, José Casalta. O dever
fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão
constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina,
2004. p. 185)
62 PIKETTY, Thomas. Op cit. p. 480-485.
234
tributação sobre o consumo como mecanismo principal de
financiamento do Estado, uma vez que, embora essa cumpra sua função
arrecadatória, deixa a desejar quanto à redução das diferenças
sociais, pois ignora o aspecto pessoal do contribuinte.63
Pautar-se a oneração no consumo, como faz o ordenamento jurídico
brasileiro, pode gravar mais aquela parcela da população cuja renda
é baixa, tendo em vista que esses utilizam seus rendimentos, em
quase sua integralidade, para adquirir bens e serviços essenciais.
Nesse sentido aponta a pesquisa disponibilizada pelo Instituo
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):64
Assim, observe que quanto menos recebe uma família no Brasil, mais
ela tende a gastar com o consumo de bens mercadorias e serviços, de
forma que essa parcela menos abastada acaba sendo alvo certo do
IPI, ICMS, PIS e COFINS. Exemplo disso, é que a unidade familiar
cuja renda mensal de gire em torno de 1 salário-mínimo acaba por
dispender quase a totalidade dos valores recebidos com o seu
próprio consumo.65
Logo, os dados apresentados apenas reforçam que essa opção fiscal,
além de não cumprir a função de reduzir as desigualdades, acaba por
agravá-la, sendo impensável,
63 Aqui há de se ressaltar que o princípio da seletividade é
utilizado como um dos mecanismos para atenuar esse problema, pois
busca onerar produtos supérfluos ou de alto luxo. Contudo,
remanesce a dificuldade de se distinguir os contribuintes quanto
àquelas mercadorias tidas como essenciais e amplamente consumida
tanto pela população mais carente como pela mais abastada. Mais que
isso é de ressaltar que o objetivo da seletividade, em sua maioria,
consiste em aumentar a tributação sobre determinado bem para
desestimular o seu consumo, conforme ocorre com o álcool e
cigarros, por exemplo, e não para diferenciar o arroz mais caro
daquele mais barato, ou o filet mignon do coxão duro.
64 BRASIL. Ministério do Planejamento. IBGE – Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares
2008-2009 – POF. Rio de Janeiro, 2010. p. Disponível em
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/ liv45130.pdf
Acesso em: 10/03/2017.
65 Outra conclusão relevante que se extraí da Pesquisa de
Orçamentos familiares é de que quanto maior a renda mais a família
poderá poupar ou investir seu dinheiro, o que conforme já alertado
por Piketty, apenas agravará a desigualdade, pois as taxas de
remuneração do capital são altíssimas, especialmente no Brasil.
PIKETTY, Thomas. Op cit. p. 406-418
93,6 92 88,7
84,1 79,1 78,1
67,1
235
em pleno Estado Democrático, fundado na equidade,66 que se inverta
o princípio da diferença para beneficiar os contribuintes mais
abastados.
Portanto, conclui-se que o fenômeno tributário é um meio para a
finalidade do Estado, é um instrumento para se garantir aos
cidadãos os seus direitos fundamentais, devendo, pelo princípio da
diferença e da equidade, alcançar de forma mais intensa aqueles
cuja capacidade contributiva revele-se maior.
Até o momento foram identificadas algumas premissas essenciais para
a discussão quanto à relação do bolsa família e a tributação, quais
sejam: (i) a tributação brasileira pauta-se na grandeza do
consumo;67 (i) a oneração do consumo tem como efeito colateral
ignorar os aspectos pessoais do contribuinte, de modo que a parcela
mais pobre acaba por realizar sacrifícios maiores para arcar com os
tributos.68
Nesse contexto, constatou-se, ainda, que a tributação do Brasil,
por ser calcada primordialmente no consumo, tem como objetivo
principal a arrecadação, esquecendo- se de outra fundamental função
atribuída a este mecanismo que é o de reduzir as
desigualdades.
Contudo, qual seria a relação do programa bolsa família com a
tributação não equitativa que se observa no Brasil?
A Constituição Federal, encampando a doutrina da teoria da Justiça
de John Rawls, optou por constituir um Estado garantista, em que,
além de buscar a redução das desigualdades, ainda se obriga a
prover a todos os brasileiros diversos serviços e direitos
fundamentais, independentemente de sua posição na sociedade. Assim,
retomando que a concreção desses direito representa um custo,69 a
divisão desse ônus deveria ser realizada com base no primado da
capacidade contributiva.
Entretanto, conforme exposto, o que se observa é exatamente o
contrário, o Estado onera mais aqueles com menos recursos, tendo em
vista a predileção pela base do consumo. Nesse sentido, não
existindo a concreção das funções da tributação, bem como tendo em
vista a inércia do Poder Legislativo sobre o tema,70 as políticas
sociais surgem como mecanismo de compensação da regressividade e
desigualdade.
66 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta,
Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
13
67 Ver item 3.2 do presente artigo. 68 Ver item 4.1 do presente
artigo. 69 Sobre o tema, Gilmar Mendes assevera: “Embora os
direitos sociais, assim como os direitos e liberdades
individuais,
impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito (positivo)
quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões
demandem o emprego de recursos públicos para sua garantia (...). ”
(MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional.7ª ed.
São Paulo, Saraiva, 2012. p. 677.)
70 Misabel Derzi destaca um silêncio sobre o tema, tendo em vista
que os próprios prejudicados, a população mais pobre, sequer
percebe o prejuízo a que se submetem. (DERZI, Misabel Abreu
Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações efeito e
regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol.
16, n. 108, 2014.p. 39-64)
236
Noutros termos, os programas sociais representam o instrumento
encontrado pelo Estado para que na sociedade todos possuam o
chamado mínimo existencial, haja vista que a tributação local, por
critérios de comodidade e facilidade na arrecadação,71 não cumpre
tal função.
Perceba que não se defende que o único fundamento para a
necessidade de tais projetos assistencial seja a tributação, pelo
contrário, a própria Constituição Federal72 defendeu a redução de
desigualdade como um objetivo do Estado:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II
- garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Aduz-se, ao revés, que o aspecto tributário apenas reforça o dever
constitucional. Contudo, é preciso destacar que o programa bolsa
família, embora realize a transferência direta de renda, ainda não
é suficiente para a concreção do objetivo estatal, e aqui, reside a
sua principal relação com a tributação.
Isso porque, embora os beneficiários recebam um numerário
significante frente a sua renda, essa transferência configurara
mero retorno da tributação indevida. Explica-se, tendo em vista que
o princípio da capacidade contributiva é o orientador da justa
imposição,73 há a necessidade de evitar-se a tributação de atos
desprovidos de capacidade econômica, sendo o consumo quando
efetuado exclusivamente para a subsistência desprovido de qualquer
relevância econômica.
Exemplificando, embora a Lei Nº 12.839/2013 tenha reduzido a zero a
alíquota do PIS, da COFINS e do IPI incidentes sobre alguns
produtos da cesta básica], os outros continuam a ser tributados,
bem como os Estados em geral permanecem a cobrar o ICMS sobre essas
operações.74 Inclusive não há como condenar os Estados da
Federação75 por não desonerarem tais mercadorias, até porque sua
fonte de custeio
71 GASSEN, Valcir. Matriz tributária: uma perspectiva para pensar o
estado, a constituição e a tributação no Brasil. Revista dos
Tribunais. São Paulo. v. 935, p 243-266, 2013.
72 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed.
São Paulo: Atlas, 2000.
73 LANG, Joachim e TIPKE, Klaus. Direito tributário. Volume I.
Tradução de: Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. p.
198
74 É verdade que alguns estados reduziram as alíquotas, outros
zeraram, mas em regra, há a tributação desses produtos. 75 Misabel
Derzi discorda dessa posição. A autora afirma que os Governadores
ao se envolverem na Guerra Fiscal escancaram que
o problema não é a falta de recursos, mas sim a falta de
planejamento: “O silêncio do Bolsa Família quanto à regressividade
do sistema tributário é um sintoma geral de desconhecimento que
obscurece os males da concorrência tributária e seus efeitos.
Quando os governadores dos estados das regiões mais pobres do País
levantam o argumento de que precisam lutar por investimentos e
empregos, se esquecem de dizer aos cidadãos pobres de seu estado
que, como consequência do aumento das isenções e benefícios
tributários para alguns, perderão receita e, necessitando manter os
mesmos níveis de arrecadação para atender os serviços públicos
essenciais, deverão elevar o ICMS para todos, especialmente
incidente sobre o consumo dos alimentos, dos medicamentos, dos
combustíveis, da energia e da comunicação. Tais medidas
penalizarão
237
principal reside no ICMS, razão pela qual a redução da arrecadação
poderá gerar consequências financeiras preocupantes, dada a crise
que assola esses entes da Federação.76
Desse modo, pontuando que nem todos os bens adquiridos para a
subsistência integram a cesta básica, o beneficiário é
contribuinte, e, em algumas hipóteses, tem uma parte significativa
de sua renda revertida aos cofres públicos. Isto é, embora receba
um valor a título de transferência de renda direta, o assistido é
compelido a devolver parte dessa quantia ao próprio Estado pela via
da tributação.77
Conforme exposto nos capítulos anteriores, quanto menor a renda
mais esta é revertida para o consumo imediato. Dessa forma, sendo a
tributação sobre o consumo a opção legislativa brasileira, tem-se
que os menos abastados observam grande parte de sua renda ser
revertida aos cofres públicos mesmo sem possuírem capacidade
contributiva para tanto.
O Programa bolsa-família, então, é mitigado pela própria tributação
que, por não atender a suas funções essenciais, tende a elevar as
disparidades econômicas encontradas no Brasil. Ou melhor, o
bolsa-família pode ser considerado mera devolução do tributo sobre
o consumo arrecadado de seus beneficiários sem a verificação da
expressão de qualquer poderio econômico.78 Há uma relação de
autofinanciamento entre essa tributação em tese indevida e o
benefício recebido.
Nesse sentido, retomando aos ensinamentos de Rawls, pelo princípio
da diferença, a tributação brasileira não poderia ser classificada
como justa, uma vez que a redução da desigualdade não se vale do
critério orientador da privação daqueles com mais riquezas.
Assim, o Bolsa Família é um beneficio que não se justifica tão
somente como programa assistencial (princípio do mínimo
existencial), mas sim como um mecanismo de balanço dos problemas
encontrados na matriz tributária brasileira, isto é, uma
deficiência na distribuição dos ônus do Estado, e por consequência,
da própria, justiça pela tributação.
A título de direito comparado, o Brasil deveria olhar para o
exemplo do Canadá no que se refere à regressividade da tributação
sobre o consumo. Neste país, o legislador, percebendo os malefícios
dessa oneração sobre a população pobre, instituiu espécie de
devolução dos tributos cobrados sobre o consumo quando o cidadão
for qualificado como de baixa renda.79
exatamente os mais pobres. DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra
fiscal, Bolsa Família e silêncio (relações efeito e
regressividade). Revista Jurídica da Presidência. Brasília, vol.
16, n. 108, 2014.p. 39-64
76 Sobre a crise financeira dos Estados da Federação, ver o Projeto
de Lei Complementar 343/2017: BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto
de Lei Complementar Nº 343/2017. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=2124451 Acesso em: 13/06/2017.
77 DERZI, Misabel Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e
Silêncio (relações efeito e regressividade). Revista Jurídica da
Presidência. Brasília, vol. 16, n. 108, 2014.p. 39-64
78 Ibidem. 79 Para aprofundamento no benefício ver: GODOI, Marciano
Seabra. Tributação do consumo e efeitos redistributivos:
238
Por via transversa, o Bolsa Família adquire tal finalidade, mas sem
ser eficaz aos demais cidadãos que também possuem renda baixíssima,
mas não o suficiente para serem beneficiários da política pública.
O problema, então, é, em sua grande parte, legislativo. Falta ao
Congresso uma maior atenção com as implicações e consequências das
escolhas tributárias.
Portanto, conclui-se que o Bolsa Família é um programa voltado para
a redução das disparidades econômicas, cuja legitimidade reside não
somente no dever constitucional de erradicação da pobreza, mas
também na própria estrutura tributária do país que, por ser
demasiadamente regressiva, exige uma contrapartida à população
menos abastada como forma de evitar o aumento constante e
desenfreado da desigualdade no país.
Constatou-se que a tributação brasileira é regressiva, ou seja,
onera, em termos relativos, por demais aqueles cidadãos que compõe
a parcela mais pobre da população em detrimento daqueles com
maiores riquezas.
Ademais, percebeu-se que a consequência última dessa opção
legislativa é que o próprio Estado reforça a estrutura desigual da
sociedade brasileira, ao invés de fazer uso da tributação como
mecanismo de redução das diferenças. Ou seja, a tributação
brasileira não pode, no conceito de justiça trabalhado por John
Rawls, ser classificada como justa, haja vista que o princípio da
diferença – isto é, a repartição dos ônus sociais de forma a e
reduzir as desigualdades – não é observado pela legislação
local.
Assim, enquanto essa característica não for devidamente tratado no
âmbito do Poder Legislativo, a criação de políticas sociais que
minimizem a desigualdade será essencial, pois, do contrário, o
passar dos anos apenas levará a ampliação do abismo entre o capital
detido pela população mais rica e aquela mais pobre, criando um
ambiente insustentável.
Nesse cenário, o Programa Bolsa Família, além de buscar efetivar os
direitos dispostos na Constituição Federal, ainda se presta a
equilibrar as mazelas da tributação para essa parcela da população
tão vulnerável. Ou seja, embora o benefício não tenha sido pensado
sob a ótica da tributação, esse desempenha função relevante na
concreção de um dos objetivos do Estado Moderno que é a
distribuição dos ônus de acordo com a capacidade contributiva de
cada um de seus integrantes.
Reflexamente, a tributação é fator de mitigação do benefício, uma
vez que, conforme exposto, a intenção do legislador ao criar o
programa era concretizar a ideia de mínimo existencial, sendo a
matriz tributária um mecanismo de redução do efetivo
alíquotas reduzidas conforme a essencialidade dos produtos/serviços
(seletividade) versus alíquotas uniformes com transferências
financeiras (refundable tax credits) para famílias de baixa renda
In Caderno de Finanças Públicas. Brasília, n. 16, p. 311-332, dez.
2016.
239
numerário disponível aos assistidos. Noutros termos, o programa é
autofinanciado pelos tributos incidentes sobre o consumo pagos por
seus próprios beneficiários.
Portanto, o Bolsa Família, além de ser instrumento de
redistribuição de renda, e por consequência de redução das
desigualdades, é mecanismo de balanço da tributação deficiente
encontrada no país, sendo, assim, o meio utilizado para se
compensar a parcela mais carente da sociedade pelas mazelas da
regressividade da matriz tributária brasileira.
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