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5/26/2018 24875-100826-1-PB-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/24875-100826-1-pb 1/19 Medida e desmedida na Rítmica de José Eduardo Gramani lexandre Piccini Ribeiro Marcelo Pereira Coelho Resumo : Este texto nasce do interesse mútuo de duas linhas de pesquisa em música que tem o ritmo como ponto de encontro. No foco de nossas conversas encontram-se as séries e polimetrias do prof. José Eduardo Gramani, que suscitam desdobramentos na área composicional e filosófica. Revisitando os resultados relatados no laboratório de composição e improvisação rítmica do departamento de música da USP, propomos aqui uma reflexão sobre a possibilidade de uma ideia não medida de ritmo. Palavras chave: Rítmica, Gramani, Filosofia Deleuze WHAT IS MEASURED AND UNMEASURED IN THE RHYTHMIC APPROACH OF JOSE EDUARDO GRAMANI Abstract : This paper arises from the mutual interest of two lines of research in music  that has the rhythm as the meeting point. The main focus is the compositional and philosophical processes based on the polimetries called “Series“, developed by the professor José Eduardo Gramani. Revisiting the results of the laboratory of composition and improvisation based on the Gramani's rhythmic concept, which was reported to USP music department, we propose a reflection on the possibility of a rhythmic idea not to be measured. Keywords:  Rhythm, Gramani, Deleuze, Philosophy

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  • Medida e desmedida na Rtmica de Jos Eduardo Gramani

    Alexandre Piccini Ribeiro Marcelo Pereira Coelho

    Resumo: Este texto nasce do interesse mtuo de duas linhas de pesquisa em msica que tem o ritmo como ponto de encontro. No foco de nossas conversas encontram-se as sries e polimetrias do prof. Jos Eduardo Gramani, que suscitam desdobramentos na rea composicional e filosfica. Revisitando os resultados relatados no laboratrio de composio e improvisao rtmica do departamento de msica da USP, propomos aqui uma reflexo sobre a possibilidade de uma ideia no medida de ritmo.

    Palavras-chave: Rtmica, Gramani, Filosofia Deleuze

    WHAT IS MEASURED AND UNMEASURED IN THE RHYTHMIC APPROACH OF JOSE EDUARDO GRAMANI

    Abstract: This paper arises from the mutual interest of two lines of research in music that has the rhythm as the meeting point. The main focus is the compositional and philosophical processes based on the polimetries called Series, developed by the professor Jos Eduardo Gramani. Revisiting the results of the laboratory of composition and improvisation based on the Gramani's rhythmic concept, which was reported to USP music department, we propose a reflection on the possibility of a rhythmic idea not to be measured.

    Keywords: Rhythm, Gramani, Deleuze, Philosophy

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    1. Gramani e algumas notas sobre sua pesquisa em educao rtmica

    Jos Eduardo Ciocchi Gramani (19441998) atuou como concertino e

    regente frente de diversas orquestras brasileiras; dedicou-se msica de cmara,

    composio e pesquisa musical, alm de ter exercido singular e marcante

    atividade como professor de msica. No entanto, sua proposta de educao

    rtmica , certamente, uma de suas maiores contribuies.

    O processo de amadurecimento de suas ideias, que culminou na

    publicao dos volumes Rtmica e Rtmica Viva, floresceu nos anos de experincia

    como aluno e professor da FASCS, Fundao das Artes de So Caetano do Sul (So

    Paulo).

    Entre 1969 e 1973, Gramani foi aluno da professora Maria Amlia

    Martins que desenvolvia um trabalho fundamentado na metodologia de Emile

    Jacques-Dalcroze, cuja importncia pedaggica viria a vascularizar seu pensamento

    na contra direo do racionalismo estrutural, em favor de uma ideia ainda

    romntica que coloca a sensao e a expresso como preponderantes no universo

    artstico.

    A sensibilidade, como prerrogativa maior da arte, talvez tenha atravessado

    o iderio romntico e desembocado em importantes reflexes tanto em Dalcroze

    como em Gramani, para os quais o sentir deve ser buscado de maneira dominante

    em suas propostas, enriquecendo a compreenso e o exerccio do estatuto

    musical.

    Para Dalcroze (apud Rodrigues, 2001, p. 6), a finalidade da Rtmica

    consiste em:

    colocar seus adeptos, ao terminar os estudos, na situao de poderem dizer: eu sinto em lugar de eu sei; e, especialmente, desperta-lhes o desejo imperioso de expressarem-se, depois de terem desenvolvido suas faculdades emotivas e sua imaginao criadora.

    A proposta de Dalcroze, para quem a educao rtmica seria uma forma

    de triunfar sobre as inibies e resistncias levando o estudante condio de

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    realizar descobertas, convida a uma reflexo do significado do aprimoramento da

    sensibilidade rtmica como forma de instigar a curiosidade e a prtica

    investigativa.

    Este conceito, referente percepo do ritmo enquanto estmulo, tornar-

    se-ia fundamental na proposta rtmica de Gramani.

    Em um dos textos que permeiam o caderno de estudos Rtmica Viva,

    Gramani (1996, p.13) assevera que os exerccios teriam por finalidade o

    aprimoramento da sensibilidade rtmica, em que o corpo atuaria como interface

    de assimilao e conscientizao da ideia musical inerente a uma estrutura rtmica.

    Mas Gramani vai alm em seu trabalho, ampliando sobremaneira o sentido da

    educao voltada ao senso mtrico, possvel influncia do trabalho Rtmica

    Mtrica de Rolf Gelewski.

    Assim como Dalcroze, Gelewski tambm explora a vivncia do ritmo

    atravs de percusses corporais e, at mesmo, grafismos, em exerccios individuais

    e coletivos voltados composio, leitura e improvisao. Vejamos como

    Rodrigues (2001) o coloca:

    O aspecto marcante e diferenciador de seu mtodo de educao rtmica consiste no fato de ele estar baseado, quase exclusivamente, em modelos ou frmulas mtricas1. Esse aspecto realmente relevante, pois enfatiza a noo de compasso, inclusive o compasso alternado e misto (Rodrigues, 2001, p. 18).

    Em seus estudos, Gramani tambm baseia sua notao no valor da

    brevidade, ou seja, determinao da unidade, proporcionalmente, pelo menor

    valor envolvido no jogo polimtrico, tal que o menor valor seja a base do clculo

    das propores. Trata-se de um procedimento fundamentado no pensamento

    aditivo em que todos os valores so possveis unidades e devem ser focados, at

    certo ponto, isoladamente. Na rtmica aditiva, os valores so pensados, em funo

    das suas prprias unidades internas, como pulsaes e no como subdivises.

    1 Frmulas Mtricas, utilizadas por Gelewski, so combinaes de valores curtos e longos na proporo de 1 para 2. Assim, o binrio: prop: [1.1], o ternrio: prop: [1.1.1] [1.2] [2.1], o quaternrio: prop: [1.1.1.1] [2.2] [1.1.2] [2.1.1] [1.2.1] etc.

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    Segundo Gelewski, essa ideia propicia ao estudante, alm da educao das

    qualidades rtmicas, a intensificao da conscincia atravs da estreita

    concatenao do treinamento de faculdade cerebrais (em especial, a

    concentrao) com atividades rtmico-fsicas (Gelewski, 1967, p. 5).

    A msica de Igor Stravinsky tambm parece ter sido uma importante fonte

    de informao e inspirao para o desenvolvimento das propostas de Gramani.

    Sobre a relao entre a msica de Stravinsky e os seus estudos rtmicos

    polimtricos, Gramani (1986 apud Rodrigues, 2001, p. 44) comenta:

    Em 1981 [...] estava estudando a parte de violino de A Histria do soldado, de Stravinsky, e, tendo dificuldades em alguns trechos, comecei a estudar os contrapontos rtmicos fantsticos que ele escreveu. [...] montei alguns trechos a duas vozes rtmicas e estudei, resolvendo alguns problemas. Ento levei os exerccios para meus alunos na UNICAMP, eles estudaram e o resultado foi muito bom. Isso me animou a pensar em porque no estudar o ritmo com aquelas caractersticas.

    Notamos que, bem como na rtmica de Stravinsky, uma prtica

    constantemente encontrada em seus estudos o uso sistemtico de ostinatos.

    Assim como Stravinsky, Gramani tambm utiliza o ostinato com a finalidade de

    contraste e oposio de movimentos.

    O ostinato, como modo de repetio, exerce tal como vimos na exposio

    do pensamento aditivo, uma funo de unidade polimtrica na sobreposio das

    linhas rtmicas.

    Em Conversas com Igor Stravinsky, quando interrogado sobre a funo do

    ostinato, o compositor responde a esttica [...], o antidesenvolvimento [...];

    uma contradio ao desenvolvimento (Stravinsky, 1999).

    A necessidade de instruir o msico a respeito da correta execuo e

    percepo do evento rtmico uma inquietao comum a ambos os msicos, e a

    preocupao quanto a independncia expressiva dos eventos rtmicos, os

    aproximam veementemente.

    Durante cinquenta anos [...] me empenhei em ensinar [aos msicos] a acentuar as notas sincopadas [...] quando iro os msicos aprender a

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    abandonar a nota ligada, a suspend-la e no apressar as colcheias em seguida? (Stravinsky, 1999).

    Gramani, em um dos seus textos, faz uma meno relativa a essas mesmas

    deficincias quando diz que no ensino tradicional, o ritmo [...] normalmente

    subordinado aos tempos [do compasso], gerando muitas vezes descaracterizaes

    no mbito musical (Gramani, 1992, p. 11).

    De todo modo, as observaes e simpatias entre a Rtmica de Gramani e

    certos aspectos das ideias de Dalcroze, Stravinsky e Gelewski ganham uma

    orientao consistente numa pedagogia da sensibilidade, se que podemos falar

    assim quanto obra de Gramani.

    No apoio de uma decidida pragmtica, Gramani faria tender sua mtrica,

    segundo nossa hiptese, a um limite de desmesura que desafiaria a sensibilidade

    musical dos estudantes.

    O contraponto tornar-se-ia o princpio de desvinculaes verticais,

    medida em que os valores adicionados tornam-se elementos de variao e

    deslocamento nos jogos polimtricos. O tempo, at ento tomado como base

    comum na proporo das estruturas, torna-se objeto de reverso pedaggica.

    preciso antecipar, aqui, o sentido precursor e ilustrativo de Kant tanto

    na reverso entre o condicionamento dado entre tempo e movimento, quanto na

    pontuao de certo desacordo das faculdades numa situao limite, evidenciado

    em sua anlise do sublime.

    O ritmo, sob tal perspectiva, ala-se, paradoxalmente, por meio de uma

    aparentemente simples adio mtrica, a um jogo mais severo de disjunes e

    deslocamentos no qual a prpria mtrica encontra seu termo de desmesura,

    desafiando a sensibilidade a proceder por seus prprios meios.

    Em parte por esses motivos, e talvez sem muita conscincia dos caminhos

    pelos quais passou, possvel que Gramani tenha tocado em pontos centrais da

    filosofia contempornea, questionando a hegemonia da linearidade cronomtrica

    do tempo em direo aos temas extemporneos da durao, nas quais concorrem,

    entre outras, as filosofias de Kant, Nietzsche, Bergson e mais recentemente Gilles

    Deleuze.

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    De todo modo, o que nos interessar daqui em diante so as possveis

    aproximaes entre a Rtmica de Gramani e algumas reflexes sobre os conceitos

    de Tempo e ritmo que mesmo em seus trajetos mais rigorosamente bem

    fundados, encontram dificuldades importantes, tais quais as que fizeram Deleuze

    avivar em Kant um profundo terror hamletiano: The Time is out of Joint 2.

    2. O elemento musical no deve ser identificado ao elemento aritmtico

    Nas pginas introdutrias do volume Rtmica, Jos Eduardo Gramani

    (Gramani, 2010, p. 11-12) esclarece, de maneira econmica, algumas de suas

    posies e ideias acerca da sua proposta quanto ao estudo do ritmo.

    Ao afirmar que os seus estudos so exerccios para que o msico sinta

    mais e conte menos (Gramani, 2010, p. 11) Gramani prepara o leitor para o

    confronto existente entre associao versus dissociao rtmica, uma das

    contribuies mais originais da sua metodologia.

    A independncia da mtrica e da subdiviso a partir de vrios planos

    rtmicos, que se superpem e se relacionam em forma de contraponto,

    contribuem para evitar o condicionamento centrado na decodificao, associao

    e sincronicidade das combinaes rtmicas como forma de resoluo.

    Gramani entende ser preciso desarticular a frase rtmica de sua

    subordinao ao tempo, uma vez que ela acontece sobre ele (Gramani, 2010, p.

    11). A seu modo, Gramani reflete a chamada revoluo copernicana de Kant,

    que liberou o tempo de sua subordinao ao movimento: o movimento que se

    subordina ao tempo [...] No a sucesso que define o tempo, mas o tempo que

    define como sucessivas as partes do movimento tal como nele esto

    determinadas (Deleuze, 1997, p. 37).

    O pulso como movimento j no determina mais o Tempo como ordem

    cronomtrica mas como forma pura, vazia, ordinal.

    2 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (The time is out of joint)

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    De maneira ilustrativa, Gramani faz sua revoluo tirando tempo dos

    gonzos ou eixos verticais do pulso, por uma simplria adio de valores.

    O efeito de anterior subordinao, como demonstrada no Exemplo (1),

    desnatura a ideia musical ao alterar o sentido dos apoios, acentuaes e

    dinmicas.

    Exemplo 1 excerto do livro Rtmica de Gramani (2010, p. 18)

    Enquanto a proposta de Gramani enfatiza a linearidade da primeira ideia,

    a notao tradicional, ao rebat-la sobre um tempo de base do 3/16 a desnatura,

    neutralizando o sentido musical dos apoios.

    Embora as duraes se equivalham, possvel perceber que o modo de

    agrupamento das notas sugere apoios rtmicos bastante diferentes.

    O aspecto contrapontstico das frases deve ser radicalizado na sua

    realizao, pois mesmo o contraponto pode compactuar com uma leitura

    harmnica que o submeteria ao alinhamento vertical.

    No contraponto, por outro lado, algo nasce, de outra natureza, e que no

    pode ser identificado soma das partes3.

    A individualizao de cada frase rtmica torna-se ento o processo nico

    capaz de instaurar a dissociao entre as vozes, trazendo tona a realidade

    musical implcita em cada frase.

    Preocupado com a expressividade rtmica do discurso, Gramani

    recomenda, ento, uma prtica meios de criao de novas associaes, que a

    partir do exerccio da sensibilidade, desafiam os clichs sensrio-motores que

    regulam a leitura e os movimentos do corpo.

    3 Note-se que, por si s, a mera serializao dos valores, ao provocar a ampliao gradativa dos agrupamentos rtmicos, j induz a srie a um contraponto silencioso. Entre ela e o silncio j se induz um pulso abstrato que o hbito aguarda e que deve ser vencido.

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    preciso ativar a criao de novas associaes, fruto da dissociao das j existentes, gerando maior conscincia na utilizao de movimentos, gestos e atitudes (Gramani, 2010, p. 12).

    Todavia, esta ampliao de relaes corporais e intelectuais que a prtica

    das estruturas proporcionam, no tem como finalidade a extenso do vocabulrio

    rtmico, consistindo, sim, um meio de desenvolvimento musical pela

    sensibilidade4.

    Estes exerccios no so um fim e sim um MEIO atravs do qual muito pode se desenvolver, principalmente os aspectos de disciplina interior e flexibilidade de adaptao da ateno a novos tipos de associaes ou relaes. Quando o exerccio j estiver sendo bem realizado j deixou de ter sua funo, pois os problemas que dificultavam sua realizao j foram solucionados atravs de processos interiores de associao e dissociao. O desenvolvimento destes processos que o FIM. O objetivo dos exerccios, pois, que funcionem como veculo para que tais processos possam chegar nossa sensibilidade (Gramani, 2010, p. 12, grifo do autor).

    Gramani (1992, p. 12) prope vencer desafios aritmticos atravs da

    sensibilidade musical, sugerindo que o ritmo deve ser vivido e vivificado num

    corpo e que a rtmica no deve ser reduzida ao estado abstrato, matemtico ou

    racional dos arranjos rtmicos, sem perder a complexidade e a fora de

    heterogeneidade em mobilidade num corpo.

    Seu interesse prtico pelo exerccio o impede de divagar pela inteligncia,

    pela razo ou pelas categorias do entendimento, pois compreendia que s pela

    prtica5, pela instituio problemtica das sries, ostinatos e polimetrias poderia

    chegar sensibilidade como faculdade limite.

    4 preciso destacar aqui que a sensibilidade, segundo o modo ligeiro como Gramani a estima, no a faculdade submetida ao harmonioso acordo kantiano (senso comum) e que teria, como objeto, o sensvel emprico; aqui a sensibilidade aguarda o objeto transcendental suprassensvel que Kant intui em sua terceira crtica na sua leitura do sublime (Crtica da Faculdade de Julgar, 26-29), e que a submete a um limite prprio e que a impele a um esforo disjuntivo, a um descordo. A sensibilidade, ento, o operador de um empirismo invulgar, que tem seu objeto naquilo que se trai no fenmeno, a saber um signo, multiplicidade virtual. (Cf. Deleuze, 2006, p. 203-204) 5 A prtica, no entanto, ou a pragmtica, se assim a quisermos, no deve ser reduzida a um conjunto de aes num meio. Se certo que toda ao necessita de um meio, no qual se realiza, toda pragmtica, que no se confunde com um convencionalismo, envolve uma poltica que se manifesta nos meios. Sugerimos aqui que a prtica das polimetrias envolve

  • A. Ribeiro e M. Coelho Medida e desmedida na Rtmica de Jos Eduardo Gramani

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    O apelo sensibilidade como faculdade privilegiada na prtica dos

    exerccios expe a clareza com que Gramani entendia o lugar secundrio da

    inteligncia e do conhecimento no processo de realizao. Se a inteligncia pode

    encarar com tranquilidade a abstrao dos modos mtricos de arranjos das frases

    e polimetrias, nos parece claro sua relativa impotncia na realizao plena dos

    exerccios.

    Lanar a aritmtica das estruturas ao estado de consistncia musical ,

    portanto, uma tarefa que a sensibilidade realizaria sob a condio de se ter um

    corpo que as experimentam acrescentando-lhes um horizonte fluido e estrangeiro,

    fruto da sensibilizao das relaes, que se voltadas pauta de Dalcroze seriam

    vistas sob um estado de alegria (joie), transbordando toda a medida:

    La joie dvoluer rythmiquement, de donner tout son corps et toute son me la musique qui nous guide et nous inspire est une des plus grandes qui puissent exister (Dalcroze, 2009, p.15)

    3. O corpo introduz no tempo medido a desmesura do tempo

    Sabemos que o ritmo escrito encontra sempre uma medida. Essa medida

    pode ser relativa. Medimos, por exemplo, as duraes a partir da

    proporcionalidade inerente s clulas ou grupos rtmicos ou a um tempo de base,

    que se subdivide abstratamente numa estrutura qualquer.

    Esta relao proporcional das medidas se mantm na execuo dos ritmos

    e ganha uma variao concreta no ajuste dos andamentos. Vamos mais rpido ou

    mais devagar; variamos o andamento, mas mantemos sempre um senso de

    proporo e medida absoluta.

    Podemos dizer que, mesmo expressando esses valores em medidas

    irracionais, em dzimas que acompanham certas divises do tempo ou em

    uma poltica pr-intelectual dos afectos que circulam no tempo e insistem nas figuras dando-lhes volumes, que so volumes de relaes, sensaes, de conexes diferenciais entre os diversos pontos de vista tomados por uma subjetividade musical que ali se esboa no limite problemtico da ao. Veja quanto a isso a insistncia de Gramani quanto ao abandono dos exerccios quando o estudante os automatiza.

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    variaes radicais de andamento, sempre haver um nmero que acompanha o

    fenmeno.

    H aqui um pouco de espao no tempo6. Na verdade h muito espao

    nessa concepo do tempo; o tempo torna-se, na medida do transcurso, uma

    grandeza espacial ou especializada.

    Tal espao pode ser graduado em estruturas, proporcionalizado,

    relativizado, estriado, mas tambm pode se alisar ou ser visto sob um ponto de

    vista topolgico.

    O Tempo ganha contornos; contornos energticos que lhe do certa

    curvatura, certa complexidade; passa a ser percebido sob certas distines

    regionais (ou seccionais), que se separam nas diferenas destes contornos, na

    fluidez de uma topologia energtica que no obstante recai em formas, frases,

    estruturas.

    Passamos incessantemente, num certo quadro de escuta, de uma fsica, de

    uma esttica a uma analtica, e o Tempo ora se esvazia no aspecto sincrnico da

    estrutura ora ganha seus volumes numa realizao concreta.

    No entanto, ladeando essas concepes do tempo, h ainda uma outra

    maneira de compreend-lo, bem como a durao e o ritmo. Um modo no-

    medido, intempestivo de ocupar o tempo; um modo de temporalidade que insiste

    na energtica do tempo fsico, e que sustenta semioticamente o valor das

    estruturas.

    Tal modo de insistir no tempo requer um novo uso do lxico, que

    perverte a nomenclatura cotidiana em favor de uma vidncia que contempla a

    complexidade do Tempo particularmente na sua relao com o corpo.

    Um corpo experimenta o espao. E qual o modo de um corpo se

    relacionar com um espao? O corpo afetado pelas componentes de um espao

    diferentemente de uma relao intelectual da razo ou do entendimento. O

    6 A concepo do espao pertence inteligncia, mas a sensao do espao, nosso envolvimento nele, material da sensibilidade, ainda que tais experincias possam ser recobertas pela inteligncia. A reverso, no entanto, flagrante quando a msica ocupa o tempo musical como um espao, com suas mtricas, seus andamentos e eventos. O curioso que o Tempo (ou Aion estoico) como grandeza acontecimental e intensiva que se expressa nas fendas do tempo espacializado de Cronos.

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    espao da performance , sobretudo, um espao a ser conquistado em sua relao

    com os afetos aos quais o msico exposto.

    Quando Gramani introduz o corpo em suas prerrogativas, est sendo

    muito sbio e coerente com relao s suas propostas: [...] Bata com a mo

    esquerda, alterne os ps, sinta a pontuada, agora reja com a direita, cante a srie

    tal [...]. Recursos que falseiam a razo e introduzem, a partir do corpo, um

    confronto entre a sensibilidade e o hbito; experincia que expem o limite de

    nossos clichs cerebrais, e que exige, mais que sua expanso, um remanejamento,

    onde s haviam recognies de ordem aritmtica.

    Mas Gramani introduz, antes do instrumento, o corpo, ou o corpo do

    instrumento, sob a condio de que no se reintroduza, a partir dele, seu conjunto

    de hbitos e solues.

    E por que preciso um corpo? Porque o corpo a sede de um verdadeiro

    manancial de problemas que s no corpo podem se dramatizar.

    preciso de um corpo e daquilo que ele pode, ou do que ainda no

    pode, em razo de seu fechamento em seus hbitos. E abrir o corpo aos afetos de

    um espao torna-lo sensvel ao elemento pr-intelectual que se ritmo ainda

    no pode ser notado.

    De todo modo, o corpo portador de uma outra imagem temporal, e que

    nos interessa. Dimenso no-cronolgica, inatual, intempestiva, ainica. Os termos

    variam conforme os autores e pocas, mas se mesclam de maneira muito ntima.

    Com efeito, para ser estrito, a prpria materialidade do corpo pode ser

    compreendida como uma distenso real da Durao e do Tempo, se aqui nos

    ativermos imagem metafsica que Bergson nos d.

    E se a razo nos oferece algumas ideias verossmeis do Tempo, nos parece

    que, desde sempre, o corpo que ir introduzir no tempo musical um elemento

    de disparidade e desmesura7, desafiando as ideias da razo e as categorias do 7 Nossa ideia de desmesura apresenta ao menos duas componentes que precisam ser, seno explicadas, indicadas. A primeiro requer a distino respectiva entre a extensio e o spatium, qualidade e intensidade, espao e tempo. O universo da desmesura sempre uma durao, um espao topolgico ou intensivo; profundidade metafsica que no admite aspectos espaciais, e portanto, medveis. Somando-se a isso gostaramos de acrescentar a ideia da hybris grega, como medida ou limite que no temos o direito de transpor. Na potica, Aristteles v a hybris como limite a partir da qual toda tragdia advm. Limite ou extremo de negao, a hybris torna-se uma virtude nos termos intensivos de uma potncia que se

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    entendimento, reservando ao Tempo um desenvolvimento conceitual alheio s

    nossas afinidades com a compreenso do espao.

    A msica parece estar cheia disso. Ela se faz com a desmesura de um

    entretempo que se insinua no tempo, um tempo rachado, fora dos gonzos, e a

    sensibilidade que introduz, a partir do corpo na condio de se haver um corpo

    o elemento paradoxal ou virtual que ali se aloja como bloco de sensaes.

    S o corpo, como sede do movimento e arcabouo da complexidade da

    experincia pode dotar a energtica, a estrutura e o tempo medido de um

    elemento de desmesura, a saber, uma durao ou o prprio Tempo; como dizia

    Proust na Recherche um pouco de tempo em estado puro, ou conforme a

    aproximao bergsoniana, o tempo como multiplicidade substantiva8.

    4. O ritmo incomensurvel e crtico

    O tambor no 1-2, a valsa no 1, 2, 3, a msica no binria ou ternria, mas antes 47 tempos primeiros, como nos turcos. que uma medida, regular ou no, supe uma forma codificada cuja unidade medidora pode variar, mas num meio no comunicante, enquanto que o ritmo o Desigual ou o Incomensurvel, sempre em transcodificao. A medida dogmtica, mas o ritmo crtico, ele liga os instantes crticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele no opera num espao-tempo homogneo, mas com blocos heterogneos. Ele muda de direo. Bachelard tem razo em dizer que a ligao dos instantes verdadeiramente ativos (ritmo) sempre efetuada num plano que difere do plano onde se executa a ao. O ritmo nunca tem o mesmo plano que o ritmado. que a ao se faz num meio, enquanto que o ritmo se coloca entre dois meios, ou entre dois entremeios, como entre duas guas, entre duas horas, entre lobo e co, twilight ou zwielicht [...] Por a, samos facilmente de uma aporia que corria o risco de trazer a medida de volta para o ritmo, apesar de todas as declaraes de inteno [...] a diferena que rtmica, e no a repetio que, no entanto, a produz; mas, de pronto, essa repetio produtiva no tinha nada a ver com uma medida reprodutora (Deleuze e Guattari, 2005, p. 119-120).

    excede num limite. Ir alm deste limite encontrar o elemento de desmesura que d ao Ser e ao Pensamento a potncia seletiva de retornar, de repetir-se sob a condio de se querer ensima potncia (Cf. Deleuze, 2006, p. 73-74). 8 Sugerimos os textos de Pelbart (1998) quanto a imagens muito elucidativas da ideia de tempo.

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    Gramani cria ritmos em sua obra: clulas, sries, ostinatos, polimetrias,

    contrapontos etc., todos passveis de uma relao justa com a razo e com o

    entendimento. Coelho (2008) e Rodrigues (2001) expuseram com clareza a

    gnese mtrica das estruturas de Gramani, ainda que pouco enfatizadas pelo

    prprio autor.

    No entanto, sua autntica inveno no campo do ritmo est em

    ultrapassar a mtrica das estruturas em direo atividade e sensibilizao

    rtmica, aspectos que parecem interessar Coelho em seus laboratrios de

    composio e improvisao.

    Mais do que a adequao das estruturas a uma situao musical concreta,

    os exerccios visam (e so meios de) experimentaes, nas quais a sensibilidade

    sobrevm compreenso das estruturas.

    Conforme sugerimos alhures, para Gramani, preciso recorrer

    sensibilidade musical para que esta, agregada ao raciocnio aritmtico,

    possibilite uma realizao musical dos exerccios (1996, p. 104).

    A prtica dos ritmos que Gramani inventa s se torna, de fato, inveno,

    na medida em que o ritmo, mais que assimilado a um jogo de proporo e

    permutaes de valores (encontrados de modo diverso no repertrio tradicional),

    se torna crtico na relao entre as estruturas (relao que Gramani ressalta como

    problemtica e que julga pertinente abandonar aps a automatizao dos

    exerccios).

    Postulamos, com Deleuze, que na relao diferencial o ritmo se torna um

    entre. Ele j no idntico s figuras de uma linha ou outra, mas o efeito da

    relao que convida a sensibilidade a compreend-lo por seus prprios meios.

    Revisitando o projeto de Dalcroze, o dizer incorruptvel do eu sinto e no mais

    do eu sei.

    O ritmo ento j no medido em proporo em unidades abstratas ou

    concretas; torna-se meio de modulao, o Desigual, e apela sensibilidade levada

    ao limite transcendental de seu exerccio.

    Silvio Ferraz (1998, p. 190) ressalta as estratgias e vises de Messiaen

    quanto s irregularidades de sons da natureza com seus politempos,

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    atravessando a unidade do pulso sob um carretel heterogneo de duraes que se

    acotovelam.

    As peas de Messiaen, posteriores a Le merle noir (1951) e Rveil des oiseaux (1953), permitem essa experincia de levar as faculdades cognitivas ao limite em que fervilham as diferenas. A partir desse perodo, a obra de Messiaen v surgir cada vez mais momentos de sobreposio: sobreposio de cantos de pssaros (de um mesmo continente e de vrios continentes), sobreposio de ritmos, sobreposio de cores. Com isto o compositor buscava um caminho para acabar com o tempo cronolgico e direcional e estabelecer a durao da eternidade e do vivido, tecendo em sua msica uma superfcie que mergulha o ouvinte num devaneio de irregularidades mtricas, em que o tempo vago e ondulante (Ferraz, 1998, p. 190).

    O limite, que Ferraz menciona, o limite transcendental deleuzeano em

    que fervilham as diferenas. Limite que obriga a sensibilidade a sentir o que s

    pode ser sentido, e no mais imaginado ou entendido (num eventual acordo

    objetivo). A falncia da imaginao e do entendimento ante s percepes

    aritmticas propostas por Messiaen ou Gramani evidenciam, portanto, que o

    ritmo, em ambas as concepes, s pode ser, propriamente, o objeto

    transcendental da sensibilidade, no obstante destitudo de superfcie sensvel.

    Mas e o ritmo que se l, se solfeja e que conquistamos paulatinamente

    nos manuais tradicionais, obedecem a qual estatuto? Dizemos que o ritmo que se

    l um cdigo, permanncia abstrata de certos aspectos do ritmo. Aqui nos vem

    mente os clichs cunhados na histria, todo o repertrio de figuras e frases que

    encorpam nosso vocabulrio musical, e que evidentemente, no os desmerecem.

    De fato, parece ser preciso estar altura dos eventos que os sustentam

    para interpret-los em contextos musicais. Se a aritmtica um aspecto que nos

    ajuda na realizao musical ela deve, contudo, se fazer acompanhada de ampla

    experimentao que certamente faria reingressar, no ritmo escrito, uma carga

    extranumerria ou acontecimental produzida na experincia e que insiste nas

    leituras de maneira tcita, principalmente sob a forma cultural de um conjunto de

    escutas.

    A este ponto podemos dizer, j, que nossa ideia de ritmo se enfraquece se

    polarizado na compreenso mtrica das estruturas. O que criticamos nessa

  • A. Ribeiro e M. Coelho Medida e desmedida na Rtmica de Jos Eduardo Gramani

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    posio, com a sobrevinda do pensamento de Bergson, que a mtrica estrutural

    espacializa e esvazia o Tempo, tornando-o uma grandeza anloga ao espao. O

    ritmo crtico, e toma melhor figura nos ambientes inventivos de improvisao.

    O ritmo crtico e envolve, portanto, certa vulnerabilidade quanto a seus

    modos de sustentao, o que certamente sustenta a pluralidade de problemas da

    performance. O ritmo, por definio, vivo e vivificante; ele atua num meio, o faz

    vibrar, estando sempre entre. O ritmo crtico o lxico do Tempo.

    5. Saindo da msica pela fi losofia

    Nada indica, pelo menos em textos, que o pensamento de Gramani tenha

    tal ou qual compromisso filosfico. Vimos que em sua formao e em sua prtica

    educativa, Gramani cultivou contatos e mostrou simpatias por compositores e

    pensadores, mas em momento algum se props defesa de suas ideias a partir de

    referncias alheias sua viva experincia.

    Sem dvida observamos sintonias com certas correntes de ideias, mas, de

    qualquer modo, somos levados a entender que a arte no precisa e nada deve

    filosofia como atividade de pensamento.

    Com Deleuze e Guattari (1992, p. 213) estamos atentos a crer que a

    experincia da msica uma atividade autnoma de pensamento e que,

    diferentemente da filosofia, cujo modo de pensar se d por conceitos, o

    pensamento musical se sustenta por sensaes, afetos e perceptos que duram

    numa matria sonora.

    O que fazemos aqui tambm uma experincia, muito embora focada na

    transversalidade dos campos musical e filosfico. Sujeitos a um grande entusiasmo

    pelo empirismo, apreendemos o sentido prtico de um texto; de fato, a prpria

    teoria uma prtica, uma experincia do pensamento. Tal como na msica, os

    textos nos fazem confrontar posicionamentos diversos e experimentarmos, a partir

    disso, ritmos que se trocam, batimentos, sintonias e ressonncias.

    Um meio reage sobre outro, e entre eles, subsiste o ritmo como atividade

    modulante exterior aos meios em que a ao se desenrola. De repente somos

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    levados por uma breve sonoridade a um turbilho de conceitos, ou sentimos que

    um conceito ganha matizes extraordinrios numa musicalidade qualquer.

    Boulez provou com maestria essa intensa onda, esse hbito nas vagas

    interessantssimas do conceito e dos perceptos. Uma ideia musical pode, de

    alguma maneira, envolver um modo filosfico ou conceitual de ver o mundo e o

    insinuar como espectro modulante numa matria sonora.

    J no era o espectro (ento fantasmagrico) que acometeria Hamlet a

    provocar o seu mortificante the time is out of joint? A forma transcendental do

    tempo balanaria de maneira decisiva as estruturas lineares do tempo, agravando

    sua ruptura contempornea na diversidade processual do sculo XX.

    Silvio Ferraz (1998, p. 183-210), analisa em seu Msica e Repetio

    aspectos importantes da rtmica de Messiaen, mostrando que, tal como na

    reverso kantiana entre tempo e o movimento O tempo o que se desenrola, e

    no as coisas se desenrolam no tempo (Ferraz, 1998, p. 210).

    Tais anlises corroboram o tema inicial que Ferraz subtrai de Deleuze e

    que reproduzimos a seguir:

    fazer do som o artifcio que torna o tempo sensvel (...) organizar o material para captar as foras do tempo e torn-las sonoras: este o projeto de Messiaen (BPT, p. 100) (Ferraz, 1998, p. 183).

    De qualquer forma, se nos reportarmos msica de Messiaen, Cage,

    Boulez, Schaeffer, Stockhausen, Reich e tantos outros veremos que h, j a, uma

    nova modalidade do pensamento insistindo nos modos tradicionais de se sentir e

    compreender msica.

    E se a msica popular, to cara a Gramani, se sente de modo mais

    modesto com relao ao pensamento conceitual, isso de maneira alguma diminui

    sua fora como meio de expresso rtmica, j que uma diversidade enorme de

    territrios musicais e existenciais se sinalizam atravs dela.

    Evidentemente j no nos controvertemos aqui de modo pueril com

    relao ideia de ritmo, e se algo se expressa nos materiais dos quais a msica

    dispe, dizemos, no sem certa cautela, que esse algo so as prprias tenses ou

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    graus da durao que se desenvolvem nos extensos, mas que se furtam

    discriminao emprica da sensibilidade.

    Neste sentido, j estamos na esfera dos signos e no mais acerca de

    objetos de uma percepo fenomenolgica, contedos de futuras categorizaes

    da escuta.

    Mas se o ritmo atividade crtica que se estabelece entre dois, todavia

    estar entre dois j estar entre muitos. Dizemos um e outro como um vcio de

    linguagem; na verdade h muito de um no outro e de outro no um. A histria das

    ideias j nos precaveu o suficiente quanto a sabermos ou no ao certo onde o um

    comea e o outro acaba.

    Kant j havia criticado o cogito cartesiano provocando uma segunda

    emancipao do tempo. Descartes opera a laicizao ou a secularizao do tempo

    quando faz do eu penso a determinao de uma substancia pensante que j no

    depende da mediao divina. No entanto, como mostra Kant, seria preciso ainda

    dizer de que maneira ele determinvel. A resposta : somente no tempo,

    sob a forma do tempo, que a existncia indeterminada torna-se determinvel.

    Assim o eu penso afeta o tempo e s determina a existncia de um eu que muda

    no tempo e apresenta a cada instante um grau de conscincia (Deleuze, 1997, p.

    38). Segundo este percurso Deleuze pretende chegar a evidncia de um eu passivo

    (e no meramente receptivo, como em Kant) que racha o Eu cartesiano, dado que

    algo o divide por dentro, a saber, a potncia de variao do tempo, como forma

    de interioridade:

    A interioridade no pra de nos escavar a ns mesmos, de nos cindir a ns mesmos, de nos duplicar, ainda que nossa unidade permanea. Uma duplicao que no vai at o fim, pois o tempo no tem fim, mas uma vertigem, uma oscilao que constitui o tempo, assim como um deslizamento, uma flutuao constitui o espao ilimitado (Deleuze, 1997, p. 40).

    O progresso dessas ideias ir dar a Deleuze a condio de dizer de que

    modo Kant leva o Eu um outro...9 de Rimbaud mais longe.

    9 Rimbaud, carta a Izambart, maio de 1871, carta a Demeny, 15 de maio de 1871.

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    Sabe-se somente que algo se compe, suscita um deslocamento, um

    movimento de contrao e distenso, uma desconfiana, uma emoo.

    Dalcroze falava de alegrias, sstoles e distoles. Neste sentido j estamos

    muito prximos de Bergson, mas principalmente de Espinosa, dos bons encontros,

    dos afetos que alam uma potncia a um estado de variao mais perfeito.

    Algo ressoa em pontos especficos. Nem tudo ressoa em tudo. uma

    questo material que impede que o mundo seja uma perfeita ressonncia. Restam

    meados de mundos, cruzamentos de ideias afins que abrem, com alegria, um

    mundo a outros mundos.

    Mais do que pontes, preciso, como ensina o prof. Luiz B. L. Orlandi,

    produzir estreitas banguelas que nos conduzem humildemente a um espao que

    j estamos aptos a explorar.

    Neste sentido, Gramani no produz conceitos, mas seu senso invulgar do

    empirismo toca e repercute, como o tambor leibniziano, muitos mundos e pontos

    brilhantes da filosofia; um deles esbarra na concepo duvidosa da desmesura

    rtmica que enfrenta as evidncias de uma razo aritmtica.

    Afeito a uma fina (e sigilosa) matemtica diferencial, na qual o ritmo

    sempre um entre, Gramani nos prope o transbordamento da estrutura pelo

    corpo; corpo que lhe d o volume da experincia, que a infla de dentro: um

    volume fsico e social, cultural e tico.

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