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ANO XV – 2016 – Nº 60

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück, Alemanha)

Davi de Paiva Costa Tangerino (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ)David Sanchez Rúbio (Universidade de Sevilha/Espanha)

Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília)Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo)Felipe Augusto Forte de Negreiros Deodato (Universidade Federal da Paraíba/PB)

Fernando Machado Pelloni (Universidade de Buenos Aires/Argentina)Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica/RS)Helena Lobo da Costa (Universidade de São Paulo/SP)

Heloisa Estellita (Fundação Getúlio Vargas/SP)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra)Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Vittorio Manes (Universidade de Salento, Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

Revista de estudos CRiminais

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Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xv – nº 60Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

ASSINATURAS: São Paulo: (11) 2188-7507 – Demais Estados: 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico:São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188-7900

Demais Estados: 0800.7247900

www.sintese.com

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores. Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no idioma original ou traduzidos.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

E-mail para remessa de artigos: [email protected]

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.iobfolhamatic.com.br

Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900E-mail: [email protected]

Renovação: Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7283888

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Sumário

doutRina estRangeiRa

9 El Control de Espacios Públicos como Técnica ee Exclusión Social. Algunos Contrastes Regionales

(José Luis Díez Ripollés)

35 El Efecto Retroactivo del Principio de Accesoriedad Externa en la Participación Delictiva

(Ezequiel Vacchelli)

doutRina naCional

61 A Regulação Penal da Exclusão Social no Tráfico de Seres Humanos

(Luciana Maibashi Gebrim)

91 Reflexões Sobre os Efeitos Criminais da Lei Maria da Penha à Luz da Análise Econômica do Direito

(Oksandro Osdival Gonçalves e Rafael Osvaldo Machado Moura)

115 O Que Veem as Mulheres Quando o Direito as Olha? Reflexões sobre as Possibilidades e os Alcances de Intervenção do Direito nos Casos de Violência Doméstica

(Camila Cardoso de Mello Prando)

143 O Controle Penal da Corrupção e o Modelo Organizacional do Ministério Público: Contexto Sociopolítico e Fragmentos do Debate Contemporâneo

(Bruno Amaral Machado)

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177 Contribuição da Filosofia e da Psicologia para a (Não) Justificação Penal Diante de Dilemas Morais

(Rafael Ferreira Vianna)

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Sumário

doutRina estRangeiRa

9 El Control de Espacios Públicos como Técnica ee Exclusión Social. Algunos Contrastes Regionales

(José Luis Díez Ripollés)

35 El Efecto Retroactivo del Principio de Accesoriedad Externa en la Participación Delictiva

(Ezequiel Vacchelli)

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EL CONTROL DE ESPACIOS PÚBLICOS COMO TÉCNICA DE EXCLUSIÓN SOCIAL.

ALGUNOS CONTRASTES REGIONALESCONTROL OF PUBLIC PLACES AS A SOCIAL EXCLUSION

TECHNIQUE. SOME REGIONAL CONTRASTSJosé Luis Díez RipoLLés*-**

RESUMO: A cidade enquanto espaço privilegiado de interação e cooperação sociais, no qual se facilita a relação entre pessoas des- conhecidas, vem experimentando uma notável transformação. Esta reorganização incide de maneira singular sobre pessoas e coletivos sociais tradicionalmente suspeitos, cuja exclusão social se vê acen- tuada. Este estudo analisa as várias técnicas de deslocamento dessas pessoas e coletivos com relação aos espaços públicos cidadãos, mais concretamente: os condomínios fechados e o aburguesamento de bairros, a utilização de câmeras de vigilância em locais públicos e privados de acesso público, e as proibições ao acesso de determinadas pessoas e alguns espaços públicos. O trabalho pretende confrontar tais práticas em duas áreas geográficas com significativas diferenças no que se refere à prática do controle social, que são os Estados Unidos da América e os países nórdicos europeus.PALAVRAS-CHAVE: Exclusão social; controle de espaços públicos; condomínios fechados; aburguesamento; videocâmaras; proibições de acesso; política criminal comparada.ABSTRACT: Cities as privileged spaces for social interaction and cooperation, where easy relations occur among residents, are experiencing a profound transformation. This reconfiguration affects mainly to traditionally suspected persons and groups, whose social exclusion is strengthened. The study targets a number of techniques,

* Catedrático de Derecho Penal y Director del Instituto Andaluz Interuniversitario de Criminología de la Universidad de Málaga. Sus más recientes líneas de investigación se concentran en la política criminal y en la política legislativa penal. Entre sus últimas publicaciones se encuentran (2013) Política criminal y derecho penal. 2. ed. Valencia. Tirant lo Blanch, y (2013) La racionalidad de las leyes penales, 2. ed. Madrid, Trotta.

** La correspondencia debe enviarse a: José Luis Díez Ripollés. Facultad de Derecho. Universidad de Málaga. Bulevar Louis Pasteur. Campus de Teatinos. 29071 Málaga. España. [email protected].

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which displace these persons and groups from city public spaces, such us: gated communities and gentrification, employment of CCTV techniques in public places and in private places with public access, and off-limits, exclusion and no-trespass orders. The paper intends to confront such practices in two geographical areas with significant differences in the enforcement of social control, the United States of America and the European Nordic countries. KEYWORDS: Social exclusion, control of public spaces, gated communities, gentrification, CCTV, banishment, comparative criminal justice policy. RESUMEN: La ciudad como espacio privilegiado de interacción y cooperación sociales, en la que se facilita la relación entre desconocidos, está experimentando una notable transformación. Esa reorganización incide singularmente sobre personas y colectivos tradicionalmente sospechosos, en los que acentúa su exclusión social. El estudio analiza varias técnicas de desplazamiento de esas personas y colectivos de los espacios públicos ciudadanos, en concreto: las urbanizaciones cerradas y el aburguesamiento de barrios, el empleo de videocámaras en lugares públicos y privados de acceso público, y las prohibiciones de acceso de ciertas personas a determinados espacios ciudadanos. El trabajo pretende confrontar tales prácticas en dos áreas geográficas con marcadas diferencias en la práctica del control social, Estados Unidos de América y los países nórdicos europeos.PALABRAS CLAVE: Exclusión social, control de espacios públicos, ur ba ni za ciones cerradas, aburguesamiento, videocámaras, prohi-biciones de acceso, política criminal comparada.SUMARIO: 1 La transformación de la ciudad; 2 Su repercusión sobre colectivos penalmente sospechosos; 3 Las urbanizaciones cerradas y el aburguesamiento de barrios; 4 El uso de videocámaras en lugares públicos o privados de acceso público; 5 Técnicas de prohibición de acceso a determinados espacios ciudadanos; 6 Conclusiones; Financiación; Referencias.

1 LA TRANSFORMACIÓN DE LA CIUDADLa ciudad se ha considerado desde antiguo como lugar privilegiado

de interacción social, y no es por azar que términos tan relevantes para nuestra convivencia como civilización o ciudadanía, entre otros, deriven etimológicamente de ese término. La ciudad ha constituido el espacio en el que los seres humanos han podido desarrollar plenamente sus capacidades comunicativas y donde han podido beneficiarse de los efectos de la cooperación social. Sus diversas configuraciones históricas dicen mucho sobre la cultura de la época, pues los espacios ciudadanos pueden diseñarse de acuerdo a un amplio espectro de posibilidades.

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La estructura ciudadana puede ser una que facilite la relación con extraños, las interacciones entre desconocidos en ella residentes. Se potencia de este modo la capacidad de la ciudad para generar un sentimiento de pertenencia a un mismo colectivo y, consecuentemente, para aprovechar las cualidades de cada uno de sus integrantes a la hora de llevar a cabo tareas comunes mutuamente beneficiosas. Eso supone que la ciudad se organiza de manera que incentiva o al menos no obstaculiza relaciones continuas, ocasionales o persistentes, entre todos sus ciudadanos; que procura que ningún ciudadano o colectivo con independencia de sus condiciones personales o sociales, y a salvo el mantenimiento de una convivencia pacífica, se vea excluido de las atrayentes posibilidades de autorrealización personal que la ciudad ofrece; y que aprovecha las sinergias colectivas derivadas de la cooperación social.

Sin embargo, la ciudad puede también organizar sus espacios de un modo que, sin renunciar a ser la catalizadora de la convivencia social, fomente determinadas interacciones sociales en detrimento de otras, y excluya o limite a ciertos ciudadanos o grupos el acceso o la participación en algunas de esas actividades sociales. La ciudad, entonces, compatibiliza su función integradora con otra segregadora o diferenciadora. Se convierte así en un instrumento discriminante de las interacciones sociales, y entorpecedor de los sentimientos de pertenencia colectiva. Desaprovecha, en fin, los beneficios derivados de la integración social del conjunto de los ciudadanos (Baumann, 2006; Young, 2003).

En este sentido, es cada vez más frecuente que nuestras ciudades del mundo desarrollado modelen determinados espacios urbanos de un modo que excluyen tanto interacciones sociales distintas a las asignadas específicamente para ese lugar como incluso la presencia de ciudadanos con apariencia o comportamiento diversos a los deseados en ese ámbito: Se provee a zonas destinadas predominantemente al consumo de bienes y mercancías de instrumentos para desanimar el acceso a esos lugares de ciudadanos no consumidores, o de ciudadanos que pueden desincentivar la actividad comercial de los consumidores. Áreas con especiales cualidades para atraer el turismo son dotadas de los medios precisos para que aquellos ciudadanos cuya apariencia no corresponde con la imagen que se quiere transmitir, o que disfrutan parasitariamente de ese espacio, tengan dificultades para permanecer en ellas. En los distritos financieros se impide la presencia de personas que difícilmente van a poder trabajar en esa rama profesional, o utilizar esos servicios, para evitar contrastes incómodos en la actividad cotidiana. Barrios residenciales con un nivel económico alto o medio se

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estructuran de manera que se obstaculice el acceso irrestricto de quienes no alcancen ese nivel, previniendo así malestar o inquietud entre los residentes.

No parece exagerado afirmar que existe en el mundo desarrollado una progresiva renuncia a configurar las ciudades como lugares de interacción social de todos sus ciudadanos. Un número cada vez mayor de lugares públicos, como aeropuertos, estaciones, vías rápidas, plazas, parques, entre otros, se diseña específicamente para entorpecer la interacción social o hacerla muy superficial, y se le dota del mobiliario correspondiente: grandes espacios a recorrer con medios mecánicos, bancos incómodos o ausentes, carencia de aceras, lugares diáfanos poco acogedores, ausencia de aseos callejeros, etc. Estos y otros lugares públicos están controlados mediante videocámaras o sometidos a controles de acceso. Espacios antes públicos, como calles comerciales, estaciones de transporte, centros prestadores de servicios generales adoptan el régimen propio de los lugares privados de acceso público. Estos últimos están plagados de videocámaras, barreras de acceso, vigilantes privados [...] Las clases acomodadas colonizan viejas zonas residenciales, antes habitadas por ciudadanos con menor renta, lo que origina el aburguesamiento de esos barrios y fuerza a los antiguos residentes a abandonarlos al no poder afrontar las nuevas condiciones socioeconómicas. Vivir en una urbanización cerrada, que impida mediante obstáculos físicos el acceso sin autorización de los no residentes, y provista del mayor número de servicios dentro de ella, constituye cada vez más un signo de alto estatus social en la medida que reduce las interacciones sociales interclasistas (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert 2010; Cerezo Domínguez y Díez Ripollés, 2011; Coleman y Sim, 2005; Doherty, Busch-Geertsema, Karpuskiene et al., 2008; Lynch, 2001; Medina, 2011; Midtveit, 2005; Mork Lomell, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004).

La criminología no se ha mantenido ajena a esta evolución y ha suministrado técnicas relevantes para su consolidación: desde los más conspicuos enfoques de prevención situacional, centrados de modo especial en eliminar las oportunidades delictivas, hasta las propuestas de prevención del delito mediante el diseño ambiental – CPTED –, más integradas en un enfoque de prevención comunitaria y de reforzamiento de los lazos de apego al territorio y espacio urbanos (Medina, 2011; Vozmediano y San Juan 2010).

Las causas de esta transformación urbana son variadas y solo podemos ahora apuntar algunas de ellas. El asentamiento del neoliberalismo, con el correspondiente socavamiento de la sociedad del bienestar, fomenta el individualismo y el desentendimiento de las responsabilidades colectivas. No es de extrañar que ello origine simultáneamente despreocupación por

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el aseguramiento de espacios no segregados de interacción social, y por los espacios públicos en general. Con frecuencia ese desinterés lleva a la privatización de los espacios públicos en cuanto se les puede sacar un rendimiento. Por otro lado, se han acentuado las tendencias de segregación social residencial, de las que son solo un ejemplo el aburguesamiento de barrios y las urbanizaciones cerradas. A esta transformación no ha escapado el diferenciado modo de vida mediterráneo, dados la pérdida de prestigio de la tradicional ciudad compacta a favor de la diseminada y la tendencia a localizar las viviendas sociales fuera de la trama urbana consolidada. Los barrios pobres, que no pueden disponer por sí mismos de los recursos necesarios para mejorar su habitabilidad ni tienen la influencia política necesaria, sufren un proceso de degradación de las condiciones de vida. Finalmente, la competencia entre las ciudades para atraer inversiones turísticas, comerciales, financieras o de otro tipo requiere que ciertos espacios ciudadanos, singularmente los centros urbanos, sean objeto de una transformación teatral, que exige ocultar o enmascarar algunos lugares y desterrar a determinados colectivos de esos espacios (Baumann, 2006; Cerezo Domínguez y Díez Ripollés, 2011; Medina, 2011; Young, 2003).

2 SU REPERCUSIÓN SOBRE COLECTIVOS PENALMENTE SOSPECHOSOS

Esa reorganización de las ciudades incide de manera significativa sobre ciertos grupos proclives a entrar en conflicto con la ley penal, en los que esa transformación urbana dificulta apreciablemente su ya deficiente inclusión social. Así, se priva a los sin techo y marginados sociales de lugares imprescindibles para satisfacer sus necesidades vitales básicas o de convivencia, o se desposee a los jóvenes de espacios de socialización favorecedores de su maduración personal. En realidad los efectos negativos se hacen sentir sobre la ciudadanía en general: Se extiende un manto de sospecha y desconfianza sobre el comportamiento que cualquier ciudadano pueda realizar en lugares públicos o lugares privados de acceso público.

Pero detengámonos en los colectivos primeramente aludidos y valoremos la medida en que esas modificaciones urbanas modifican el control social habitualmente ejercido sobre esos grupos, sospechosos en cuanto no normalizados. Ante todo, cabe destacar que los grupos antedichos padecen en los últimos tiempos una estigmatización acentuada que repercute en un incremento de su control en los espacios públicos que usan. Se ha asumido, por lo general acríticamente, que esos modos de vida marginales o esas conductas incívicas, en ocasiones productores de conductas delictivas

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de limitada importancia, son reflejo o antesala de conductas delictivas más graves; o simplemente se ha reducido el umbral de lo aceptable en espacios públicos o en espacios privados de acceso público.

Ese mayor control no se orienta por la conducta delictiva realizada o prevenida, sino por el estatus social atribuido a determinadas personas, estatus que se establece discrecionalmente a partir de su apariencia o forma de vida. Objetivo primordial de ese control, por otra parte, es desplazar a esos ciudadanos de ciertos espacios urbanos, y no tanto castigar, mucho menos resocializar; supone el triunfo de la teoría de las ventanas rotas frente al enfoque algo más empático de la policía comunitaria. Por lo demás, las técnicas que sirven a ese control de los lugares públicos o privados de acceso público no suelen ser objeto de cuestionamiento en sus fundamentos, limitándose la oposición a buscar compromisos que respeten ciertos derechos de los afectados (Baumann 2007; Beckett y Herbert 2008; Beckett y Herbert, 2010; Cerezo Domínguez y Díez Ripollés, 2011; Coleman y Sim, 2005; Doherty, Busch-Geertsema, Karpuskiene et al. 2008; Herbert, 2001; Mork Lomell, 2004; Young, 2003).

A continuación voy a analizar tres fenómenos relativos al control de los espacios públicos. Pero antes conviene señalar que este estudio se integra en una iniciativa investigadora más amplia con la que se pretende validar un instrumento de comparación de los sistemas político-criminales nacionales del mundo desarrollado. Ese instrumento adopta como punto de referencia la dimensión inclusión / exclusión social, en lugar de otros criterios más usuales. Esa dimensión no pretende medir los efectos sociales incluyentes o excluyentes que un determinado sistema de control penal nacional produce en el conjunto de la población, sino que concentra su atención en las personas o colectivos que son objetivo prioritario de los órganos de prevención y persecución penales, fundamentalmente sospechosos, delincuentes y exdelincuentes.

Para materializar el citado instrumento comparativo he propuesto un conjunto de indicadores agrupados en 9 cestas, estando cada una de ellas centrada en un tema relevante de la política criminal contemporánea. Se trata de desarrollar una escala que mida la dimensión inclusión / exclusión social en los diferentes sistemas de control penal nacionales a partir de los resultados obtenidos en esos indicadores, y que permita localizar a cada país estudiado en un determinado lugar de un continuo cuyos dos extremos estarían constituidos por los dos sistemas nacionales más contrapuestos.

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Además, he afirmado que hay suficientes indicios para anticipar que una mayoría de los estados de Estados Unidos de América y su sistema federal podrían estar en el extremo de la exclusión social, mientras que los países nórdicos europeos – Dinamarca, Finlandia, Noruega y Suecia – podrían encontrarse en el otro extremo de la inclusión social (Díez Ripollés, 2011).

Mientras los esfuerzos para concretar y validar ese instrumento de medida siguen su curso bajo el impulso de un equipo de investigadores del Instituto de Criminología de la Universidad de Málaga, puede resultar interesante profundizar en la capacidad de los indicadores propuestos para reflejar efectos incluyentes o excluyentes, así como comprobar si se registran los contrastes predichos en reglas y prácticas entre los Estados Unidos y los países nórdicos europeos.

Para ello voy a centrarme en una de las cestas de indicadores, aquella que se ocupa justamente de las diversas reglas y prácticas que se están consolidando en nuestras sociedades para el control de los sospechosos en los espacios públicos. Así, voy a analizar las urbanizaciones cerradas y el aburguesamiento de determinados barrios, el uso de videocámaras en lugares públicos y privados de acceso público, y las nuevas técnicas de prohibición de acceso a determinados espacios ciudadanos. Y voy también a verificar las diferencias que se aprecian al respecto entre los dos grupos de países aludidos.

3 LAS URBANIZACIONES CERRADAS Y EL ABURGUESAMIENTO DE BARRIOS

Las urbanizaciones cerradas son desarrollos inmobiliarios constituidos por una pluralidad de edificios residenciales que interponen obstáculos físicos de acceso a lo largo del perímetro de la urbanización. Esos obstáculos se acompañan de controles en las vías de acceso a la urbanización de naturaleza personal y/o electrónica. Por lo general se procura que el mayor número posible de servicios generales se presten dentro de la propia urbanización – comercios, escuelas, centros de salud, instalaciones deportivas o de recreo... –, con la pretensión de reducir la necesidad de interactuar con el exterior de la urbanización.

El fenómeno de las urbanizaciones cerradas – gated communities – está muy generalizado en las ciudades estadounidenses, con datos elocuentes al respecto. A comienzos de siglo, alrededor de 9 millones de estadounidenses viven en ellas, se calcula que hay tres millones de unidades residenciales

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integradas en ellas, y en muchas áreas urbanas constituyen una mayoría de las promociones en marcha (Lynch, 2001; Midtveit, 2005).

En una primera aproximación puede entenderse que, al reforzar la seguridad personal de sus residentes frente a conductas delictivas o incívicas, son un medio de promoción de las relaciones personales entre los habitantes de la urbanización. Sin negar que tal cosa suceda, lo cierto es que constituyen un relevante mecanismo de renuncia a la interacción social con el conjunto de los ciudadanos. Los no residentes pasan por ese mismo hecho a ser sospechosos, y precisan de un aval interno para acceder al privilegiado entorno en el que tienen lugar relaciones personales selectivas. Los desconocidos y los extraños en general no pueden participar en ellas. En último término, estamos ante un instrumento de homogeneización social, y con frecuencia racial, que posibilita la segregación voluntaria de grupos de población con niveles socioeconómicos medios y altos de los restantes colectivos integrantes de la sociedad.

Estos últimos, si no comparten las características socioeconómicas precedentes, tienen fuera de su alcance esas zonas residenciales: Su deseo de residir en ellas se ve frustrado por su incapacidad para cumplir los requisitos de precio o extracción social o racial artificialmente predeterminados por promotores inmobiliarios o residentes. No sin razón se ha afirmado que tales urbanizaciones suelen contravenir en su modo de operar la prohibición de discriminación en el mercado de la vivienda. Del mismo modo, todo intento de acceder a ellas al margen de los controles establecidos convierte a quienes lo intentan en sospechosos de infringir la ley penal, o directamente en infractores. De una manera u otra, estamos ante una tecnología privatizadora de espacios y servicios públicos que dificulta al conjunto de ciudadanos, con su asentimiento o sin él, interactuar entre sí, lo que genera exclusión social en unos e incomprensión social en otros (Baumann, 2006; Lynch, 2001; Medina, 2011; Midtveit, 2005).

Se ha teorizado que se trata de un fenómeno paralelo al del encarcelamiento masivo de nuestros días: Si un porcentaje significativo del colectivo pobre de nuestra sociedad se encuentra en prisión, encerrado involuntariamente, una parte cada vez mayor de los sectores acomodados de la sociedad se encierra voluntariamente en sus urbanizaciones y renuncia con gusto a establecer relaciones sociales con quienes no pertenecen a su estrato social. Si a eso se une el fenómeno del progresivo cerramiento de los complejos de viviendas sociales, que veremos más adelante, se aprecian rasgos inquietantes de desaparición del concepto de sociedad como

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comunidad de convivencia, a favor de una mera yuxtaposición de colectivos con escasa interrelación entre ellos y con el consecuente desentendimiento de los compromisos y obligaciones comunes (Lynch, 2001; Simon, 2007).

No es frecuente encontrar urbanizaciones cerradas en los países nórdicos europeos, donde tienen una presencia muy limitada (Lappi-Seppälä, 2014; Midtveit, 2005).

Lo más parecido a ello en estos países es el fenómeno de aburguesamiento de determinados barrios céntricos o bien situados de las ciudades. Como es sabido, políticas de recuperación de zonas urbanas degradadas, en especial cuando ofrecen claros incentivos de lucro a promociones inmobiliarias privadas, dan lugar a una rehabilitación de esas áreas que con frecuencia modifica notablemente la población residente. La mejora de viviendas y equipamientos, cuando no su casi general sustitución, hace subir sustancialmente los precios de la vivienda que pasan a ser accesibles solo a personas de clase media o media-alta, en contraste con los precedentes residentes de niveles sociales más bajos. La consecuente modificación, renovación y, en todo caso, encarecimiento de los comercios del barrio, los cuales se acomodan a las demandas de los nuevos residentes, así como las plusvalías generadas por la venta de viviendas pendientes de rehabilitación hacen que se produzca la práctica desaparición de los residentes originales.

En la medida en que no se establezcan planes encaminados a preservar la residencia en ese mismo barrio de la población anterior en viviendas restauradas, estamos sin duda ante una técnica de exclusión social de naturaleza espacial. En realidad, la tolerancia del aburguesamiento de barrios ciudadanos refleja una tendencia política de mayor alcance: supresión de los esfuerzos por garantizar una composición interclasista de los diferentes barrios urbanos, objetivo que en otro tiempo fue impulsado mediante la localización de los complejos de viviendas sociales en muy diferentes sectores de la trama urbana y no en su extrarradio devaluado (Lappi-Seppälä, 2014; Medina, 2011; Midtveit, 2005). Otra manifestación de tolerancia hacia ese aburguesamiento es la renuncia a contrarrestar las resistencias vecinales a la construcción de edificios municipales destinados a prestar servicios asistenciales a colectivos desfavorecidos; pese a su buena localización dentro de la trama ciudadana, termina siendo inimaginable su radicación en tales barrios (Lappi-Seppälä, 2014).

Conseguida esa segregación social, su mantenimiento, impidiendo que marginados y pobres estén presentes en barrios recuperados para las

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clases acomodadas, no se produce mayoritariamente mediante obstáculos físicos o electrónicos, a juzgar por diversas experiencias nórdicas. Se utilizan técnicas simbólicas más suaves, como las de saturación: El fuerte incremento de la presencia de personas de niveles socioeconómicos medios y altos en esos lugares, sean residentes sean personas que se sirven de la nueva oferta comercial o de ocio de esos barrios, hace que la presencia de colectivos de niveles bajos o marginales se convierta en primer lugar en llamativa para todos y más adelante en incómoda para estos últimos grupos. Sometidos a un fuerte control social informal, terminan abandonando esas zonas urbanas (Borch, 2005; Midtveit, 2005).

4 EL USO DE VIDEOCÁMARAS EN LUGARES PÚBLICOS O PRIVADOS DE ACCESO PÚBLICO

El uso de videocámaras en lugares públicos o lugares privados de acceso público persigue normalizar, más bien restringir, los comportamientos que pueden realizarse en determinadas zonas urbanas, singularmente centros históricos y comerciales. Se ha podido constatar que la frecuencia del uso de videocámaras es tanto mayor cuanto más arraigado se encuentre en la sociedad el pensamiento neoliberal, menor aprecio se dé en ella a la privacidad, menor atención se preste a la evaluación de la eficacia de las políticas públicas, y mayor promoción de su implantación se haga por parte de los poderes públicos. Su empleo masivo parte de un concepto de prevención descontextualizado, de carácter situacional, que autonomiza lugares concretos como fuente de delitos o conductas incívicas, sin tener debidamente en cuenta los factores sociales generadores de criminalidad o desórdenes en la ciudad (Anderson, 2012; Björklund, 2013; Coleman y Sim, 2005; Murakami Wood, 2009; Norris y McCahill, 2006; Norris, McCahill, y Wood, 2004; Welsh y Farrington, 2009).

Sin embargo, su objetivo primordial de prevenir la delincuencia se ha mostrado en gran medida vano. Abundantes estudios empíricos sobre lugares públicos han demostrado que efectos reductores de la delincuencia solo se aprecian en lugares muy delimitados, restringidos a los delitos contra la propiedad, y con frecuentes efectos de desplazamiento o difusión. En realidad, se ha probado que existen medidas más eficaces para prevenir la delincuencia en los lugares públicos, y menos contraproducentes, como un adecuado alumbrado o la reducción de la permeabilidad vial de ciertas zonas

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(Cerezo Domínguez y Díez Ripollés, 2011; Hempel y Töpfer, 2009; Huey, 2010; Medina, 2011; Welsh y Farrington, 2009)1.

Por otra parte, debemos ser conscientes de que una aproximación valorativa a esta técnica de control no debe limitarse al respeto que merecen la intimidad o privacidad de los ciudadanos en lugares públicos o privados de acceso público. Sin negar su relevancia, es indudable que existe una cierta tolerancia social a afecciones a la intimidad en lugares públicos y asimilados producidas por grabaciones de videocámaras, por más que se discrimina según lugares, intensidad y condiciones. En este último sentido, hay fuerte resistencia al uso de dispositivos de audio, se otorga especial importancia a la identificación y limitación de las personas con acceso autorizado a esas imágenes, y se exige el borrado de ellas transcurrido un tiempo.

Sin embargo, existe otro enfoque valorativo, presente en algunas jurisdicciones como la española o la alemana, que pone el énfasis en el derecho fundamental a la protección de datos personales, el cual expresa en este ámbito la legítima pretensión del ciudadano de controlar la información que se obtiene de él en lugares públicos o privados de acceso público. No se trata de que se respete su privacidad, necesariamente limitada en esos lugares, sino de que el ciudadano pueda determinar aquellos aspectos de su personalidad con los que quiere ejercer sus derechos individuales, sociales y políticos en una sociedad democrática. La captación o difusión indiscriminada de sus datos personales, no necesariamente privados, imposibilita tal cosa. Así, el uso de videocámaras en lugares públicos y asimilados obliga al ciudadano a modificar comportamientos espontáneos, no dañosos socialmente, para preservar su imagen social, o a evitar determinados lugares por la misma razón (Björklund, 2013; Cerezo Domínguez y Díez Ripollés 2011; Gras, 2004; Hempel y Töpfer, 2009; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004; Welsh y Farrington, 2009).

Pero lo relevante para nuestro propósito es el papel de las videocámaras urbanas como instrumento de exclusión social. Se han convertido en un formidable recurso para alejar a determinados colectivos o tipos de personas de ciertos espacios urbanos. Ese papel lo adquirieron tempranamente en los espacios privados de acceso público, pero se ha terminado extendiendo también a las calles, plazas y otros lugares públicos. La facilidad que estos aparatos ofrecen para localizar e identificar a aquellos ciudadanos a los que

1 Sobre la escasa efectividad de las salas de control, Norris y McCahill (2006). Sobre la no acreditada eficacia de las videocámaras instaladas en taxis, Anderson (2012).

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se quiere proscribir el acceso o estancia en esos lugares se aprovecha para conseguir los efectos de selección de clientela, segregación social residencial y transformación teatral de los centros urbanos, entre otras metas, que ya hemos mencionado. No es casual a este respecto que fueran las ciudades turísticas las primeras que, para preservar su ilusoria imagen, generalizaran el uso de cámaras en lugares públicos.

Las personas sobre las que centran su atención esas videocámaras manejadas con ese fin ya nos son conocidas. Se trata de los colectivos sospechosos clásicos, marginados sin actividad laboral conocida, ciudadanos que viven en la calle, pobres sin capacidad de consumo, pandillas de jóvenes con ganas de divertirse, personas que desentonan con el ambiente que les rodea, etc. En suma, ciudadanos identificados mucho más por su apariencia que por las conductas concretas que realizan. De hecho, su exclusión social no se produce tanto por la vigilancia a que son sometidos como por las intervenciones subsiguientes sobre el vigilado indeseable y su frecuencia (Björklund, 2013; Coleman y Sim, 2005; Hempel y Töpfer, 2009; Mork Lomell, 2004; Norris y McCahill, 2006; Norris, McCahill y Wood, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004; Welsh y Farrington, 2009)2.

En la mayoría de los países nórdicos europeos las videocámaras en lugares públicos tienen una presencia muy limitada, siendo más frecuente su instalación en lugares privados de acceso público (Gras, 2004; Mork Lomell, 2004; Norris, McCahill y Wood, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004).

Entre las causas de su reducido arraigo se citan, en línea con lo antes apuntado, la asentada ideología bienestarista de esas sociedades, su tradición de evaluación de los efectos de las políticas públicas lo que cierra con frecuencia el paso a políticas meramente simbólicas, y los obstáculos legales a su implantación en lugares públicos o asimilados, en especial si son operadas por agentes privados. No faltan, sin embargo, advertencias sobre el incremento de su uso (v. Hofer, 2000; Loftsson, 2013; Norris, McCahill y Wood 2004).

2 De ahí que no sorprenda que ciertos personas especialmente marginadas, que desenvuelven su vida habitualmente en lugares muy frágiles, sin desconocer la verdadera función de la vigilancia electrónica a veces manifiestan sentirse más seguras al saber que ellas mismas, pero también todos los que les rodean, están vigilados; se trata de lugares asistenciales especialmente destinados a ellos y, en mucha menor medida, de lugares públicos en general (Huey, 2010).

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En cualquier caso, como en el resto de la Unión europea3, rige plenamente en ellos la Directiva europea 95/46 de protección de datos personales, que contiene un elaborado sistema de protección de esos datos, el cual afecta directamente a la obtención de imágenes y audiciones en lugares públicos y asimilados4. Las correspondientes leyes nacionales nórdicas de implementación de la Directiva adoptan en su mayoría una actitud cautelosa respecto al uso de videocámaras en tales lugares (Björklund, 2013; Gras, 2004; Lohne, 2012; Norris, McCahill y Wood, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004; Welsh, y Farrington, 2009). Entre otros motivos, en ello ha influido el hecho de que, antes de que entrara en vigor la directiva y obligara a la creación de agencias nacionales de protección de datos, ya existían en algunos de estos países esos organismos con el objetivo específico de proteger la privacidad y los datos personales de los ciudadanos. A tal fin tenían competencias de registro de los dispositivos instalados y facultad sancionadora de las infracciones a la regulación vigente. De hecho, estas agencias constituyen en ocasiones un importante referente en el debate público sobre estas materias, en el que participan5.

En Suecia rige un sistema de autorización previa por parte de autoridades administrativas supralocales, a partir de solicitudes debidamente motivadas, con objetivos limitados y que se someten a informe de la autoridad municipal6. Bancos, oficinas de correos y determinados espacios de las tiendas deben únicamente notificar la instalación a la autoridad administrativa, siempre que se limiten a usar cámaras fijas con fines exclusivos de prevención y detección del delito. Es obligatorio informar al público de su presencia, solo los encargados de la vigilancia pueden acceder a las grabaciones, y estas deben

3 A la que pertenecen Dinamarca, Finlandia y Suecia, mientras que Noruega incorpora con asiduidad a su legislación los contenidos de la legislación europea.

4 Véase Directiva 95/46/CE, del parlamento y del consejo de la Unión Europea, de 24 de octubre de 1995. De relevancia es igualmente el Dictamen 4/2004, de 11 de febrero de 2004, sobre Procesamiento de datos personales mediante videovigilancia, adoptado por un Grupo de trabajo de la UE constituido al efecto. Un análisis jurídico específico en Cerezo Domínguez y Díez Ripollés, 2011.

5 Véase un ilustrativo análisis de la agencia de protección de datos noruega en Lohne 2012. No es el caso, sin embargo, de la agencia de protección de datos sueca, la cual ya no tiene competencias sobre la instalación de videocámaras en lugares públicos o privados de acceso público (Björklund, 2013; Loftsson, 2013).

6 Con todo, algún autor llama la atención sobre la posibilidad de operar sin autorización durante un mes, o mientras se sustancia esa autorización y eventualmente el recurso tras su denegación (Loftsson, 2013).

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borrarse transcurrido un mes salvo excepciones derivadas de la persecución de delitos o de algunas infracciones administrativas. La policía está sometida a las mismas condiciones legales para instalar y operar videocámaras en lugares públicos, por más que se admiten excepciones para determinados propósitos (Björklund, 2013; Gras, 2004; Loftsson, 2013; Tham, 2001).

Las cifras de instalación de videocámaras en lugares públicos o privados de acceso público siguen siendo bajas en Suecia, a pesar de que se están incrementando notablemente en los últimos años7. Así, el número de cámaras que solicitaron autorización para ser instaladas o cuya instalación fue notificada, sobre todo en lugares privados de acceso público – con especial frecuencia en líneas de transporte público –, ha pasado de 5.000 en 1996 a 18.000 en 2008. Las autoridades administrativas conceden la mayor parte de las solicitudes, lo que ha llevado a que los permisos hayan aumentado un 45% entre 2005 y 2008. A su vez, las funciones de control por la autoridad administrativa del correcto uso de las videocámaras instaladas parece que por motivos de carga de trabajo han sido en gran medida descuidadas (Björklund, 2013; Gras, 2004; Loftsson, 2013).

De todos modos, aun dentro de la parsimoniosa regulación y utilización de las videocámaras en Suecia, el debate sobre su expansión se desenvuelve en un plano fundamentalmente utilitario, el de su capacidad para prevenir las conductas delictivas en el marco de la prevención situacional. Está soportado por una opinión pública básicamente favorable, escasamente consciente de los serios cuestionamientos empíricos a su eficacia para prevenir delitos, y con una administración municipal cada vez más implicada en la implantación de tales dispositivos. Un factor proclive a la ausencia de un debate político e ideológico es que la privacidad no ha adquirido rango de derecho fundamental en Suecia sino que es un interés más a ponderar con el de seguridad o el de prevención de delitos; en ese contexto se aprecia una clara pérdida de peso del primero frente a los segundos (Björklund, 2013; Loftsson, 2013).

En Noruega no hay tradición de su instalación en lugares públicos ni en comercios ordinarios, pero se está incrementando su uso en lugares privados de acceso público como centros comerciales y nudos de transporte. En esos lugares privados de acceso público que disponen de ellas la práctica es intervencionista, pues da lugar a frecuentes expulsiones de personas de esos espacios (Mork Lomell, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek 2004). A fecha de 2004 solo ha habido alguna experiencia aislada en una plaza pública céntrica, la cual tuvo lugar en 1999: A demanda de un grupo de

7 Una comparación entre Suecia y Reino Unido, con datos de 2000, en Gras (2004).

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comerciantes que quería sanear el lugar, se quiso intervenir sobre el menudeo de droga que en él acaecía, aunque la policía tenía la intención preferente de disuadir a consumidores jóvenes primarios de acudir allí; con todo, el empleo de las cámaras no fue sistemático ni masivo como tampoco las intervenciones sobre los identificados, consistentes en prohibirles el acceso al lugar. Al poco tiempo se abandonó la experiencia. Las razones fueron, por un lado, el reconocimiento del derecho de esas personas a estar en ese lugar y, por otro, los efectos de desplazamiento difuso y consecuente empeoramiento de las capacidades de control del fenómeno que se estaban produciendo (Mork Lomell, 2004; Rudinow Soetnan, Mork Lomell y Wiecek, 2004).

En Dinamarca la regulación existente prohíbe su instalación en lugares públicos o privados de acceso público, salvo excepciones debidamente autorizadas, y su instalación debe siempre advertirse. Sin embargo, hay escasas limitaciones para su uso policial, incluso de modo encubierto (Gras, 2004; Norris, McCahill y Wood, 2004).

En Finlandia, sin embargo, la situación es muy distinta a la de los países precedentes. Diversas estimaciones apuntan a que, tras el Reino Unido, es el país de Europa occidental con más videocámaras instaladas en proporción a la población. Ciertamente su ley de protección de datos se encarga de prohibir la captación de imágenes en espacios privados, y de restringir el uso de cualesquiera imágenes registradas en cualquier espacio, público o privado, en la medida que pasan a constituir un registro de datos personales. Pero se carece de una regulación específica sobre instalación de videocámaras en lugares privados de acceso público, incluso en lugares públicos, existiendo únicamente unas directrices policiales. En consecuencia, no existe un sistema de autorización previa de su instalación en cualquiera de esos lugares, y no siempre es preciso advertir de su existencia (Lappi-Seppälä, 2014).

En los Estados Unidos parece estar muy extendida la instalación de videocámaras en lugares privados en condiciones de captar sin restricciones legales lo que sucede en lugares públicos, manipuladas por personas privadas o públicas. Además, su uso en lugares privados de acceso público es extremadamente frecuente. Había, sin embargo, un cierto retraso en su instalación en lugares públicos, el cual se está superando rápidamente tras los atentados del 11 de septiembre de 2001 (Anderson, 2012; Norris, McCahill y Wood, 2004; Welsh y Farrington, 2009). Con todo, ya en 1996 el 75% de las instalaciones mercantiles utilizaban videocámaras, y en esas fechas su volumen de ventas ya había superado al de los sistemas de alarma antiincendios o antirrobo; del mismo modo, solo en 2002 se estima que se vendieron dos millones de videocámaras (Norris, McCahill y Wood, 2004).

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Pero lo verdaderamente significativo de la situación estadounidense es la generalizada ausencia de un marco normativo, federal o estatal, que regule el uso de estos aparatos de forma que, cuando menos, se pueda atender a los intereses implicados de privacidad, intimidad o protección de datos personales de los ciudadanos. Por lo demás, algunos círculos jurídicos han cuestionado el empleo excesivo de videocámaras en lugares públicos o lugares privados de acceso público desde una perspectiva constitucional, pero no se han producido avances reales en esa línea (Murakami Wood, 2009; Norris, McCahill y Wood, 2004; Welsh y Farrington, 2009). Ocasionalmente en algún estado, como California, se ha impulsado alguna iniciativa legal, que no ha llegado aún a tener éxito, la cual, en aras del respeto de la privacidad, ha querido asegurar que su uso en lugares públicos y asimilados se restrinja a la prevención y persecución de delitos. A ese propósito, cuestiones como el rechazo de dispositivos de audio, el exclusivo acceso a las imágenes por la policía, o su borrado transcurrido cierto tiempo comienzan a ser debatidas (Anderson, 2012). En suma, se podrá cuestionar el uso excesivo de videocámaras en lugares públicos o asimilados, pero, en general, no hay especial preocupación por la legitimidad de su uso en cualesquiera circunstancias y condiciones, y la inquietud generada por los atentados del 11 de septiembre de 2001 no favorece un cambio de actitud (Anderson, 2012; Welsh y Farrington, 2009).

Un buen ejemplo de su aceptación social es su empleo irrestricto en taxis. Las videocámaras se instalaron inicialmente con el objetivo de prevenir delitos de clientes y taxistas, siendo la policía la única autorizada a acceder a las imágenes obtenidas. Paulatinamente se han convertido en un medio de acreditar la culpabilidad en los accidentes, con las compañías de seguros promoviendo activamente su instalación, así como de controlar el desempeño laboral del taxista por parte de los dueños de la empresa. Tales intereses han hecho que las cámaras hayan pasado a enfocar la calle, que lleven dispositivos de audio, y que no haya limitaciones de acceso a las imágenes obtenidas ni obligaciones de borrado (Anderson, 2012).

5 TÉCNICAS DE PROHIBICIÓN DE ACCESO A DETERMINADOS ESPACIOS CIUDADANOS

Por técnicas de prohibición de acceso de ciertas personas o grupos a lugares públicos o lugares privados de acceso público entiendo la interdicción de entrada o estancia en parques públicos, las prohibiciones de estancia en zonas de menudeo de drogas o de prostitución, las prohibiciones de entrada a zonas comerciales u otros lugares privados de acceso público, y la inadmisión

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en complejos residenciales privados (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010; Coleman y Sim, 2005). Otras técnicas semejantes, como los toques de queda juveniles o la prohibición de entrada o estancia en ciertos lugares de pandillas juveniles van a quedar fuera de nuestra consideración (Beckett y Herbert, 2010; Coleman y Sim, 2005).

Estamos ante técnicas de control social en gran parte novedosas, y de naturaleza singular. Para manejar la pretendida peligrosidad social o criminal de ciertos grupos o individuos no se adoptan medidas directamente encaminadas a perseguir o prevenir los comportamientos antisociales o delictivos que han realizado o que se teme que van a realizar. Lo que se hace es cerrar espacios ciudadanos de interacción social a colectivos o personas en función de su apariencia o forma de vida, sin necesidad alguna de argumentar que hay motivos para pensar que han realizado o van a realizar esas temidas conductas. En cuanto mecanismo de desplazamiento delictivamente inmotivado de ciudadanos fuera de ciertos espacios urbanos públicos o asimilados se alejan de las modernas penas o medidas restrictivas de la libertad de movimientos para prevenir la reiteración en el delito, y se asemejan más a la antigua pena de extrañamiento (Beckett y Herbert, 2010; Coleman y Sim, 2005).

No resulta difícil colegir que son técnicas específicamente diseñadas para concentrar su incidencia sobre ciudadanos con problemas de inclusión social, que han quedado al margen de la sociedad de consumo actual o que todavía no han accedido a ella. Estamos ante un colectivo cada vez más numeroso y omnipresente en algunos países, consecuencia del incremento de las desigualdades sociales y de la reducción o anulación de las políticas sociales de vivienda, salud, educación o asistencia, entre otras.

Se trata de que los mayoritarios sectores sociales que han accedido en mayor o menor medida a esos niveles de consumo no se vean perturbados en su actividad cotidiana por la visión de unos modos de vida que se perciben como molestos. En último término, aparecen de nuevo los intereses financieros, comerciales y de estatus social ligados a la teatralización de los centros de las ciudades y el aburguesamiento de determinados barrios, entre otros fenómenos ya mencionados (Beckett y Herbert, 2010; Coleman y Sim, 2005).

El desenvolvimiento de estas técnicas en numerosas ciudades de Estados Unidos está bien acreditado, así como su proliferación (Beckett y Herbert, 2010). En realidad constituyen un perfeccionamiento de técnicas anteriores, las cuales tropezaban con obstáculos judiciales u operativos. Las

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tradicionales leyes de vagos hubieron de desaparecer dadas las objeciones judiciales a su indeterminación y falta de respeto al derecho penal del hecho. Las ordenanzas cívicas que las sustituyeron, al centrarse sobre acciones concretas realizadas, no disponían de la discrecionalidad policial buscada. El precedente inmediato de estas técnicas han sido las órdenes de alejamiento vinculadas a la simple alegación policial de una manifiesta intención de cometer un delito (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010).

Las ordenanzas de exclusión de parques permiten a policías y encargados de esos espacios a sacar del parque a quienes infrinjan sus reglas de estancia, normalmente ligadas a meras pautas de urbanidad y civismo. Ello suele conllevar la prohibición de acceso a algunos o todos los parques de la ciudad durante un significativo periodo de tiempo. La infracción de esa prohibición de acceso, de naturaleza administrativa, constituye una infracción penal que puede dar lugar a privaciones de libertad durante meses (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010).

Las órdenes de alejamiento de sectores urbanos con menudeo de drogas u oferta de prostitución, impuestas en el marco de las condiciones de suspensión de la pena o del sistema de prueba o incluso como medida cautelar, se han desnaturalizado hasta el punto de que terminan abarcando sectores muy extensos de las ciudades, entre los que se cuenta todo el centro urbano. Con frecuencia imposibilitan un desplazamiento normal de los afectados por el conjunto de la ciudad. Su infracción origina consecuencias penales privativas de libertad (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010).

Las prohibiciones de entrada en lugares privados de acceso público ya no se limitan a impedir el acceso a las instalaciones correspondientes, sino que abarcan las aceras adyacentes de uso público y, cada vez más, el espacio público que rodea el lugar donde esas instalaciones está localizadas. Es el caso de áreas o barrios comerciales, centros históricos, campus universitarios, complejos hospitalarios o nudos de transporte, entre otros. Para ello se delega en la policía el derecho del propietario de no admitir a ciertas personas en sus instalaciones, y aquella procede a una interpretación extensiva de la prohibición a los espacios públicos circundantes. Con frecuencia, la prohibición de acceso a cierta instalación se extiende a todas aquellas de la misma naturaleza. Esas prohibiciones de entrada, de naturaleza administrativa, no precisan ser motivadas y suelen extenderse durante meses. Su infracción constituye un ilícito penal castigado con prisión (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010).

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Las prohibiciones de acceso a viviendas sociales o urbanizaciones de vivienda pública muestran una tendencia expansiva semejante. Los administradores de esos complejos residenciales, con el argumento parcialmente fundado de la prevención de delitos, con frecuencia impiden el acceso a ellos e incluso a sus zonas aledañas a todo aquel que no sea residente, incluidas visitas de familiares, amigos o personas con algún interés legítimo. Aunque los jueces suelen admitir los recursos de los inquilinos, pero no de los visitantes, contra prohibiciones indiscriminadas, no cuestionan que se prohíba el acceso a quienes tienen o han tenido antecedentes delictivos mientras subsista una peligrosidad que no tiene por qué establecerse judicialmente8. Frente a las infracciones de esas advertencias de prohibición de acceso emitidas por los administradores reacciona la policía entrando en las viviendas y deteniendo a quienes se encuentran indebidamente dentro por comisión de un ilícito penal. En realidad estas prácticas han terminado por caer dentro de las desdeñables prácticas de discriminación policial (Díez Ripollés, 2014; Goldstein, 2003).

Para facilitar el desarrollo de estos medios de control espacial se ha dotado a estas técnicas de un carácter jurídico mixto, administrativo-penal. De esta forma, sirviéndose del derecho administrativo en las primeras intervenciones sobre esas personas, se posibilita actuar sobre conductas que no son delictivas, se incrementa la discreción policial, se eluden exigencias garantistas penales y se facilita la tarea de la fiscalía en la prevención de delitos. Todo ello en un contexto de expansión del control social formal. Esa combinación de perspectivas se extiende en ocasiones a la administración penitenciaria, mediante la creación de patrullas mixtas de policías y funcionarios de prueba, que se encargan de controlar simultáneamente las infracciones a las prohibiciones de acceso tanto de advertidos administrativamente como de sometidos a suspensión de la pena o a libertad condicional (Beckett y Herbert, 2008; Beckett y Herbert, 2010).

En los países nórdicos han surgido igualmente prácticas de exclusión de determinadas personas de lugares públicos o lugares privados de acceso público, pero su desarrollo ha sido contenido y, al ser cuestionadas, no han podido consolidarse. Suelen venir ligadas a la penetración paulatina del modelo de seguridad ciudadana, con su énfasis en la gestión de riesgos y la prevención situacional, y la ampliación de los objetivos sometidos a control. Sin negar sus avances, lo cierto es que todas esas nuevas técnicas de

8 Sobre los riesgos de desahucio que corren los inquilinos que admiten a ciertas personas en esas viviendas sociales, aunque sean familiares (Díez Ripollés, 2014).

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control ciudadano terminan en buena parte, aunque no siempre, integradas en la tradición nórdica de prevención del delito a través de intervenciones bienestaristas sobre grupos socialmente vulnerables y la implicación de la sociedad civil (Björklund, 2013; Borch, 2005; Jepsen, 1996; Midtveit, 2005; Torrönen, 2004; Torrönen y Korander, 2005; Virta, 2013)9.

Diversas experiencias en Finlandia han querido actuar sobre colectivos perturbadores de espacios públicos urbanos, singularmente grupos de jóvenes desordenados, pero también borrachos o consumidores de droga. Su análisis muestra las resistencias con que tropiezan los programas centrados en técnicas de exclusión espacial entre los agentes sociales y políticos y en la propia sociedad. Sin perjuicio de que alguna ciudad ha sacado adelante un plan moderado de tal naturaleza, predominan intervenciones bienestaristas, de prevención de la exclusión social, frente a las de naturaleza securitaria y policial (Torrönen, 2004; Torrönen y Korander, 2005; Virta, 2013).

En Dinamarca, varios planes de sacar de determinados espacios públicos actividades de menudeo de droga, prostitución y economía informal mediante intervenciones policiales se han considerado fracasados: En uno de ellos los efectos de desplazamiento e incluso de retorno, a pesar de las prohibiciones de acceso y detenciones subsiguientes, llevaron a abandonar el programa. En otro, los enérgicos intentos policiales de controlar el tráfico de drogas y la economía informal en un barrio semi-autónomo hubieron de atenuarse notablemente tras tropezar los comportamientos policiales con objeciones judiciales y no lograr el programa concitar suficiente apoyo social (Balvig 2004; Jepsen 1996).

Por otro lado, las prohibiciones de acceso a lugares privados de acceso público suelen tropezar con barreras legales, como la necesidad de motivar la prohibición de entrada, en ejercicio del derecho de admisión, en centros comerciales. Aunque es una exigencia que no siempre se respeta (Mork Lomell, 2004).

Lo que predominan son técnicas indirectas de exclusión espacial, que dificultan las interacciones sociales con marginados y otros colectivos problemáticos en esos lugares. Se trata sobre todo de diseños urbanísticos disuasorios, como ausencia de bancos o aseos, o carácter incómodo de ellos,

9 Borch (2005) hace un análisis sugerente desde Dinamarca de los riesgos de la expansión de técnicas preventivas espaciales, no siempre excluyentes, desde la perspectiva del modelo bienestarista; Virta (2013) examina la ampliación de los objetivos de control en los sucesivos programas de seguridad fineses, y la consolidación de técnicas de gestión de riesgos.

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música de fondo a un volumen que molesta transcurrido cierto tiempo o que crea ambiente disuasorio, entre otros. Asimismo se producen desalojos por motivos comprensibles, como la limpieza diaria del espacio correspondiente, que se prolongan por periodos de tiempo exagerados; o se facilitan lugares alternativos de estancia de esos colectivos. También las técnicas de saturación antes aludidas, que hacen sentirse incómodos en parques u otros lugares públicos a esos colectivos (Borch, 2005; Doherty, Busch-Geertsema, Karpuskiene et al., 2008; Midtveit, 2005; National Council for Crime Prevention Finland, 2005).

6 CONCLUSIONES

La ciudad como lugar privilegiado de interacción social, abierta a relaciones entre todos los que habitan en ella, ofrece unas prometedoras posibilidades de autorrealización personal hace tiempo conocidas. Pero para ello la propia estructura ciudadana debe facilitar la relación con extraños, la interacción entre desconocidos en ella residentes. Sin embargo, es fácil apreciar cómo espacios cada vez más numerosos y amplios de las ciudades del mundo desarrollado se diseñan con el objetivo explícito o implícito de entorpecer una fluida interacción entre el conjunto de sus ciudadanos. La especialización de ciertas áreas para el consumo, el turismo o las actividades financieras, y la segregación de áreas residenciales según el nivel de renta, vienen acompañadas de una transformación de los lugares públicos y de los privados de acceso público. Estos pasan a ser en todo caso espacios vigilados estrechamente, además de incómodos en algunos casos, y de acceso restringido en otros, cuando no directamente privatizados.

Esa reorganización de las ciudades repercute, sin duda, sobre la ciudadanía en general, cuyas actividades en el ámbito público ciudadano se observan con sospecha, pero tiene como principal destinatario a determinados colectivos, cuya apariencia, forma de vida o escasa capacidad económica hace que su presencia sea indeseable en ciertos lugares públicos. Estos grupos, que suelen tener en mayor o menor medida problemas para su inclusión social, son desplazados de ciertos lugares porque su aspecto o comportamiento les otorga un estatus social incompatible con la imagen teatral e impostada que se quiere dar de ciertos espacios ciudadanos, o porque, simplemente, ciudadanos de ciertos niveles de renta no quieren relacionarse con quienes no alcanzan ese nivel. La idea, no siempre justificada, de que nos encontramos ante colectivos proclives a realizar conductas delictivas juega un papel secundario. Por lo demás, el incremento de la exclusión social de esos grupos que tales técnicas producen es fácilmente perceptible

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En este estudio me he ocupado de tres fenómenos incursos en este emergente control de espacios públicos ciudadanos. El trabajo se inserta en una investigación más amplia que ya he descrito brevemente en páginas precedentes, de ahí que me haya ocupado de confrontar la difusión y empleo de las técnicas precedentes en Estados Unidos de América y los países nórdicos europeos.

Las urbanizaciones cerradas, muy extendidas en Estados Unidos, se han mostrado como un destacado instrumento de segregación social, mediante el cual los sectores acomodados de la sociedad se aíslan del resto de la sociedad, minimizando el contacto personal con quienes no responden a sus parámetros de nivel económico o extracción social o racial. Constituye una tecnología privatizadora de espacios y servicios públicos, que dificulta al conjunto de ciudadanos interactuar entres sí, generando exclusión social en unos y resentimiento en otros. Suponen una concepción de la ciudad, y de la sociedad en su conjunto, desprovista de objetivos comunes, mera yuxtaposición de colectivos separados entre sí.

Estas técnicas residenciales están mucho menos extendidas en los países nórdicos, donde, sin embargo, sí que han encontrado hueco los fenómenos de aburguesamiento de barrios. Estamos ante otra técnica espacial, más moderada, de exclusión social, que implica abandonar los esfuerzos por garantizar una composición interclasista de los barrios urbanos y por fomentar, consecuentemente, la integración ciudadana y social. La inicial expulsión por razones económicas de los colectivos sociales desfavorecidos hasta entonces residentes en esos barrios recuperados, viene luego acompañada por diferentes técnicas, generalmente de control social informal, que garantizan el mantenimiento de la homogeneidad social del barrio.

El uso de videocámaras en lugares públicos o privados de acceso público pretende restringir los comportamientos que se pueden realizar en las zonas urbanas sometidas a vigilancia. Mientras que la afección que producen en los derechos a la privacidad y a la libre disposición de datos personales está generalmente reconocida, sus efectos positivos sobre la prevención de conductas desordenadas o delictivas se han puesto fundadamente en duda. En cualquier caso, desde la perspectiva de la exclusión social, lo importante es que se han convertido en un instrumento privilegiado para impedir la estancia o el acceso a determinados lugares ciudadanos de aquellos colectivos que desentonan con los objetivos de selección de clientela, segregación social residencial y transformación teatral de los centros urbanos. Estamos hablando de marginados, sin techo, pobres y jóvenes, entre otros grupos.

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En los países nórdicos el uso de videocámaras no está muy extendido, sobre todo en lugares públicos en sentido estricto. Rige en todos ellos un sistema de autorización previa por parte de organismos oficiales, con limitadas excepciones, y se debe informar de su localización, entre otras restricciones. Aunque su uso se está incrementando en algunos de estos países de forma notable, su empleo en lugares públicos está muy centrado en la prevención situacional de conductas delictivas, sin que el objetivo de excluir de manera generalizada a determinados colectivos de ciertos lugares se haya asentado. No se puede decir lo mismo de lugares privados de acceso público, donde las intervenciones amplían su foco a los colectivos marginados, por más que la limitada difusión de estas técnicas atenúe sus efectos negativos.

Lo más característico de la situación estadounidense es la escasa preocupación que existe sobre la legitimidad del uso de estas técnicas en lugares públicos o privados de acceso público para cualesquiera fines de control. Eso explica que no exista un marco normativo, federal o estatal, que aborde las implicaciones que su empleo tiene en derechos fundamentales como la privacidad o la protección de datos personales, ni que regule su uso. Consecuentemente, su instalación en lugares privados de acceso público está generalizada. Lo mismo ha comenzado a suceder con su instalación en lugares públicos en sentido estricto, algo retrasada hasta que los atentados de 2001 potenciaron su implantación.

Las prohibiciones de acceso o permanencia en determinados espacios públicos de ciertas clases de ciudadanos son técnicas en gran parte novedosas de control social. En lugar de prevenir o perseguir las conductas antisociales o delictivas, actuales o previsibles, de determinados individuos, se prefiere excluir de espacios de interacción ciudadana a colectivos enteros en función de su mera apariencia o forma de vida. Ese desplazamiento, que no precisa motivarse en términos preventivos, incide sobre un colectivo cada vez más numeroso de ciudadanos con problemas de inclusión social, fruto del incremento de las desigualdades sociales y de la anulación o reducción de las políticas sociales. De nuevo, saltan al primer plano intereses comerciales, financieros y de teatralización de los centros ciudadanos, junto al aburguesamiento de determinados barrios.

La expansión de estas técnicas en Estados Unidos está bien acreditada. Se extienden desde zonas urbanas de menudeo de droga y prostitución hasta parques públicos, zonas comerciales con sus aledaños y complejos de viviendas sociales, entre otros lugares. Las prohibiciones se estructuran como técnicas de carácter jurídico-mixto, administrativo y penal. Ello posibilita intervenciones iniciales sometidas a la mera discrecionalidad policial, mientras

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que la inobservancia de las restricciones entonces establecidas genera ya una infracción penal que conlleva la detención y prisión preventiva. Los espacios abarcados han crecido en extensión de tal modo que, no solo privan a los afectados de lugares imprescindibles para su socialización, sino que incluso les impiden el desplazamiento normal por el conjunto de la ciudad.

Prácticas semejantes en los países nórdicos no han podido consolidarse hasta el momento. La limitada penetración del modelo de seguridad ciudadana en los últimos años, enfocado en la gestión de riesgos y la prevención situacional, no ha conseguido modificar sustancialmente la tradición nórdica de prevención del delito mediante intervenciones bienestaristas sobre los colectivos en riesgo de exclusión social. Resulta ilustrativo seguir la evolución de diversos intentos de implantación de estas técnicas y su progresiva transformación. Lo que sí han germinado son métodos indirectos de exclusión espacial mediante, por ejemplo, diseños urbanísticos disuasorios o técnicas de saturación.

En suma, la indudable transformación de nuestras ciudades en espacios cada vez más generadores de exclusión social no parece tener excepciones. Sin embargo, el análisis de regulaciones y prácticas llevado a cabo en dos ámbitos regionales diversos muestra cómo el progreso en esa dirección puede ser muy diferente a partir de las diferentes tradiciones de control social.

FINANCIACIÓN

El presente trabajo se ha beneficiado de una ayuda de la Dirección general de investigación científica y técnica del Gobierno de España, DER2012-30070 en la convocatoria de 2012.

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EL EFECTO RETROACTIVO DEL PRINCIPIO DE ACCESORIEDAD EXTERNA EN LA

PARTICIPACIÓN DELICTIVAezequieL VaccheLLi*

RESUMO: Este artigo aborda o estudo da dimensão externa da accesoriedade na participação criminal, a partir de uma ótica metodológica e funcionalista. Neste âmbito, inicialmente são desenvolvidos os fundamentos e a dinâmica desse princípio e, em seguida, são analisadas cuidadosamente as consequências sistemáticas que impõe a necessidade de um fato principal – pelo menos tentado – para punir ao participante. O objetivo deste artigo é duplo: primeiro, conhecer o estado atual da discussão sobre a intervenção de uma pluralidade de agentes no mesmo contexto criminal e, além disso, explicar cómo o significado das contribuições feitas no pré-início da tentativa é determinado retroativamente pelo início da execução.PALAVRAS-CHAVE: Participação criminal; accesoriedade; di- mensão externa da accesoriedade; início da execução; contri- buições previas.ABSTRACT: This work deals with the study of the accessoriness’s external dimension in criminal involvement, from a functionalist and normative perspective. In this context, are developed the foundations and the dynamics of that principle, and then, carefully analyzed the systematic consequences of requiring an attempted crime to punish the participant. The aim of this paper is twofold: first, to relieve the current state of the discussion about the alleged intervention of a plurality of agents in the same criminal context and, in second place, to explain how the significance of the contributions made in the pre-start of the attempted crime retroactively it’s determined by the beginning of execution.

KEYWORDS: Criminal involvement; accessoriness; accessori- ness’s external dimension; beginning of execution; prestart contributions.

* Abogado, Máster en Derecho penal, Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, Argentina; Maestrando en Derecho, Universitat Pompeu Fabra, Barcelona, España. Correo electrónico: [email protected]

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RESUMEN: El presente trabajo aborda el estudio de la dimensión externa de la accesoriedad en la participación delictiva, desde una perspectiva metodológica normativa y funcionalista. En este marco, inicialmente se desarrollan los fundamentos y la dinámica propia de aquel principio, para luego, analizar minuciosamente las consecuencias sistemáticas que impone un hecho principal de autor – por lo menos tentado – para poder castigar al partícipe. El objetivo de este trabajo es doble: por un lado, relevar el estado actual de la discusión en torno a los supuestos de intervención de una pluralidad de agentes en un mismo contexto delictivo y, por otro lado, explicar cómo el significado de los aportes realizados en la fase previa al comienzo de la tentativa queda determinado retroactivamente por el comienzo de ejecución.

PALABRAS CLAVE: Participación delictiva; accesoriedad; dimensión externa de la accesoriedad; comienzo de ejecución; aportes previos a la ejecución.

SUMARIO: I – Introducción; II – La especial dinámica de la accesoriedad externa: figuras explicativas; III – El meollo de la discusión: los aportes realizados antes del comienzo de la tentativa; IV – las teorías convergentes y el desplazamiento del hecho típico; V – El efecto de cesura del comienzo de ejecución; VI – La fijación retroactiva del significado de los aportes realizados en la fase previa a la tentativa; VII – Conclusiones: la apariencia engañosa de la accesoriedad externa; VIII – Excursus: prohibición de regreso en el arco Ǣ; IX – Bibliografía.

I – INTRODUCCIÓN

Sin duda, el pensamiento que domina a la doctrina mayoritaria es que la participación es accesoria, refiriéndose con ello a que depende de la existencia de un hecho principal. En este sentido, se postula que la complicidad y la instigación presuponen conceptualmente “algo” a lo cual se prestan. En palabras de BOCKELMANN, en su clásica obra sobre las relaciones entre autoría y participación, esa accesoriedad no es “producto de la ley”, sino que ella se encuentra en la naturaleza misma de la cosa1. Esta dependencia de un hecho principal, se desprende en lo esencial del fundamento de la participación para el cual el injusto del partícipe está totalmente derivado del injusto del autor2. Por lo tanto, a medida que avancemos en el desarrollo de

1 BOCKELMANN, P. Relaciones entre autoría y participación. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1960. p. 7.

2 En esta línea MIR PUIG pone de manifiesto que «el fundamento del castigo de la participación conduce, como se ve, al principio supremo de la teoría de la participación:

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este trabajo, será necesario no perder de foco el punto de partida, en función del cual, cada teoría sobre el fundamento del injusto del partícipe resuelve los problemas que plantea la accesoriedad en la participación.

Cuando se habla del principio de accesoriedad deben reconocerse dos dimensiones que no pueden ser confundidas: la accesoriedad externa o cuantitativa, por un lado, y la accesoriedad interna o cualitativa, por otro. La primera dimensión, se refiere al grado de realización que debe haber alcanzado el hecho principal; en este sentido, la participación punible presupone que por lo menos exista comienzo de tentativa, es decir, principio de ejecución del hecho principal3. La segunda dimensión, se vincula con las características del hecho punible que deben concurrir para la punibilidad del partícipe, a saber: las exigencias distintas que pueden derivarse de que se requiera un hecho principal típico (accesoriedad mínima), típico y antijurídico (accesoriedad limitada), típico, antijurídico y culpable (accesoriedad máxima o extrema) o, además punible (hiperaccesoriedad). Aquí, a diferencia del aspecto cuantitativo de la accesoriead, se trata de la dependencia de los elementos del hecho punible4.

Cuán avanzado debe estar el hecho principal al que accede el partícipe y cómo debe ser aquel son las dos preguntas que definen los contornos del principio de accesoriedad en la participación. Mientras que el aspecto externo de la accesoriedad como estructura dogmática supone que el ilícito del partícipe sólo es posible si al menos existe comienzo de ejecución de un tipo penal de la Parte Especial, el aspecto interno, hace referencia a las cualidades que el hecho principal debe presentar para constituir un punto de contacto adecuado con la responsabilidad del partícipe5. Si bien estas dos dimensiones de la accesoriedad se relacionan, no se identifican ni funcionan necesariamente articuladas. Como pone en relieve Sancinetti, por un lado, se podría aceptar un principio de accesoriedad interna – exigir, por ejemplo, el dolo del autor principal – y renunciar a una accesoriedad externa. Por otro lado, a la inversa, bien se podría renunciar a la accesoriedad interna y exigir

el principio de la accesoriedad limitada de la participación» (la cursiva me pertenece). MIR PUIG, S., Derecho Penal Parte general. 9. ed. B de F, 2004, p. 425.

3 BACIGALUPO, E. Derecho penal Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1999. p. 519.4 Ibíd., p. 520.5 JESCHECK, H. H.; WEIGEND T. Tratado de Derecho penal Parte general. 5. ed. Granada:

Comares, 2002. p. 705.

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la accesoriedad externa: no prestarle atención al dolo personal del ejecutor para penar al partícipe pero sí esperar al acto externo de ese autor principal6.

A continuación desarrollaré los problemas que se plantean en el ámbito de la accesoriedad externa a la luz de su especial dinámica dogmática, centrándome en el efecto que aquella produce en relación con los aportes realizados en la fase previa al comienzo de ejecución del hecho principal.

II – LA ESPECIAL DINÁMICA DE LA ACCESORIEDAD EXTERNA: FIGURAS EXPLICATIVAS

La noción de accesoriedad externa es tradicionalmente entendida como una manifestación específica del principio de lesividad, que en el marco del concepto restrictivo de autor, vincula el aporte que realiza el partícipe con el hecho típico que ejecuta el autor. De este modo, en su función externa o cuantitativa, la accesoriedad se erige como una regla dogmática de clausura que sólo permite afirmar la responsabilidad del partícipe, una vez que el autor haya comenzado la ejecución de la acción típica. Para la doctrina mayoritaria, el principio de accesoriedad de la participación hace depender necesariamente el castigo de todo partícipe al hecho principal que ejecuta el autor: para que exista p debe antes existir A, regla de prelación que, como veremos, no es temporal sino lógica-material7. En contraste con ello, y como una consecuencia de lo explicado, ninguna forma de autoría se encuentra afectada por una dependencia interna o externa. La autoría es autónoma porque el autor no depende de otro ejecutor: él se vincula directamente con los tipos de la parte especial, da comienzo a la ejecución del hecho y lo inserta en la red de significado jurídico-penal. Si bien este es un puerto seguro, esto sólo es posible afirmarlo en los supuestos fáciles, como los de autor único y directo. Ahora bien, ello no está tan claro en las hipótesis de coautoría o autoría mediata8.

Uno de los presupuestos metodológicos que subyacen al análisis propuesto en este trabajo es el entendimiento de que la realidad recortada

6 SANCINETTI, M. Ilícito personal y participación. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001. p. 57.7 No solamente estamos ante una regla de contenido lógico que funciona como presupuesto

necesario para la imputación al partícipe – consecuencia del principio de lesividad – sino además que tiene implicancias materiales, al requerírsele al hecho principal que presente determinadas características (accesoriedad interna).

8 SANCINETTI, M. Teoría del delito y disvalor de acción. Buenos Aires: Hammurabi, 1991. p. 654.

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que le interesa al Derecho penal está siempre simbolizada y el modo en que ella sirve a los fines de la dogmática está mediado, a su vez, por diferentes modos de simbolización. Específicamente en la participación, el principio de ejecución le agrega a aquella compleja codificación una unidad a través de una “totalización del significado”, siendo una estructura legal que permite atribuirle objetivamente sentido delictivo a la conducta de los agentes que intervienen en el hecho típico.

Para explicar cómo funciona la accesoriedad externa utilizaré un gráfico de dos formas sucesivas; al desarrollarlo, no me limitaré a la última forma, la completa, porque la sucesión de las figuras no se puede reducir a un acabamiento gradual y lineal, sino que implica el cambio de las formas precedentes por entendimientos ulteriores ya evolucionados. Por ejemplo, la segunda forma, la completa, que contiene la articulación del nivel superior del gráfico [el vector Ǣ atravesando I – i desde A hasta p] sólo se puede entender si la leemos como una superación de la concepción tradicional en la cual el aporte del participe depende de un hecho ajeno. Empecemos entonces con la primera forma, que apunta a representar elementalmente la relación entre autor y partícipe y la norma que infringe cada uno de ellos, a la luz de la propuesta del concepto restrictivo de autor.

FIGURA I

Frente a los déficits propios del concepto unitario9, el concepto restric-tivo de autor para explicar la dinámica de la intervención en el delito se vale

9 La apuesta de la tesis de la responsabilidad indistinta de todos los intervinientes es la más elemental: todo aquel que coloque una condición causal para el delito, será autor. Frente a esta propuesta no sólo existen obstáculos de Derecho positivo, sino que, lo cierto es que la teoría del autor unitario yerra en un punto crucial: confunde causalidad con imputación. No todo aquel que causa un delito debe, sólo por ello, responder jurídico-penalmente, pues

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de las categorías de autoría y participación: la primera de ellas, comprendida exclusivamente en los tipos de la Parte Especial y, la segunda de ellas, con-tenida en las cláusulas de la Parte General relativas a la participación delicti-va10. Estas últimas operan como una extensión de la tipicidad y por tanto de la responsabilidad, permitiendo castigar a personas distintas del autor; sien-do la imputación de estos últimos accesoria a la del autor. En el homicidio, por ejemplo, sólo es autor [A] quien realiza un comportamiento que puede ser contenido en la descripción del tipo que consiste en matar a otro [N]. Por el contrario, el partícipe [p] no mata, siendo responsable por haber realizado un aporte [a] para la comisión de ese hecho punible [H]. Así, la regulación de la participación en la Parte General del Código Penal [ɳ] representa una extensión de responsabilidad, que es dependiente o derivada de la norma principal de autoría [N].

Para este enfoque, la conducta de p es accesoria porque entra en consideración sólo cuando existe imputación de la acción ejecutiva en A. La participación es – en relación con la categoría de autor, la cual se erige en la

en este caso, se pasaría por alto la proyección del principio de lesividad, transformándose los actos preparatorios en tentativas y, ampliándose la punibilidad a todo el ámbito del fomento de un delito en definitiva no realizado, sin que se ponga en evidencia su necesidad político criminal. Ver un desarrollo completo del concepto unitario de autor y sus críticas en BACIGALUPO, E. Derecho penal Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1999. p. 485 y ss.; FRISTER, H. Derecho penal Parte general. 4. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2011, cáp. 25/5; JAKOBS, G. Derecho penal Parte general, Fundamentos y teoría de la imputación. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997, cap. 21/1 y ss.; JESCHECK, H. H.; WEIGEND T. Tratado de Derecho penal Parte general. 5. ed. Granada: Comares, 2002. p. 694 y ss.

10 A la vez, esta clasificación inicial se divide en diversas subcategorías. En lo que respecta a la autoría, el autor puede ser directo (en su propia persona realiza todos los elementos del tipo de la acción punible) o mediato, (utiliza a otra persona como instrumento); si son varias las personas que intervienen en el hecho delictivo, existe codominio del hecho, acuerdo común y división de tareas estamos frente a una coautoría; asimismo, se denomina coautoría colateral, accesoria o concomitante al supuesto en el cual un autor actúa desconociendo la acción del otro autor. Por su parte, en la participación se distinguen dos grandes subgrupos: el de los instigadores, quienes determinan dolosamente a otro a realizar el hecho típico, y el de los cómplices, quienes favorecen o colaboran dolosamente en el ilícito que ejecuta el autor. A su vez, los cómplices pueden ser cooperadores o partícipes primarios (necesarios) o secundarios (simples cómplices).

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figura central del suceso11 –, una estructura de imputación derivada12. Este concepto restrictivo de autoría, con la nota de la accesoriedad limitada de la participación es preferido por la doctrina mayoritaria frente al concepto unitario de autor, sobre todo por permitir una mejor determinación de lo típico y adaptarse con ello en mayor grado a los principios de legalidad y lesividad13. Para repartir la responsabilidad entre varios agentes que intervienen en la comisión de un mismo hecho delictivo, la doctrina opera – desde este punto de vista – del siguiente modo: primero, determina la autoría y, luego, determina quiénes han favorecido o determinado aquella conducta. Así, A es quien infringe N, el deber directamente originado por la prohibición típica, siendo H la infracción de un deber propio de conducta; mientras que p responde por infringir ɳ la norma derivada que prohíbe cooperar o determinar el hecho típico ajeno.

Sin embargo, el concepto restrictivo de autor no ha logrado explicar con éxito cuál es la razón – distinta a la del autor – por la que responde el partícipe. Con suerte, ha conseguido definir dos deberes distintos, sustentados en dos normas de conducta diferentes, a saber, N que vincula al autor (constitutiva o primaria) y ɳ que afecta al partícipe (derivada o de flanqueo). Y así, es posible afirmar que las formas de intervención en el delito pueden traducirse como la infracción de un deber propio de comportamiento; conclusión preliminar que confirma que hemos tocado la primer fibra del fundamento del injusto del partícipe. En relación con ello, observa ROBLES PLANAS – con razón – que en realidad, con este planteamiento estamos de nuevo siempre ante autores: autor de la infracción de una norma principal [A/N] y autor de la infracción de una norma derivada [A/ɳ]14.

11 ROXIN, C. Autoría y dominio del hecho en Derecho penal. 2. ed. Madrid: Civitas, t. I, 1997. p. 42 y ss.

12 En contra, ROBLES PLANAS, R. Garantes y cómplices. La intervención por omisión y en los delitos especiales. Barcelona: Atelier, 2006; La participación en el delito: fundamento y límites. Barcelona: Marcial Pons, 2003.

13 DÍAZ y GARCÍA CONLLEDO, M. Autoría y participación, Revista de Estudios de la Justicia, n. 10, p. 14.

14 ROBLES PLANAS, R. Garantes y cómplices. La intervención por omisión y en los delitos especiales, Garantes y cómplices. La intervención por omisión y en los delitos especiales. Barcelona: Atelier, 2006. p. 14 y 15.

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Aquí, estamos frente al concepto defendido mayoritariamente por la doctrina y jurisprudencia de tradición romano-germánica. No obstante ello, aun en el nivel de una lectura inmediata de sus rasgos fundamentales, es difícil eludir la sensación de que en esta posición hay algo que no encaja, o con mayor precisión, que la necesidad de que la participación dependa de la autoría fluye con demasiada facilidad15. Como desarrollaré a continuación, el tradicional principio de accesoriedad acuñado por el concepto restrictivo de autor conduce a consecuencias indeseables frente a numerosos grupos de casos y llega a senderos que no sólo se bifurcan, sino que, la mayoría de las veces prontamente se estrechan.

Por tanto, si queremos avanzar, deberemos pasar a la segunda forma del gráfico de la participación para representar las funciones del principio de accesoriedad. Mientras que en la Figura I explicamos la relación elemental entre norma principal y norma derivada [ɳN] respecto al autor y al partícipe, aquí agregamos dos nuevos vectores: por un lado, Ǣ que representa el arco trazado por el comienzo de ejecución común que vincula las intervenciones de los distintos agentes y, por otro, R que simboliza la dimensión interna de la accesoriedad.

Es importante destacar que, en esta figura, se supera la perspectiva según la cual el inicio de ejecución del hecho delictivo es lo que otorga a la conducta del agente el carácter de autoría o participación (cfr. Figura I). Para las teorías tradicionales, el inicio de ejecución determina que se califique a la conducta como de autoría o de participación: quien ejecuta será autor, quien no ejecuta y colabora o induce, partícipe. Por ello, mientras que en la forma anterior se conectaba al autor con el hecho típico [A–H] y al partícipe con el aporte accesorio a aquel [p–a], ahora se produce el desplazamiento de H a la parte superior de la figura, representándose las intervenciones del partícipe y el autor con i e I respectivamente. Ello en tanto, el paso de lo interno a lo externo no siempre lo decide el autor; también un partícipe puede detonar el inicio de ejecución [vector Ǣ]. De este modo, la diferencia entre autoría y participación no será meramente formal, sino por el contrario, se graduará en función de la mayor o menor importancia de la contribución al hecho delictivo como una unidad de sentido, lo que generalmente coincidirá con el comienzo de ejecución, pero no siempre.

15 Para una crítica minuciosa del concepto restrictivo de autor ver ROBLES PLANAS, R. La participación en el delito: fundamento y límites. Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 265 y ss.

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FIGURA II

III – EL MEOLLO DE LA DISCUSIÓN: LOS APORTES REALIZADOS ANTES DEL COMIENZO DE LA TENTATIVA

El debate acerca del castigo o impunidad de los aportes realizados antes del comienzo de la tentativa es medular para la teoría de la participación delictiva y, por ello, ha sido largamente discutido en la doctrina. Este problema fundamental pone al desnudo la verdadera capacidad de rendimiento de las teorías del fundamento del injusto del partícipe, no sólo en relación con sí mismas y las soluciones que postulan para los casos difíciles, sino también en relación con el resto de la teoría del delito y sus principios rectores. Por ello, deberemos entrar en la discusión relativa a la razón por la que se castigan los comportamientos de participación. La situación, en principio, es incómoda: si se postula que el injusto del partícipe depende exclusivamente del autor (postulado fundamental de la teoría de la participación en el injusto), será difícil explicar por qué se castigan actos de intervinientes anteriores a un comienzo de ejecución ajeno, o por lo menos, no será fácil contestar objeciones basadas en el principio de autorresponsabilidad; por otro lado, si se adhiere a la teoría pura de la causación y su propuesta de un injusto del partícipe independiente de lo que haga o deje de hacer el autor, tendremos problemas para encontrarle un lugar al principio del hecho y correremos el riesgo de un adelantamiento exagerado de la barrera de punición.

Sin lugar a dudas, la autonomía del injusto del partícipe que postulan LÜDERSSEN, SCHMIDHÄUSER, HERZBERG y SANCINETTI, entre otros, genera una fisura, una hendidura en la teoría de la participación en el ilícito y sus variantes, que sólo podemos aceptar y a la vez tratar en la medida de

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lo posible de remendar. Sin embargo, como veremos, esto no significa sin más aceptar la existencia de un Teilnehmerdelikt, relegando el comienzo de ejecución – en el mejor de los casos – a una condición objetiva de punibilidad. Pero tampoco podremos refugiarnos, como pretenden los defensores de la teoría de la participación en el injusto, en el entendimiento de que el injusto del partícipe es un desprendimiento exclusivamente derivado del injusto del autor. He aquí el meollo de la discusión.

Los partidarios de la autonomía del injusto rechazan esta dinámica argumentando que el castigo del partícipe no puede depender de lo que haga o deje de hacer el autor, pues si así fuese, se estaría atentando contra el principio de autorresponsabilidad. El partícipe realiza su aporte y debe esperar en la “sala de imputación” hasta tanto el autor inicie la ejecución para así, poder insertarse en la imputación. En palabras de SANCINETTI, «esta consecuencia es injusta para juzgar el ilícito del partícipe puesto que ya ha hecho todo lo que tenía que hacer y, sin embargo, hay que esperar a ver si su mandatario (autor o coautor) da efectivamente comienzo a la ejecución igual que en un contrato del Derecho civil»16. Si el principio de ejecución del autor incrimina el comportamiento previo del partícipe quedaría fracturado el principio de autorresponsabilidad según el cual cada uno debe responder por su propio injusto. El autor que con su comienzo de ejecución, tiene la facultad de incriminar a los partícipes, constituiría en verdad, un extraño “mandatario” en materia penal, él representaría “como gestor criminal” a su instigador y su cómplice17. Este es a grandes rasgos el razonamiento de los causacionistas puros, lo que los lleva a poner en cuestión – cuando no, a negar rotundamente – el llamado lado externo de la accesoriedad.

El problema básico de estas tesis – ya lo podemos notar – es que avanzan sobre comportamientos que a la luz del principio del hecho serían atípicos, en tanto se ven obligadas a definir como ilícito un comportamiento en el ámbito previo a la exteriorización del tipo, a la vez que, en su construcción de un tipo de participación fuerzan la letra de la ley. Los defensores de la autonomía del injusto del partícipe postulan infracciones a la norma que están muy alejadas de la afectación del objeto de bien jurídico. Es decir, Ǣ prohibiría algo que no está próximo al quebrantamiento de la norma del hecho típico N. En efecto, es difícil sostener la autonomía del injusto del partícipe o, en palabras de

16 SANCINETTI, M. Teoría del delito y disvalor de acción. Buenos Aires, Hammurabi, 1991. p. 674.

17 Ibíd., p. 655.

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SCHMIDHÄUSER, la existencia de un «delito de participación», ya que el comportamiento de un agente sin posterior comienzo de ejecución y sin exteriorización alguna no puede ser castigado sin problemas de argumentación en un Estado de Derecho. Renunciar a la accesoriedad – de cualquier modo, esta afirmación tendrá algo de apresurada, pues no hemos precisado qué tipo de relación accesoria debe darse entre el injusto del interviniente y el hecho típico – obliga a caracterizar como perturbación social el acuerdo de cometer un delito o el favorecimiento del delito psíquica o activamente, o inclusive comportamientos internos antes de que exista comienzo de ejecución; todo ello, en franca oposición al principio de lesividad.

Hasta aquí hemos dado razones políticas de por qué creemos que está fuera de duda que los comportamientos previos a la ejecución del hecho típico son impunes. ROBLES PLANAS, agrega argumentos dogmáticos y positivos que son de especial interés. El primero, es por demás conocido y tiene que ver con que resultaría difícil de explicar por qué los aportes del partícipe a un delito posterior están prohibidos mientras que esas mismas conductas si las realiza un autor individual están jurídico-penalmente permitidas18. En segundo lugar, destaca este autor que si la aportación en la fase previa creara un riesgo no permitido para un bien jurídico, entonces sería posible reaccionar frente a ella en legítima defensa, y además debería admitirse la participación en la misma – participación en la participación –. Finalmente, como argumentos de derecho positivo agrega que la tentativa de participación es impune y que el desistimiento de la ejecución para los partícipes según el Código Penal, debe ser siempre de una ejecución ya iniciada19.

Sin embargo, las objeciones a la teoría pura de la causación no pueden llevarnos a aceptar sin más las propuestas formuladas desde la otra rivera; no se puede admitir el carácter constitutivo del comienzo de ejecución del autor principal para definir el ilícito del partícipe, puesto que ello, como dijimos, atentaría contra el principio de autorresonsabilidad. Ahora bien, la situación cambia si se normativiza el problema y se reconoce que en el hecho delictivo en el que intervienen varios agentes, existe un sentido que trasciende el aporte individualmente considerado. El comportamiento en el

18 SANCINETTI contesta a esta crítica argumentando que el partícipe cuando deja en manos de otro agente el destino de su aporte pierde el control de la interrupción de todo el proceso lesivo, lo que no sucede cuando es un mismo autor el que lleva adelante todo el iter críminis. Ibíd., p. 627 y ss.

19 ROBLES PLANAS, R. La participación en el delito: fundamento y límites. Barcelona: Marcial Pons, 2003. p. 151 y ss.

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ámbito pretípico aisladamente considerado, no constituye entonces injusto, hasta que no se lo inserta en una totalidad que permite imputar en común el comportamiento típico ejecutivo. Por ello, la formulación usual de que quien no ejecuta por sí mismo participa en el injusto ajeno es en sí una apariencia, pues en rigor el comportamiento ejecutivo es el injusto de todos y cada uno de los intervinientes, inclusive del que no ejecuta de propia mano20. En esta salida hacia la normativización del problema venimos insistiendo como única solución posible a la discusión injusto derivado vs. injusto autónomo: debe insertarse el aporte del partícipe en una red estructurada de significado.

Lo crucial del vector Ǣ es que permite involucrar al resto de los agentes que se encontraban con sus aportes en el plano pretípico y los introduce en el plano de la imputación, otorgándole a estos un determinado sentido delictivo según un tipo penal de la Parte Especial. Este desplazamiento no podría ser posible para los causacionistas puros, en tanto al entender la intervención en el hecho de un modo marcadamente naturalista – el partícipe responde sólo por lo que él hace o deja de hacer de propia mano – desconocen la totalización de significado que imponen los casos de pluralidad de intervinientes en los que existe división del trabajo. En lugar de referir i/I en función de Ǣ, y abarcar con H el injusto colectivo de la participación, atomizan las causalidades que por sí solas aún no adquieren el sentido delictivo que les otorga el comienzo de la tentativa. De este modo, la teoría del injusto autónomo, al igual que lo que sucede con las teorías del injusto derivado, yerran en el mismo punto: no conocen una intervención común (normativa), sino sólo aislada (y por tanto, indudablemente naturalista). El injusto es común para autor y partícipe y les pertenece porque ambos lo hacen posible. Por ello, deben responder según la magnitud de sus aportes [i] y, como en cualquier empresa colectiva, también deben dar cuentas del resultado final: H.

IV – LAS TEORÍAS CONVERGENTES Y EL DESPLAZAMIENTO DEL HECHO TÍPICO

Con base en lo dicho hasta aquí, el lector atento ya podrá suponer que una de las características cruciales de la segunda forma del gráfico es el desplazamiento de H, representado inicialmente vinculado con A, ya que para las teorías de la participación en el injusto el hecho típico era propiedad exclusiva del autor [AH]. Esto así, en cuanto la ejecución del hecho típico de propia mano que lleva a cabo el autor, si no quiere vaciarse el principio de

20 JAKOBS, G. Derecho penal Parte general, Fundamentos y teoría de la imputación.2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997, cáp. 21/8a.

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autorresponsabilidad, no puede ser algo ajeno al partícipe. Por esta razón, H se representa en la Figura II como el resultado de una obra común producto del reparto del trabajo de A y p. Este cambio de punto de vista tiene que ver con que hemos alcanzado una primer comprobación al advertir que en el ámbito de los roles comunes, cuando una pluralidad de agentes interviene de manera coordinada, organizan conjuntamente algo que les es común y les pertenece a todos: el delito21. La participación en el ámbito delictivo al igual que lo que sucede en el ámbito de las obras buenas (la interpretación de una pieza musical, la edificación de una casa, etc.) consiste exactamente en un reparto de trabajo, el cual para lograr una obra unica, se divide entre varias personas, cada una de las cuales realiza su parte22.

Lo dicho hasta aquí, vale tanto para la coautoría como para la participación, ya que la diferencia entre ambas es sólo cuantitativa: si los actos organizativos de los agentes son de la misma importancia, los intervinientes serán coautores23; si su organización presenta grados distintos, los que contribuyen con menor importancia serán partícipes (inductores o cómplices). En efecto, al no haber una diferencia cualitativa entre autoría y participación, si la participación en un hecho ajeno aumenta suficientemente, el hecho se convertirá en propio sólo sobre la base de ese aumento24. De nuevo, aquí a diferencia de lo sostenido por la doctrina mayoritaria, la ejecución de H no se encuentra en una relación exclusiva con A, sino que también es producto de la intervención de p. La ejecución del hecho principal no es sólo obra del autor sino también del partícipe. De esta manera, es posible afirmar que los actos de organización de A y p se unen en un solo injusto que es al mismo tiempo colectivo (los que toman parte responden del mismo modo en relación con lo que sucede con H) e individual (en relación con la magnitud de i).

Si lo dicho hasta aquí es correcto, y si el destinatario de la imputación no es sólo el ejecutor de propia mano, sino el colectivo al que pertenece el delito, ello significará, por un lado, que todos los que toman parte serán responsables por el injusto total, y por otro, que existirá una dependencia

21 En lo que respecta a los delitos de infracción de deber la situación es distinta: cada uno de los obligados especiales responde personalmente por la infracción de su deber.

22 JAKOBS, G. La imputación objetiva en el Derecho penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. p. 75 y ss.23 Claro está, siempre que se den el resto de los requisitos exigidos por esta forma de

intervención en el delito.24 Asimismo, otra diferencia importante entre coautoría y participación es que, dado el

carácter no accesorio del coautor, éste no necesita esperar el comienzo de ejeucción de otro interviniente para ingresar en el terreno de la prohibición.

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recíproca de las fases del hecho ya realizadas y de las aún por realizar. Ese hecho que se le imputa al colectivo «sólo pasa una vez – y no por separado para cada uno de los intervinientes – del estadio de la preparación al estadio del comienzo de la tentativa, como también lo hace al estadio de la tentativa acabada; y es que se trata de un solo injusto, aunque sea propio de varias personas». Con esto último, nos colocamos ya en la antesala de lo que es uno de los problemas capitales de la teoría de la participación delictiva: me refiero a las aportaciones realizadas en la fase previa al inicio de la tentativa, las cuales son – en sí mismas consideradas – penalmente irrelevantes y, sin embargo, con el inicio de la ejecución por parte del autor pasan a tener un significado distinto.

V – EL EFECTO DE CESURA DEL COMIENZO DE EJECUCIÓN

Lo crucial del comienzo de ejecución es que mediante el mismo la conducta de los agentes pasa de estar permitida a estar prohibida. En nuestro segundo gráfico, Ǣ representa el comienzo de ejecución del hecho típico y genera un efecto de cesura en relación con la impunidad de los actos preparatorios de todos los intervinientes: en el estadio de la preparación, a consecuencia del principio de lesividad, la accesoriedad externa impide punir las acciones de preparación que han quedado aisladas o flotando antes de que opere Ǣ. El comienzo de la tentativa que funciona como cierre en la hipótesis de que el agente ejecuta por sí solo todo lo necesario para el delito, debe operar igualmente en los casos en los cuales se divide el trabajo. No sólo cuando se trata de la ideación del plan y la preparación de parte de un autor único, el hecho delictivo germina con la ejecución, sino que este principio también opera cuando la organización corresponde a una pluralidad de intervinientes. Esta dinámica, de más está decir, está plasmada en la regulación positiva de los códigos penales argentino, español y alemán.

Al cómplice, al inductor – y también al coautor (¡!) – que no realizan actos ejecutivos, sólo se les castiga cuando el hecho principal entra en un estadio punible. Esta es una consecuencia dogmática ineludible de entender el hecho delictivo como un colectivo en el que son varios los que toman parte y a los que le pertenece el resultado. Por ello, es posible afirmar que la ejecución es algo propio de cada uno de los intervinientes, pero a la vez compartido con todo el colectivo que interviene en el delito. En un hecho, con independencia de que sea preparado y efectuado por varios agentes, la tentativa comienza uniformemente para todos los intervinientes cuando uno de ellos detona inmediatamente la realización del tipo (solución global para los casos de competencia por organización). Esto es consecuencia del reparto

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del trabajo. Asimismo, como consecuencia necesaria de lo dicho hasta aquí la posibilidad de participación está totalmente fuera de discusión cuando el hecho principal para el cual ella se presta está consumado. La participación puede contribuir al ilícito del hecho, en tanto este ilícito aun no esté realizado completamente. Por ello, el hecho, al momento de la participación, como regla general aún tendrá que estar sin consumarse25.

VI – LA FIJACIÓN RETROACTIVA DEL SIGNIFICADO DE LOS APORTES REALIZADOS EN LA FASE PREVIA A LA TENTATIVA

Ya le hemos dado un lugar al comienzo de ejecución en la teoría de la participación delictiva y hemos destacado su importancia en orden a los aportes delictivos de la fase previa; ahora, ampliaremos un poco más su particular dinámica de atribución de sentido delictivo a partir de lo graficado en la Figura II. Si el carácter pretípico de i por sí mismo no puede poner en tela de juicio la norma penal, requerirá de algún modo estructurarse en un campo unificado mediante un punto nodal que le otorgue sentido y fije su significado, el cual no podrá ser otro que el hecho típico como manifestación del principio de lesividad. El espacio en el cual se encuentran las intervenciones sin ligar, sin amarrar, “significantes flotantes”, cuyo sentido está abierto, depende de su articulación en una cadena con otro elemento [I] que le otorgue significado delictivo a través del arco Ǣ. Para dejar claro esto, tomemos el ejemplo de quien le entrega un navaja a un tercero: la conexión de esta conducta objetiva con otros elementos típicos no está determinada de antemano: se puede entregar la navaja para que el joven que se va de campamento la utilice como cubierto en un almuerzo (si es luego utilizada para cortar alimentos), puede ser usada para ir de pesca (si posteriormente se realiza con ella esta actividad deportiva) o también puede ser utilizada para matar (si entonces se clava en el vientre de la víctima) y así sucesivamente. En efecto, nada podemos decir de la conducta pretípica, impune o preparatoria de entregar una navaja, si

25 Sin embargo, observa STRATENWERTH que no es infrecuente que la realización del ilícito vaya más allá de la consumación (formal) del delito; siendo la participación posible hasta la total conclusión del acontecer que cumple el tipo, es decir, hasta su consumación material (o “agotamiento”). A tal respecto, deben ser distinguidas diversas constelaciones. La más sencilla es la de los llamados delitos permanentes (por ej. la privación de libertad). El agotamiento se produce recién con la supresión de la situación antijurídica (la liberación del afectado) o la interrupción de la conducta prohibida y, hasta ese momento también pueden contribuir aún, al resultado del ilícito, acciones de complicidad, STRATENWERTH G. Derecho penal Parte general I, el hecho punible. 4. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. p. 415 y ss.

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no la insertamos en una red de significado posterior. A esto le llamaremos «acolchamiento».

En el ámbito del Derecho penal, el «acolchamiento» se realiza mediante la imputación objetiva del comportamiento, la cual detiene esta «libre flotación» de los significantes pretípicos y produce la totalización de los mismos a través de su inserción en una red de significado jurídico-penal. No obstante, ello no es posible antes de que se exteriorice el hecho típico mediante el comienzo de ejecución, pues, en caso contrario ¿qué será lo que se le impute objetivamente al partícipe? Es decir, para poder proceder a «acolchar» las intervenciones pretípicas en una red objetiva de significado – entrega el cuchillo, para que entonces un tercero mate, conducta atrapada por el tipo del art. 79 del Código Penal Argentino – deberemos antes tener por lo menos una tentativa [vector Ǣ]. Esta operación permite explicar sistemáticamente los casos de los que hemos venido hablando, en los cuales un agente realiza aportes temporalmente anteriores al comienzo de ejecución y por ende atípicos hasta que se produce «retroactivamente» desde A hacia p un efecto de definición representado en el arco trazado por Ǣ:

ACOLCHAMIENTO HECHO PRINCIPAL IMPUTACIÓN OBJETIVA [RETROACTIVO] [ACC. EXTERNA] AL PARTÍCIPE

Esta es la característica crucial en este nivel de la explicación: el vector Ǣ permite el acolchamiento de i hacia atrás, en dirección retroactiva al atravesarlo en un punto que precede temporalmente a I. Sin embargo, el vector Ǣ no determina todavía, el significado final del aporte, puesto que I para fijar el estado de la intervención previa i cuya significación no ha sido aún determinada debe ser objetivamente imputable a p. Entonces, en un determinado punto – precisamente cuando Ǣ perfora la intervención del agente que se encontraba sin amarrar – se fija retroactivamente el significado de la cadena, «cosiéndose» la intervención del partícipe i a la ejecución del autor I y permitiendo la formulación de una pregunta sobre la imputación objetiva del comportamiento del partícipe en relación con H. En casos de pluralidad de intervenciones anteriores al comienzo de ejecución, es decir, antes de que exista un hecho típico al cual puedan acceder, se acentúa precisamente este carácter retroactivo del efecto de significación con respecto

= +

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a las intervenciones que aun están objetivamente flotando – ¿almuerzo, pesca, homicidio? – 26 permitiéndose el efecto de sentido hacia atrás.

VII – CONCLUSIONES: LA APARIENCIA ENGAÑOSA DE LA ACCESORIEDAD EXTERNA

En este nivel elemental, podemos ya localizar la lógica engañosa de la accesoriedad externa, un mecanismo que inicialmente produce la apariencia de que la punibilidad de p depende de un hecho ajeno; pero que, en efecto, es el anverso de que los significantes permanezcan detrás del flujo de significado jurídico-penal de H detonado a partir del comienzo de ejecución de A. Esta faceta de la accesoriedad sumada a la imputación objetiva del comportamiento al partícipe consiste en la ilusión de que el sentido delictivo de un determinado aporte – que quedó retroactivamente fijado – estaba presente en él desde el comienzo como su esencia inmanente (la navaja desde un comienzo fue entregada para matar, inclusive antes de que existiese el comienzo de la acción de matar). Es relevante la conducta del partícipe cuando nos parece que el sentido delictivo del aporte era desde un principio, inclusive desde antes del comienzo de ejecución “su naturaleza delictiva”.

La paradoja reside, por supuesto, en que esta ilusión de la accesoriedad es necesaria, en la medida misma del éxito de la división de tareas a la luz del principio del hecho e igualmente, en la medida en que tengamos la intención de operar con categorías normativas. En el ejemplo de la entrega de la navaja tenemos una articulación de sentidos (para el almuerzo, para la pesca, para matar, etc.), ninguno de los cuales pretende ser el último significado de la función de la navaja. Ahora bien, desde el punto de vista de la estructura de significado del Derecho penal solamente la entrega de un cuchillo de p a A tendrá sentido cuando exista la posibilidad de la articulación retroactiva de aquella conducta a través del arco Ǣ como manifestación del principio de lesividad. Y sólo luego de esta operación será posible preguntarnos sobre la imputación objetiva de la conducta de participación.

26 Objetivamente flotando, en cuanto, la teoría de la participación se ubica sistemáticamente en el plano del tipo objetivo. Antes del comienzo de ejecución no podemos formularnos la pregunta sobre qué es lo que conocía o quería el interviniente – es decir, sobre si había alguna intención en el plano subjetivo que amarrara esa conducta pretípica –, pues todavía se encuentra en el plano pretípico amparado por el principio de legalidad, e incluso, luego del comienzo de ejecución es posible que tampoco pueda insertarse su aporte en la red de significado jurídico penal debido a ser socialmente adecuado, estereotipado o inocuo (prohibición de regreso). Ver infra.

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Con la apariencia de la accesoriedad externa el partícipe se transforma – en función del principio de autorresponsabilidad – en lo que siempre debió ser: autor de su propio aporte al hecho común e infractor de la norma que lo vincula personalmente [ɳ]. Aquí hemos llegado por fin a la identificación de p con A en relación con el hecho común, donde ambos ahora son intervinientes, cuya diferencia es sólo cuantitativa [la magnitud de i e I]. El “efecto de retroversión” se basa precisamente en este nivel aparente respaldado por la lógica de la accesoriedad y la imputación objetiva, en la cual el participe acaba siendo un agente autónomo presente desde el origen de sus actos, pero que, paradójicamente no puede constituirse como tal sin que otro interviniente detone hacia atrás el comienzo de ejecución27. Esta operación dogmática se articula no sólo intrasistemáticamente con los principios rectores de legalidad, lesividad y autorresponsabilidad, sino asimismo con la autoexperiencia objetiva del partícipe en la cual éste se reconoce ya desde antes del comienzo de ejecución como parte del hecho delictivo.

VIII – EXCURSUS: PROHIBICIÓN DE REGRESO EN EL ARCO Ǣ

Hemos dicho que la atribución objetiva de sentido delictivo a los aportes sin amarrar anteriores al comienzo de ejecución sólo puede llevarse a cabo luego de que opere el efecto de acolchamiento del vector Ǣ. Dicho de otro modo, sólo luego de que nazca H podremos preguntarnos si existe imputación al tipo objetivo de la conducta de participación al agente que intervino en primer lugar. Entonces, como notará el lector, es fácil deducir que habrán casos en los que podrá darse el hecho principal y sin embargo, no conseguir el vector Ǣ coser los aportes realizados por el agente en la fase previa; esto debido, no al límite impuesto por el principio de lesividad (porque al hecho principal de referencia ya lo tenemos), sino a que su aporte

27 Con cuidado aquí; puesto que esta función sólo es válida para los delitos comisibles por cualquiera, en donde aplica la solución global en relación con el comienzo de la tentativa. Distinto es el caso de los agentes que se encuentran directamente obligados frente al bien afectado (delitos especiales) en donde, el comienzo de la tentativa sólo cabe determinarlo en función de su propio comportamiento (solución individual). Esta opción tendrá especial trascendencia para la intervención de garantes, cuya posición se debe a relación conyugal, paterno-filial, etc., en delitos de comisión. Aquí, la aportación del garante sin dominio del hecho puede ya constituir una tentativa en concepto de autor, incluso si no se produce el comienzo de ejecución del «hecho principal». Esto se explica, porque su aporte no se encuentra sin amarrar, sino que ya trae consigo el cuestionamiento al delicado lazo que lo une al bien jurídico, no requiriéndose, de este modo, un significante externo que le permita construir su significado.

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se ve interrumpido por la imposibilidad de retroceder en la imputación. Es decir, porque existe una prohibición de regreso.

Si estamos en lo correcto y la pregunta sobre el sentido del comportamiento del partícipe sólo puede formularse luego de que existe un hecho típico al cual referirla y, si no siempre que exista un hecho principal necesariamente el comienzo de ejecución operará retroactivamente hacia p; entonces puede ser que a pesar de existir un hecho típico, se interrumpa [←] el arco trazado por el vector Ǣ. Dicho de otro modo, a pesar de que el autor incardina su proyecto delictivo a la intervención de un agente que actúa con anterioridad, no es posible insertar este comportamiento en la red estructurada de significado necesaria para afirmar la existencia de participación punible. El comportamiento del partícipe, incluso en el supuesto de que sea evitable, no bastará para atribuirle una organización un sentido delictivo. Como vimos al principio de este trabajo, existe la obligación de evitar cuando forma parte del rol de quien actúa en primer lugar el velar por el comportamiento de quien actúa a continuación28. Por el contrario, las conductas normales, cotidianas, habituales, etc. no forman parte de la explicación social del delito. Este queda suficiente y completamente explicado con la actuación arbitraria del autor que desvía hacia lo delictivo una parte de la realidad social que tiene sentido por sí misma29.

La prohibición de regreso es el anverso de la accesoriedad y se erige como un principio medular tanto de la imputación objetiva como de la teoría de la participación. Aquí nos encontramos frente a constelaciones de casos en las que no obstante existir un hecho delictivo frente al que el agente ha realizado un aporte (en sentido naturalístico) no se le imputará aquel en tanto no es posible retroceder en la imputación cuando se ha comportado de acuerdo con su rol, es decir, se ha mantenido dentro del riesgo permitido. La responsabilidad de p quedará excluida en dos supuestos a pesar de que exista comienzo de ejecución: por un lado, cuando no hay nada en común entre A y el agente que actúa en primer lugar: el autor anuda su actuar un comportamiento cotidiano de otra persona y desvía dicho comportamiento hacia lo delictivo, en este caso sólo él responde por la totalidad del hecho típico. Aquí estamos frente a comportamientos cotidianos e inocuos que no adquieren significado delictivo aun cuando el autor los haya incluido en sus

28 JAKOBS, G. La imputación objetiva en el Derecho penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. p. 81.29 ROBLES PLANAS, R. La participación en el delito: fundamento y límites. Barcelona: Marcial

Pons, 2003. p. 49.

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planes, puesto que como dijimos al principio, la responsabilidad penal se basa en la infracción de un determinado rol (común o especial) y el agente aquí se ha mantenido dentro del marco de su rol inocuo. La ejecución no le es propia, y por tanto no hay razón para imputarle injusto alguno30. Por otro lado, también quedará excluida la responsabilidad del agente que actúa en primer término cuando entre ambos sí existe algo en común, pero lo que hay de común se limita a una prestación que puede obtenerse en cualquier lado, y que no entraña riesgo especial alguno, no obstante lo cual el autor hace uso precisamente de esta prestación para cometer un delito. Lo que de común hay carece de todo significado delictivo: de ahí que aquí tampoco el agente haya quebrantado rol alguno31.

Para JAKOBS en este último caso se encuentra el ámbito principal de aplicación de la prohibición de regreso, esto es, de la prohibición de recurrir, en el marco de la imputación a personas que si bien física y psíquicamente podrían haber evitado el curso lesivo, a pesar de la no evitación no han que-brantado su rol de ciudadanos que se comportan legalmente. Como venimos sosteniendo, el reparto de tareas como fundamento de la responsabilidad del partícipe que realiza un aporte en la fase previa al hecho, debe interpretarse inserto en una red de significado determinada. Ello nos permitirá explicar no sólo los casos de intervención punible (accesoriedad) sino, también su an-verso, la prohibición de regreso. En una sociedad organizada en régimen de reparto de tareas, con un intercambio de información y de bienes extrema-damente complejo, ha de diferenciarse de manera rigurosa lo que es el senti-do objetivo de un contacto social. Con carácter general, únicamente se debe tener en cuenta el sentido objetivo; éste es el sentido socialmente válido del contacto. Por tanto, en aquellos casos en los cuales sea solamente A el sujeto competente por enlazar una organización delictiva a un comportamiento ino-cuo o estereotipado, no será posible volver hacia p, a pesar de que exista un hecho típico vinculado de manera aparente (o causal) con su intervención. En los dos grupos de casos referidos, no le alcanza al primer agente una respon-sabilidad específica simplemente porque A haya asumido la prestación como suya y derivado a partir de ella consecuencias delictivas32. Esta es la ruptura en el vector Ǣ que hemos representado con ←.

30 JAKOBS, G. La imputación objetiva en el Derecho penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. p. 82.31 Ibíd., p. 82.32 Ibíd., p. 84.

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Debe agregarse, que las intenciones y los conocimientos de quien realiza esta clase de aportes son a estos efectos irrelevantes. Quien realiza algo estereotipado o adecuado socialmente no responde por H, y ello con independencia de lo que piense o conozca. No obstante el carácter objetivo del comportamiento, puede que concurra una razón adicional por la que haya de generarse responsabilidad inclusive en los casos en los cuales el agente realiza una prestación inicialmente estereotipada: esa razón la conforma la preexistencia de una posición de garantía independiente de la conducta, posición de garantía que sirve precisamente para evitar daños que amenacen al bien en cuestión33. Aquí el primer agente, responderá generalmente como autor, por estar inmediatamente vinculado al deber de impedir lesiones al bien jurídico frente al cual se encuentra obligado de manera especial, sin embargo, existen constelaciones de casos en los cuales también podrá responder como partícipe.

Ahora, si bien en los casos que tocan la prohibición de regreso no se retrocede en la imputación hacia el agente que interviene en primer lugar, ello no significa que no pueda responder eventualmente por omisión de socorro. A pesar de no encontrarse el agente vinculado por la norma derivada de la participación [ɳ], puede ser que exista N´ [N prima], una norma que le imponga no denegar a la víctima la ayuda necesaria en casos de extrema necesidad. Con otras palabras, cuando el rol de ciudadano atribuye de manera excepcional deberes de auxilio N´, éstos mantienen su plena vigencia aunque no exista ɳ por interrumpirse el arco de Ǣ al concurrir un supuesto de prohibición de regreso [←].

En suma, la prohibición de regreso funciona como una manifestación concreta del principio de autorresponsabilidad. No se le puede hacer parte a quien interviene sólo en apariencia en un hecho delictivo, pues este suceso, normativamente nada tiene que ver con él – excepcionalmente, se podrá hacer responsable al partícipe cuando se haya adaptado al plan del autor, se haya salido de su rol o haya violado una norma orientada específicamente a impedir la desviación delictiva de aportes peligrosos de parte de terceros –.34 No es posible fijar el aporte del agente al hecho delictivo y por tanto no se lo puede hacer parte del suceso delictivo; el principio de autorresponsabilidad

33 Ibíd., p. 85.34 Ampliamente sobre los alcances de la prohibición de regreso y sus límites, Jakobs, Derecho

penal Parte general, Fundamentos y teoría de la imputación, p. 257 y ss.; EL MISMO, La imputación objetiva en el Derecho penal, p. 71 y ss.

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por el propio injusto impide amarrar al hecho principal a quien objetivamente se comporta conforme con su rol y se relaciona con el resultado delictivo sólo por exclusiva decisión del autor.

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Sumário

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61 A Regulação Penal da Exclusão Social no Tráfico de Seres Humanos

(Luciana Maibashi Gebrim)

91 Reflexões Sobre os Efeitos Criminais da Lei Maria da Penha à Luz da Análise Econômica do Direito

(Oksandro Osdival Gonçalves e Rafael Osvaldo Machado Moura)

115 O Que Veem as Mulheres Quando o Direito as Olha? Reflexões sobre as Possibilidades e os Alcances de Intervenção do Direito nos Casos de Violência Doméstica

(Camila Cardoso de Mello Prando)

143 O Controle Penal da Corrupção e o Modelo Organizacional do Ministério Público: Contexto Sociopolítico e Fragmentos do Debate Contemporâneo

(Bruno Amaral Machado)

177 Contribuição da Filosofia e da Psicologia para a (Não) Justificação Penal Diante de Dilemas Morais

(Rafael Ferreira Vianna)

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A REGULAÇÃO PENAL DA EXCLUSÃO SOCIAL NO TRÁFICO DE SERES HUMANOS

THE CRIMINAL ADJUSTMENT OF SOCIAL EXCLUSION IN HUMAN TRAFFICKING

Luciana Maibashi GebRiM*

RESUMO: Este trabalho aborda o tema do tráfico de seres humanos em sua relação com o controle dos fluxos migratórios. O afluxo de imigrantes economicamente pobres e de prostitutas gera medo e in-segurança nos lugares de destino, provocando ruídos no subsistema penal, que reage ao estímulo provocado pelo ambiente, por meio de políticas criminais expansionistas, centradas na prevenção geral positiva, na antecipação de riscos e no controle dos grupos criadores desses riscos. O artigo parte da hipótese de que o Direito Penal é utilizado como instrumento para a regulação da exclusão social. Por meio da análise de legislações antitráfico, objetiva-se averiguar se o Direito Penal do Inimigo se faz presente na confecção de programas político-punitivos volvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: Tráfico de pessoas; fluxos migratórios; políti-cas criminais; direitos humanos.

ABSTRACT: This work discusses the theme of trafficking in human beings in its relation to the control of migration flows. The influx of poor economic immigrants and prostitutes generates fear and inse-curity in destinations, provoking criminal subsystem noise, which reacts to the stimulation caused by the environment, by means of criminal policies, focused on general prevention expansionists posi-tive, in anticipation of risks and in the control of those breeders risk groups. Part of the hypothesis that the criminal law is used as an ins-

* Mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania, Linha de Pesquisa: Efetividade e Tutela dos Direitos Fundamentais. Especialização em Gestão da Investigação Criminal pela Academia Nacional de Polícia. Membro do Núcleo de Estudos da Tutela Penal dos Direitos Humanos – NETPDH, na UNESP Franca. Delegada de Polícia Federal. Endereço eletrônico: [email protected].

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trument for the regulation of social exclusion through the analysis of anti-trafficking legislation, aims to ascertain whether the criminal law of the enemy is present in the package of political programmes--punitive later on counter trafficking in persons.KEYWORDS: Human trafficking; migratory flows; criminal policies; human rights.SUMÁRIO: Introdução; 1 A legislação antitráfico na Europa; 2 A le-gislação antitráfico na Ásia e no Pacífico; 3 A legislação antitráfico no Oriente Médio e na África; 4 A legislação antitráfico nas Américas; 5 A lógica do Direito Penal do Inimigo nas legislações antitráfico; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O artigo pretende extrair a política criminal orientadora da regulação legal do tráfico de pessoas (condicionando as decisões político-punitivas) e a sua relação com o controle dos fluxos migratórios.

No final do século XX e início do século XXI, a política criminal subja-cente ao tráfico internacional de pessoas caracteriza-se por um viés voltado ao enfrentamento do crime organizado transnacional e à imigração irregular. Mais do que a proteção de bens jurídicos individuais das vítimas do tráfico de seres humanos, há uma preocupação com a gestão dos riscos que podem afetar a soberania estatal e a legitimidade de um determinado sistema socio-econômico.

Alarmados com o tráfico de pessoas, os governos vêm adotando, nos últimos anos, medidas para reforçar as suas fronteiras contra a ameaça da imigração descontrolada. O controle dos fluxos migratórios é utilizado como pretexto pelos Estados para proteger as suas identidades, os próprios direitos dos imigrantes e para garantir uma vida melhor para os seus cidadãos. Con-tudo, ao fixarem regras muito rigorosas, essas medidas acabam tornando os migrantes ainda mais vulneráveis.

Em vários países de destino a expulsão é a principal solução para o problema dos imigrantes em situação irregular, inclusive das vítimas de trá-fico. Geralmente, as autoridades não diferenciam as categorias de imigrantes ilegais, tratando da mesma forma as vítimas de tráfico e os autores de infra-ções às leis de imigração. Ainda que as vítimas do tráfico sejam submetidas a tratamento desumano em muitos países, elas são consideradas migrantes em situação irregular que devem retornar para o país de origem.

Os esforços dos governos para limitar os movimentos migratórios aca-bam por colocar os migrantes em situações desprovidas de qualquer prote-

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ção jurídica específica em matéria de direitos fundamentais. Conflitam com a proteção dos direitos humanos dos migrantes, podendo produzir situações que dão origem (ou facilitam) ao tráfico de seres humanos. Uma política imi-gratória rigorosa, combinada com a falta de oportunidades no país de ori-gem, pode levar a uma maior dependência dos migrantes em relação aos traficantes de pessoas.

Nesse sentido, o artigo parte da hipótese que o Direito Penal é utiliza-do como instrumento para a regulação da exclusão social. Os agentes polí-ticos aprovam legislações aparentemente preocupadas com a proteção dos migrantes ilegais, quando, na verdade, respondem principalmente ao desejo de limitar os fluxos migratórios.

A partir da análise da legislação antitráfico de alguns países da Europa, Ásia e Pacífico, África, Oriente Médio e das Américas, objetiva-se esquadri-nhar até que ponto o Direito Penal do Inimigo se faz presente na confecção de programas político-punitivos volvidos no enfrentamento ao tráfico inter-nacional de pessoas.

1 A LEGISLAÇÃO ANTITRÁFICO NA EUROPA

Na Alemanha, o problema do tráfico de estrangeiros é abordado em di-versas leis penais acessórias, principalmente na Lei de Fomento ao Emprego (AFG), de 1969, e na Lei sobre Residência, Atividade Econômica e Integração dos Estrangeiros na Alemanha (AG), de 2005. A AFG penaliza o tráfico ilegal de trabalhadores estrangeiros com prisão de até 3 anos e multa, elevada à prisão de 6 meses a 5 anos se realizada com habitualidade ou com puro âni-mo de lucro. Com as mesmas penas é penalizado o empresário que emprega trabalhadores estrangeiros sem permissão de trabalho em condições muito desproporcionais em relação aos trabalhadores alemães em atividades simi-lares (parágrafos 227 e 227-a AFG).

A AG prevê pena de prisão de até 5 anos ou multa a quem incita ou ajuda o estrangeiro a entrar clandestinamente em território com ânimo de lu-cro ou repetidamente ou a favor de vários estrangeiros. A pena se eleva à de prisão de 6 meses a 10 anos se a conduta é realizada de modo habitual, como membro de um bando dedicado a esta atividade, com emprego de arma de fogo ou se ocorre a exposição do contrabandeado a um tratamento desumano ou degradante, colocando-o em risco de vida ou de sérios danos à sua saúde (parágrafo 96 e seguintes da AG).

Criminaliza também com pena de prisão até 1 anos ou multa a conduta de quem entra ou permanece no território alemão com violação às regras

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de entrada e permanência dos Estados-membros da União Europeia ou do Acordo de Schengen, ou descumpre um mandado executório para deixar o país dentro de um determinado prazo.

Da mesma forma, quem acolhe um estrangeiro em situação irregular, não nacional de um Estado-membro da União Europeia ou de outro Estado contratante do Acordo sobre o Espaço Econômico Europeu, recebe as mesmas penalidades. Se o estrangeiro prestar declarações incompletas ou incorretas, ou utilizar documentos falsos para conseguir entrar no território alemão, a pena é de prisão até 3 anos ou multa (parágrafo 95 e seguintes da AG).

O Código Penal alemão criminaliza o tráfico de pessoas, sob o nomen iuris “Crimes contra a Liberdade Pessoal”1, englobando tanto o tráfico para fins de exploração sexual2 quanto o tráfico para fins de exploração laboral. O mínimo da pena é elevado (de 6 meses para 1 ano) quando a vítima é criança, quando há maltrato físico ou risco de morte ou quando o autor é membro de um bando ou pratica a conduta profissionalmente ou de forma continuada.

Na Itália, os principais instrumentos jurídicos na luta contra a imigra-ção ilegal, a escravidão e o tráfico de pessoas encontram-se na Lei de Imigra-ção (art. 12), no Código Penal (art. 600, 601 e 602) e na chamada Lei Merlin, que aboliu a regulamentação da prostituição, versando sobre a exploração da prostituição de outrem.

Desde 1958, os bordéis e o lenocínio são proibidos e sancionados em todas as suas formas. A Lei Merlin aboliu a regulamentação da prostituição, punindo com pena de prisão qualquer conduta relacionada à organização da prostituição e lenocínio, assim como a cumplicidade, demonstrando a inten-ção do legislador de considerar a prostituição um mal social3.

1 Antes da reforma introduzida no ano de 2005, o Código Penal alemão previa o tráfico de pessoas tão somente para fins de exploração sexual, em meio às ofensas contra a autodeterminação sexual.

2 A prostituição, embora não seja um delito em si, é proibida perto de escolas ou outros locais frequentados por menores, sendo a violação dos regulamentos locais punida como crime, assim como as atividades em torno da organização dessa profissão, que são consideradas crime de lenocínio (art. 181a).

3 Qualquer pessoa que mantém casa de prostituição, ou pelo menos o controle, a direção, a administração, a sociedade, a operação e o gerenciamento, que arrenda casa ou outros locais para fins de exploração da prostituição de outrem ou, em sendo proprietário, gerente de hotel, pensão, clube de dança ou local de entretenimento, tolera a prostituição em suas dependências, está sujeita à pena reclusão de 2 a 6 anos e multa de 258 a 10.329 euros.

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Nas mesmas penas incorre quem recruta ou participa de organizações destinadas ao recrutamento de pessoas para fins de prostituição, tira proveito da prostituição de outrem, promove, explora, induz a pessoa à prostituição ou facilita a sua entrada em território de outro Estado (que não o lugar de sua residência habitual) para fins de prostituição ou opera a sua saída para um lugar diferente de onde geralmente exerce essa atividade.

No tocante à imigração ilegal, a Itália realizou uma reforma legislativa do conjunto da matéria migratória4. Pelo art. 12 da Lei de Imigração italiana, qualquer pessoa que viola as disposições do texto único, envolvendo-se em atos destinados a favorecer a entrada ilegal no território italiano ou em outro Estado de que a pessoa não é nacional ou residente permanente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos e multa de até 15 mil euros para cada pessoa (exceto se motivado por assistência humanitária, em caso de necessidade), salvo se o fato não constitui crime mais grave.

Se a conduta for praticada com a finalidade de lucro, ainda que indire-tamente, a pena é de 4 a 15 anos de prisão e multa de 15 mil euros para cada pessoa. A pena do tipo básico é agravada no caso da entrada ou permanência ilegal de 5 ou mais pessoas; perigo para a vida ou segurança do estrangeiro; submissão a tratamento desumano ou degradante; se for praticado por 3 ou mais pessoas em unidade de desígnios; se utilizado serviços internacionais de transporte ou documentos adulterados ou obtidos ilegalmente.

Se a finalidade for o recrutamento de pessoas para fins de prostituição ou outra forma de exploração sexual ou para exploração de crianças em ati-vidades ilegais, a pena de prisão é aumentada de um terço à metade, além de multa de 25 mil euros para cada infrator. Para o momento posterior ao in-gresso em território italiano, é prevista a pena de prisão de até 4 anos e multa de até 30 milhões de libras para quem favorece a permanência irregular do estrangeiro em território italiano com a finalidade de obter um proveito in-justo de seu status de ilegal.

O delito de tráfico de pessoas foi introduzido no Código Penal italiano pelo Decreto-Lei nº 24, de 4 de março de 2014, penalizando com prisão de 8 a 20 anos quem:

[...] recruta, introduz no território do Estado, transfere alguém para fora, transporta, cede autoridade sobre a pessoa, aloja uma ou mais pessoas que

4 Cf. Lei consolidada sobre imigração aprovada pelo Decreto Legislativo nº 286, de 25 de julho de 1988, que também regula os crimes de imigração ilegal, com as alterações introduzidas pela Lei nº 40, de 6 de março de 1998.

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se encontrem nas condições referidas no artigo 600, ou seja, realiza a mes-ma conduta sobre uma ou mais pessoas, por meio de fraude, violência, ameaça, abuso de autoridade ou exploração de uma situação de vulnera-bilidade, de inferioridade física, mental ou necessidade, ou mediante pro-messa ou entrega de dinheiro ou outra vantagem para a pessoa que tem autoridade sobre ela, a fim de induzi-la ou forçá-la a trabalhar, a prestar favores sexuais, à mendicância ou a praticar atividades ilegais que envol-vam a exploração ou se submeter à remoção de órgãos.5 (tradução nossa)

Tratando-se de criança ou adolescente, o crime se configura indepen-dentemente do meio utilizado, em conformidade com o Protocolo de Tráfico das Nações Unidas.

Na Espanha, o Código Penal espanhol, de 1995, continha três disposi-ções destinadas à criminalização do tráfico de pessoas. O art. 312 castigava o tráfico ilegal de mão de obra e o emprego de estrangeiros sem permissão de trabalho; o art. 313, o tráfico clandestino de imigrantes estrangeiros; e o art. 188.2, o tráfico de pessoas, incluindo os estrangeiros, com propósito de exploração sexual.

No ano de 2000, a Lei Orgânica nº 4, de 11 de janeiro, introduziu no art. 318 bis um delito contra os direitos dos cidadãos estrangeiros, visando a incriminar a promoção, o favorecimento ou a facilitação do tráfico ilegal de pessoas em trânsito ou com destino à Espanha, com pena de prisão de 6 me-ses a 3 anos e multa de 6 a 12 meses6. Da mesma forma, modificou o art. 313.1 do Código Penal (favorecimento da imigração clandestina de trabalhadores),

5 “[...] recluta, introduce nel territorio dello Stato, trasferisce anche al di fuori di esso, trasporta, cede l’autorità sulla persona, ospita una o più persone che si trovano nelle condizioni di cui all’articolo 600, ovvero, realizza le stesse condotte su una o più persone, mediante inganno, violenza, minaccia, abuso di autorità o approfittamento di una situazione di vulnerabilità, di inferiorità fisica, psichica o di necessità, o mediante promessa o dazione di denaro o di altri vantaggi alla persona che su di essa ha autorità, al fine di indurle o costringerle a prestazioni lavorative, sessuali ovvero all’accattonaggio o comunque al compimento di attività illecite che ne comportano lo sfruttamento o a sottoporsi al prelievo di organi.”

6 Havendo ânimo de lucro ou emprego de violência, intimidação, engano ou abuso de uma situação de necessidade da vítima, a pena era de prisão de 2 a 4 anos e multa de 12 a 24 meses. No caso de perigo à vida, saúde e integridade da pessoa traficada, se a vítima fosse menor de idade ou se praticado por organização ou associação criminosa, inclusive de caráter transitório, dedicada ao tráfico, a pena se agravava.

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para fins de agravar-lhe a pena7, resultando em uma sanção superior à do delito de tráfico ilegal de pessoas.

A Lei Orgânica nº 11, de 29 de setembro de 2003, introduziu uma re-forma no tipo básico do art. 318 bis, ampliando o alcance do tipo penal para incriminar a conduta daquele que, direta ou indiretamente, promove, favo-rece ou facilita o tráfico ilegal ou a imigração clandestina de pessoas desde em trânsito ou com destino à Espanha, elevando a pena para prisão de 4 a 8 anos. Além do tráfico ilegal, a conduta típica passou a abranger a imigração clandestina, ao mesmo tempo em que se previu a possibilidade de realização da conduta direta ou indiretamente8.

Ao acrescentar a imigração clandestina ao tipo básico do tráfico ilegal de pessoas, o legislador nitidamente tratou da mesma forma dois fenôme-nos de natureza distinta: o tráfico de pessoas e a imigração ilegal. Conforme Cancio-Meliá e Maráver Gómez (2006), enquanto o tráfico destina-se à prote-ção dos cidadãos estrangeiros, a imigração ilegal serve, principalmente, para reforçar as normas que limitam o direito dos estrangeiros a entrar e residir no país.

Para os autores, o propósito do legislador foi vincular o discurso de luta contra a imigração ilegal com a defesa dos interesses dos cidadãos es-trangeiros, na figura dos imigrantes que entram ilegalmente na Espanha, como vítimas das máfias que traficam pessoas. “As reformas introduzidas em nosso Código penal refletem essa mesma ambigüidade, pois combinam elementos de uma e outra figura de uma forma pouco coerente, dando espe-cial preeminência à imigração ilegal em detrimento do tráfico de pessoas”9 (Cancio-Meliá, Maráver Gómez, 2006, p. 76, tradução nossa).

7 De prisão de 6 meses a 3 anos e multa de 6 a 12 meses passou a ser de prisão de 2 a 5 anos e multa de 6 a 12 meses.

8 A pena dos subtipos agravados foi elevada proporcionalmente, com acréscimo de uma nova agravante para os casos de favorecimento do tráfico ilegal ou da imigração clandestina com fins de exploração sexual. O art. 188.2 do Código Penal deixou de fazer referência à conduta de favorecer a entrada, residência ou saída de uma pessoa com fins de exploração sexual, passando a ser previsto unicamente no art. 318 bis do Código Penal, sob a rubrica delitos contra os direitos dos cidadãos estrangeiros, com pena de prisão de 5 a 10 anos, em contraposição à pena anterior do art. 188.2, que era de prisão de 2 a 4 anos e multa de 12 a 24 meses.

9 “Las reformas introducidas en nuestro Código penal reflejan esa misma ambigüedad, pues combinan elementos de una y otra figura de una manera poco coherente, dando finalmente preeminencia a la inmigración ilegal em detrimento del tráfico de personas.”

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Até a aprovação da Lei Orgânica nº 5, de 2010, a preocupação com as condições em que muitos estrangeiros chegavam à Espanha cedia espaço à preocupação com o controle da chegada dos imigrantes. Pelo art. 318 bis do Código Penal da Espanha, os casos de tráfico de pessoas apareciam regula-dos como modalidades agravadas do delito de imigração ilegal. Os riscos à dignidade das pessoas traficadas ficavam sujeitos a uma prévia ameaça à política migratória definida pelas normas reguladoras de entrada e saída da Espanha (Cancio Meliá, Maraver Gómez, 2006).

Com a Lei Orgânica nº 14/2003, a Lei de Estrangeiro foi modificada no-vamente, desta vez para fins de combater a imigração legal e erradicar aquela que utiliza procedimentos fraudulentos para entrar na Espanha. O art. 54.1 b da LOEx passou a considerar como infração grave a ação individual com ânimo de lucro que facilita a imigração clandestina, suprimindo o requisito anterior de o autor pertencer a uma organização criminosa10.

Em 2007, a Lei Orgânica nº 13 sancionou a persecução extraterritorial do tráfico ilegal e da imigração clandestina de pessoas, utilizando como pre-texto a impunidade diante de um tipo de criminalidade transnacional, para a qual os Estados com vínculos de conexão não estão capacitados para a re-pressão de forma individualizada.

Seguindo a interpretação da Circular nº 2/2006, de 27 de julho, adian-tou-se a barreira penal para o momento do favorecimento do tráfico, qualifi-cado como atividade de recrutamento, transporte, intermediação ou qualquer outra que suponha a sua promoção ou o seu favorecimento, independente-mente do resultado alcançado, ainda que a interceptação da embarcação ou canoa ocorra antes de chegar à costa espanhola.

Os arts. 313.1 e 318 bis do Código Penal foram alterados pela Lei Orgâ-nica nº 13/2007, para fins de acrescentar a imigração clandestina ou o tráfico ilegal de pessoas, não só desde, em trânsito ou com destino à Espanha, mas também quando se destina para qualquer outro país da União Europeia.

Contudo, diante das fortes críticas à redação do art. 318 bis do CP, que confundia as figuras do tráfico de pessoas e contrabando de migrantes, le-vando à interpretação de que as agravantes do tipo básico somente se con-

10 Com a edição do Decreto Real nº 2393/2004, o Ministro do Interior passou a dispor da faculdade de restringir a liberdade de circulação de estrangeiros, mediante proposta da Direção Geral de Polícia, por razões de “segurança pública”, e em caráter individual, para limitar a liberdade de circulação dos imigrantes indocumentados.

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figurariam nos casos da entrada de forma ilegal, reduzindo-se o âmbito de aplicação do delito de tráfico de pessoas (já que excluía os espanhóis, os es-trangeiros comunitários e os estrangeiros regulares como possíveis sujeitos passivos), a legislação antitráfico espanhola foi alterada mais uma vez no ano de 2010.

Com a reforma operada pela Lei Orgânica nº 5, de 22 de junho de 2010, o legislador passou a incriminar o delito de tráfico de seres humanos em ar-tigo distinto (art. 177 bis), tendo como bens jurídicos protegidos a dignidade e a liberdade dos sujeitos passivos, enquanto o art. 318 bis do Código Penal passou a regular unicamente o delito de imigração clandestina, na defesa dos interesses do Estado no controle dos fluxos migratórios.

O delito de tráfico de pessoas incorporado ao art. 177 bis do CP pas-sou a se estruturar em torno de um tipo básico, com pena de prisão de 5 a 8 anos, e vários tipos qualificados, estratificados em distintos níveis, conforme o modo de produção do traslado, as características do sujeito passivo e do sujeito ativo e se praticado por organização ou associação de duas ou mais pessoas, ainda que de forma transitória.

O tipo básico reúne os três elementos exigidos no Protocolo de Tráfico das Nações Unidas: a ação, consistente no recrutamento, transporte, traslado, acolhimento, recebimento ou alojamento; o meio, mediante o emprego de violência, intimidação ou engano ou abuso de uma situação de superioridade ou de necessidade ou de vulnerabilidade da vítima nacional ou estrangeira; e a finalidade, que deve ser a imposição de trabalho ou serviços forçados, a escravidão ou as práticas similares à escravidão ou à servidão ou à mendi-cidade (alínea a), a exploração sexual, incluída a pornografia (alínea b) ou a extração de órgãos (alínea c)11.

As legislações antitráfico nos três países analisados seguem o marco de uma política comum de migração e contra a imigração e a residência ilegal

11 Tratando-se de menores de idade, o crime se configura independentemente do meio utilizado. O consentimento da vítima é irrelevante, se empregado qualquer um dos meios citados. Determinados atos preparatórios, como a provocação, a conspiração e a proposição, são punidos com pena inferior de um a dois terços da pena correspondente ao tipo penal básico ou qualificado.

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adotada no âmbito da União Europeia12. Pelo Acordo de Schengen13, incorpo-rado ao acervo comunitário pelo Tratado de Amsterdã, as partes encontram--se obrigadas a fixar sanções penalizando o cruzamento não autorizado das fronteiras externas (art. 3.2) e a estabelecer sanções adequadas contra qual-quer pessoa que, com fins lucrativos, ajude ou tente ajudar um estrangeiro a entrar ou permanecer no território europeu (art. 27.1).

De acordo com aludida lógica, atitudes permissivas em relação à imi-gração ilegal dão cobertura a situações de exploração e tráfico de pessoas. O endurecimento das políticas migratórias e a criminalização da imigração (mais controles e mais securitização), ao revés, trazem segurança ao espaço europeu, na medida em que desestimulam os migrantes a sair de seus países de origem.

Tal política, além de equivocada, fere gravemente os direitos dos mi-grantes, pois representa um modelo de exclusão institucional. Como ensina Iglesias Skulj (2010, p. 288, tradução nossa), “[...] esse sistema de controle se expressa mediante a adoção de uma estratégia de prevenção baseada na re-presentação dos migrantes, não como sujeitos, senão como pertencentes a um grupo de risco: os estrangeiros”14.

De um lado, o imigrante se apresenta como vítima do delito e, de outro, criminaliza-se a sua entrada sem autorização formal, transmitindo-se “[...] uma mensagem em certa medida hipócrita que aparentemente se interessa pelo imigrante, mas que, em última instância, converte sua própria presença

12 Conselho Europeu, reunido em Tampere, no período de 15 e 16 de outubro de 1999, para debater a criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União Europeia (Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/summits/tam_pt.htm>. Acesso em: 20 jul. 2014).

13 Acordo de Schengen, assinado em 14 de junho de 1985 entre Alemanha, Bélgica, França, Luxemburgo e os Países Baixos. Tem por objetivo eliminar, progressivamente, os controles das fronteiras comuns e estabelecer um regime de livre circulação para todos os nacionais dos Estados signatários, de outros Estados da comunidade ou de terceiros países (Disponível em: <http://europa.eu/legislation_summaries/glossary/schengen_agreement_es.htm>. Acesso em: 20 jul. 2014).

14 “[...] el sistema de control se expresa mediante la adopción de una estrategia de prevención basada en la representación de los migrantes no ya como sujetos, sino como pertenecientes a un grupo de riesgo: los extranjeros.”

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em uma ameaça de caráter criminal” (Cancio Meliá, Maráver Gómez, 2006, p. 108, tradução nossa)15.

2 A LEGISLAÇÃO ANTITRÁFICO NA ÁSIA E NO PACÍFICO

Na Índia, o tráfico de pessoas é regulamentado na Constituição, na Lei de Prevenção do Tráfico Imoral de 1956 (ITPA) e no Código Penal indiano de 1860. Outras provisões relacionadas à matéria também são encontradas na Lei de Abolição do Sistema de Trabalho Forçado de 1976, na Lei de Trans-plante de Órgãos Humanos de 1994, na Lei que proíbe de regulamenta o Trabalho Infantil de 1986 e na Lei de Restrição de Casamento de Criança de 1929 (Kapur, 2007).

O art. 23 da Constituição indiana proíbe o tráfico de seres humanos, a mendicância e outras formas semelhantes de trabalho forçado. Outras dis-posições constitucionais que dizem respeito ao tráfico de seres humanos in-cluem aquelas que garantem o direito à igualdade, o direito de ser livre de discriminação, o direito à vida e à liberdade, e o direito de crianças menores de 14 anos idade de não se envolverem em formas perigosas de trabalho.

A ITPA, aprovada em conformidade com as obrigações da Índia rela-tivas à Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e Exploração da Prostituição de Outrem das Nações Unidas (Convenção de 1949), tem como objetivo suprimir o recrutamento de mulheres e meninas para fins de pros-tituição. A lei proíbe manter bordel ou permitir que o local seja usado como casa de prostituição, viver dos ganhos da prostituição, a procura de uma pessoa para a prostituição, com ou sem consentimento, a detenção de uma pessoa em local onde a prostituição é realizada, com ou sem consentimento, a prostituição próxima a locais públicos e a sedução de uma pessoa em cus-tódia.

Enquanto a pena para mulheres condenadas pela prática de prostitui-ção é de até 6 meses de prisão para o primeiro delito, e até um ano para cada infração cometida depois disso, a penalidade para os homens pelo mesmo crime é de 7 dias e 3 meses (Seção 8). A ITPA concede aos policiais e magistra-dos amplos poderes para resgate e reabilitação das vítimas, permitindo, em seu Capítulo 15, que os policiais adentrem instalações sem mandado, desde que acompanhados por duas ou mais mulheres policiais ou por dois ou mais

15 “[...] un mensaje en cierta medida hipócrita que aparentemente se interesa por el inmigrante, pero que, en última instancia, convierte su propia presencia en uma amenaza de carácter criminal.”

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“respeitáveis” habitantes da comunidade, autorizando a remoção de crianças e mulheres, bem como suas detenções para sua própria proteção.

Uma vez resgatadas, mulheres e crianças são colocadas em casas de proteção ou instituições corretivas, somente podendo delas sair por ordem do juiz competente, perdendo, dessa forma, o direito à liberdade, além de serem obrigadas a se submeter a exames de saúde invasivos. Homens, trans-gêneros e transexuais não recebem qualquer assistência, ainda que tenham sido traficados, por não se enquadrarem no estereótipo de vítimas.

Outros crimes previstos no Código Penal indiano relacionados ao trá-fico de pessoas são: o sequestro ou rapto de mulheres e meninas, a fim de forçá-los a ter relações sexuais ilícitas ou a se casar contra a sua vontade (Se-ção 366); a aquisição de crianças (Seção 366a); a importação de menina com idade inferior a 21 anos de idade (art. 366b); o sequestro e a abdução de pes-soas, a fim de submetê-las à escravidão (Seção 367); a compra ou venda, ou dar ou receber, pessoas com a finalidade de escravidão (Seção 370); o envol-vimento de funcionários do governo com o tráfico de seres humanos (Seção 370); a compra e venda, ou obtenção de outro modo, de criança, para fins de prostituição ou qualquer fim ilegal ou imoral (Seções 372 e 373); e o trabalho forçado (Seção 374), com penas que variam de 7 anos à prisão perpétua.

A despeito das inúmeras disposições legais abordando aspectos dife-rentes do tráfico na Índia, os normativos existentes falham na definição dos crimes, deixando ampla gama de discricionariedade aos agentes de aplicação da lei, os quais são profundamente influenciados por preconceitos de gêne-ro. O foco sobre a finalidade do tráfico para fins de prostituição, ao invés do uso da força, fraude ou violência, acaba deixando desprotegidas mulheres e crianças traficadas para outras finalidades, como, por exemplo, para o traba-lho doméstico, não importando o quão violento tenha sido o meio utilizado.

Conforme Kapur (2007), a abordagem adotada pela Índia no comba-te ao tráfico humano é predominantemente de justiça criminal, e não de di-reitos humanos, voltada para os controles fronteiriços e para as medidas de deportação imediata ou repatriação forçada, especialmente em relação aos imigrantes de Bangladesh, sem qualquer verificação prévia se foram trafica-dos. Antes de proteger os direitos e interesses das pessoas traficadas, as me-didas antitráfico são utilizadas como ferramentas para reforçar a segurança nas fronteiras, dirigidas aos migrantes clandestinos, deixando-os ainda mais vulneráveis ao tráfico e à exploração.

Na Tailândia, o seu subsistema jurídico tem desenvolvido diferentes quadros legais para abordar os temas da migração, do tráfico, do trabalho

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e da prostituição. Desde o ano de 1996, resoluções de gabinete vêm sendo editadas para regulamentar o trabalho temporário de imigrantes ilegais na Tailândia. Migrantes que ingressam no país de forma ilegal provenientes da Birmânia, Camboja e Laos podem solicitar autorizações de trabalho temporá-rias enquanto aguardam o processo de deportação (Pollock, 2007).

A partir do ano de 2001, os trabalhadores domésticos foram autori-zados a se registrar na Tailândia, podendo ter acesso ao serviço nacional de saúde e a aderir aos sindicatos existentes; entretanto, não podem constituir o seu próprio sindicato. Os empregadores também são obrigados a se registrar, sendo instruídos a respeitar as leis do trabalho, incluindo o pagamento de salário-mínimo e a não retenção dos documentos dos migrantes.

Os migrantes registrados, no entanto, não podem viajar para fora da província, haja vista que os registros os vinculam a um determinado empre-gador, o que pode aumentar as suas vulnerabilidades. Ademais, inexiste po-lítica para o registro de trabalhadores da indústria do sexo (Pollock, 2007).

A vinculação do imigrante a um determinado empregador, na prática, nada mais representa do que a imobilização da força de trabalho, já que o tra-balhador fica impedido de dispor livremente de se seu labor. Segundo Esterci (2008), tal prática gera como efeitos, além da redução dos custos da mão de obra, a diminuição do poder de reivindicação/organização dos trabalhado-res, obstando a formação/afirmação de suas identidades e o reconhecimento de seus direitos e das suas entidades de representação, favorecendo, dessa forma, a exploração laboral.

Memorandos de entendimento firmados entre os governos da Tailân-dia, Laos, Birmânia e Camboja autorizam a emissão de passaportes temporá-rios para migrantes das nacionalidades desses países, para fins de concessão de vistos e autorizações de trabalho temporário na Tailândia por dois pe-ríodos sucessivos de dois anos, sendo que, ao término do período de qua-tro anos, os migrantes ficam proibidos de retornar à Tailândia por três anos (Pollock, 2007).

A Lei de Proteção do Trabalho de 1998 da Tailândia abrange todos os trabalhadores, independentemente de sua condição migratória, restringindo o emprego de jovens de 15 a 18 anos em condições particularmente perigo-sas e proibindo deduções de seus salários. Entretanto, certas categorias de trabalho, como trabalhadores domésticos, trabalhadores do sexo, do setor de entretenimento, agrícolas, marítimos e mendigos, não estão cobertas por essa lei.

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O Código Penal da Tailândia, com a alteração de 1997, previa uma série de abusos relacionados ao tráfico de pessoas, entre eles a conduta de privar uma pessoa de sua liberdade ou recrutar ou traficar um homem ou uma mu-lher para um propósito sexual indecente (Seções 282 e 283).

No ano de 2008, foi aprovada a Lei Antitráfico de Pessoas, criminali-zando todas as formas de tráfico. Todo aquele que, para fins de exploração16, adquire, compra, vende, traz de ou envia para, detém ou restringe, guarda ou recebe pessoa, mediante uso da ameaça ou da força, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou recebimento de dinheiro ou benefícios para obter o con-sentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para permitir que o infrator explore essa pessoa, fica sujeito a penas que variam de 4 a 10 anos de prisão. Tratando-se de criança, o meio utilizado é irrelevante17.

Sendo o delito praticado por 3 ou mais pessoas ou por membro de um grupo criminoso organizado, a pena é elevada à metade. Caso a pessoa traficada seja trazida de fora ou levada para fora da Tailândia, sob o poder de outra pessoa de forma ilegal, o infrator é punido com o dobro da pena prevista no tipo básico.

A pena também é agravada em dobro quando o delito for cometido por pessoa se passando por oficial e exercer as funções de um oficial sem sê-lo e ter o poder de fazê-lo, e por funcionário público. Se o crime for cometido por funcionário competente para agir nos termos da lei antitráfico, a pena é aplicada em seu triplo.

3 A LEGISLAÇÃO ANTITRÁFICO NO ORIENTE MÉDIO E NA ÁFRICA

Até o início do século XXI, o Código Penal de alguns países árabes e africanos abordava o tráfico de pessoas tão somente para fins de prostitui-ção. A prostituição em si é uma atividade ilegal em quase todos os países do

16 A exploração, nos termos da Lei Antitráfico, envolve benefícios resultantes da prostituição, produção ou distribuição de materiais pornográficos e outras formas de exploração sexual, a redução da pessoa à condição de mendigo, o trabalho ou serviço forçado, a remoção de órgãos para fins de comércio, e quaisquer outras práticas semelhantes, resultando em extorsão forçada, independentemente do consentimento da pessoa.

17 Nos termos da Seção 7, quem apoia a prática do tráfico de pessoas ajuda contribuindo com a aquisição de propriedade, lugar ou alojamento, auxilia o infrator a não ser preso, exige ou aceita ou concorda em aceitar um benefício para ajudar o criminoso a não ser punido, ou induz alguém a se tornar um membro de um grupo criminoso organizado para a prática do delito de tráfico de pessoas, fica sujeito à mesma penalidade do tipo básico.

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Oriente Médio, exceto no Líbano e na Turquia, e em alguns países africanos. Pela lei islâmica, a prostituição é considerada uma forma de adultério, pu-nida com pena de chicotada18. Em regra, as atividades relacionadas à pros-tituição, como o pagamento por serviços sexuais, viver dos lucros da pros-tituição e manutenção de casa de prostituição, são tipificadas como crimes19 (Mattar, 2002).

O Código Penal do Qatar proibia a conduta de levar uma pessoa a se envolver em relações sexuais com outro, ou seduzir a pessoa com o propó-sito de praticar a prostituição, seja no Qatar ou em outro país. Na Turquia, o Código Penal penalizava qualquer pessoa que transportasse uma virgem ou uma mulher com idade inferior a 21 anos de um lugar para outro com o pro-pósito de prostituição. Da mesma forma, o Código Penal da Síria impunha sanções para quem transportasse ou facilitasse a entrada de alguém na Síria para fins de prostituição (Mattar, 2002).

No Egito, o Código Penal incriminava a conduta de qualquer pessoa que auxiliasse a entrada de uma pessoa no Egito com o propósito de prati-car adultério ou prostituição. De forma similar, na Argélia, o Código Penal penalizava o tráfico quando a vítima da ofensa fosse “entregue” à prosti-tuição ou induzida a se entregar à prostituição fora do território argeliano (Mattar, 2002).

Entretanto, nos últimos anos, os países do Oriente Médio vêm expan-dindo as suas legislações criminais internas, a fim de abranger outras mo-dalidades de tráfico de seres humanos, em consonância com o Protocolo de Tráfico de Pessoas das Nações Unidas. Conforme Mattar (2011), até 2011, os países do mundo árabe podiam ser divididos em três grupos, tendo como base o status de suas leis antitráfico humano.

O primeiro grupo engloba os países que já aprovaram leis antitráfico humano, como Síria, Emirados Árabos Unidos, Algéria, Bahrein, Dijobouti, Egito, Jordão, Mauritânia, Omã, Arábia Saudita, Qatar e Líbano; países como Iraque e Kuwait, em processo de elaboração de leis que proíbem o tráfico de seres humanos; e os países que dependem dos respectivos Códigos Penais,

18 Entre os países árabes que aplicam estritamente essa regra encontram-se a Arábia Saudita e o Paquistão (Mattar, 2002).

19 As atividades relacionadas à prostituição são consideradas infrações penais pelos Códigos Penais da Argélia, Bahrein, Egito, Irã, Kuwait, Marrocos, Sudão, Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Omã, Qatar, Síria, Tunísia e Argélia, entre outros (Mattar, 2002).

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como Tunísia, Iêmen, Marrocos, Líbia e Sudão, para julgar os casos de tráfico humano (Mattar, 2011).

No Líbano, a Lei Antitráfico nº 164, de 2011, passou a criminalizar o trá-fico e o uso de pessoas para fins de exploração sexual comercial, mendicância e envolvimento forçado em atos terroristas. Também proibiu o recrutamento de crianças para conflitos armados, com penalidades que variam de 5 a 15 anos.

Atualmente, o Código Penal da Turquia proíbe, no art. 80, o tráfico para fins de exploração sexual e laboral, mediante uso de força, ameaça ou abuso de poder, prescrevendo penas de 8 a 12 anos de prisão. O art. 227 (1) proíbe ainda a facilitação da prostituição infantil, prescrevendo penas de 4 a 10 anos de prisão.

Em abril de 2013, o governo da Turquia aprovou a Lei de Estrangeiros e de Proteção Internacional, vindo a fornecer uma definição legal de tráfico e da elegibilidade das vítimas para fins de concessão de uma autorização especial de residência, que pode ser renovada por até 3 anos. Também criou o Departamento de Proteção de Pessoas Traficadas, responsável por todos os esforços antitráfico, incluindo a identificação das vítimas.

No Qatar, em outubro de 2011, foi promulgada uma lei mais abran-gente para o combate do tráfico de seres humanos, proibindo tanto o tráfico para fins sexuais quanto o tráfico para fins de trabalho forçado, com penas que variam de 7 a 15 anos de prisão, além de multa. Uma lei de 2009 proíbe os empregadores de reterem os passaportes dos trabalhadores estrangeiros.

Na Síria, o Decreto nº 3, de 2010, fornece o amparo legal para a perse-cução penal dos crimes de tráfico, estabelecendo pena mínima de 7 anos de prisão, mas não apresenta uma definição clara sobre o tráfico de pessoas. A Lei nº 11/2013, aprovada em junho de 2013, criminaliza todas as formas de recrutamento e utilização de crianças com menos de 18 anos de idades por grupos armados.

O Egito, no ano de 2010, por meio da Lei Antitráfico nº 64, veio a proi-bir todas as formas de tráfico de seres humanos, com penas de 3 a 15 anos de prisão, e multa. A legislação antitráfico do Egito expandiu as formas de ex-ploração que podem constituir o crime de tráfico, acrescentando a exploração de atos de prostituição e todas as formas de exploração sexual, assim como a exploração de crianças para referidos fins, e também para fins de pornogra-fia, mendicância e remoção de órgãos.

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A Lei da Criança nº 12, de 1996, com a alteração introduzida pela Lei nº 126, de 2008, incluiu disposições, proibindo o tráfico sexual e o trabalho forçado de crianças, prescrevendo penas de, no mínimo, 5 anos de prisão. A nova Constituição do Egito, aprovada por meio de referendo público, em janeiro de 2014, proibiu expressamente, em seus arts. 80 e 89, o tráfico sexual, a exploração compulsória e o trabalho forçado.

Na Argélia, todas as formas de tráfico de seres humanos foram proi-bidas e criminalizadas no art. 5º de seu novo Código Penal, promulgado em março de 2009, com penalidades que variam de 3 a 10 anos de prisão.

Contudo, ao mesmo tempo em que incorporam novas modalidades de tráfico aos seus ordenamentos jurídicos, por pressão de países da União Eu-ropeia (especialmente, Espanha, Itália, França e Portugal), alguns países afri-canos vêm endurecendo as suas políticas migratórias, a ponto de criminalizar a saída de cidadãos de seus territórios de forma irregular, como é o caso de Marrocos e Senegal.

Para Garcia de Diego (2014), a lei de estrangeiro marroquina é pratica-mente uma reprodução do Direito francês, respondendo em parte à externa-lização de fronteiras da União Europeia, em complemento ao Frontex20 e ao Centro de Detenção de Migrantes em Nouadibu (Mauritânia). A criminaliza-ção de condutas relativas à emigração clandestina centra-se excessivamente na questão securitária (ameaça à segurança e à ordem pública representada pela migração clandestina transfronteiriça), deixando de lado os direitos hu-manos dos migrantes, muitos deles vítimas do tráfico de pessoas.

4 A LEGISLAÇÃO ANTITRÁFICO NAS AMÉRICAS

Nos Estados Unidos, a legislação proíbe o tráfico em suas várias mani-festações, como a peonagem, a servidão involuntária, o trabalho forçado e a exploração sexual. Também proíbe o confisco ou a destruição de documen-tos para compelir ou manter o serviço de uma vítima. O tráfico nos Estados Unidos é, primariamente, um crime federal, muito embora, desde setembro de 2006, vários estados adotaram as suas próprias legislações antitráfico (USA, 2014).

20 Frontex é a Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operativa nas Fronteiras Externas criada pelo regulamento 2007/2004, em funcionamento desde 3 de outubro de 2005, com atribuições para vigiar as fronteiras externas, formar os que as vigiam e coordenar as operações conjuntos de expulsão de pessoas em situação administrativa irregular (Garcia de Diego, 2014).

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A Lei de Proteção das Vítimas do Tráfico de 2000 (TVPA) e as suas re-autorizações subsequentes fornecem a base da resposta do governo dos Esta-dos Unidos ao problema do tráfico21. A TVPA trabalha com três componentes principais: prevenção, proteção e persecução penal. No campo da prevenção, o Departamento de Gabinete do Estado monitora e avalia o tráfico de pes-soas nos Estados Unidos e em outros países, coletando dados, facilitando a comunicação e divulgando um relatório sobre o tráfico de pessoas em vários países do mundo22.

No campo da proteção, a TVPA dá ênfase à proteção das vítimas, conferindo-lhes determinados benefícios, como moradia, aconselhamento, colocação profissional, proteção dos traficantes e assistência médica, sendo a concessão de autorização para permanência no país crucial para ajudá-las, já que a maioria delas encontra-se em situação irregular no país. As vítimas podem solicitar um tipo específico de visto, “T Visa”, para si e para os mem-bros de sua família.

Entretanto, para obter o “T Visa”, as vítimas precisam demonstrar que se encontram nos Estados Unidos em virtude do tráfico de pessoas, devendo cooperar com as investigações criminais e com a persecução penal dos cri-minosos. Após um período de 3 anos, a vítima beneficiária do “T Visa” pode garantir a residência permanente.

No campo da persecução penal, a TVPA expande os crimes e aumenta as penas para os crimes já existentes de peonagem (§ 15818 (a)), obstrução da aplicação da Seção 1581 (§ 1581 (b)), aliciamento para escravidão (§ 1583) e servidão involuntária (§ 1584), criando os seguintes novos tipos penais: tra-

21 Além da TVPA e as suas reautorizações, outros instrumentos legais utilizados no combate ao tráfico de pessoas nos Estados Unidos incluem leis sobre o confisco de bens, sobre servidão involuntária, leis laborais, leis sobre prostituição, o White-Slave Traffic Act, 1910 (conhecido como Lei Mann), o Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act, 1970 (conhecido como Lei RICO) e o Prosecutorial Remedies and other Tools to end the Exploitation of Children Today (Protect) Act, 2003.

22 Tal relatório, conhecido como TIP Report, apresentado anualmente ao Congresso, dispõe sobre as formas graves de tráfico que ocorrem em outros países. Nesse relatório, os países são classificados de acordo com determinados níveis (tiers), que vão desde o Tier 1, Tier 2, Tier 2 Watch List até o Tier 3, conforme sejam países de origem, trânsito ou destino de pessoas traficadas, se possuem recursos ou capacidades para lidar com as formas graves de tráfico, atendendo ou não aos requisitos mínimos listados na Seção 108 (a) da TVPA (proibição, punição rigorosa das formas graves de tráfico de pessoas e realização de esforços sérios e contínuos para eliminá-las).

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balho forçado; tráfico para fins de peonagem, escravidão, servidão involuntá-ria ou trabalho forçado; tráfico sexual de adultos e crianças pelo uso da força, fraude ou coerção; utilização de documentos ilegais em prol do tráfico, da peonagem, da escravidão, da servidão involuntária e do trabalho forçado (18 USC ss1590-1592) (TVPA, s112).

As penalidades previstas pela TVPA são suficientemente severas, sen-do de 5 a 20 anos de prisão para peonagem, servidão involuntária, trabalho forçado e servidão doméstica, podendo ser aplicada prisão perpétua no caso de agravantes; de 6 anos de prisão à prisão perpétua, para o tráfico para fins sexuais, sendo no mínimo de 10 anos de prisão para a tráfico sexual de crian-ças entre 14 e 17 anos, e de 15 anos de prisão para o tráfico sexual mediante uso de força, fraude ou coerção, ou para o tráfico sexual de crianças com idade inferior a 14 anos.

A TVPA, assinada em 28 de outubro de 2000, define as diversas formas de tráfico de pessoas, como: tráfico sexual, consistente na indução para prá-tica de sexo comercial, mediante uso de força, fraude ou coerção, ou quando a pessoa tem idade inferior a 18 anos; e o recrutamento, o acolhimento, o transporte, a provisão ou a obtenção de uma pessoa para trabalho ou serviço, mediante uso de força, fraude ou coerção com o propósito de subjugá-la à servidão involuntária, peonagem, servidão por dívida ou escravidão.

De acordo com Huckerby (2007), os esforços antitráfico dos Estados Unidos caracterizam-se por um foco desproporcional no tráfico transnacio-nal, inclusive de cidadãos estrangeiros dentro dos Estados Unidos, e no trá-fico para fins sexuais, com a estigmatização da vítima traficada como sendo uma mulher do terceiro mundo, sexualizada e vulnerável, que cruza as fron-teiras internacionais.

O combate ao tráfico internacional de pessoas nos Estados Unidos é inseparável de sua postura antiprostituição. Para os Estados Unidos, a pros-tituição é inerentemente prejudicial ao homem, à mulher e à criança, e con-tribui para o fenômeno do tráfico de pessoas, não devendo ser regulada ou legitimada como forma de trabalho para nenhum ser humano. A venda e a compra de sexo são ilegais em quase todos os estados norte-americanos (Huckerby, 2007).

A postura abolicionista dos Estados Unidos encontra-se presente em todos os elementos da agenda governista antitráfico: desde o consentimento na definição de tráfico de pessoas até a posição legal e política do governo de não fornecimento de fundos para projetos ou grupos que promovem ou defendem a legalização da prática da prostituição (Huckerby, 2007).

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Em comparação com o Protocolo de Tráfico de Pessoas das Nações Unidas, a definição da TVPA é mais estreita. Para Huckerby (2007), tal fato deve-se às diferentes funções da definição na TVPA e no Protocolo de Tráfico de Pessoas da ONU. A definição da TVPA designa-se à identificação de uma classe de pessoas traficadas que terá direito ao recebimento de assistência, com vistas à minimização da exploração e à condenação dos criminosos. O Protocolo de Tráfico de Pessoas da ONU, ao contrário, não cria uma hierar-quia de vítimas ou de serviços a que elas terão direito (Huckerby, 2007).

Essas diferenças estão evidentes em três elementos da definição das diversas formas de tráfico dada pela TVPA: o privilégio do tráfico sexual, o consentimento e o tratamento da criança. Primeiro, embora a definição da TVPA abarque tanto o tráfico sexual quanto o laboral, o tráfico para fins se-xuais configura-se quando a pessoa é induzida por qualquer um dos meios listados (força, fraude ou coerção), enquanto o tráfico para fins de trabalho ou serviço somente se configura quando, aos meios listados, é acrescentada a demonstração de que a finalidade do tráfico foi servidão involuntária, peo-nagem, servidão por dívida ou escravidão (Huckerby, 2007).

A remoção do propósito para fins de tráfico sexual indica que a TVPA enxerga as pessoas traficadas para fins sexuais como “mais vítima” do que aquelas traficadas para fins não sexuais, que devem comprovar um critério adicional para ter direito aos benefícios previstos para as vítimas do tráfico.

Segundo, o art. 3 (b) do Protocolo de Tráfico da ONU diz que o con-sentimento da vítima do tráfico de pessoas é irrelevante quando qualquer um dos meios listados no art. 3 (a) for utilizado. Em contraste, a TVPA não faz qualquer menção específica à questão do consentimento. Na prática, o silêncio quanto ao consentimento permite a interpretação de que a persecu-ção penal dos traficantes não é rigorosamente possível nos casos em que as vítimas dão algum consentimento inicial para o trabalho sexual, e mais tarde acabam se sujeitando a condições de trabalho degradantes.

Terceiro, o art. 3 (c) do Protocolo de Tráfico da ONU confere proteção geral às crianças, prescrevendo que o recrutamento, o transporte, a trans-ferência, o acolhimento ou a recepção de crianças para fins de exploração é considerado tráfico, ainda que qualquer um dos meios citados no subpará-grafo (a) não sejam utilizados. A TVPA, ao contrário, considera irrelevan-tes os meios utilizados para o recrutamento, o transporte, a transferência, o acolhimento ou a recepção de crianças apenas em se tratando de tráfico para prática de atos sexuais comerciais, e não na hipótese de crianças envolvidas em outras formas de tráfico.

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Tal distinção tão somente confirma que, a despeito da previsão do tráfi-co para fins sexuais e para fins de trabalho ou serviços forçados, a TVPA não está preocupada com a exploração laboral propriamente dita, dependendo a gravidade do tráfico da natureza do serviço a ser realizado (Huckerby, 2007).

No ano de 2003, a TVPA foi reautorizada (TVPRA 2003), visando a remover obstáculos à obtenção de assistência pelas pessoas traficadas, além de facilitar o acesso delas à Justiça. A TVPRA 2003 remove a exigência de que as vítimas com idade entre 15 e 18 anos tenham que colaborar com as investi-gações para terem direito ao T visa. Ademais, passa a permitir o ajuizamento de ação cível pelas vítimas contra os traficantes em um Tribunal Distrital dos Estados Unidos.

Outras alterações introduzidas pela TVPRA 2003 foram: a imposição de limites para o financiamento de programas e organizações que promo-vem, apóiam ou defendem a legalização ou a prática da prostituição, e a cria-ção de um quadro institucional voltado à execução de políticas do Interagency Trafficking Task Force23.

Em suma, conforme Chacón (2006), as alterações introduzidas pela TVPA e as suas reautorizações procuram facilitar o julgamento e a punição dos traficantes, por meio, por exemplo, do aumento das penas para os crimes relacionados ao tráfico, e não resolver problemas já identificados em quadros jurídicos anteriores.

Entre os problemas anteriores não resolvidos, cita: a marginalização dos migrantes, submetidos à exploração devido à sua “criminalidade pre-sumida”; a prioridade da acusação em detrimento da proteção às vítimas; o foco desproporcional sobre a prostituição, ao invés de abordar a explora-ção laboral e sexual na indústria do sexo; a representação dos “traficantes de sexo” como sendo o estrangeiro, o “outro”, e as pessoas traficadas como

23 No ano de 2005, a TVPRA 2005 veio a concentrar os esforços no lado da demanda do tráfico, especialmente do tráfico sexual. Uma nova legislação foi aprovada pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos deslocando o foco da prisão de prostitutas para os clientes das profissionais do sexo. Recursos federais, no montante de 25 milhões de dólares para os anos de 2006 e 2007, foram disponibilizados para financiar programas de agências policiais locais e estaduais, visando, entre outras medidas, a investigar e processar as pessoas que se dedicam à compra de atos sexuais comerciais (Seção 204 (a) (1) (b), TVPRA 2005), educando essas pessoas (Seção 204 (a) (1) (c), TVPRA 2005). Menos da metade desses recursos, 10 milhões de dólares, foram disponibilizados para o financiamento de programas de assistência às vítimas.

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“vítimas inocentes”; e uma preferência por estratégias voltadas ao controle dos fluxos migratórios (Chacón, 2006).

Na América do Sul, o Código Penal brasileiro de 1940, em sua versão original, previa o tráfico de pessoas no art. 231, Capítulo V (Do lenocínio e do tráfico de pessoas) do Título VI (Dos crimes contra os costumes) da Parte Especial. Sob o nomen iuris de “tráfico de mulheres”, a conduta incriminada abrangia os atos de “promover ou facilitar a entrada no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”.

O meio empregado (violência, grave ameaça ou fraude) não era, e con-tinua não sendo, elemento constitutivo do tipo penal, mas sim causa de au-mento de pena. O consentimento era, e continua sendo, irrelevante, mesmo em se tratando de mulher maior de idade. Basta a ação (promover ou facilitar a entrada ou saída) e o fim (exercício de prostituição no território nacional ou no estrangeiro) para a configuração do tipo penal.

Nos anos de 2005 e 2009, o crime de tráfico de pessoas previsto no art. 231 do Código Penal brasileiro sofreu alterações. Em síntese, a Lei nº 11.106/2005 substituiu a palavra “mulheres” por “pessoas” e criou a figu-ra do tráfico interno de pessoas para fins de prostituição, enquanto que a Lei nº 12.015/2009 modificou o nome do Título VI da Parta Especial do Código Penal, que passou a ser “Dos crimes contra a dignidade sexual”, acrescentan-do a finalidade do tráfico internacional para fins de exploração sexual.

Todavia, em sua essência, a legislação brasileira continuou adotando uma linha abolicionista. As atividades relacionadas à prostituição não foram descriminalizadas e o auxílio à migração internacional de profissionais do sexo, independentemente de consentimento, exploração ou abuso dos direi-tos humanos, permaneceu configurado como crime. Qualquer rede social, com mais de quatro pessoas, que preste ajuda a um migrante para fim de exercício de prostituição no exterior pode, em tese, qualificar-se como “qua-drilha ou bando”.

O tráfico internacional de crianças e adolescentes, independentemente da finalidade, encontra-se previsto no art. 239 da Lei nº 8.069/1990, o Estatu-to da Criança e do Adolescente. O art. 149 do Código Penal proíbe o trabalho em condição análogo à de escravo, prescrevendo pena de 2 a 8 anos de prisão, e multa, além da pena correspondente à violência. Entretanto, esse tipo penal vai além das situações nas quais os trabalhadores são mantidos no serviço por meio de força, fraude ou coerção, criminalizando outras condutas que não são consideradas situações de tráfico propriamente ditas, como a jornada

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exaustiva ou as condições degradantes de trabalho. Ainda que a exploração seja punida, os atos anteriores e ela (recrutamento, transporte, etc.) não o são.

O mesmo se diga em relação à remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. Os arts. 14 a 15 da Lei nº 9.434/1997 criminalizam toda forma de extração de órgão, tecido ou parte do corpo, em desacordo com os dispositivos da lei, assim como a compra e venda; entretanto, o transporte da pessoa com vida para fins de extração de seus órgãos não é punível. Os meios utilizados para o convencimento da vítima são puníveis, desde que previs-tos autonomamente como crime (constrangimento ilegal, ameaça, sequestro, cárcere privado, estelionato, violência física, etc.) e não absorvidos pelo tipo principal.

O art. 206 do Código Penal proíbe o recrutamento fraudulento de tra-balhadores, com o fim de levá-los para o exterior, enquanto o art. 207 incri-mina o aliciamento de trabalhadores para fins de levá-los de uma para outra localidade do território nacional, ambas com pena de 1 a 3 anos de detenção, e multa; entretanto, os dois tipos penais são silentes quanto à exploração la-boral.

5 A LÓGICA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NAS LEGISLAÇÕES ANTITRÁFICO

Se, por um lado, em alguns âmbitos a expansão do Direito Penal pode ser definida como qualitativa, como na superação, por alguns países, de pre-ceitos legais que confundiam prostituição com exploração sexual ou na ela-boração de conceitos mais compreensivos de tráfico de pessoas, englobando escravidão, servidão por dívidas, exploração laboral, remoção de órgãos, en-tre outros; por outro lado, no âmbito de determinados grupos de pessoas e do crime organizado, essa expansão é quantitativa.

O Direito Penal é utilizado pelos agentes políticos para dar a impressão de um legislador atento e preocupado com a expansão da criminalidade or-ganizada e com os novos delitos advindos com a sociedade de risco, quando, na realidade, há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legisla-dor e a agenda real, oculta sob as suas declarações expressas.

Os cidadãos estrangeiros assumem duas posições possíveis no cená-rio internacional: em princípio, aparecem como potenciais vítimas; e, em um segundo momento, como autores de delitos. A regulação jurídico-penal dos imigrantes, aparentemente paradoxal, na realidade, não é inteiramen-te contraditória. Ao contrário, é perfeitamente harmônica desde o ponto

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de vista funcional de um Direito Penal do inimigo (Cancio Meliá, Maraver Gómez, 2006).

A política criminal de combate ao tráfico internacional de pessoas, voltada em grande parte ao controle dos fluxos migratórios, é orientada por um interesse latente de “[...] reafirmação coletiva dos excludentes mediante a exclusão24” (Cancio Meliá; Maraver Gómez, 2006, p. 38, tradução nossa), que, em última instância, cria uma grande massa de excluídos, com pouca ou nenhuma chance de ser incluída nos padrões atuais de desenvolvimento.

Conforme Martins (1997), cria-se uma sociedade dupla formada por duas humanidades: a dos integrados, constituída pelos pobres e ricos inseri-dos nas atividades econômicas e nos sistemas de relações sociais e políticas; e a da subumanidade, na qual a inclusão ocorre de forma precária, marginal e instável nas atividades econômicas, mas de modo excludente dos processos de sociabilidade institucionais, ou seja, desintegrada moral e socialmente, o que faz com que os indivíduos deste grupo sejam percebidos como indesejá-veis e socialmente perigosos.

Iglesias Skulj (2010) traduz a rearticulação do poder punitivo do Esta-do na era da globalização como um problema de gestão eficaz de uma “ame-aça construída”, de um grupo de risco, neutralizável de forma simbólica pelo Direito Penal, com o objetivo de transmitir à sociedade um sentimento de segurança e confiança na atuação das instituições estatais. Os riscos tanto podem ser difusos quanto concretos.

Nos riscos de caráter difuso, as regulações são simbólicas em sentido estrito, servindo à legitimação dos processos neoliberais e à construção de discursos centrados na incerteza e na incapacidade de previsão. Já, nos riscos de caráter concreto, o simbolismo se expressa na construção do indivíduo pe-rigoso e de sua exclusão, perseguindo a atuação governamental uma dupla finalidade: estabilidade social, por meio da confiança institucional, e isola-mento do delinquente, como portador de uma resposta penal simbólica, de uma função preventiva e integradora que se realiza às suas custas (Iglesias Skulj, 2010).

Na atualidade, o papel de perigoso encontra um de seus corresponden-tes na figura do imigrante irregular, que é visto como um problema de ordem pública e de segurança, como uma ameaça ao mercado laboral e para a pró-pria identidade social. Os imigrantes indocumentados são o “[...] exército de

24 “[...] reafirmación colectiva de los excluyentes mediante la exclusión.”

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reserva da delinqüência”25 (Pérez Cepeda, 2002, p. 130, tradução nossa), são os terroristas e traficantes, a quem se atribui a causa de insegurança cidadã.

Sobre eles, o Direito Penal constrói uma determinada imagem de iden-tidade social, definindo-os como os “outros”, não participantes dessa iden-tidade, incidindo-lhes um punitivismo exacerbado, corporificado em um Direito Penal do autor, com a antecipação das barreiras jurídico-penais re-levantes, a aplicação de penas desproporcionais e a supressão de garantias processuais, imputando-lhes o papel de inimigos.

Segundo Jakobs (2003), os inimigos se caracterizam, em primeiro lu-gar, porque rechaçam a legitimidade do ordenamento jurídico, perseguindo a sua destruição; e, em segundo lugar, porque não oferecem uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal controlável e expectável. O Direito Penal do inimigo surge como uma reação do sistema frente aos indivíduos que, por meio de seus comportamentos, demonstram a probabili-dade de se afastarem de maneira duradoura do Direito, rejeitando, portanto, o tratamento como pessoas.

Enquanto o Direito Penal do cidadão tem por finalidade a manutenção da vigência do ordenamento jurídico e a pena a contradição do comporta-mento desviante, o Direito Penal do inimigo busca garantir a segurança do ordenamento jurídico e a eliminação do perigo, com a exclusão do infrator. Em um, desenvolve-se o Direito Penal do fato e, no outro, o Direito Penal do autor.

Na nova configuração da ordem global, o Direito Penal adquire um cunho explicitamente securitário, deixando de ser uma reação da sociedade ante a conduta de um de seus membros para se tornar uma reação contra um inimigo, representado, no caso, por um grupo social (os migrantes margina-lizados que procuram adentrar nos países do Norte de forma ilegal) e por integrantes de organizações criminosas.

Para Diez-Ripolles (2008, p. 11, tradução nossa), “[...] trata-se, por um lado, de reforçar o controle penal sobre os grupos sociais e comportamentos delitivos mais tradicionais e, por outro, de identificar certos grupos mais ou menos organizados como objeto de persecução preferente26”.

25 “[...] ejercito de reserva de la delincuencia.”26 “[...] se trata, por un lado, de reforzar el control penal sobre los grupos sociales y comportamientos

delictivos más tradicionales y, por otro, de identificar a ciertos grupos más o menos organizados como objeto de persecución preferente.”

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A incriminação de condutas relacionadas à facilitação da imigração ile-gal ou da prostituição, mesmo que com o consentimento do migrante ou da profissional do sexo, é exemplo de um tipo penal que, longe de prevenir a exploração humana, visa a atender interesses no controle dos fluxos migra-tórios ilegais com destino aos países desenvolvidos do Norte. A ênfase na prevenção do tráfico de pessoas por meio da interceptação de migrantes que podem estar prestes a serem traficados (mas que também podem ser apenas migrantes comuns) tem sido superior ao combate da exploração propriamen-te dita.

Esse fato pode ser confirmado quando se analisam os critérios inade-quados (e muitas vezes discriminatórios) utilizados pelas agências governa-mentais, como as dos Estados Unidos, para conceder o status de vítima, a fim de ter direito aos benefícios assistenciais (por exemplo, o visto de residência temporária), e pelos instrumentos normativos ou dispositivos editados no âmbito da União Europeia para prevenir, controlar e punir a imigração irre-gular em direção aos países da comunidade europeia.

Por outro lado, os financiamentos concedidos por países receptores, como as iniciativas do Reino Unido, no sudeste da Europa, ou da Austrália, no sudeste da Ásia Oriental, aos países de origem ou de trânsito dos migran-tes não qualificados para impedir que eles cheguem até o seu destino final, indicam uma antecipação dos espaços de risco, que se dá pela “terceirização” do controle das fronteiras.

Com a antecipação das condutas e dos espaços de risco, verifica-se uma tensão entre as funções próprias do Direito Penal de proteção dos direitos fundamentais das pessoas vulneráveis ao tráfico de pessoas e as suas funções impróprias de controle dos fluxos migratórios, assumidas pelo Direito Penal ante o fracasso do controle da regulação meramente administrativa.

Como reflexo da luta contra a imigração ilegal e a criminalidade orga-nizada transnacional, no início do século XXI, assistimos a um protagonismo exacerbado do Direito Penal, medido por seu expansionismo acelerado e ir-racional, com a criação de novos tipos penais, o adiantamento das barreiras de proteção penal (por meio da incriminação crescente de condutas de peri-go, sem a diminuição proporcional das penas), a redução das exigências de culpabilidade (que se expressa pela mudança do paradigma de dano ao bem jurídico para a periculosidade do agente) e as exceções aos critérios gerais de imputação.

Nesses termos, os atos preparatórios equiparam-se a atos consumados, assim como a distinção entre autoria e participação se enfraquece, não mais

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se diferenciando os níveis de responsabilidade de cada um no evento deliti-vo, chegando-se a punir a tentativa do tráfico de pessoas como fato consuma-do e a castigar a cumplicidade com a mesma pena imposta aos autores.

Tudo aquilo que Jakobs descreve como Direito Penal do inimigo – “a ampla antecipação da proteção penal, isto é, a mudança de perspectiva do fato passado a um porvir; a ausência de uma redução de pena corresponden-te a tal antecipação; a transposição da legislação jurídico-penal à legislação de combate; o solapamento de garantias processuais” (Silva Sánchez, 2011, p. 194) – encontra-se presente nos atuais programas político-criminais.

Embora a incriminação de condutas, como o recrutamento de pesso-as mediante fraude, a coerção ou o abuso de uma situação específica para fins de exploração, sirva a fins legítimos e justos, se o bem jurídico tutelado sequer chega a ser colocado em perigo, seja por desistência voluntária do re-crutador ou pela fuga da vítima, é questionável que tal comportamento seja apenado com a mesma pena de quem explora a vítima.

A prevenção de delitos pela inclusão dos excluídos – cada vez mais numerosos em razão das constantes crises econômicas e do aumento das de-sigualdades entre o Norte desenvolvido e o Sul empobrecido – cede espaço para uma estratégia de prevenção pró-ativa na regulação dos riscos sociais, resultando em um punitivismo desmedido, como meio de controle da fun-cionalidade do sistema.

Longe de alcançar as causas estruturais ou sistêmicas do tráfico inter-nacional de pessoas, o Direito Penal do inimigo, o Direito Penal de risco e o Direito Penal de terceira velocidade, cujas características se assemelham, são contraprodutivos e ineficazes, já que geram uma falsa sensação de seguran-ça, que debilita os debates necessários em torno da matéria, comprometendo uma solução eficaz do problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo se propôs a investigar a relação existente entre o trá-fico de seres humanos e o controle dos fluxos migratórios, com o objetivo de averiguar se a lógica do Direito Penal do inimigo se faz presente nas políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Para isso, partiu-se da hipótese de que o Direito Penal, por meio das leis de combate ao tráfico de pessoas, é utilizado como instrumento para regulação da exclusão social.

Para alcançar o objetivo pretendido, foram analisadas as legislações de combate ao tráfico de pessoas e de migração de diversas realidades sociais

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em países situados na Europa, Ásia, África, Oriente Médio e América. Viu-se que, na Europa, tanto Alemanha quanto Itália e Espanha, ao mesmo tempo em que combatem o tráfico de pessoas em suas diversas modalidades (explo-ração sexual, exploração laboral, etc.), criminalizam a imigração irregular, com a antecipação de suas fronteiras para além-mar, sob a justificativa de que o combate à imigração irregular visa a evitar o tráfico de pessoas.

Na Ásia, verificou-se que, na Índia, o problema do tráfico de pessoas encontra-se permeado de preconceitos de gênero, com um foco desmesurado no combate à prostituição, ao invés da exploração sexual e laboral propria-mente dita. As profissionais do sexo são resgatadas e internadas para fins de reabilitação, ainda que contra as suas vontades, sendo obrigadas a se subme-terem a exames íntimos invasivos, enquanto os migrantes de países vizinhos são deportados ou repatriados forçosamente, sem qualquer análise prévia se foram traficados.

Na Tailândia, embora a legislação antitráfico seja bastante abrangente, a restrição dos direitos dos migrantes, por meio da vinculação a determi-nados empregadores e a determinadas localidades do território, na prática, acaba favorecendo a exploração laboral, na medida em que imobiliza a mão de obra.

Na África e no Oriente Médio, nos últimos anos, as legislações antitrá-fico vêm sendo alteradas para fins de adequação ao Protocolo de Palermo das Nações Unidas, porém ao avanço nesse campo soma-se o retrocesso relativo à criminalização da “emigração ilegal”. Pressionados por países europeus, alguns países, como Marrocos e Senegal, tornam crime o exercício do direito de sair de um país sem a observância das formalidades legais, com a constru-ção de centros de detenção de migrantes, em nome do combate ao tráfico de pessoas e à criminalidade organizada.

Nos Estados Unidos e no Brasil, assim como na Índia, há uma grande preocupação com o tráfico de pessoas para fins de prostituição, em detri-mento da exploração laboral na indústria do sexo, retirando a agência das profissionais de sexo que optaram livremente pelo exercício da prostituição no exterior.

A utilização do controle dos fluxos migratórios como forma de comba-te ao tráfico de pessoas resulta, assim, na atribuição do papel de perigoso a certos grupos de pessoas (no caso, dos imigrantes não qualificados que ten-tam entrar de forma ilegal nos países desenvolvidos), cujos comportamentos passam a ser regulados pelo subsistema jurídico-penal, tornando-se social-mente desvalorizados.

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Sob o pretexto de proteção dos próprios direitos dos migrantes, os es-paços e as condutas de risco são antecipados demasiadamente, ao ponto de atingir a livre locomoção dessas pessoas no cenário internacional.

Os instrumentos jurídicos editados nas últimas duas décadas valori-zam sobremaneira a participação de organizações criminosas na facilitação da imigração irregular e no tráfico de pessoas, quando a participação das máfias é no mínimo questionável. Como consequência do protagonismo des-medido das organizações criminosas, o Direito Penal assume funções de ou-tros setores, passando a atuar em searas que lhes são impróprias, como, por exemplo, no controle dos fluxos migratórios.

As condutas de perigo adquirem a mesma relevância de delitos de le-são. A distinção entre a autoria e participação se enfraquece e os atos prepa-ratórios se equiparam a atos consumados, diminuindo-se as garantias penais e processuais penais dos imputados. A flexibilização de direitos e garantias que deveria ser excepcional, restrita a contextos emergenciais e a situações extremamente graves, com potencial de desestabilizador todo o Direito, tor-na-se regra geral, vindo a se reproduzir de forma autopoiética no Direito Penal.

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REFLEXÕES SOBRE OS EFEITOS CRIMINAIS DA LEI MARIA DA PENHA À LUZ DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

REFLECTIONS ON THE EFFECTS OF THE MARIA DA PENHA LAW IN LIGHT OF THE ECONOMIC ANALYSIS OF LAW

oksanDRo osDiVaL GonçaLVes*

RafaeL osVaLDo MachaDo MouRa**

RESUMO: Este trabalho analisa alguns dos efeitos criminais da Lei Maria da Penha à luz do conceito da Escola Law and Economics. Com vistas a diminuir os alarmantes índices de violência contra a mulher no âmbito doméstico e alterar o padrão de condescendência com quem pratica violência afetiva familiar contra a mulher, foi aprova-da, sancionada e entrou em vigor a Lei Maria da Penha no ano de 2006, proibindo a aplicação dos benefícios da Lei dos Juizados Espe-ciais Criminais aos crimes por ela abrangidos. A pergunta que este artigo se propõe a responder é: Sob as lentes da Análise Econômica do Direito, a proibição do gozo das benesses da Lei nº 9.099/1995, bem assim o enrijecimento das respostas criminais, aos crimes pra-ticados contra a mulher tem se mostrado eficiente em sua aplicação prática para inibir o cometimento das más ações?

PALAVRAS-CHAVE: Análise Econômica do Direito; Lei Maria da Penha; pena; efeitos; eficiência.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado/Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor Adjunto de Direito Comercial do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor de Direito Empresarial do Curso de Especialização em Direito Civil e Empresarial da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Membro do Conselho Editorial da Editora Fórum. Coordenador da Revista de Direito Empresarial. Doutor em Direito Comercial – Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado.

** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, na área de concentração Direito Socioambiental e Sustentabilidade e na linha de pesquisa Justiça, Democracia e Direitos Humanos. Ex-Procurador do Município de São Paulo. Promotor de Justiça em Ponta Grossa/PR.

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ABSTRACT: The objective of this paper is to analyze the criminal effects of the Maria de Penha law in view of economic analysis of law. In order to reduce the alarming rates of violence against women in the domestic sphere seen in Brazil, as well as changing the standard of indulgence of those who commit abuse against women in the home, was approved, sanctioned, and entered into force with the Maria da Penha Law in 2006, prohibiting the application of the benefits of the Special Criminal Courts law. The question that this article proposes to answer is: in light of the economic analysis of law, has the prohibition of the application of Law nº 9.099/1995 for crimes against women been found effective in inhibiting the commission of evil deeds?

KEYWORDS: Economic Analysis of Law; Maria da Penha Law; penalty; effects; efficiency.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Análise Econômica do Direito (AED); 1.1 Conceito e histórico; 1.2 Aplicação da Análise Econômica do Di-reito (AED); 1.3 Law and Economics do Direito Criminal; 2 Lei Ma-ria da Penha (LMDP) e suas repercussões criminais; 2.1 Contexto histórico; 2.2 Objetivos da Lei nº 11.340/2006; 2.3 Alterações pro-movidas em relação aos crimes de lesão corporal leve e ameaça e à contravenção penal de vias de fato; 3 Efeitos criminais da Lei Maria da Penha (LMDP) à luz da Análise Econômica do Direito; 3.1 Da necessidade de avaliar-se a eficiência da LMDP em seus aspectos penais; 3.2 Aplicação de pena aos autores de crimes de lesão corpo-ral e ameaça, bem assim da contravenção de vias de fato, todos fora do âmbito normativo da LMDP; 3.3 Aplicação de pena aos autores das infrações penais de lesão corporal leve, ameaça e vias de fato no âmbito doméstico; 3.4 Cotejamento crítico entre a qualidade das penas efetivamente aplicadas no contexto da LMDP e fora dele à luz da AED; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo, qualitativamente, compreender e explicar a dinâmica dos consectários oriundos da aplicação da Lei Maria da Penha – a partir de agora LMDP –, em seu aspecto criminal, mais precisa-mente no tocante à execução da pena, valendo-se do instrumental teórico da Análise Econômica do Direito – de agora em diante AED.

A história brasileira é prova de que a violência contra a mulher sempre se fez presente em terras tupiniquins, manifestando-se das mais diversas e cruéis maneiras. A cultura pátria do machismo não apenas cruzou os braços a

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esta realidade, como também serviu de instrumento catalizador dos mais di-ferentes tipos de agressão – moral ou corporal – contra a população feminina.

Para alterar esta paisagem fático-histórica, causadora de inúmeras mortes, violências físicas e morais, o Legislativo brasileiro, sob forte pressão jurídico-política internacional, capitaneada pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, redigiu e aprovou a Lei Ordinária nº 11.460/2006, conhecida como LMDP – nome da vítima do mais famoso caso brasileiro de violência contra mulher, em que grassava a impunidade.

Hoje, passados mais de 8 (oito) anos de vigência da lei, imperioso refle-tir sobre a eficiência e efetividade da norma, em seu aspecto criminal, sobre-tudo no combate à impunidade, na perspectiva do maior rigor da resposta estatal às condutas de violência contra a mulher e da maior aplicabilidade de tais sanções. O objeto do presente trabalho, pois, passa por analisar como está ocorrendo a execução das penas criminais nos casos de violência contra a mulher, mas, para essa finalidade, será utilizado o referencial teórico da AED, por intermédio do qual o estudo jurídico deve ser realizado à luz da eficiência e da concretude da norma jurídica quanto aos seus consectários (benefícios), isto é, em relação aos seus custos e benefícios, tanto custos de transação como externalidades, utilizando de alguns postulados da microeconomia.

A partir de pesquisas bibliográficas, jurisprudenciais e buscas em ban-co de dados governamentais, será descrito como, na prática, no dia a dia fo-rense, tem sido aplicada a LMDP aos casos de violência contra a mulher em comparação com os casos de crimes similares cometidos contra outras víti-mas não protegidas por lei especial, a fim de procurar evidências da eficiên-cia – ou não – da LMDP.

Para buscar esse objetivo, o trabalho está estruturado em 3 capítulos. No primeiro serão apresentados os postulados básicos da AED, partindo-se de um histórico breve para, em seguida, abordar a estrutura de incentivos normativos, o processo decisório baseado na racionalidade limitada do agen-te. No segundo, trabalham-se os aspectos criminais da Lei Maria da Penha, tais como contexto histórico de sua criação, objetivos e alterações promovi-dos no tocante aos crimes de lesão corporal leve e ameaça e à contravenção penal de vias de fato. Ao fim, realiza-se exame dos efeitos criminais da Lei da Mulher à luz da Análise Econômica do Direito, traçando-se comparativo crítico entre as sanções efetivamente aplicadas às infrações penais abrangidas pela Lei Maria da Penha e as demais.

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1 ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO (AED)

1.1 Conceito e histórico

Trata-se de um movimento que prega a aplicação instrumental da teo-ria econômica para a devida compreensão do Direito, por meio do manejo de elementos da microeconomia neoclássica e da economia do bem-estar para leitura de institutos jurídicos e análises doutrinárias ou jurisprudenciais.

Registra-se que a Escola da AED – jurisprudencial e doutrinariamente – não se apresenta de forma homogênea, havendo diversas subdivisões in-ternas, todas, contudo, a sustentar a necessidade de priorizar os critérios de eficiência na tomada de decisões jurídicas – tanto em relação à formulação de normas jurídicas legislativas como de decisões judiciais (Rosa, 2008, p. 20). Parte da premissa que os indivíduos são seres racionais, os quais, por isto, raciocinam em busca de uma escolha lógica – melhor escolha –, elaborando o binômio simples da relação entre custo e benefício. Assim, cabe ao Direito, nos mais diversos níveis, trabalhar com esta realidade, de modo a premiar as condutas eficientes e desestimular as ineficientes, a fim de aumentar a produ-ção e manutenção das riquezas, necessárias ao bem-estar geral.

No âmbito do Direito Penal é comum utilizar o instrumento da AED para os crimes econômicos; todavia, há alguma resistência em relação a sua aplicação àqueles crimes ditos não lucrativos, como o estupro, a tortura, o ho-micídio; os quais se contrapõem aos crimes ditos lucrativos, como o furto, o roubo, a extorsão, etc. Entretanto, este artigo se propõe a estudar a sua aplica-ção para tentar verificar se o sistema criado pela LMDP é eficiente para o fim a que se propõe, que é coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sustenta-se que essa finalidade é ainda mais importante do que aquela desti-nada aos crimes lucrativos, pois no caso dos crimes não lucrativos os valores envolvidos são muito superiores, porque envolvem a dignidade da pessoa humana em suas variadas formas, como é o caso da proteção à mulher.

Assim, o Direito não mais deve se ocupar apenas com os conceitos e os paradigmas abstratos de justiça, mas com os efeitos concretos das decisões jurídicas, na perspectiva de dar prioridade às decisões mais eficientes. Desse modo, a LMDP funciona como uma espécie de incentivo ao qual as pessoas que a ela se submetem devem reagir segundo uma relação de custo-benefício,

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para, em seguida, de forma racional, tomar uma decisão a respeito, basica-mente, de cumprir ou não o regramento instituído. Neste ponto, ajuda a com-preender a questão a lição de Ivo Gico Junior1:

A economia moderna se fundamenta basicamente no estudo dos incenti-vos para as condutas humanas. O Direito, por sua vez, pode ser considera-do como uma técnica institucional de controle do comportamento humano pelo uso da força estatal (em contraposição ao uso de pressão social ou moral). Sendo assim, a Análise Econômica do Direito nada mais é do que a utilização do ferramental teórico econômico para estudar os incentivos gerados pelo ordenamento jurídico.

A apreciação do Direito feita pelas lentes dos métodos econômicos pode se dar de maneira descritiva ou normativa, tanto revelando o direito posto, como sugerindo a adoção de medidas diversas, mais adequadas às teorias econômicas (Carlos, 2009, p. 33).

Esta diferente visão do direito – economicista – passou a ser adotada nos Estados Unidos da América a partir da década de 1950, inicialmente por intermédio dos escritos de Ronald H. Coase, que trabalhou com as categorias do custo social – efeitos externos – oriundo das atividades econômicas. Para o autor, as externalidades – efeitos que atingem terceira pessoa que não entrou em acordo – são recíprocas entre os agentes em uma determinada relação, pois sempre apresentam uma via de mão dupla, de modo que, se o agente “A” impõe prejuízo à pessoa “B” em uma relação não negocial – poluição e danos à propriedade causados por uma empresa, por exemplo –, a proibição da continuidade das atividades daquele – método de resolução mais comum até a AED – irá implicar prejuízos ao primeiro agente “A”, assim como ocor-reria com o segundo agente – afetado pela poluição – em caso de continuida-de das atividades comerciais. Portanto, as externalidades – efeitos laterais de uma atividade – são recíprocas, devendo a solução mais adequada e eficiente ser aquela que causa o menor prejuízo a um dos agentes, que pode ser “A” ou “B” (Coase, 1960).

Outro autor de destaque, cujo atuar se deu nos anos 1960, é Guido Ca-labresi, que apresentou contribuição ao movimento por intermédio de seus trabalhos sobre a distribuição do risco e critérios para imputação de respon-sabilidade (Calabresi, 1961).

1 GICO JR., Ivo Teixeira. A tragédia do Judiciário: subinvestimento em capital jurídico e sobreutilização do Judiciário. Tese de doutorado em economia, UNB, 2012. p. 6.

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Já, em 1972, Richard Posner – professor, advogado e juiz federal – pu-blicou importante obra sobre as conexões entre o Direito e a Economia, em que defende conceitos como a maximização da riqueza e o utilitarismo a guiar as decisões judiciais (Posner, 1973).

Por fim, pontue-se que a Escola da AED direcionou, em um primeiro momento, a sua atenção aos setores jurídicos diretamente conectados à Eco-nomia, tais como o Direito Antitruste e Comercial. Em uma segunda fase, a partir dos anos 1960, passou a se ocupar em debater os demais ramos do Direito à luz deste movimento, de modo que o Direito Penal e Processual pas-saram a ser alvo da preocupação de seus doutrinadores (Coelho, 2009, p. 33).

1.2 Aplicação da Análise Econômica do Direito (AED)

O movimento da AED trabalha não apenas com conceitos de eficiência, à luz das categorias do individualismo metodológico e da racionalidade ma-ximizadora já mencionados, mas, igualmente, utiliza modelos matemáticos para a descrição e solução de problemas jurídicos.

Significa dizer que, na inexistência ou existência de custos baixos de transação – preços ligados a uma transação, isto é, tudo o que se gasta para a produção de um bem –, externalidades negativas seriam mais eficientemente resolvidas por meio de transações de mercado, coordenadas pelo preço, a despeito dos direitos de propriedade (Pietropaolo, 2009, p. 22).

Desta maneira, o conceito de justiça abstrata foi substituído pelo ne-oclássico de eficiência, que significa optar sempre pelo mais curto, barato e fácil caminho pelo qual se pode obter um mesmo resultado, preferindo-se o custo de transação se este for mais benéfico do que a externalidade, continu-ando o desenvolvimento das atividades.

No plano das ações coletivas – políticas públicas –, a mesma lógica pode ser aplicada, com os devidos ajustes, a fim de se buscar a adoção do método mais eficiente possível. Neste contexto, o princípio da eficiência

apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera resultados; e pode também ser considerado em relação ao modo de organizar, estruturar e disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados no desempenho da função ou atividade administrativa. (Cunha, 2012, p. 46-47)

O princípio da eficiência tornou-se direito fundamental no ordenamen-to jurídico pátrio por meio da Emenda Constitucional nº 19/1998, devendo

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ser a eficiência, a partir de então, objetivo naturalmente ínsito a qualquer organismo estatal quando da prestação de seus serviços.

Para Christian Fernandes Gomes da Rosa, eficiência pode ser compre-endida de 4 (quatro) formas: a) a produtiva, que pode ser definida com o me-lhor uso dos insumos no processo de produção de bens e serviços, dadas as restrições aplicáveis; b) a alocativa, que ocorre quando um recurso é colocado nas mãos daquele que lhe dá maior valor, isto é, daquele que também é capaz de fazê-los frutificar de maneira mais acentuada; c) a medida pelo critério pa-retiano, que sustenta que uma determinada alocação de recursos é eficiente quando é impossível melhorar a situação de qualquer das partes envolvidas direta ou indiretamente sem que, para tanto, a de uma parte seja piorada; d) a visualizada pelo critério de “Kaldor-Hicks”, que se configura ainda que da relação resulte dano a terceiro ou que, a princípio, qualquer das partes envolvidas apresente uma piora em sua situação, desde que estes prejuízos sejam compensados (Rosa, 2008, p. 55).

Vaz Freire (2008, p. 771) destaca que a eficiência é uma noção relativa, na medida em que enseja uma comparação entre dois estágios, mas isso não significa que se busca uma “relação entre quantidades físicas”, mas uma “re-lação entre o seu respectivo valor”. Para tanto, a autora propõe uma distinção entre eficiência estática e dinâmica:

Tanto a eficiência alocativa como a produtiva são conceitos estáticos, na medida em que se reportam ao desempenho econômico num determinado momento, ou seja, em função dos níveis tecnológicos e de informação exis-tentes. Por seu turno, uma análise dinâmica atenta na capacidade de intro-duzir melhorias – na empresa ou na economia –, através da exploração do potencial para inovar e para desenvolver esses novos processos.

As eficiências dinâmicas são as mais significativas, mas também, por defi-nição, as mais difíceis de medir e de prever. Prendem-se com decisões futu-ras de investimento, de entrada e de saída do mercado e com as atividades inovadoras que podem aumentar a satisfação dos consumidores através da aquisição de bens a preços mais baixos, de melhor qualidade ou de no-vos bens. A eficiência dinâmica pressupõe uma dimensão temporal e uma ideia de mudança de opções, ao longo de diferentes períodos de tempo. (Vaz Freire, 2008, p. 778)

No caso da LMDP, é possível promover uma comparação entre os dois estágios da matéria, analisando-se a condição da mulher no período anterior ao da edição da norma com o período posterior. Se houve redução, a norma foi eficiente nos seus objetivos, mas se não houve, então ela é ineficiente.

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Nesta quadra, interessa abordar a Teoria dos Jogos, que se ocupa em traçar estratégias para atingir-se o maior degrau possível de eficiência em vista do que os demais agentes fazem ou podem fazer à luz de um comporta-mento racional. Levando-se em conta o princípio da escolha racional, tem-se que as pessoas podem ser estimuladas positiva ou negativamente a tomarem determinadas decisões. Esses estímulos são chamados pela economia de in-centivos externos, que são melhores absorvidos pelas pessoas diante de um sistema de premiação e punição como ocorre com o Direito, onde se pune quem descumpre a uma determinada lei, como no caso de pena de prisão para quem matar outra pessoa (Neto, 2012, p. 18-20).

Resta evidente, à luz da Teoria dos Jogos, que trabalha com os concei-tos de agentes que tomam decisões com o maior grau de eficiência possível, que a função do Direito deve ser a de incentivar os indivíduos a agirem de determinada forma, tanto por intermédio da sanção como da punição.

Para apresentar registro de como estão sendo aplicadas as normas ju-rídicas em relação à eficiência e à Teoria dos Jogos, a AED, em seu aspecto descritivo, é instrumento para que se analise o sistema jurídico tal como ele se apresenta à sociedade, discorrendo a respeito dos efeitos das normas vigen-tes e buscando demonstrar os incentivos que se conformam em decorrência da realidade institucional tal qual ela se configura (Rosa, 2008, p. 55). Dito de outra maneira, partindo da racionalidade individual e do bem-estar social – maximização de riqueza –, busca responder a dois questionamentos: a) quais os impactos das normas legais no comportamento dos sujeitos e das institui-ções; e b) quais as melhores normas e sistemas para se atingir as finalidades da normas, com menor custo de transação e menor externalidade.

1.3 Law and Economics do Direito Criminal

Tendo em vista os escritos de Gary Stanley Becker sobre criminalidade como resultado da maximização racional dos agentes envolvidos – Estado, delinquente e vítima –, passou-se a entender que o agente criminoso decide levando em conta as probabilidades de punição e a severidade desta, em uma análise de custos e benefícios (Becker, 1968, p. 169/217). A racionalidade do agente leva em consideração o conjunto de informações de que ele dispõe e, por isso, é sempre limitada. Desse modo, o criminoso realiza um exercício racional para tomar a decisão de praticar ou não um ilícito à luz dos dados que ele possui. O criminoso avalia a gravidade do delito, a possibilidade de ser descoberto e preso e a quantidade da pena.

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Assim, as políticas de segurança pública devem levar em considera-ção estas duas variáveis, mas não podem esquecer que é impossível eliminar completamente a criminalidade, ou seja, é preciso admitir que uma parcela de criminalidade permanecerá e com ela ter-se-á que conviver. No entanto, a norma será tanto mais eficiente quanto menor for a parcela de criminalidade que permanecer. Assim, é possível avaliar se a LMDP é eficiente a partir da verificação das variáveis envolvidas, que vão desde a probabilidade de ser descoberto ou denunciado, até a efetiva punição.

O investimento tanto em polícia ostensiva como judiciária e em insti-tuições como o Ministério Público representa crescimento de variável desmo-tivadora da criminalidade, pois essas instituições representam a prevenção, investigação e repressão ao crime, aumentando a probabilidade da punição. A alteração legislativa para o aumento da duração das penas e o investimen-to em construção de penitenciárias, dotadas de mais celas, onde seja possível manter por mais tempo no cárcere os apenados, representam acréscimo na variável da maior severidade na punição (Rodrigues, 2011, p. 15).

Assim, para tornar o sistema criminal eficiente, a funcionar de acordo com os critérios econômicos de maior utilidade, imperativo sopesar o custo benefício entre o emprego de mais recursos para aumentar a incidência da repressão criminal e a severidade até o ponto em que o remédio surta efeitos em função da finalidade de dissuadir a prática delituosa, isto é, faça efetiva-mente o delinquente pensar em não cometer o crime. Em outros termos, é interessante avaliar se os recursos, de fato, estão a gerar os efeitos finalísticos ensejadores de determinada norma ou política pública.

2 LEI MARIA DA PENHA (LMDP) E SUAS REPERCUSSÕES CRIMINAIS

2.1 Contexto histórico

A norma em comento é fruto de uma histórica luta das mulheres brasi-leiras em prol de uma legislação adequada e eficiente para por freios na im-punidade em âmbito nacional da sistemática violência doméstica e familiar contra o gênero feminino.

Entre estas mulheres ativistas, merece destaque como protagonista deste processo político-social a senhora Maria da Penha Maia Fernandes, far-macêutica bioquímica, vítima de agressões pelo seu ex-marido por diversos anos, que resultaram em duas tentativas de homicídio, uma delas a deixando paraplégica (Porto, 2007, p. 21).

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Igualmente serviu como elemento catalizador da lei em questão a obe-diência às normas internacionais da Convenção de Belém do Pará – Con-venção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (OEA, 1994) e da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1984), ambas assinadas e ratificadas pela República Federativa do Brasil.

Não se pode esquecer, ainda, a crucial recomendação expedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que orientou ao Brasil a elaboração de legislação adequada a combater a violência contra a mulher (OEA, 2001).

Segundo ativistas e grupos feministas, um dos maiores problemas, à época, para responsabilizar adequadamente os perpetuadores de crimes re-lacionados à violência familiar contra a mulher era o fato de que os casos de lesão corporal leve, ameaça e vias de fato eram encaminhados para os Jui-zados Especiais Cíveis e Criminais – JEC e JECRIM –, instituídos pela Lei nº 9.099/1995, de modo que, no balanço dos efeitos da aplicação da legislação pretérita, constatou-se que: a) 90% dos procedimentos terminavam em arqui-vamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres encontrassem uma resposta estatal satisfatória; e b) quando condenado o agente, a pena se limitava, no máximo, ao pagamento de uma “cesta básica a alguma institui-ção filantrópica” (Campos, 2011).

Estas reiteradas práticas judiciais, que descuravam da necessidade de aplicarem-se medidas proporcionais às agressões cometidas, denotavam a pouca importância concedida pela legislação, pelo Poder Judiciário e pelas instituições em geral ao grave fenômeno da violência doméstica, em desres-peito aos direitos humanos das mulheres.

Com esta paisagem ao fundo, restou sancionada a LMDP, após amplo debate com a sociedade brasileira, mobilizando os mais diversos setores inte-ressados, no dia 7 de agosto de 2006.

2.2 Objetivos da Lei nº 11.340/2006

As finalidades da lei, decorrentes do cenário social narrado, de violên-cia sistemática contra a mulher, são lidas no seu art. 1º, podendo ser destaca-das a criação e implementação de mecanismos para punir, prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Assim, no que toca a seus efeitos criminais, basicamente são dois os escopos da lei: a) aumentar a incidência da punição dos agentes responsá-

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veis por atentar contra as mulheres, vedando-lhe a concessão de benesses e retirando da mulher a possibilidade de optar por não solicitar a intervenção criminal; b) recrudescer as penas para os delitos cometidos contra o gênero feminino.

Consigne-se que ambos os propósitos vem ao encontro das lições des-critas supra, da lavra de Gary Stanley Becker, segundo as quais para a inibição da prática de crimes há que se aumentar as probabilidades de responsabi-lização criminal e a severidade desta, o que age no processo de tomada de decisões do potencial agente infrator.

2.3 Alterações promovidas em relação aos crimes de lesão corporal leve e ameaça e à contravenção penal de vias de fato

A fim de não estender por demais o objeto do presente trabalho, este apenas cuidará da aplicação das penas das três paradigmáticas infrações pe-nais – para fins da violência contra a mulher –: de lesão corporal leve, ameaça e vias de fato, respectivamente previstas nos arts. 129 e 147 do Código Penal e art. 21 da Lei de Contravenções Penais.

No tocante aos seus efeitos criminais, o diploma legal em questão re-tirou dos Juizados Especiais Criminais – Lei nº 9.099/1995 – a competência para apreciar os delitos de violência doméstica contra mulher, proibindo a aplicação dos institutos despenalizadores respectivos, em especial vedando conciliação, transações penais ou suspensão condicionais do processo, bem assim proscrevendo condenações a pagamento de penas pecuniárias, como as de cestas básicas, multa ou prestação de serviços, tudo nos termos do que preceituam os arts. 17 e 41 da LMDP.

Neste ponto, a LMDP foi eficiente porque atacou um dos pontos cen-trais do sistema de incentivos negativos ao cometimento da violência contra a mulher, ao promover o deslocamento da competência dos Juizados Especiais Criminais para processar e julgar esse tipo de crime, pois aqueles sempre foram associados a delitos de menor potencial ofensivo, o que colocava a violência contra a mulher como algo banal e de potencial ofensivo reduzido. Assim, a antiga competência dos Juizados Especiais para processar e julgar esse tipo de criminalidade colaborava negativamente para um sentimento de impunidade para o agressor, em um típico caso de incentivo negativo deriva-do da lei penal e processual penal.

Ainda neste mesmo ponto, a Lei nº 11.340/2006 alterou a redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, recrudescendo a pena para o crime de lesão

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corporal praticado no âmbito doméstico contra mulher, conforme vedação contida no art. 41 da LMDP, que foi assim interpretado pelo Supremo Tribu-nal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 106.212: o “preceito do art. 41 da Lei nº 11.340/2006 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mu-lher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato”.

Assim, atualmente, os casos de crimes de lesão corporal e ameaça, bem como diante de contravenções penais de vias de fato, não podem mais ser objeto de conciliação (art. 72 da Lei nº 9.099/1995), transação penal (art. 76 da Lei dos Juizados Especiais) ou de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei dos Juizados Especiais), de modo que o procedimento criminal sempre deverá findar com resolução de mérito (ou arquivamento do procedimento investigatório ou sentença judicial), estendendo, em caso de condenação, ao processo de execução criminal. Essa modificação atua diretamente no proces-so racional do agente ofensor, porque fornece um sinal – incentivo – direto àquele ao deslocar a competência do Juizado Especial e acabar com as figuras da conciliação, da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Registre-se, a título negativo, que, apesar da transferência da compe-tência dos Juizados Especiais, nos termos do art. 129, § 9º, do Código Penal, o crime de lesão corporal praticado com violência doméstica tem pena co-minada de 3 (três) meses a 3 (três) anos; de acordo com o art. 147 do Código Penal, o delito de ameaça apresenta pena de detenção de um a seis meses, ou multa; por fim, a contravenção criminal de vias de fato, nos termos do art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, é apenado com prisão simples de quinze dias a três meses ou multa. Assim, se o deslocamento da competência dos Juizados Especiais foi um ponto positivo, as penas tímidas representam um ponto ne-gativo, de estímulo e incentivo ao agressor.

Ademais, considerando que os crimes supracitados têm as penas pri-vativas de liberdade máximas cominadas não superiores a 4 (quatro) anos, os agentes condenados por tais infrações penais, na imensa maioria das vezes, irão cumprir pena privativa de liberdade em regime aberto, em conformi-dade com o que estatui o art. 33 do Código Penal. E mais: a jurisprudência dominante não admite a pena em regime aberto cumulada com quaisquer outras penas de prestação de serviços ou pecuniária2.

Digno de nota, por fim, que a LMDP alterou o Código de Processo Penal – em seu art. 313, inciso IV –, para possibilitar ao juiz a decretação da

2 STJ, Súmula nº 493, 2012.

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prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher. Assim, hoje é possível a prisão do agente causador de violência contra mulher em três hipóteses: a) flagrante; b) preventivamente; e c) por condenação transitada em julgado. Porém, em vista a delimitação do objeto da vertente pesquisa, este tópico – das medidas cautelares – não será objeto de apreciação em relação à sua eficiência.

3 EFEITOS CRIMINAIS DA LEI MARIA DA PENHA (LMDP) À LUZ DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

3.1 Da necessidade de avaliar-se a eficiência da LMDP em seus aspectos penais

Antes de realizar a análise de alguns dos relevantes efeitos criminais irradiados pela LMDP, há que se demonstrar a importância em realizar tal análise, valendo-se do instrumental teórico fornecido pela AED, à luz do princípio da eficiência.

A lei pode acarretar elevados custos relacionados à manutenção do aparelho institucional e coercitivo, que acabam por tornar a sua implantação algo irrazoável, sem, por outro lado, irradiar efeitos práticos razoáveis, con-forme sustenta Christian Fernandes Gomes da Rosa:

A possibilidade de que existam investimentos não profícuos decorre da di-minuição marginal dos resultados efetivos de gastos na implementação: a cada montante de recursos (pecúnia, equipamento ou pessoal) empregado na aplicação e cumprimento das regras jurídicas – e políticas subjacentes – diminuem os efeitos que essa destinação causa em termos de concretização de objetivos. (Rosa, 2008, p. 45)

Stephen Holmes, Cass Sunstein (1999, p. 6) e Flávia Piovesan (2013, p. 188) perfilham o entendimento de que todos os direitos humanos, não ape-nas os sociais ou de segunda dimensão/geração, implicam custos, exigindo do Estado proteção e medidas de implementação de direitos, que despendem recursos públicos.

Portanto, até mesmo para o efetivo respeito dos direitos de primeira dimensão, protetores de bens jurídicos como a vida, liberdade e integridade física, é necessário que o Estado adote ações custosas, mas que devem ser medidas de acordo com o seu grau de eficiência.

Nesta perspectiva, para que as instituições jurídicas de combate à vio-lência contra a mulher não se transformem em meros mecanismos burocrá-

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ticos com baixos índices de atingimento das finalidades preconizadas pela LMDP, impõe-se verificar se a sua atuação está a funcionar como elementos promotores de ajustamento de conduta, esperando-se, com isto, que a reite-ração dos mesmos atos ilícitos seja coibida, exercendo função inibitória da conduta ilícita (Pereira, 2009, p. 4).

Um bom meio pelo qual se pode aquilatar, de certo modo, a eficiên-cia da LMDP em relação à persecução penal dos crimes menos gravosos é comparar os resultados criminais – aplicação de sanções penais – do sistema instituído pela LMDP e do sistema comum, para as mesmas infrações penais. É o que será feito a seguir.

3.2 Aplicação de pena aos autores de crimes de lesão corporal e ameaça, bem assim da contravenção de vias de fato, todos fora do âmbito normativo da LMDP

Os feitos criminais ligados às infrações penais em epígrafe, desde que não praticadas no contexto de violência contra a mulher, admitem as benes-ses criminais da conciliação entre as partes, da transação penal e da suspen-são condicional da pena, de modo que pouquíssimos casos desbordam para sentença criminal de condenação ou absolvição. Tal se dá geralmente quando o autor do fato não atende aos requisitos estabelecidos pela Lei nº 9.099/1995 ou quando este não aceita a proposta do Ministério Público.

Nos casos de concerto de transação penal ou suspensão condicional do processo, aplica-se de modo imediato a pena – prestação pecuniária ou de serviços – ao autor do fato, eliminando-se, de início, maiores delongas pro-cessuais, tais como atos de oitivas de testemunhas, interrogatórios, alegações finais, sentenças, recursos, incidentes, etc. Muito raramente os casos chegam à fase de execução penal para cumprimento de pena – diante de tantos filtros despenalizadores –, comumente aplicada no regime aberto, por apresentar sempre condenações à pena privativa de liberdade em patamares inferiores a 4 anos.

Para demonstrar a ineficiência do sistema anterior, pesquisa realiza-da nos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre demonstrou que ape-nas em audiência preliminar: 18% dos casos foram extintos em virtude de conciliação; 24%, mercê de transação penal; 5%, por suspensão condicional do processo; e 11%, em razão de arquivamento; e em apenas 24% dos casos pesquisados, foi oferecida denúncia criminal (Anziliero, Dineia, 2008, p. 8). Nestes casos, com a utilização dos institutos despenalizadores, a economia processual de tempo e recursos estatais é evidente, mas a mensagem repassa-

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da ao agressor é de ineficiência do sistema protetivo da mulher, o que funcio-nava como um elemento catalizador do processo de violência, um verdadeiro incentivo negativo.

Portanto, nos casos não abrangidos pela LMDP, aplicam-se, no mais das vezes, de modo sumaríssimo, as penas de prestação de serviços ou pe-cuniárias aos autores das infrações penais previstas nos arts. 129 e 147 do Código Penal e no art. 21 da Lei de Contravenções Penais.

3.3 Aplicação de pena aos autores das infrações penais de lesão corporal leve, ameaça e vias de fato no âmbito doméstico

Como visto antes, as infrações penais em destaque, se cometidas no contexto de violência contra a mulher, não admitem a imposição dos benefí-cios despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Se determi-nada pessoa praticou os crimes ou a contravenção penal descritos supra, o Ministério Público deverá ofertar denúncia criminal ao Poder Judiciário, que, ao cabo, após realizar diversos atos processuais, poderá condenar o agente a pena privativa de liberdade.

Em vista das penas máximas cerceadoras da liberdade prevista para os delitos e a contravenção em questão (detenção e prisão simples), todas inferiores a 4 anos, o regime aplicado, no mais das vezes, será o aberto, em conformidade com o que preceitua o art. 33 do Código Penal. Em outras pa-lavras, a LMDP optou por não permitir a aplicação de penas substitutivas da prisão – tais como prestação de serviços ou pecuniárias – para privilegiar a pena de restrição do direito de locomoção em regime aberto, por se mostrar, ao menos em tese, mais rigorosa.

Neste ponto, contudo, a lei foi infeliz. As penas baixas são estimulado-res eficientes da agressão contra a mulher, o que, somado à possibilidade do regime aberto, torna ineficiente a proteção pretendida pela LMDP.

Atualmente, nos termo da Lei de Execução Penal (Lei Federal nº 7.210, de 1984), a privação do direito de liberdade ambulatorial no regime aberto deve se dar em casa do albergado ou estabelecimento congênere.

O correto, portanto, seria que os condenados pelas infrações penais por violência doméstica fossem presos e respeitassem o regime aberto.

Era este também o objetivo da LMDP, ao impedir o gozo das benesses processuais, que atalhavam o procedimento criminal e impediam a aplicação

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da pena de prisão. Não era outro o intento da sociedade civil organizada – feministas –, que lutou pela aprovação do Diploma Legal.

Todavia, nos dias atuais, em todo território brasileiro, há pouquíssimas vagas disponíveis no sistema penitenciário para o mencionado regime.

Nos bancos de dados do sítio virtual da Secretaria de Segurança Públi-ca e Administração Penitenciária do Paraná, não consta informação de que no Paraná haja, atualmente em funcionamento, casas do albergado, mas ape-nas os Programas Pró-Egressos e Patronatos (SSPPR, 2014), órgãos de execu-ção penal com finalidade diversa da casa do albergado, conforme demonstra a Lei de Execução Penal.

Já nos indicadores fornecidos pelos bancos de dados do Sistema In-tegrado de Informações Penitenciárias, órgão pertencente ao Ministério da Justiça, é possível visualizar dados estatísticos do ano de 2012, dando conta de que no Brasil existiam à época 22.108 presos no regime aberto, havendo, porém, apenas e tão só 4.906 vagas no precitado regime de cumprimento de pena (SIIP, 2014).

Diante de casos em que inexiste vaga em casa do albergado para a efe-tiva prisão do agente, com vistas a não manter este preso, submetendo-o a regime prisional mais gravoso daquele a que fora condenado, a iterativa3 ju-risprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, determina a colo-cação do agente em regime de prisão domiciliar, conforme ilustra a decisão a seguir:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO – DESCABIMENTO – EXECUÇÃO PENAL – PRO-GRESSÃO AO REGIME ABERTO – AUSÊNCIA DE VAGAS – PRISÃO DOMICILIAR – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ – AGRAVO DESPROVIDO – O Superior Tribunal de Justiça, seguindo o entendimen-to da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, passou a inadmitir habeas corpus substitutivo de recurso próprio, ressalvando, porém, a pos-sibilidade de concessão da ordem de ofício nos casos de flagrante cons-trangimento ilegal. Firme nesta Corte o posicionamento de que ao paciente beneficiado com a progressão ao regime aberto, e não existindo vaga em estabelecimento prisional adequado, é permitido o recolhimento ao regi-me domiciliar, até o seu surgimento. Agravo regimental desprovido. (STJ, Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 270.988/RS, 2013)

3 HC 216828/RS, Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 15.02.2012; AgRg-HC 275.742/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, DJe 24.09.2013; AgRg-HC 218.404/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe 19.09.2012; etc.

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E mais: o regime de privação de liberdade em meio aberto – ou em casa do albergado ou em domicílio – não pode ser cumulado com pena restritiva de direitos – ou prestação de serviços ou pena pecuniária. Neste sentido se-gue a Súmula nº 493 do Superior Tribunal de Justiça, a sustentar ser inadmis-sível a fixação de pena substitutiva (art. 44 do Código Penal) como condição especial ao regime aberto.

A conclusão a que se chega é que para a maior parte dos presos, se não na totalidade deles, como se dá no Paraná, não há o cumprimento efetivo – como manda a lei – da pena de privação de liberdade, o que, por certo, atinge os condenados por crimes de violência doméstica contra a mulher, que nas três infrações penais supradescritas são condenados a pena de privação de liberdade em regime aberto.

O que se tem visto, portanto, na aplicação da LMDP, é que o agente autor de violência contra a mulher é condenado à simples pena de se recolher em sua própria casa. Veja-se decisão nesta direção:

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – RECURSO DO MINIS-TÉRIO PÚBLICO – RESTAURAÇÃO DO REGIME SEMIABERTO PRO-PRIAMENTE DITO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – BENEFÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA SOB OS REQUISITOS DO REGIME ABERTO, NAS CONDIÇÕES DE PRISÃO ALBERGUE DOMICILIAR – CARÁTER EXCEPCIONAL DA MEDIDA, ATÉ A CRIAÇÃO DE VAGA EM UNIDA-DE DE REGIME SEMIABERTO – CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVI-TADO – PRECEDENTES – CÓDIGO DE NORMAS DA CORREGEDO-RIA-GERAL DE JUSTIÇA, ITEM 7.3.2 – PORTARIA Nº 4/2014 DO JUÍZO LOCAL – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO – “Se por culpa do Estado o condenado não vem cumprindo a pena no regime fixado na de-cisão judicial (semiaberto), resta caracterizado o constrangimento ilegal. Como cediço, a falta de vaga no estabelecimento penal adequado ao cum-primento da pena no regime intermediário permite ao condenado a pos-sibilidade de cumpri-la em regime aberto domiciliar, quando inexistir no local casa de albergado ou lugar vago na dita instituição, até a transferência para estabelecimento adequado. 2. Recurso provido (RHC 47.806/SP, Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, Julgado em 18.06.2014, DJe 04.08.2014)”. (TJPR, 2015, Agravo nº 1321576-6/PR)

E a jurisprudência do TJPR não admite a cumulação da pena de pres-tação de serviços, em adição à pena de prisão domiciliar em regime aberto:

Decisão: Acordam, os Senhores Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, por unanimidade de votos, em dar parcial provimento ao Recurso e, de ofício, excluir a presta-

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ção de serviço à comunidade como condição de cumprimento em regime aberto, nos termos do voto.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – LEI MARIA DA PENHA – AME-AÇA – ABSOLVIÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – AUTORIA E MATERIA-LIDADE COMPROVADAS – NEGATIVA DE AUTORIA QUE NÃO EN-CONTRA ECO NOS AUTOS – DOSIMETRIA – CORREÇÃO DE ERRO MATERIAL E DO QUANTUM DE AUMENTO PELA CONTINUIDADE DELITIVA – POSSIBILIDADE – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO E, DE OFÍCIO, EXCLUÍDA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNI-DADE COMO CONDIÇÃO PARA O REGIME ABERTO. (TJPR, Apelação nº 1045715-9/PR, 2013)

Conforme tais decisões, ao menos no Estado do Paraná, durante cum-primento da pena privativa de liberdade – regime aberto – em prisão domi-ciliar, as penas, no mundo dos fatos, efetivamente aplicadas são as seguintes: a) exercício da atividade lícita no período diurno com autorização judicial; b) permanência (recolhimento) na própria residência durante o período notur-no e nos dias de folga e finais de semana; c) proibição de se ausentar da ci-dade sem autorização judicial; d) comparecimento a juízo mensalmente para informar e justificar as atividades (TJPR, 2012).

Ressalte-se que a fiscalização destas pouco rigorosas condições não é das mais efetivas, ficando a encargo apenas da Polícia Militar, visto inexistir qualquer aparato estatal para tanto, de modo que não é pouco razoável pen-sar que nem mesmo tais parcas condições são cumpridas em sua totalidade, o que configura um incentivo importante para o agressor, pois o elemento punibilidade é baixo e ineficiente.

3.4 Cotejamento crítico entre a qualidade das penas efetivamente aplicadas no contexto da LMDP e fora dele à luz da AED

As sanções finais aplicadas pela LMDP aos tipos penais – crimes e con-travenção –, mais usuais, conforme demonstrado supra, na maior parte dos casos, não excedem a mera prisão domiciliar, sem que se aplique em conjunto a pena de prestação de serviços ou pecuniária.

Tal sanção se afigura mais branda do que a pena contra a qual se insur-giram as feministas por ocasião das discussões prévias à LMDP, bem assim, é mais leve que a pena aplicada às mesmas infrações penais, quando estas não se encontram sob os efeitos da mesma lei, o que é um contrassenso.

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Ressalte-se: e isso tudo – pena mais branda –, após o enfrentamento pela vítima de longo, moroso e custoso processo judicial.

Não se perca de vista que para a maior parte da população a pena de prisão domiciliar significa a vitória da impunidade, o que funciona como fa-tor catalizador de condutas criminosas, um incentivo negativo que estimula o ilícito, porque o agente agressor pondera esse fator quando decide agredir uma mulher.

Portanto, em relação ao sistema penitenciário, as penas aplicadas em regime aberto não se aplicam conforme determina a legislação, não gerando o efeito ressocializador que se pretende, em vista da aplicação da prisão do-miciliar da ampla maioria dos agentes.

A distribuição das sanções para os agentes infratores da maior parte da violência contra a mulher, se não são presos preventivamente, tem se dado de maneira por demais insatisfatória à luz da AED, sobretudo diante da insatis-fação expressada pelos movimentos feministas com a aplicação de penas de “cestas básicas”, motivo da elaboração da LMDP, e de todos os recursos es-tatais destinados à sua aplicação, a suportar processos mais complexos, com exaustivas coletas de provas, até sentença condenatória e execução penal.

Ora, antes da vigência da norma, insurgiu-se a sociedade contra a aplicação, muitas vezes no início dos procedimentos e, portanto, célere, de sanções de prestação pecuniárias ou de serviços – as famosas cestas básicas. Atualmente, o procedimento é moroso e caro, mas os resultados são até mais pífios do que os de antigamente, porque a prisão domiciliar se parece até mais branda que a de prestação pecuniária.

Outrossim, nos casos em que não há violência doméstica – portanto, em tese, de menor gravidade, por não se relacionar com fatores históricos e culturais de violência sistêmica –, como por exemplo lesão corporal leve praticada entre dois homens, é possível que o membro do Ministério Público, já no primeiro encontro – audiência preliminar –, proponha a aplicação de pena ao agente, cujo cumprimento efetivo se inicia em poucos dias. Assim, pode-se discutir a ausência da severidade adequada em tais casos, contudo a pena – mesmo que insuficiente – é implementada.

De outro lado, e para solucionar a pouca severidade da pena, aprovou--se a LMDP, que, apesar de utilizar mecanismos processuais e de pessoas sobremaneira mais caros, complexos, burocráticos e morosos que o dos Juiza-dos Especiais, não tem logrado êxito em submeter o agente ao cumprimento da sanção penal prevista em lei – pena de prisão, em regime aberto. Ressalte-

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-se que nem ao menos a pena de prestação de serviços ou pecuniária – consi-derada pouca pelos movimentos feministas – tem sido executada, diante da impossibilidade legal.

Assim, os custos de produção foram supervalorizados, visto que, agora, em tais casos, é necessária a elaboração de inquérito policial, com sobrecarga de trabalho a investigadores policiais e Delegados de Polícia, o oferecimento de denúncia criminal, a realização de instrução probatória à sentença final, ocupando ainda mais o tempo de promotores de Justiça e juízes de Direito, além de todos os demais servidores auxiliares, e, ao fim, o desenvolvimento de fase de execução penal.

As despesas, neste novo processo criminal, são elevadas, mas o resul-tado é pouco satisfatório, inclusive sendo inferior ao anterior, que já era criti-cado. A eficiência dos meios, portanto, não está sendo respeitada sob o ponto de vista da AED.

Não se perca de vista que, com o atual processo criminal, geraram--se pesadas externalidades negativas para a vítima, testemunhas e demais interessados. Ora, sem as modificações realizadas pela LMDP, não havia in-quérito policial – apenas termo circunstanciado, finalizado geralmente em um dia – e, na maioria dos casos, a pendência criminal era resolvida em uma audiência preliminar, ou com a conciliação das partes ou com a celebração de transação penal entre o Ministério Público e o agente delituoso. Ambas as formas de resolução do conflito eram criticadas, e com razão. A primeira – acordo entre as partes –, porque a mulher, por se mostrar parte vulnerável, não poucas vezes até dependente economicamente do companheiro, aceitava se submeter a um acordo, o que garantia a impunidade do agente. Com o acordo com o órgão de acusação, não poucas vezes a pena aplicada era bran-da, de modo que o agente não se sentia dissuadido a paralisar a sua conduta atentatória aos direitos humanos das mulheres.

Porém, atualmente, a vítima é submetida a uma dolorosa “via crucis”, para, ao fim, presenciar a aplicação única de pena domiciliar ao réu, o que para ela é algo perto da impunidade.

Ademais, todos os agentes envolvidos são influenciados com externa-lidades negativas criadas, como a necessidade de comparecer à Delegacia e posteriormente ao fórum para prestar depoimentos.

Ainda quanto à Teoria dos Jogos e à escolha racional dos indivíduos, é possível dizer que a sanção criminal – por óbvio, não se está a falar de even-tual prisão cautelar durante o processo ou medidas protetivas diversas da

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prisão, também de natureza assecuratória, que podem apresentar fortes efei-tos dissuasórios – não incentiva os agentes homens a optarem pelo caminho do respeito à mulher, bem como as mulheres a buscarem as autoridades de persecução penal para levar adiante uma notícia-crime.

A seguir, apresenta-se tabela ilustrativa das comparações entre o siste-ma dos Juizados Especiais Criminais – aplicável outrora – e o da LMDP para corroborar as conclusões supra:

Sistema do JECrim Sistema da LMDA

Transação penal É possível Não é possível

Suspensão condicional da pena É possível Não é possível

Inquérito policial Não é necessário, bastando sim-ples termo circunstanciado É necessário

Processo criminal Não é necessário É necessário

Penas alternativas à prisãoÉ possível já na transação penal ou na suspensão condicional do processo, ocorrendo com frequ-ência

Não é possível

Penas de prisão Em tese, é possível, mas rara-mente Em tese, é possível, mas raramente

Pena comumente aplicada Pecuniária ou prestação de ser-viços, o que pode se dar antes de iniciar o processo

Prisão em regime aberto, converti-da em domiciliar, sem a imposição de prestação de serviços ou pena pecuniária

Assim, o sistema de prêmios e penalizações criado pela LMDP não está funcionando adequadamente, porquanto a pena, aplicada pela legislação pe-nal atual contra os agressores de mulheres, no mais das vezes, resume-se ao mero recolhimento ao domicílio. Nada mais.

A incidência de aplicação das normas criminais pode diminuir, tendo em vista que muitas mulheres podem se sentir desmotivadas – não pelas me-didas cautelares que têm se mostrado mais eficientes na proteção das vítimas – pela sensação de impunidade.

Assim, nos casos relacionados à lesão corporal, ameaça ou vias de fato, os agentes, possíveis praticantes das citadas infrações penais contra mulhe-res, se veem incentivados a cometer os delitos em questão, visto que, para eles, é preferível ingressar no mundo da violência contra a mulher.

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Ressalte-se, ao fim, que não se está, neste trabalho, a criticar ou desme-recer os objetivos da LMDP consistentes no aumento das penas aos atentados criminais praticados contra o gênero feminino, nem tampouco a asseverar se deve voltar a aplicar a malfadada pena de “cestas básicas”, como no passado. Mas, sim, afirmar-se que a LMDP, por mais nobres que sejam os seus objeti-vos, diante da realidade de poucas vagas no sistema penitenciário brasileiro, tem-se mostrado ineficiente, inclusive permitindo a aplicação de penas mais brandas que as de outrora.

CONCLUSÃO

A AED torna possível um novo olhar para os fenômenos jurídicos, de maneira bastante diferente da visão tradicional, por demais ligada aos meios, à burocracia estatal e ao Direito, considerado como um mero conjunto de normas abstratas em busca da justiça ideal e completamente descolado da realidade.

A eficiência passou a ser vetor importante na compreensão das normas jurídicas e das decisões judiciais.

À luz disso, conforme visto anteriormente, as sanções criminais previs-tas nos crimes afetados pela Lei Maria da Penha, no tocante à sua efetiva im-plementação, não são eficientes como instrumentos de incentivo do respeito aos direitos humanos do gênero feminino e como ferramentas de inibição das pretensões delituosas.

Isso porque as normas estão a gerar custos de transação – necessida-de de criação de maior número de vagas no sistema carcerário, em regime aberto, e de manutenção de maior estrutura no sistema de Justiça para a per-secução penal devida até a condenação dos agentes e execução das penas, que não podem mais se valer dos substitutivos da pena – e externalidades negativas – como a maior demora e burocracia a que se submetem a vítima e seus familiares na espera da aplicação da sanção ao seu companheiro –, sem que, por outro lado, as penas aplicadas – o resultado – sejam proporcionais ao aumento de todos estes meios, porquanto muitas vezes a sanção se reduz à prisão domiciliar.

Sob o prisma da eficiência, as normas criminais oriundas da LMDP, no que toca às penas criminais, diante da estrutura efetiva disponível à sua implementação, não têm se revelado a melhor escolha para o agente econô-mico – no caso, o Estado brasileiro –, porque, em tais casos, tem-se aplicado sanções mais severas e céleres no sistema – antigo – dos Juizados Especiais Criminais, por intermédio dos quais, ao menos, o agente delituoso se com-

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promete a cumprir penas de prestação de serviços e pecuniárias, por óbvio mais rigorosas do que as de prisão domiciliar.

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O QUE VEEM AS MULHERES QUANDO O DIREITO AS OLHA?

REFLEXÕES SOBRE AS POSSIBILIDADES E OS ALCANCES DE INTERVENÇÃO DO DIREITO

NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICAcaMiLa caRDoso De MeLLo pRanDo*-**

RESUMO: A partir das provocações de uma obra cinematográfica e de uma leitura interdisciplinar dos saberes da psicanálise e da socio-logia do direito, o artigo propõe que a judicialização das relações de gênero no âmbito doméstico seja compreendida a partir das estra-tégias de invisibilidade da violência levadas a cabo pelos processos de intervenção do direito. Sob essa chave, o artigo propõe a identi-ficação de duas linhas de produção de invisibilidade da violência, que repercutem na reduzida possibilidade de reconhecimento das mulheres diante do direito: a) a produção de valores familistas e da perspectiva “privada” do conflito, que perpassam tanto institutos penalizadores como despenalizadores e que conduzem a discussão para além do debate penal-não penal de intervenção; b) a construção da vítima “possível” da violência doméstica que invisibiliza todo um espectro de vítimas mulheres submetidas a registros de vulne-rabilidade diversos.PALAVRAS-CHAVE: Violência doméstica; psicanálise; criminolo-gia; judicialização; vítimas.ABSTRACT: From the provocation of a film and a interdisciplinary reading of psychoanalysis and sociology of law, the article proposes that the legalization of gender relations at home to be understood from the invisibility strategies of violence carried out by the legal intervention processes. Using this point of view, the article proposes the identification of two production lines for violence invisibility, which reflect the reduced possibility of recognition of women by the law: a) the production of family values and “private” perspective of the conflict that underlie penalizing both institutes as depenalizing and leading the discussion beyond the criminal-not criminal debate

* Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UnB, Tutora do PET-Direito/UnB.** E-mail: [email protected].

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intervention; b) the construction of the domestic violence victim “to be” that turns invisible a whole spectrum of women victims under-going various vulnerability records.

KEYWORDS: Domestic violence; psichoanalysis; criminology; judi-cialization; victim.

SUMÁRIO: 1 O caminho de Pilar; 1.1 Os três atos (ou os três qua-dros); 1.2 La dolorosa: a mulher que sofre; 1.3 Danae: a mulher tranca-fiada e a mulher desejante; 1.4 Kandinsky: onde emerge o nome das coisas; 2 A cena da judicialização: o que as mulheres veem quando o direito as olha?; 2.1 As personagens do teatro do processo penal; 2.1.1 O debate criminológico sobre os limites e as contradições do controle penal; 3 A judicialização das relações sociais: a agenda fe-minista da igualdade e as estratégias de invisibilidade da violência contra a mulher; 3.1 As estratégias de invisibilidade da violência do-méstica; 3.1.1 A polarização entre o campo penal e não penal; 3.2 Da superação da polarização entre respostas punitivas e não punitivas às escutas possíveis das vítimas de violência; Considerações finais: por direitos que também sejam suportes do ver; Referências.

O espaço de diálogo entre o campo crítico criminológico e as demandas dos movimentos feministas por reconhecimento e pelo fim da violência é, muitas vezes, marcado por impossibilidades.

A produção da Lei Maria da Penha foi um dos momentos históricos que condensou essa tensão, em especial na discussão sobre o uso de institu-tos despenalizadores nos processos de casos de violência doméstica. O deba-te em torno da suspensão condicional do processo que resultou interditada na nova lei e na interpretação do STF (ADC 19) continua, aliás, sendo um objeto deste debate.

A demanda pela interdição da suspensão do processo, bem como da aplicação de penas restritivas de direitos, surgiu de parte dos movimentos feministas como decorrência da consideração da banalização da violência doméstica nos Juizados Especiais Criminais. As feministas tinham razão em ler a banalização ocorrida com a violência doméstica nos Juizados. Mas, em virtude da naturalização da relação entre violência, crime, processo e pena, a saída apontada foi definir que o reconhecimento da gravidade da violência só se daria por meio da exigência de aplicação de pena (Machado, 2013). Des-considerou-se que parte do descaso poderia estar relacionado não à ausência de pena, mas à forma como as medidas vinham sendo aplicadas, revelada, por exemplo, com as insatisfações em relação à dificuldade de escuta das mulheres e à coação para aceitar os acordos.

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Neste ensaio parto da identificação dessa tensão e tenho como objetivo reconstruí-la sem recorrer ao binarismo punição versus despenalização, que tem marcado o campo da disputa entre crítica criminológica e movimentos feministas. Para isto, ressituo a discussão a partir da análise da obra cinema-tográfica Te doy mis ojos1. Na leitura da obra, construo as referências do sujeito lacaniano e a sua relação com o saber (Lacan, 1985) e do direito como um “suporte do ver” (Didi-Huberman, 1998), que conduzirão a discussão sobre as possibilidades de intervenção do direito nos casos de violência doméstica. O direito será entendido potencialmente enquanto “suporte do ver” capaz de produzir algum reconhecimento às mulheres vítimas de violência, por meio da ressignificação de seus medos.

1 O CAMINHO DE PILAR

Te doy mis ojos é uma obra cinematográfica que constrói uma narrativa complexa e atenta em torno da relação atravessada pela violência doméstica vivida por Antonio e Pilar. O fim da relação ocorre no momento de máxima desalienação de Pilar quando ela se reapropria do seu olhar e dali segue um outro caminho.

Pilar repete para sua irmã, que a acolhe no momento final da separa-ção: “Preciso me enxergar. Não sei quem sou. Há tanto tempo não me olho. Não consigo explicar”.

Quando Pilar reivindica seus olhos e seu olhar, e ao mesmo tempo adquire a capacidade de dar nome ao que sente, desfaz-se a cena repetida da mulher caída na relação violenta. O seu caminho até ali é contado no fil-me por meio dos seus encontros com algumas obras de arte – pinturas com as quais ela trava um profundo processo de reconhecimento de si e de seus enigmas. O gozo da cena da mulher assujeitada e vítima encontra, pouco a pouco, suporte no imaginário constituído pelas pinturas com as quais Pilar se depara. Esses encontros fazem com que a personagem consiga emergir e se deslocar, e por meio deles ela se torna capaz de dar nome àquelas cenas de violência – o medo é o nome que ela pronuncia e elabora no seu longo percurso. É quando o medo se transmuta em palavra que ela se libera para ser outras mulheres.

Qual o caminho que ela percorre até aquele momento final em que a personagem abandona o seu lugar em uma relação atravessada pela violên-cia? Caminhando junto à narrativa da obra busco pistas e novas problema-

1 Te doy mis ojos. Direção: Icír Bollán. Espanha, Productora La Iguana, 2003.

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tizações para as questões relativas às (im)possibilidades de intervenção do direito no casos de violência doméstica contra a mulher. A pergunta, provo-cada pela obra, que guia as reflexões que seguem é: “O que veem as mulheres quando o direito as olha?”

1.1 Os três atos (ou os três quadros)

Pilar está casada há nove anos com Antonio, que externa o seu ciúmes e a sua possessividade por meio de agressões físicas e ameaças. Na primeira cena do filme Pilar acorda o seu filho Juan e foge, sentindo tremores, rumo à casa de Ana, sua irmã. Quando chega lá é acolhida e não consegue falar sobre que está se passando com ela, apenas pede para Ana ir buscar algumas coisas suas e do filho em sua casa para que eles pudessem ficar alguns dias em com-panhia da irmã. Pilar é uma mulher aterrorizada pelo medo de ser aniquilada pelo marido.

Ana propõe que a irmã arrume um emprego e consegue que ela seja uma vendedora de bilhetes em uma igreja-museu em São Tomé, Espanha. Na igreja, em um espaço em que várias obras de arte são expostas à visita-ção, Pilar inicia a sua trajetória de visitar a si por meio do olhar que dedica às pinturas. São as imagens enquadradas nas pinturas que mobilizarão em Pilar o seu lugar no mundo. O olhar de Pilar é cindido em dois quando uma das imagens do museu a captura e abre nela um reconhecimento momentâ-neo e intransferível do seu desejo. Dessa fissura ela consegue fazer emergir a sua subjetividade e se movimentar. A imagem que a captura é da ordem da contingência, onde Pilar consegue encontrar algo a respeito de sua verdade.

A imagem faz as vezes do discurso analítico no processo de encontro de alguma verdade, mesmo que barrada pelo gozo.

Diz Lacan (1985, p. 59):A economia do gozo, taí o que ainda não está perto da ponta dos nossos dedos. Haveria um pequeno interesse em que chegássemos lá. O que po-demos ver sobre isto, a partir do discurso analítico, é que, talvez, tenhamos uma chancezinha de encontrar alguma coisa a respeito por vias essencial-mente contingentes.

O que é da ordem da contingência e do acaso é o lugar em que se “pára de não se escrever”. O que não se escreve é toda a verdade, barrada pelo gozo, sustentado pela causa do desejo. Pelo acaso e somente pelo acaso é que vez outra esbarramos em alguma verdade que, em algum momento, “pára de não se escrever”. Alguma verdade é apenas alguma verdade de Pilar, aprendi-da por ela a um custo que sempre parte do zero e que não pode ser partilha-

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da. Apenas serve para ela, e em seguida se perde. Mas ela já não está mais no mesmo lugar.

A obra de arte, objeto do ver e do olhar de Pilar, pode ser entendida como aquela que está estruturada como limiar, que “não é senão a abertura que carrega dentro de si ‘a ferida aberta de seu coração’” (Didi-Huberman, 1998, p. 231).

Assim diz Didi-Huberman (1998, p. 232):Como se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar forma a nossas feridas íntimas. Para dar, à cisão que nos olha no que vemos, uma espécie de geometria fundamental. [...] E se falo de uma geometria fundamental, é por-que o simples quadro de porta parece justamente funcionar aqui [...]. como o suporte visível de uma instância bem mais geral, a que Husserl denomina-va, ao interrogar a origem da geometria, uma “formação de sentido”.

A imagem funciona para Pilar como o suporte do ver a partir das cisões que ela porta dentro e de sua geometria fundamental. Com as pinturas ela vai aos poucos enquadrando em seu olhar aquilo que porta dentro – aquilo que carrega na pele – e se ressignificando. As imagens daquelas obras são o su-porte do olhar de Pilar rumo a si em um exercício constante de luto e desejo.

O que vê Pilar quando as obras de arte a olham?

1.2 La dolorosa: a mulher que sofre

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O primeiro encontro de Pilar com uma imagem que opera algo nela se dá em sua visita à Igreja em São Tomé, para onde segue para conversar com Lola e conseguir um trabalho como vendedora da bilheteria do Museu. A sua irmã a esperava lá enquanto trabalhava em uma restauração.

Pilar percorre com os olhos as várias pinturas expostas e se detém absorta diante da imagem de Morales, “La dolorosa”2: o retrato de Nossa Senhora de mãos cruzadas e olhos aflitivos, signos místicos de sofrimento e compadecimento. Ali a imagem está estruturada como limiar, tocando a abertura na carne de Pilar, a abertura que carrega dentro de si.

O retrato ainda guarda outra identificação com a personagem do filme. O nome dado à Virgem Maria por sua aparição no início do cristianismo na Espanha era Nossa Senhora de Pilar. Os seus nomes coincidiam e talvez a Pilar contemporânea tenha encontrado na representação de sua homônima a resignação e a dor que carregava dentro de si, entendidas talvez como o seu destino.

Naquele momento Pilar havia recém saído de casa amedrontada pela fúria do marido e começava a dar os seus primeiros passos para se deslocar daquele lugar. Ela ainda não havia criado palavras para dar nomes ao que sentia. Ela foi escolhida pela pintura de El Morales, e embora absorta e tocada por aquela imagem, seus olhos interrogavam o que de si havia ali. A imagem parecia justo cumprir uma economia nomeada por Didi-Huberman (1998, p. 237): “Tal seria [...] a imagem, nessa economia: guardiã de um túmulo (guardiã do recalque) e de sua abertura mesma (autorizando o retorno lumi-noso do recalcado). Petrificação e atração ao mesmo tempo”.

Foi a sua irmã quem tentou despertar um saber que havia em Pilar ao dizer referindo-se à imagem de Nossa Senhora: “Ela acaba de perceber que deixou os sapatos em casa”. Pois foi assim que Pilar havia chegado à casa de Ana na madrugada: com o seu filho e sem os seus calçados. Amedrontada, o único que Pilar naquele momento soube dizer à irmã é que ela estava tão perdida que sequer havia colocado os sapatos.

1.3 Danae: a mulher trancafiada e a mulher desejante

Depois de terminar o seu contrato temporário como vendedora de bi-lhetes para a entrada do Museu, já reconciliada com Antonio, Pilar é convi-dada a fazer um curso para orientar visitas guiadas aos museus. Nesse curso

2 MORALES, Luis de. Mater dolorosa, 1570, oleo sobre tela.

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ela precisava escolher algumas obras para expô-las a um público selecionado. A sua primeira obra escolhida foi “Danae recebiendo la lluvia de oro” de Tiziano, do século XVI3.

Segundo a mitologia, Danae foi encerrada em uma torre por seu pai, o rei de Argos, desde que ele soube por um oráculo que seu neto, futuro filho de Danae, iria matá-lo. No entanto, Zeus4, apaixonado, transformou-se em uma chuva de ouro, entrou no quarto de Danae e a fecundou.

Pelo fato de a pintura de Tiziano ter sido considerada escandalosa à época, durante a exposição guiada Pilar conta ao público quem foram os do-nos daquela obra e como se relacionaram com ela:

Pilar – Alguns de seus donos queriam Danae muito perto, como Júpi-ter. Mas outros foram como o seu pai, trancando-a para que ninguém a visse. Um rei que pensou inclusive em queimar o quadro. Mas não conseguiu, e aqui está, para todos verem.5

Pilar maneja dois lugares possíveis para a mulher da pintura, seja em sua origem mítica, seja em seu destino de quadro. De um lado a mulher que deveria estar fechada a chaves para que ninguém a visse ou tivesse acesso a ela: em uma imagem representativa de seu lugar com Antonio, que não suportava a excitação em vê-la expos-ta aos olhos dos outros. De outro a mulher desejada por Júpiter,

3 DI GREGORIO, Tiziano Vecellio. Danae recebiendo la lluvia de oro, 155?, oleo.4 A personagem Pilar se refere a Júpiter (deus grego) normalmente identificado com o deus

grego, Zeus.5 Te doy mis ojos. Direção: Icír Bollán. Espanha, 2003.

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para quem Danae se entrega desejante. Na sua narrativa Pilar dis-corre sobre um belo desfecho: “Ninguém teve o poder de trancafiar Danae, e hoje ela está aqui para todos verem”.

Pilar segue adiante em uma narrativa em que pouco a pouco desvenda os seus enigmas. Ao enxergar na obra de arte a mulher em seus dois lugares, entre o pai e o amante, ela é tocada pela imagem que encontra em sua carne a cisão de onde ela pode fazer emergir outras mulheres.

1.4 Kandinsky: onde emerge o nome das coisas

Pilar: Diz o pintor que podemos escutar os quadros. Ouvi-los dentro de nós, como ouvimos música. Pois as cores são como as notas, e se repetem como uma melodia. Três amarelos, dois azuis, amarelo de novo e o silêncio, o branco. O branco não soa, não dói. Se podemos ouvi-los também podemos senti-los. O verde é o equilíbrio. Azul é profundidade. O vermelho, o vermelho é o medo.6

A segunda obra escolhida por Pilar para expor ao público é “Com-position n. 8”, de Kandinsky, criada em 19237. Um desenho de formas ge-

6 Idem.7 KANDINSKY, Wassily. Composition VIII, 1923, oleo sobre tela.

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ométricas onde ela encontra algo mais do que porta em sua carne e em sua geometria fundamental.

Antes da cena da exposição ao público do quadro de Kandinsky, Pilar encontra um caderno de Antonio. Quando Antonio o compra, sugerido pelo terapeuta8 que o acompanha desde que Pilar havia saído de casa, ele explica a ela que aquele caderno possuía três cores: as páginas amarelas serviriam para fazer um diário, as verdes para escrever as coisas boas, e as vermelhas para as coisas ruins.

Certo dia de manhã Pilar encontra o caderno caído no chão e não resis-te ao desejo de lê-lo. Ela lê o que Antonio escreve nas páginas vermelhas e em seguida vai ao museu apresentar a obra de Kandinsky.

Naquela obra Pilar se encontra com uma imagem decomposta e sig-nifica nela o nome para as suas sensações. Cada cor representa para ela um sentimento. E o vermelho, o vermelho tem o nome do medo. Ela reconhece o medo em Antonio, que o faz se sentir tão humilhado e caído, e que o leva (pelos braços das ordens patriarcais de posse e aniquilamento da mulher) a humilhá-la e fazê-la sentir tremores, também de medo. Ela se desidentifica do medo de Antonio, ao mesmo tempo em que reconhece e nomeia o seu próprio medo. As cores e as formas de Kandinsky dividiram o olhar de Pilar e na fissura dessa cisão ela encontrou um nome para a causa do seu desejo. Ela já não estava mais lá. Ela já era outra.

Larriera, tratando da maneira como opera a psicanálise, nos fala um pouco sobre este processo equivalente ao que passa Pilar – da mobilização do inconsciente no encontro com o imaginário:

[...] una vez que un análisis se ha encaminado, una vez que un análisis ha comen-zado a producir, justamente avanza en esta dirección de producción de sentidos, es decir, de ir articulando significantes que estaban reprimidos, ver de qué modo constituían cadenas, de que modo estaban encadenados, y en esa concatenación de eso que va viniendo a la conciencia se producen efectos de sentido con cambios de posición del sujeto. [...] Ese sentido lo va encontrando, va producindo ese sen-tido en esa movibilización del inconsciente y en ese encuentro con lo imaginario. (Larriera, 1997)

8 Depois da separação, Antonio passou a frequentar um grupo de terapêutico assemelhado às propostas de grupos de atendimentos a homens agressores.

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2 A CENA DA JUDICIALIZAÇÃO: O QUE AS MULHERES VEEM QUANDO O DIREITO AS OLHA?

Pilar e duas amigas que também faziam o curso de guia de museu são convidadas para guiar uma exposição em Madrid. Antonio recebe a notícia muito mal, mas ela decide ainda assim aceitar ao convite.

Quando Pilar está se arrumando para sair de casa, Antonio encena um ato de extrema humilhação retirando a sua roupa, deixando-a nua e trancan-do-a na sacada do prédio, “para que todos a olhem”, porque “é isso do que você gosta”. A cena de violência do filme é seguida pela ida de Pilar a uma delegacia, onde ela procura dar palavras para o que aconteceu.

Policial: Onde ele a agrediu?Pilar: Não houve ferimentos externos. Só internos.Policial: Tente descrever o que houve. Ele não a agrediu fisicamente. Ele à insultou? Ele a ameaçou verbalmente?Pilar: Ele quebrou tudo.Policial: Quebrou algo seu?Pilar: Tudo. Quebrou tudo. Tudo, tudo, tudo...Policial: Calma, senhora.9

O que via Pilar quando procurou a delegacia para registrar a agressão sofrida? O que a olhava desde o agente do Estado?

No momento em que Pilar procura transformar em palavras as agres-sões interiores sofridas, o agente do Estado revela-se incapaz de escutá-la. Pilar não encontrou uma imagem10 na qual pudesse reconhecer uma porta capaz de convidá-la a experenciar o olhar como luto e desejo e, com isso, ressignificar o seu lugar. Apesar do sabido registro da contingência onde se inscreve alguma verdade, alguns suportes do ver tendem a ser mais generosos e capazes de provocar a abertura suficiente para que talvez algo se revele.

Pilar vira as costas ao agente e vai embora aparentemente segura de que não havia nada para encontrar ali. Segue para a casa da irmã e lá decide que ela “precisa se olhar”.

9 Te doy mis ojos. Direção: Icír Bollán. Espanha, 2003.10 Entendo a imagem como suporte do ver e do olhar, como sugere Didi Huberman

(Didi-Huberman, 1998, p. 242).

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No trajeto de Pilar, se encontra um processo de busca de autonomia financeira11 e também um caminho de quem decifra os seus próprios enig-mas tendo como suporte os seus objetos de ver e olhar12. Ao acompanhá-la, transformar-se em outras mulheres já não fixadas naquela que é parte da tra-ma de poder e de controle de uma situação de violência é possível aprender muitas coisas.

Mas me interessa aqui indagar qual o lugar do direito no trajeto de tan-tas e tantas mulheres. Para Pilar, o direito representado no agente foi incapaz de escutá-la, não lhe serviu como suporte do ver. Talvez ela procurasse ali a lei capaz de instaurar em sua vida um novo lugar em substituição ao olhar e à lei instaurados por Antonio. E em algum momento ela compreendeu que essa lei, entendida a partir do corte psicanalítico, não se encontrava lá. Ou, em outra ordem, que os seus registros íntimos não encontravam lugar no lé-xico do direito. A violência sofrida não estava marcada visivelmente em sua carne, e o direito penal não era capaz de traduzi-la13.

A cena provoca uma indagação: O que as mulheres em situação de violência doméstica veem quando o direito as olha?14

11 Algumas autoras entendem que há grande importância do trabalho e da autonomia financeira na desestabilização das hierarquias de gênero. É importante ressaltar que essa pauta do mercado de trabalho e da autonomia financeira não é universalizável nas lutas feministas, já que o feminismo negro assinala que as mulheres negras estão no mercado de trabalho desde há muito tempo, e vivenciam nessas condições as opressões sob perspectivas particulares. Cf. HOOKS, Bell. Feminist theory: from margin to center. Cambridge: South and Press, 2000.

12 Acompanhar o trajeto de Pilar não é de forma alguma usá-lo como modelo possível para que mulheres estejam livres da violência doméstica. A história de Pilar parece representar um contexto de opressão bastante menor do que situações cotidianas de muitas outras mulheres. O objetivo é pensar, ao contrário da busca do modelo, a partir das singularidades.

13 No Direito brasileiro, no que toca ao reconhecimento da violência doméstica no campo penal, embora a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) descreva a violência psicológica como uma das formas de violência doméstica, as decisões penais não a reconhecem. Tal invisibilidade não ocorre simplesmente porque não existe um tipo penal específico, mas porque, mesmo podendo lançar mão de tipificações penais adequadas, o atores jurídicos (nomeados aqui no masculino, por inferir que homens ou mulheres tendem a reproduzir um padrão patriarcal e sexista do direito) não representam a existência de determinados atos como violência.

14 A obra cinematográfica narra uma história de uma mulher branca localizada política e territorialmente na Espanha. A ausência de escuta retrata um momento da cultura judicial espanhola. Assim como as possibilidades de agência e os repertórios de Pilar repercutem a sua posição como mulher branca que não pertence às classes mais baixas, essas questões

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2.1 As personagens do teatro do processo penal

Alessandro Baratta, um criminólogo crítico, em um dos seus ensaios, põe em questão o saber e a decisão promovidos pelo processo penal, compre-endido tal como um “laboratório de transformação teatral”. Ele sustenta que no processo “os conflitos não podem ser resolvidos, senão unicamente repri-midos”. Por meio de sua linha argumentativa, podemos nos aproximar um pouco da impossibilidade do olhar que Pilar encontrou ao buscar o direito.

Para Baratta (1998, p. 231),el elevado grado de artificialidad del mundo jurídico depende de dos circunstancias: la primera es que el derecho construye sobre una realidad que es ya producto de construcción social en el lenguaje común, es decir, él reconstruye la sociedad; la segunda circunstancia es que el mundo juridico es construido como una estructura normativa, en la que los comportamientos de los sujetos son calificados deontica-mente. Puesto que el derecho, utilizando una metáfora de Emil Lask (1932, p. 308 y ss.), fabrica sobre “semifabricados”, y por otra parte, no tiene por objeto inmediato las acciones, sino programas y modelos de acción, puede ser considerado como un laboratorio en el cual el mundo del ser es transformado en un mundo del deber ser.

Da característica de o mundo jurídico ser construído como uma estru-tura normativa que qualifica os sujeitos deonticamente a partir de modelos de ação, decorre que o processo penal funciona como uma teatralização ou uma liturgia, como ele mesmo define.

Concretas situaciones conflictivas encuentram en el proceso penal un laboratório de transformación teatral, en el cual ellas son transcritas en una puesta en escena preordenada y los actores comprometidos en roles estandardizados. A estos actores se agregan, en el teatro procesal, actores “institucionales” ausentes en la situación originaria. [...] Los intereses e las necesidades que confluyen son reconstruidos como derechos y como ilicitos. El drama de la vida es sustituido por una liturgia en la que los actores originales son ampliamente remplazados y representados por profesionales del rito.

[...]

que historicizam e localizam o recorte da narrativa não afastam a possibilidade de que a obra seja uma fonte de apreensão de perguntas a serem formuladas em outros contextos culturais. Especialmente porque o tema da (im)possibilidade da escuta da violência contra as mulheres tem sido tematizado empiricamente em pesquisas no Brasil (Cf. o trabalho mais recente de MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 129-165; o trabalho de ALVAREZ, Marcos Cesar et al. O papel da vítima no processo penal. Série Pensando o Direito. São Paulo/Brasília: IBCCrim/SAL/ MJ, 2009).

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[...] en el laboratorio del derecho el comportamiento individual se presenta como una variable independiente respecto la situación. [...] El análisis de la situación, en la lógica del proceso de verificación de la responsabilidad debe limitarse a una construcción abstracta que la separa del contexto social y hace imposible o de to-das formas irrelevante el conocimiento de las raíces del conflicto. (Baratta, 1988, p. 6657-6659)

Neste teatro – que foi chamado por Marisa Correa como fábula, em sua investigação antropológica acerca dos processos do Tribunal do Júri15 – o processo e os seus artefatos são a lupa com que se olha e se transfigura os conflitos reduzidos a dois lugares: o culpado, de um lado, e a vítima, de outro, que é expropriada do conflito e substituída pelo Estado no papel do Ministério Público.

O discurso social que cinde e traduz o conflito na cena de um agres-sor e uma vítima encontra um lugar correspondente na linguagem do direito, especialmente do processo penal, e tende a reproduzir e reificar nesses dois lugares antagônicos e descontextualizados as representações sociais defini-das a partir das assimetrias de poder constituídas pelos marcadores de raça, classe e gênero. Tal cenário pode tornar difícil a possibilidade de as mulheres encontrarem no olhar do direito, em especial do direito penal e processual penal, um suporte do ver para as suas ressignificações e os seus deslocamen-tos em suas experiências de situação de violência.

É possível, e a literatura abolicionista penal o faz muito bem (Hulsman, 1993; Mathiesen, 1989)16, apontar criticamente a invisibilidade do conflito provocada pela narrativa contratualista liberal do processo penal – e o seu correspondente sujeito liberal – e pelos mecanismos repressivos de interven-ção do sistema punitivo.

No caso da violência doméstica contra a mulher essa invisibilidade e desfiguração mostram-se tanto mais incapacitantes quanto se reconhece que o fundamento contratualista do direito de punir está fundado também em um contrato sexual (Pateman, 1993).

15 O texto aborda a construção dos papéis sexuais por meio de um dos mecanismos de mediação social, o judiciário. A análise se dá a partir da seleção de julgamentos de crimes de homicídio em família, entre homem e mulher, ocorridos em Campinas, no período de 1952 a 1972 (CORREA, Marisa. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983).

16 Para uma leitura sobre as correntes abolicionistas, cf. PRANDO, Camila Cardoso de Mello. Abolicionismo penal: onde Louk Hulsman e Alessandro Baratta se encontram. Homenagem a Louk Hulsman. Revan: Rio de Janeiro, 2013.

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Stubbs (2007, p. 171) acentua bem a inadequação que as teorias do de-lito no controle penal moderno apresentam diante das especificidades dos casos de violência doméstica.

Theorizing crime primarily as conflict between individuals fails to engage with questions of structural disadvantage and with raced, classed and gendered pat-terns of crime. In addition, an adequate theoretical understanding of domestic violence should recognize that domestic violence tipically involves the exercise of power and control, is commonly recurrent, may escalate over time, may have a impact on a number of people beyond the primary targe, including children, other family members and supporters of the victim and that its impact contributes to the subordination of women. (Ptacek, 1999; Coker, 2002; Herman, 2005)

A complexa situação de violência doméstica na qual pode se encontrar uma mulher envolve representações de laços de afetividade, poder, medo e assimetrias, para a qual pouco pode servir a encenação jurídica do processo em seus moldes tradicionais do direito penal moderno17.

2.1.1 O debate criminológico sobre os limites e as contradições do controle penal

No campo da Criminologia Crítica18, muito já se produziu no sentido de aprofundar a partir das teorias críticas a compreensão das condicionantes estruturais do funcionamento do controle penal. As críticas ao cárcere como local por excelência de violação de direitos, a demonstração da distribuição desigual e seletiva da punição, e os efeitos de exclusão promovidos pelo pro-cesso criminalizador tomado a partir de sua constituição política moderna são características apontadas como estruturantes do controle penal.

A entrada do debate feminista no campo criminológico acentuou es-pecialmente o caráter seletivo do controle no que se refere à reprodução da

17 Sobre a falta de estrutura do direito penal em relação aos complexos casos da violência doméstica que envolvem estes aspectos emocionais, ver a pesquisa de CELMER, Elisa Girotti et al. Sistema penal e relações de gênero: violência e conflitualidade nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na cidade do Rio Grande (RS/Brasil). In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (Org.). Relações de gênero e sistema penal: violência e conflitualidade nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.

18 Um dos textos que condensam o percurso de construção da Criminologia Crítica é: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, Instituto Carioca de Criminologia, 1999.

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estrutura de poder patriarcal. Embora a perspectiva feminista ainda não te-nha produzido o giro epistemológico que demanda à crítica criminológica (Campos, 2013), a perspectiva de gênero do direito (Smart, 1994) e a dupla vitimização das mulheres vítimas de situações de violência física ou sexu-al estão entre os principais apontamentos desde uma perspectiva feminista (Andrade, 2005; Larrauri, 1992).

Seguindo essas críticas acumuladas pelas investigações criminológicas tendemos a supor que o que vê a mulher quando o direito as olha é a redu-plicação de seu lugar desigual de poder na sociedade, de forma a dificultar que o seu encontro com o direito nas situações de violência seja capaz de ocasionar uma fissura e um deslocamento em sua subjetividade, mesmo que contingencialmente.

As críticas criminológicas encaminham o debate a respeito da violência doméstica contra a mulher a um impasse, na medida em que inviabilizam a discussão sobre as dimensões da intervenção do direito, especialmente em sua versão processual penal, na intervenção do conflito.

Embora o fenômeno do funcionamento seletivo e patriarcal do controle penal seja certo, o direito como campo de disputa, e tomado para além de um mero “instrumentalismo, [...] como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos dominantes” (Bourdieu, 2007, p. 209), deve ser entendido em seu movimen-to, em suas práticas, em sua relativa autonomia, bem como em seus efeitos performativos19 (Bourdieu, 2007, p. 211).

19 Bourdieu ressalta a importância em não se recair, com o reconhecimento do poder simbólico do enunciado do direito, em um nominalismo radical. O enunciado só é capaz de produzir efeitos no “mundo social com a condição de se não esquecer que ele é feito por este” (2007, p. 237). E nesse sentido ele segue afirmando: “Não é menos verdade que a vontade de transformar o mundo transformando as palavras para o nomear, ao produzir novas categorías de percepção e de apreciação e ao impor uma nova visão das divisões e das distribuições, só tem probabilidades de éxito se as profecías, evocações criadoras, forem também, pelo menos em parte, previsões bem fundamentadas, descrições antecipadas: elas só fazem advir aquilo que anunciam, novas práticas, novos costumes e, sobretudo, novos grupos, porque elas anunciam aquilo que está em vias de advir, o que se anuncia; elas são mais oficiais do registro civil do que parteiras da história” (2007, p. 239). Aqui se pode encontrar a chave para compreender o jogo estéril entre aqueles que negam qualquer efeito ao direito em virtude de uma recusa em compreender a autonomía relativa do direito em relação ao campo do social e do político, como algumas das tendências das teorias críticas estruturalistas do direito tendem a fazer; e aqueles que apostam no direito como poder de nomear e transformar o mundo sem levar em conta os limites claros de sua autonomia e “o conjunto das relações objetivas entre o campo jurídico [...] e o campo do poder e, por meio

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Tendo o direito nessa perspectiva como campo de disputa e como po-tencialidade de um “suporte do ver” ressituo o debate sobre as possibilida-des de intervenção do direito nos casos de violência doméstica.

3 A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS: A AGENDA FEMINISTA DA IGUALDADE E AS ESTRATÉGIAS DE INVISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

O processo de expansão do direito em relação aos conflitos de violência doméstica é parte de uma transformação corrente a partir da década de 1990 em que o direito interveio, junto às instituições judiciais, em esferas das rela-ções sociais a partir de reivindicação de pautas de igualdade, como é o caso, além da violência doméstica, também da regulação das relações entre pais e filhos (Rifiotis, 2012).

Mas é preciso acentuar que o que havia antes desse recente processo no campo do espaço doméstico não era a ausência de regulação. As regulações existiam, mas no sentido de referendar as relações desiguais de dominação, garantindo o poder adulto e masculino no espaço doméstico. A partir do pro-cesso de judicialização inserido por meio das agendas igualitárias do mode-lo político do Estado Democrático, a intervenção do direito é chamada para deslegitimar as relações desiguais. Não se trata de qualquer expansão do di-reito, mas de uma expansão pautada sob as demandas políticas de igualdade (Machado, 2011).

Durante o processo de judicialização que se iniciou com a criação dos Juizados Especiais Criminais, os movimentos feministas questionaram o modo como as violências contra a mulher estava sendo tratadas (Campos, 2011; Machado, 2013). Os Juizados aumentaram o atendimento de uma de-manda represada, mas deram sequência a uma lógica de invisibilidade da violência, utilizando-se de estratégias de solução de conflitos despenalizan-tes, sob uma ótica privatista e familista, para devolver os conflitos ao seu espaço doméstico sob a lei patriarcal. O que confirmavam as expectativas apresentadas pelas teorias críticas do controle penal que denunciavam a in-capacidade do sistema penal em produzir afirmação e reconhecimento de direitos das mulheres.

dele, o campo social no seu conjunto” (2007, p. 241). Baratta leva em conta essa perspectiva do direito ao reconhecer a possibilidade de um uso “adequado” do direito como forma de promover “ação civil e política para a defesa e reafirmação dos direitos humanos” (Baratta, 1987).

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3.1 As estratégias de invisibilidade da violência doméstica

Parte dos movimentos feministas identificaram, no uso de medidas despenalizadoras e alternativas, uma das fortes razões da banalização e da invisibilidade da violência doméstica contra a mulher nos processos de com-petência dos Juizados Especiais Criminais (Machado, 2013, p. 188-119).

Sustento, todavia, que a pista para a compreensão do mecanismo de invisibilidade da violência doméstica produzido pelas agências do sistema de justiça pode ser encontrada anteriormente, na atuação de promotores e juízes nos casos apurados pelas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), momento em que as medidas despenalizadoras não eram repertório do processo punitivo. Os valores familistas e a invisibilidade de um amplo espectro de vítimas de violência atravessam o processo de judi-cialização da violência doméstica e parecem ser um centro da banalização da violência no sistema de justiça20.

Sérgio Carrara e colaboradores (2002) analisaram o fundamento dos arquivamentos e das absolvições relativas ao espectro de casos de violência doméstica entre os anos de 1991 e 1995 apurados pelas DEAMs (Delegacias Especializadas de Antendimento às Mulheres) no Rio de Janeiro, antes da instituição dos Juizados Especiais Criminais e seus procedimentos21.

Ao analisar os discursos de promotores e juízes trazidos e exemplifica-dos pela pesquisa de Carrara, observo que, se retirados de seu contexto, bem pareceriam palavras escritas em algum livro abolicionista ou de uma verten-te garantista da dogmática penal.

Vejamos as frases “soltas” do texto:

20 Em pesquisa recente, Pasinato (2015) faz uma avaliação abrangente das limitações da aplicação da Lei Maria da Penha e aponta a baixa qualificação dos profissionais que atuam ao longo do processo no que toca ao conhecimento sobre as especificidades da violência de gênero.

21 Dos 122 casos escolhidos para serem analisados, 61,5% deles foram encaminhados às varas criminais com pedido de arquivamento, dos quais apenas 28% envolviam retratação da vítima. Nos demais, o pedido foi promovido pela promotoria a partir de suas próprias razões, contando em alguns deles com a manifestação do interesse da vítima em pedir o arquivamento (CARRARA, Sérgio; VIANNA, Adriana; ENNE, Anna Lúcia. Crimes de bagatela: a violência contra a mulher na justiça do Rio de Janeiro. In: CORRÊA, Mariza (Org.). Gênero & Cidadania, Campinas: Pagú/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002. p. 71-111).

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A persecução [sic] penal no caso em tela seria muito mais perturbadora das relações sociais do que restauradora da ordem jurídica arranhada (Proc. 95001019023-9). (Carrara, 2002, p. 85)

Não sendo, destarte, a persecução penal, que tornará a convivência mais amistosa, ao contrário, a insistência na persecução reforçará a situação de animosidade, que tende a ser superada (Proc. 94001095026-8). (Carrara, 2002, p. 85)

Ainda que os fatos viessem a ser devidamente esclarecidos, mover a má-quina judiciária nestas hipóteses é contribuir ainda mais para o agrava-mento da morosidade na prestação da tutela jurisdicional em casos mais sérios (Proc. 95001019018-5).

Ela [a vítima] que deve determinar o destino de sua vida, não cabendo ao Estado dizer e normatizar os sentimentos das pessoas, pois nessa questão cada um deve ser o único dono dos seus sentimentos, até mesmo quando esses sentimentos possam parecer manifestação de sadomasoquismo. O Direito Penal não tem poder, nem eficácia para tratar ou orientar a for-ma como as pessoas preferem viver (Proc. 92001126502-2). (Carrara, 2002, p. 95)

Se tomadas, entretanto, essas “frases soltas” em seus contextos discur-sivos, é possível observar o que funda e determina o posicionamento dos ato-res jurídicos em relação às acusações de violência contra a mulher: eles estão atravessados pelos valores privatistas, familistas e patriarcais. A solução de conflito que eles perseguem e que eles entendem incabível pela via penal é a “harmonia e a restauração da família”. Cada violência é entendida como uma violência específica, própria da dinâmica particular “da vida privada” de cada família.

É o caso de uma apropriação retórica22 das críticas abolicionistas e crí-ticas ao controle penal, usadas de modo invertido para atender às funções conservadoras de manutenção das relações assimétricas de poder.

Um dos principais argumentos que fundamenta os pedidos de arqui-vamento e as absolvições e produz a invisibilidade da violência doméstica trata o controle penal como inapropriado para a solução daqueles conflitos entendidos sob a perspectiva familista, na qual as situações de violência es-

22 Considero que esse pode ser o padrão tendencial dos juristas, realizando o que Alessandro Baratta chama de “tradução conservadora dos juristas”. Sobre esse modo de produção de saber entre os juristas no Brasil, cf. PRANDO, Camila Cardoso de Mello. O saber dos juristas e o controle penal. Revan: Rio de Janeiro, 2013.

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pecíficas fazem parte das dinâmicas da vida privada de cada casal. Com isto se recusa o uso do procedimento estatal penal para o enfrentamento da situ-ação, entendida como um caso específico de um contexto familiar e privado que deve ser solucionado internamente em prol da “harmonia familiar”.

A esses argumentos Carrara responde em seu estudo com a defesa do uso de um direito penal fundado a partir de suas funções declaradas de pre-venção geral positiva e negativa da pena (Baratta, 1999), associando a pers-pectiva do crime e da pena, de acordo com a racionalidade penal moderna.

Formalmente do ponto de vista do ideário individualista moderno, base do direito penal, qualquer indivíduo que fira os direitos de qualquer outro deve ser punido por uma dupla razão: primeiramente, para que o dano seja reparado e a justiça restaurada; em segundo lugar, para coibir a ocorrência de atos semelhantes. Do ponto de vista do ideário feminista, tributário do ideário individualista moderno, como já observaram alguns autores, um homem que agride uma mulher (sendo ou não sua esposa), querendo ou não a vítima, deve ser punido para que se restaurem os valores jurídicos ultrajados e para que isso não ocorra a outras mulheres, ou seja, para que a sociedade saiba (ou se lembre) que não se agride uma mulher impunemen-te. (Carrara, 2002, p. 104-105)

A estratégia de enfrentamento à invisibilidade da violência doméstica proposta por Carrara também foi a adotada por parte dos movimentos fe-ministas ao longo de suas avaliações sobre o processo de judicialização da violência doméstica, e resultaram na produção normativa da Lei Maria da Penha, em vigência desde 2006. O enfrentamento da invisibilidade provo-cada pelo modo como se usavam os argumentos abolicionistas e os institu-tos conciliatórios pautados sob a ótica familista – já nos Juizados Especiais Criminais – se deu por meio da interdição de institutos despenalizantes e de alguns recursos alternativos ao modo de gestão de conflitos do processo penal moderno23.

23 Carmen Hein afirma esse momento histórico na produção da Lei Maria da Penha. Cf. CAMPOS, Carmen Hein. Razão e Sensibilidade. Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha. In: Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 1-12. Mas com isso não se desconhece que a lei também trouxe em seu texto uma abertura muito maior do que aquela proposta por setores do movimento que buscavam prioritariamente um reconhecimento punitivo do Estado às agressões ocorridas no ambiente doméstico em decorrência da assimetria de poder decorrente da estrutura patriarcal. A Lei, preponderantemente processual, embora tenha nominado e reconhecido dispositivos legais específicos acrescentados ao Código Penal, relativos às formas de violência contra mulher, e tenha vetado a utilização de alguns instrumentos

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A provocação contida nesse ensaio a partir do acompanhamento da trajetória de Pilar e da abertura a novos questionamentos me levam, no en-tanto, a problematizar esse lugar no qual persiste parte das demandas dos movimentos feministas. A busca de Pilar por reconhecimento de seu lugar de vítima de um ato de violência não encontrou repercussão na escuta do agente do controle penal.

Proponho compreender essa incapacidade de escuta para além das po-larizações entre medidas penais e despenalizantes.

3.1.1 A polarização entre o campo penal e não penal

Teoricamente, é falsa a polarização entre uso ou não de recursos penais como condicionantes da eficácia no processo de reconhecimento e realização de direitos das mulheres nos casos de violência doméstica. O debate em torno de vias abolicionistas ou punitivistas em termos de modelos abstratos de ges-tão de conflitos se torna estéril na medida em que não enfrenta empiricamen-te quais são as estratégias de invisibilidade promovidas pela judicialização dessas demandas.

Tome-se como exemplo a polarização em torno do instituto da suspen-são condicional do processo. Historicamente, ele foi utilizado nos Juizados Especiais para invisibilizar e desvalorar as relações de violência contra a mu-lher. As questões não abordadas, entretanto, são as perspectivas de valor que atravessaram a aplicação desse instrumento normativo pautadas sob uma perspectiva familista24.

Dessa leitura, algumas feministas negam qualquer possibilidade de utilização não tradicional do direito penal em seu aspecto retributivo e re-

processuais penais conciliatórios, buscou construir uma judicialização singular sob a perspectiva feminista. Dispositivos jurídicos foram criados para assegurar a garantia ao direito à vida e liberdade das pessoas em situação de violência, como as medidas integradas de prevenção e as medidas protetivas penais e não penais, bem como a atuação de equipes multidisciplinares integradas ao Judiciário.

24 Para uma discussão não polarizada sobre o instituto da suspensão condicional do processo, cf. COSTA, Bruna Santos. Mulheres, violência e direito: a suspensão condicional do processo e a Lei Maria da Penha. 2014. Monografia (Bacharelado em Direito) – Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, 2014.

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pressivo, considerando que qualquer outra medida seria uma forma de legi-timação da desigualdade25.

Eis que aí há uma junção equivocada e essencializante entre os ins-trumentos despenalizadores e os valores familistas. Se é verdade que nas práticas judiciais eles parecem estar convenientemente entrelaçados, isso não essencializa os instrumentos não punitivos de intervenção nas relações de violência. É possível, na medida em que não estão ontologicamente vincu-lados, que instrumentos despenalizantes possam ser disputados e pautados por valores de perspectiva feminista.

O ponto a ser investigado são as estratégias de invisibilidade das vio-lências contra a mulher e uma disputa concreta com essas estratégias. Isso serve para evitar a confusão que se tem feito em tomar o instrumento (des-penalizante) pelo valor, e para construir estratégias mais eficazes para a in-terrupção das situações de violência, o reconhecimento das demandas e a responsabilização individual.

Politicamente, a polarização em torno do uso ou não do campo penal comporta também um dilema ético. Se a demanda de institucionalidade e reconhecimento da desigualdade é legítima, a sua legitimidade só se sustenta integralmente se a essa pauta estiver agregada uma perspectiva de apropria-ção diferencial do campo do proibido. Não tem sustentação ética um mo-vimento organizado em torno da garantia de direitos humanos iguais, que utilize, sem mais, os padrões tradicionais de punição oferecidos pelo direito penal, como é o caso do recurso aos campos de concentração brasileiros que são as prisões.

Nesse sentido, a partir do reconhecimento dos limites e dos altos custos do uso da via criminalizadora como referência de concretização das pautas dos direitos humanos é importante apostar nas experiências e novas práti-cas de medidas judicializáveis, tendo como norte o laboratório cotidiano das demandas já existentes e da forma como elas são apropriadas pelos sujeitos envolvidos.

Trata-se de indagar quais formas jurídicas e possibilidades de inter-venção podem ser exploradas para que o direito sirva como um suporte do ver, no qual as mulheres possam olhar e ser olhadas de modo a serem reco-

25 Esse é o caso em torno da disputa pela aplicação da suspensão condicional do processo, que encontrou eco em decisão do STF impedindo o uso do instituto nos casos de violência doméstica (STF, ADC 19).

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nhecidas em seu lugar de vítimas – em seu amplo espectro – de violências. E, em consequência ao reconhecimento das assimetrias, elas tenham a chance de encontrar, também no direito, um lugar – mesmo que contingente – de ressignificação e mudança em seu lugar no mundo26.

3.2 Da superação da polarização entre respostas punitivas e não punitivas às escutas possíveis das vítimas de violência

No processo de compreensão do direito como potencial “suporte do ver”, e já incorporada a chave de leitura da judicialização para além das es-tratégias punitivas tradicionais oferecidas pelo direito penal, a trajetória de Pilar também nos convoca a pensar as mulheres no plural, o que significa, no processo de tradução do laboratório do direito (Baratta, 1998), enfrentar a uniformização da ideia de vítima no processo penal.

Pilar construiu ativamente o seu olhar sobre o seu lugar naquela rela-ção e, por meio de “suportes do ver”, compreendeu alguns de seus enigmas, o que a liberou para estar de outros modos no mundo. Pilar não era a per-sonagem capaz de se subscrever ao sentido de vítima como aquela que não tem autonomia e está inteiramente subjugada ao poder masculino ou como aquela que está livre de qualquer constrição e se mantém em uma relação de violência por seu livre-arbítrio – para usarmos uma categoria do direito penal moderno.

O seu lugar ativo na construção de sua história incita a pensar as re-lações de violência constituídas por personagens que estão em movimento e em disputa, embora em reconhecida e nítida relação de desigualdade marca-da pelas regras de poder patriarcais (Machado e Magalhães, 1999). Pilar não é uma vítima no termo jurídico dado ao termo, como integrante de um conflito congelado em partes antagônicas, dentro do qual há poucas possibilidades de representações de vítimas possíveis.

26 Pensar e realizar novas estratégias não pode descurar da atenção a se observar na segurança das mulheres e eventualmente das crianças envolvidas. Nesse sentido, acompanho Stubbs, que, ao tratar dos recursos da justiça restaurativa nos casos de violência doméstica, afirma: “There need to be clear lines of responsibility and accountability and sufficient resources to ensure adequate safety planning, follow-up and commitment to the longer-term well-being of the victim and children. This does not dictate punitive responses but it may require recognition of the need for coercive back-up (Braithwaite and Strang, 2002; Coker, 2002; Daly, 2002a; Hudson, 20022)” (STUBBS, Julie. Beyond apology? Domestic violence and critical questions for restorative justice. Criminology and Criminal Justice, v. 7 (2), p. 181, 2007).

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No espectro das vítimas possíveis, é provável que não só o congelamento de um ideal de vítima subjugada ao poder masculino ou da vítima possui-dora do livre-arbítrio opere como tradução do direito, mas também que as marcas patriarcais atravessadas pelas assimetrias de classe e raça tenham o seu lugar na invisibilidade de algumas violências contra mulheres.

O não lugar de Pilar talvez explique a incapacidade de escuta do agen-te do Estado que a recebe e não pode perceber de que se trata a sua dor. A sua vitimização diante de um ato específico de violência de Antonio só pode ser escutada se compreendida dentro de uma complexa situação de violência dentro dos marcos de poder patriarcais que atravessam as questões de clas-se e raça27. A complexidade e as singularidades com que os procedimentos tradicionais do direito e a teoria do delito do direito penal têm se mostrado incapazes de incorporar e que, mais, tendem à reprodução dos mesmos mar-cos de poder que vitimizam as mulheres (Andrade, 2005).

As singularidades, desde que não apropriadas sob a ótica familista en-quanto estratégia de invisibilidade, comportam a potência de escutar as mu-lheres também a partir de sua capacidade de agência28 – entendida desde as suas constrições materiais e culturais –, e de seu espectro de subordinações e expressões, sem as atirarem ao lugar estático e uniformizador da vítima do processo penal.

27 Sandra Harding, ao discutir as possibilidades das teorias feministas, ressaltava a impossibilidade de se falar na mulher universal como matéria do conhecimento, uma vez que as experiências que pautam esse conhecimento não podem se restringir aquelas das mulheres brancas, heterossexuais, burguesas e ocidentais (Harding, 1993). Também os discursos e práticas relativos à violência doméstica devem abrir-se a entender as mulheres para além de uma categoria universal.

28 Rifiotis desenvolve uma crítica à incorporação das demandas de direitos humanos no léxico do direito, ao entender que ela se dá por meio das perspectivas de vulnerabilidade e vitimização, sem levar em consideração a capacidade de agência das pessoas envolvidas no conflito. A sua leitura é interessante, mas não entendo como totalmente adequada à questão relativa à violência doméstica, vez que uma das estratégias de invisibilidade na apropriação e produção do direito passa pela negação do lugar de vítima para a mulher (Cf. RIFIOTIS, Theophilos. Judicialização das relações sociais e a política de atenção aos idosos. 36 Encontro Anual da ANPOCS, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=8317&Itemid=217>. Acesso em: 6 jun. 2014).

No contexto da violência doméstica, nem todas as mulheres representam vítimas “possíveis”. O argumento do “cada caso é um caso” e a utilização da perspectiva da singularidade do conflito, atravessada por valores familistas, tem sido ainda apontado como um dos fatores de não reconhecimento das demandas das mulheres.

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A potência da escuta – e do direito como suporte do ver – se dá por meio do reconhecimento não apenas dos novos sujeitos, mas das singulari-dades dos conflitos, dos modos como os sujeitos se apropriam e dão sentidos nas suas relações tecidas e mediadas pelo direito e pela institucionalização do Poder Judiciário29. Isso implica compreender a singularidade da violência que atravessa as relações de gênero – em interseccionalidade com as questões raciais e de classe30 –, e também a singularidade dos percursos e das histórias dos sujeitos envolvidos nas disputas e experiências de suas relações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR DIREITOS QUE TAMBÉM SEJAM SUPORTES DO VER

O que as mulheres veem quando o direito as olha? Retomo a pergunta provocada pela obra cinematográfica. O direito corresponde, como técnica e política de intervenção, a uma ordem social e política determinada, e, por-tanto, como ensina Baratta (1998), o que o direito tradicionalmente oferece às mulheres é uma lupa por meio da qual as singularidades dos conflitos deve se transformar em uma trama de lugares estáticos e simplificados que jogam com o papel do agressor e da vítima.

O direito correspondente ao modelo político contratual liberal e ao modelo social estruturado nas relações de desigualdade de gênero, com o seu arsenal técnico de construção de figuras estáticas, mostra-se incapaz de

29 Teorias da justiça e teorias feministas que incorporam questões relativas às opressões de raça ou que problematizam o ser mulher como resultado não do destino de um corpo-sexo, mas de presenças performativas, noticiam o desafio em não se escamotear ou invisibilizar opressões variadas e mulheres em seus sentidos múltiplos diante das demandas por reconhecimento. Nesse sentido a estratégica utilização da “violência contra a mulher” como pauta de direitos humanos universais deve ser revista nos termos acima. Sobre a estratégia da categoria universalizante da “violência contra a mulher” e os seus ganhos positivos em determinado momento histórico de luta, cf. WALBY, Silvia. Feminism in a global area. Economy and Society, v. 31, n. 4, p. 533-557, november 2002. Sobre o “problema do gênero” organizado binariamente e a partir do sexo como dado biológico, cf. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

30 Os debates sobre violência doméstica contra a mulher, embora se utilizem de uma perspectiva feminista, raras vezes incorporam um debate interseccional que inclua as questões relativas à raça e classe, vez que as opressões de gênero atingem as mulheres de modos distintos. Cf. texto seminal CRENSHAW, KIMBERLÉ W. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Chicago Legal Forum, special issue: Feminism in the Law: Theory, Practice and Criticism. University of Chicago, 1989.

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escutar que uma ameaça sofrida por uma mulher em sua relação doméstica e de afeto tem uma repercussão diferente e mais letal do que uma ameaça qualquer realizada em uma esfera de não afetividade. E na ausência da escu-ta e do reconhecimento da mulher que vive uma situação de violência, o que a mulher vê quando o direito a olha possivelmente seja a mesma marca de humilhação e vergonha que ela encontra em suas relações, na medida em que o direito não a vê como sujeito desejante que participa de uma ordem social desigual e letal31.

É com esse direito que a Lei Maria da Penha dialoga nas situações de violência doméstica, que está ancorado no imaginário jurídico formal e liberal de igualdade, sob o qual se ocultam as desigualdades. Novas práticas ado-tadas por alguns Juizados, sem que ainda tenham se tornado referências de políticas judiciais uniformizadas, dão conta da tentativa de uma apropriação não tradicional do campo do direito: como o caso da produção da suspensão condicional informal do processo (Costa, 2013) e os casos de atendimento a homens autores de violência doméstica (Lopes e Leite, 2013).

Os movimentos feministas, pautados por uma agenda de igualdade e democracia, para além da polarização do debate em termos estéreis, podem disputar um espaço em busca de intervenções capazes de, em suas limita-ções e constrições muito visíveis, constituir direitos como “suportes do ver”, capazes de –- em alguma medida –,- provocar nas mulheres uma fissura em sua carne, ressignificar e renomear o seu medo por meio de algum reconhe-cimento.

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BARATTA, Alessandro. Princípios del derecho penal minimo. Para una teoría de los derechos humanos como objeto e limite del derecho penal. Doctrina Penal, Argentina: Depalma, 1987.

31 Em publicação recente, duas pesquisadoras espanholas tentaram responder a esse questionamento a respeito do que sentem as mulheres que judicializaram os atos de violência do qual foram vítimas diante do sistema judicial espanhol (CALA, Maria Jesús Carrillo; GARCÍA, María Jiménez. Las experiencias de mujeres que sufren violencia en la pareja y su tránsito por el sistema judicial: ¿qué esperan y qué encuentran? Anales de la Cátedra Francisco Suárez, 48 (2014), 81-105).

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O CONTROLE PENAL DA CORRUPÇÃO E O MODELO ORGANIZACIONAL DO MINISTÉRIO

PÚBLICO: CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E FRAGMENTOS DO DEBATE CONTEMPORâNEO

THE PENAL CONTROL OF CORRUPTION AND THE PROSECUTION OFFICE: THE SOCIOPOLITICAL CONTEXT

AND FRAGMENTS OF THE CONTEMPORARY DEBATEbRuno aMaRaL MachaDo

RESUMO: Nos últimos anos, nota-se interesse pelo controle penal de diversas condutas, inclusive aquelas relacionadas à criminali-dade econômica e à corrupção. O interesse pela independência das organizações que participam da divisão do trabalho jurídico-penal é reconstruído quando há uma ressignificação de práticas definidas como socialmente reprováveis ou que afetam o livre mercado e as transações econômicas. O artigo analisa o contexto social e político em que se apresenta o debate atual sobre os modelos organizacio-nais idealizados para o Ministério Público. Ao descrever os argu-mentos favoráveis e contrários à independência da organização res-ponsável pela persecução penal, o leitor é convidado a refletir sobre os limites, os interesses e as contradições da persecução penal da corrupção política.

PALAVRAS-CHAVE: Controle penal; corrupção; Ministério Públi-co; independência.

ABSTRACT: There is a growing interest for the penal control of economic crimes and corruption. The independence concern for the organizations that participate in the division of the penal labor has a new meaning as those practices affect the free market and the

* Professor da Graduação e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito do Uniceub, Doutor em Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona, Pós-Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília, Promotor de Justiça em Brasília.

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economic transactions. This article analyses the social and political context of the debate about the model of the prosecution office. The pro and cons debate of an independent prosecution office invites the reader to reflect about the limits, interests and contradictions of the prosecution of the political corruption.

KEYWORDS: Penal control; corruption; Prosecution Office; inde-pendence.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O controle penal da corrupção política: o debate sobre a criminalidade dos governantes; 2 Corrupção e acu-sação penal: organização e especialização do Ministério Público; 3 Fragmentos do debate sobre a (in)dependência do Ministério Público; 3.1 Legitimidade de um Ministério Público independente e responsabilidade; 3.2 Controle penal dos crimes do governo: o interminável debate sobre a independência do Ministério Público; 4 O modelo brasileiro: atuação, limites e propostas; Conclusões; Re-ferências.

INTRODUÇÃO

A função do direito tornou-se objeto de crescente interesse, na esteira de forte influência do funcionalismo nas disciplinas jurídicas (Bergalli, 1996). O direito penal é seguramente o campo onde essa influência se revela mais evidente. O conceito de controle social acabou vulgarizado nas disciplinas penais, perdendo-se a concepção original em que havia sido concebido na Escola de Chicago, razão pela qual parece mais apropriado que essa suposta função do direito penal seja redefinida como controle penal (Melossi, 1992; Bergalli, 1996; Bergalli e Sumner, 1997; Machado, 2004).

A preocupação sobre causas, efeitos e formas de controle da corrup-ção passou a fazer parte da agenda política, sendo a solução punitiva uma das medidas recomendadas (Santos, 2002, p. 154; Andrés-Ibáñez, 1997, p. 225-226; Lascoumes, 2000, p. 99-116; Elliot, 2002b, p. 304-308; Gardiner e Lyman, 1993, p. 833). Neste contexto, aumenta o interesse sobre o funciona-mento das organizações que integram o sistema de justiça e aparecem várias propostas sobre o modelo ideal para implementar as formas de controle da corrupção (Alberti, 1996; Speck, 2000, p. 34-35; Rodríguez García, 2000).

Recentemente, o caso “Lava Jato” trouxe à tona complexa trama de corrupção sem precedentes no Brasil. Há constante repercussão nos meios de comunicação de massa e o foco dirige-se à atuação do sistema de justiça. De um lado, o juiz titular da Vara Criminal de Curitiba foi alçado à condição de personagem fundamental nas primeiras fases da investigação. Por outro lado, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal também ganharam no-

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toriedade (MPF combate à corrupção – Caso Lava Jato, 2015). De outro ângu-lo, no transcorrer das investigações surgiram divergências e conflitos entre procuradores e delegados da Polícia Federal em relação à condução das di-ligências quanto aos investigados com foro privilegiado perante o Supremo Tribunal Federal1.

O caso coincidiu com a realização da pesquisa que coordenamos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – ESMPU: “A investigação e a per-secução penal dos delitos econômicos e da corrupção na justiça federal”. A partir de diferentes técnicas de pesquisa – quantitativas e qualitativas –, foi possível mapear a atuação das instituições envolvidas com a investigação e persecução penal da corrupção no âmbito federal. O trabalho de campo su-gere múltiplas possibilidades de análise sobre as condições em que se exerce o controle penal da corrupção no Brasil (Machado, Costa e Zackseski, 2015)2.

Entre as diferentes questões suscitadas, especialmente na fase qualita-tiva, realizada por meio de grupos focais e entrevistas em profundidade, os magistrados federais, procuradores da República, delegados da Polícia Fe-deral, peritos e agentes da Polícia Federal mencionam os modelos formais idealizados para as instituições que participam da divisão do trabalho jurídi-co-penal (Machado, 2014; Machado, Costa e Zackseski, 2015). Quando a atua-ção das instituições envolve a corrupção política, a discussão sobre o controle penal necessariamente deve contemplar a autonomia das organizações que desempenham diferentes atividades no exercício do controle punitivo.

O objetivo deste artigo é descrever o debate institucional sobre o con-trole penal da corrupção, particularmente em relação aos modelos organiza-cionais idealizados para o Ministério Público (MP) e sua (in)dependência em relação ao poder político3. A proposta é mapear a diversidade dos argumen-tos em relação ao controle penal da corrupção e sugerir reflexões sobre outras variáveis que devem ser objeto de futura análise. Indaga-se, assim, como a literatura aborda o modelo de Ministério Público no debate sobre as formas

1 Conferir: <http://oglobo.globo.com/brasil/delegado-da-lava-jato-critica-posicionamento-de-rodrigo-janot-15904763>.

2 Além de técnicas quantitativas, como a análise estatística e análise do fluxo do sistema de justiça, a pesquisa utilizou-se de técnicas de pesquisa qualitativa, como entrevistas em profundidade e grupos focais.

3 Parte dos argumentos que utilizamos nesta pesquisa foram apresentados em: Machado, 2007a e 2007b. Parte do texto foi substancialmente modificado e atualizado com estudos recentes.

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de controle da corrupção e busca possíveis conexões entre independência das instituições responsáveis pela persecução penal e as estratégias institucionais em relação ao tema. Certamente o foco deve ser expandido para outras or-ganizações que participam da divisão do trabalho jurídico-penal, o que foge dos estreitos limites deste artigo.

1 O CONTROLE PENAL DA CORRUPÇÃO POLÍTICA: O DEBATE SOBRE A CRIMINALIDADE DOS GOVERNANTES

A chamada criminalidade dos governantes4 sugere diversos questiona-mentos sobre a credibilidade de um modelo de MP subordinado ao Executi-vo em razão das suspeitas de que a ação penal possa ser dirigida por determi-nado grupo político para garantir a imunidade de aliados e a persecução de rivais políticos (Díez-Picazo, 2000, p. 23 e ss.). O interesse pelo controle penal da corrupção política redimensionou o debate sobre o sistema de justiça e as suas limitações estruturais para o desempenho desta função.

Inicialmente, os primeiros estudos sobre a corrupção preocuparam--se com as suas diferentes manifestações. A segunda geração de pesquisas pretendeu identificar os riscos para o investimento e os estudos posteriores buscaram os instrumentos para a intervenção e a reforma (Glynn, Kobrin e Naím, 2002, p. 27; Speck, 2000). O aparecimento de escândalos relacionados à corrupção política evidenciou os limites para a atuação do sistema de justiça quando os casos são levados ao campo jurídico. São várias as supostas expli-cações sobre os fatores que permitiram que práticas com pouca visibilidade na política, na justiça ou na mídia passassem a ocupar o foco das atenções. A mudança no panorama internacional, com a queda do muro de Berlim e a posterior superação da tensão ideológica do pós-guerra, desfez os acordos fechados contra o “inimigo comum”. Em determinados casos, as crises polí-ticas colocaram em choque atores políticos com os meios de comunicação e com o Judiciário. Della Porta e Mény sintetizam as razões do “novo” trata-mento dispensado à corrupção: distúrbios no equilíbrio social em razão de políticas de desregulamentação; aparição de “novos ricos” em decorrência da especulação, frequentemente em conluio com políticos; arrogância por parte dos “novos poderosos” em relação aos políticos excluídos por longos períodos do governo (a esquerda “não comunista” na França, Itália, Grécia e Espanha); fortalecimento da imprensa (Della Porta e Mény, 1997, p. 3-4).

4 A criminalidade do governo está relacionada à corrupção política, mas não se limita a este conceito (Díez-Picazo, 2000, p. 23-24).

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De fato, uma das consequências de um Estado de Direito funcional para o mercado é a nova atenção dada ao controle da corrupção (política inclusi-ve). Com a crise do Estado Social de Direito, as práticas corruptas ganham particular ilegitimidade. Os cidadãos têm exigido a reparação por violação dos seus direitos e a punição da “promiscuidade” entre funcionários públi-cos, políticos e empresários (Andrés Ibáñez, 1997, p. 225-226; Santos, 2002, p. 154). A democratização das sociedades contemporâneas explica apenas em parte o marcado interesse pela corrupção. O combate à corrupção é uma das prioridades de elevado número de instituições (inclusive financeiras), que acusam a nocividade dessas práticas para o livre mercado. Por transformar direitos em favores e criar ineficiência e imprevisibilidade na Administração Pública, corrói a confiança no Estado, gerando crises políticas. Ao limitar a competitividade dos mercados, aumenta os custos das decisões de investi-mento, constituindo-se em óbice ao mercado aberto (Johnston, 2002)5.

Sustenta-se que as políticas neoliberais (pós-keynesianas), ao incre-mentarem as privatizações, impulsionaram o clientelismo e a corrupção em vários níveis (Lea, 2002, p. 153). Argumenta o autor britânico, ponto de vista compartilhado por Santos, que a nova forma de Estado, marcada pela cres-cente liberalização dos mercados e pela restrição dos âmbitos ocupados pelo Poder Público, teria criado condições para maior promiscuidade entre o po-der econômico e o poder político. A corrupção seria uma das patologias do Estado mínimo na década de noventa (Santos, 2002, p. 158).

A partir da última década, o conceito de corrupção passou a ser cons-truído de forma diferente. Abandonaram-se as concepções de que se tratava de fato corriqueiro e que favorecia a estabilidade política por meio do cliente-lismo político. Além do movimento interno em cada país, com organizações e atores específicos, como organizações não governamentais (ONGs), jornalis-tas, juízes e membros do MP, no âmbito internacional, grupos e organizações internacionais confluíram em torno do combate à corrupção.

No âmbito americano, por exemplo, a Organização dos Estados Ame-ricanos (OEA) aprovou, em 1996, a Convenção Interamericana contra a cor-rupção, incrementando a cada ano o número de signatários. As organizações voltadas à regulamentação do comércio internacional empenham-se cada vez mais em torno desse objetivo. A Câmara Internacional de Comércio ado-

5 Contudo, o suposto interesse de determinadas empresas na internacionalização do combate à corrupção envolve estratégias que possibilitam o descumprimento da lei por parte de grandes empresas (Glynn, Kobrin e Naím, 2002, p. 45-48).

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tou relatório com normas de conduta para a autorregulamentação empresa-rial e a Organização para Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) adotou recomendação que comprometia os membros a negociar convenção que cri-minalizasse o suborno transnacional. A Organização Mundial do Comércio (OMC) recomendou a realização de estudo para estabelecer regras, a fim de unificar normas que garantissem a transparência nas licitações públicas. O Banco Mundial tornou-se um dos mais importantes atores internacionais no fomento de pesquisas e projetos que visam ao combate à corrupção. A As-sembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) também aprovou resolução em que sugere aos Países-membros a adoção de medidas concre-tas contra a corrupção nas transações internacionais (Elliott, 2002a, p. 18-19; Elliot, 2002b, p. 284-333; Speck, 2000, p. 32 e ss.).

Os enfoques sobre a corrupção transitaram, assim, das abordagens quase anedóticas das explicações culturalistas ao cinismo da corrente fun-cionalista, passando pelas propostas de reforma organizacional. Finalmen-te, consolida-se o enfoque múltiplo que envolve a solução punitiva (sis-tema penal), incorporada a partir da década de oitenta (Lascoumes, 2000, p. 99-116). Com a incorporação do direito penal como mecanismo de contro-le da corrupção, é realimentado o debate sobre o sistema de justiça (Elliott, 2002b, p. 304-308; Gardiner e Lyman, 1993, p. 833). O controle da corrupção política por meio do sistema penal é implementado mediante a institucio-nalização de um sistema de justiça de fato independente do governo, razão pela qual a posição institucional do órgão responsável pela acusação penal recebe especial relevo (Speck, 2000, p. 34-35). Contudo, ainda são escassos os dados empíricos sobre a atuação do sistema de justiça em casos de corrupção (Speck, 2000, p. 40).

Referindo-se especificamente à corrupção, argumenta-se que a inefi-cácia do sistema penal tende a fortalecer o discurso em prol de um maior protagonismo do MP. Com esse objetivo, criou-se na Espanha a Promotoria Anticorrupção, primeiro país a instituir autoridades especializadas na luta contra a criminalidade econômica e a corrupção (Rodrigues García, 2000). A delegação ao MP de funções anticorrupção é vista, contudo, com ceticismo por parte dos especialistas. Johnston critica a delegação ao MP de funções específicas de combate à corrupção, vez que competiria com outras práticas delituosas por uma posição prioritária. As ações dos membros da organiza-ção dependem de ambições pessoais, e não do problema em si, e ainda que a investigação seja bem-sucedida, apenas de forma indireta a prevenção é implementada por prisões e condenações por práticas corruptas (Johnston, 1999, p. 218).

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A ineficácia do sistema de justiça para atuar contra a corrupção é objeto de interesse em pesquisas recentes. Em análise empírica que contempla as esferas cível, administrativa e criminal no Brasil, evidenciou-se a ineficácia do sistema de justiça (Alencar e Gico Jr., 2011). A insatisfação com a atuação do sistema de justiça nos casos de corrupção gera debate e críticas. A Lei nº 12.846/2013, Lei Anticorrupção, foi instituída como mecanismo de con-trole diferenciado à corrupção. O foco seria fundamentalmente as empresas e as punições administrativas. Não há, contudo, consenso sobre a natureza estritamente administrativa do novo diploma legal. Argumenta-se que, apa-rentemente, instituiu-se modelo em que o controle penal não foi afastado e que as sanções esconderiam indisfarçável caráter penal (Bottini, 2015).

2 CORRUPÇÃO E ACUSAÇÃO PENAL: ORGANIZAÇÃO E ESPECIALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A preocupação pela independência do MP não é tema recente no conti-nente europeu. Atualmente, o debate também está relacionado aos chamados crimes do “governo”, em especial à corrupção política (Díez-Picazo, 2000). Em alguns contextos convergem os interesses de parte do campo jurídico--acadêmico com determinadas propostas políticas, normalmente ligadas a interesses que transcendem o Estado.

Parte da literatura sugere que a discricionariedade para o exercício da ação penal e a dependência do MP em relação ao Poder Executivo re-presentam obstáculo para a persecução eficiente dos delitos praticados por integrantes do governo (Díez-Picazo, 2000, p. 14-26)6. Sustenta-se que a preo-cupação suscitada pelo modelo institucional de MP se fundamenta em duas ideias básicas. A primeira vincula-se à configuração interna da instituição e a sua forma de inserção no Estado. A segunda, relacionada ao protagonismo dos tribunais nas sociedades contemporâneas e à preocupação com a cor-rupção política, refere-se à constatação de que, na maioria dos países, a Ad-ministração Pública não é um espaço livre da delinquência. Assim, sustenta--se que deveria ser repensado o processo penal, dotando o MP de condições para atuar com independência e eficácia contra a “delinquência no interior do Estado”. O controle punitivo da corrupção é, assim, indissociável de um

6 Não obstante, a discussão sobre a independência do Ministério Público acaba se divorciando de sua formulação inicial, transformando-se em instrumento para a defesa de direitos corporativos, como a equiparação aos magistrados, sobretudo para efeitos remuneratórios (Díez-Picazo, 2000, p. 14-26).

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modelo institucional que garanta a independência do MP (Andrés Ibáñez, 1996; Andrés Ibáñez, 1997).

Os procedimentos penais na Europa incorporam reformas nos estatu-tos legais e nos poderes atribuídos ao MP. No continente europeu a institui-ção recebe novas prerrogativas, bem como relativa independência do Execu-tivo (Delmás-Marty, 1997, p. 201). As reformas processuais, tendo em vista o objetivo de controle da corrupção, diante da ineficácia do modelo tradicional, têm privilegiado o fortalecimento do MP, criando-se o chamado “juiz de ga-rantias” (Rodrígues García, 2000). Em diversos países democráticos há ten-dência em se reequilibrar a relação entre independência do MP e sujeição ao princípio democrático da responsabilidade em favor de maior distanciamen-to do governo, fato que decorreria da complexidade dos delitos praticados atualmente e da conscientização quanto aos efeitos perversos causados pelo exercício abusivo da ação penal pelo MP.

Assim, a instituição passou a ser objeto de atenção internacional e rece-beu tratamento especial nos congressos das Nações Unidas sobre a prevenção dos delitos e o tratamento de criminosos. A partir desses congressos foram aprovadas diversas resoluções prescrevendo níveis elevados de formação profissional, sistema de promoções fundado em fatores objetivos, total sepa-ração entre as funções do MP e as do juiz, bem como estabelecimento de polí-ticas institucionais para minorar o seu poder discricionário, incentivando-se a cooperação com a Polícia (Di Federico, 1998, p. 72-75). A preocupação com um modelo de MP adaptado à criminalidade complexa e ao sistema proces-sual mais avançado complementa-se com a definição de áreas prioritárias. No VIII Congresso realizado em Havana (Cuba), foram estabelecidas diretri-zes a serem seguidas pelos integrantes do MP, merecendo especial atenção a atuação do órgão no “combate” à corrupção7.

A preocupação das Nações Unidas com os efeitos da corrupção levou à aprovação, no dia 31 de outubro de 2003, pela Assembleia-Geral das Na-ções Unidas, da Convenção contra a corrupção (Mérida, 9-11 de dezembro). Recomenda-se, especialmente, o incremento da cooperação internacional e a implementação de normas restritivas às práticas corruptas. Na medida em que o MP assume a função de órgão especializado nessa tarefa, uma conse-

7 Conferir o VIII Congresso realizado em Havana. Entre as diretrizes a serem seguidas pelos membros do MP, destaco a 15ª, relacionada à corrupção (Directrices..., disponível em: <http://www.unhchr.ch/spanish/html/menu3/b/h_comp45_sp.htm>. Acesso em: 10 nov. 2003).

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quência importante é a necessária independência de seus integrantes para poderem atuar (art. 36 da Convenção).

A criação do chamado “MP europeu independente”, em razão da ne-cessidade de se criar sistema mais eficiente de combate às fraudes financeiras em prejuízo da Comunidade Europeia, insere-se entre as tendências de re-forma do sistema de justiça impulsionadas pela globalização dos mercados (Vervaele, 2002). Entre os parâmetros para a atuação do promotor de justiça europeu, uma das recomendações da Comissão que idealizou o novo agen-te do sistema de justiça é a garantia de independência (Queralt, 1999, p. 2).

Assim:O Procurador será escolhido entre uma série de personalidades que

ofereçam todas as garantias de independência e que reúnam todas as con-dições necessárias para o exercício, nos países respectivos, das mais altas funções jurisdicionais. No cumprimento de suas obrigações, o Procurador não solicitará ou aceitará qualquer instrução. (Comissão das Comunidades Europeias, 11 dez. 2001)

O status do procurador seria justificável pela condição do MP europeu como órgão judiciário especializado, devendo a sua independência ser ga-rantida tanto em relação às partes quanto em relação aos Estados-membros e as suas instituições. Segundo o texto, o MP europeu deve exercer as suas funções de forma imparcial, orientando-se unicamente pelo respeito ao prin-cípio da legalidade.

A Comissão propôs a nomeação do procurador pelo Conselho Euro-peu, por deliberação de maioria qualificada, sob proposta da Comissão e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pelo prazo, não renovável, de seis anos. A ideia foi instituir mandato que ultrapassasse o período de uma legislatura do Parlamento Europeu ou o mandato da Comissão, o que, associado à impossibilidade de renovação do mandato, reforçaria ainda mais a independência do procurador europeu. A sua destituição apenas poderia ocorrer por decisão do Tribunal de Justiça, jurisdição ao nível comunitário, a pedido do Parlamento, do Conselho ou da Comissão, no caso de deixar de preencher as condições para o exercício das funções ou em caso de falta grave8.

8 Foi proposta a organização hierárquica do Procurador Europeu, o qual teria a seu cargo a direção e a coordenação das investigações e da ação penal relativas às infrações no âmbito de suas atribuições. A Comissão propôs a organização desconcentrada, o que implicaria a atuação nos Estados-membros a partir dos procuradores europeus delegados, ensejando-se a coordenação entre as disposições comunitárias e os sistemas judiciais nacionais.

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Ainda no contexto europeu, o Conselho europeu, por meio de seu Co-mitê de Ministros (Recomendação nº 2000/19), recomenda a governos e Esta-dos-membros que sejam obedecidos os princípios enunciados no documento sobre o MP. Nas relações entre o MP e os Poderes Executivo e Legislativo, há especial atenção quando o MP depende diretamente do governo, velando--se pela transparência na relação com o poder político e pela obediência ao direito interno e aos tratados internacionais. Outros textos internacionais rei-teram a necessidade de se conferir ao MP independência para atuação. Nesse sentido, o art. 42 da Convenção de Roma (17 jul. 1998), que institui o Tribunal Criminal Internacional, dispõe que o promotor de justiça não deve solicitar ou receber instruções externas (Bruti Liberati, 2000, p. 119).

Com a proliferação de organizações internacionais voltadas à luta con-tra a corrupção, surgem outros elementos importantes no debate sobre o mo-delo ideal de justiça para lidar com essa modalidade de delito. As avaliações realizadas pelo Grupo de Estados contra a Corrupção (Greco) enfatizam a ne-cessidade de se criarem órgãos especializados no tema, dotados de estrutura material e humana. Outro aspecto mencionado constantemente é a necessi-dade de se garantir mais independência às agências anticorrupção e ao siste-ma de justiça. A persecução da corrupção e dos delitos conexos faz-se a partir de um órgão de persecução penal dotado de suficiente autonomia para atuar também contra a corrupção política9. A preocupação em relação à eficácia das medidas penais contra as novas formas de criminalidade, surgidas no novo contexto geopolítico, levou o Conselho Europeu a emitir a Recomendação nº R (96) 8. A criminalidade econômica organizada merece atenção especial. Um tratamento eficaz das transações comerciais complexas que dissimulam a criminalidade econômica e a formação de agentes especializados constitui--se em parte das estratégias a serem adotadas (Recommandation nº R (96) 8). Nos últimos anos, a preocupação das instituições europeias em relação ao

9 Conferir os relatórios das avaliações já realizadas até o momento em: <http://www.greco.coe.int/evaluations/Default.htm>. A necessidade de se criarem órgãos especializados anticorrupção, dotados de suficientes recursos humanos e materiais, é uma recomendação comum em grande parte dos relatórios. Sobre a necessidade de se dotar o MP de mecanismos legais que garantam mais autonomia para atuação, conferir os primeiros relatórios de avaliação do Greco nos seguintes Países, entre outros: Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Romênia e Albânia. Conferir relatórios atualizados até 2015: <https://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/index_en.asp>.

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tema, especialmente diante de escândalos políticos, levou a novas avaliações e iniciativas voltadas ao controle da corrupção10.

Responsável pelo fomento de parte das reformas dos sistemas de jus-tiça, o Banco Mundial também tem dedicado especial atenção ao modelo de MP a ser adotado com as reformas dos sistemas de justiça. Diante da necessi-dade de se criarem mecanismos eficientes de combate à corrupção, é ressalta-do o papel desempenhado pelo MP no funcionamento do sistema de justiça, destacando-se a necessidade de tal organização poder atuar com a necessária independência11. Em países onde ocorre a implementação do Estado de Direi-to (especialmente do Leste Europeu e da América Latina), há intenso debate sobre as instituições públicas e o modelo de MP, associando-se este, muitas vezes, à função que deve cumprir no controle penal – traduzido como com-bate – da corrupção12.

Na Europa, entre 2013 e 2014, os últimos escândalos políticos relacio-nados à corrupção na Espanha levaram a novos relatórios do Grupo Greco. Critica-se que o governo espanhol (PP) não implantou as medidas necessárias para o completo esclarecimento e a punição dos diversos casos de corrupção política. Entre as diversas recomendações, enfatiza-se novamente a relevân-cia de dotar o MP espanhol de autonomia para a investigação e persecução penal (Garteiz, 17 de janeiro de 2014).

3 FRAGMENTOS DO DEBATE SOBRE A (IN)DEPENDÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

3.1 Legitimidade de um Ministério Público independente e responsabilidade

Onde estaria a legitimidade de um MP completamente independente do Poder Executivo? Que tipo de responsabilidade se oferece como contra-

10 Conferir: <http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/policies/organized-cri-me-and-human-trafficking/corruption/anti-corruption-report/docs/2014_acr_spain_chapter_es.pdf>.

11 Conferir, do Banco Mundial, o artigo intitulado “Fostering institutions to contain corruption” (Disponível em: <http://www1.worldbank.org/publicsector/legal/PREMnote24.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2004).

12 Em 1986, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos afirmou a inconveniência de que o MP se encontrasse sob a esfera de influência do Poder Executivo, o que impediria a apreciação e posterior julgamento imparcial das causas (Cruz Castro, 1997).

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partida à independência? A literatura encontra-se dividida. Sugere-se que o MP se submeta, de forma estrita, ao princípio da legalidade, mantendo, assim, a autoridade do Legislativo13.

O núcleo das discussões sobre a independência do MP situa-se, assim, em alguns contextos, no estatuto constitucional da instituição ou na natureza da atividade exercida. Na Itália, a interpretação jurisprudencial construída sobre o MP, com base no texto constitucional, confluiu no sentido de o MP in-tegrar o Poder Judiciário, configurando-se uma única magistratura. Ou seja, entre as funções ministeriais (requerentes) e judicantes não há diferença qua-litativa. Ambas são momentos do exercício do poder jurisdicional.

A discussão sobre a legitimidade da independência do MP acaba esten-dendo a discussão ao Poder Judiciário. Se, por um lado, a legitimidade dos Poderes Executivo e Legislativo estaria na representação democrática; a legi-timidade do Judiciário (e também do MP), por outro lado, não tem qualquer vínculo com a vontade da maioria (Ferrajoli, 2001, p. 918-919). Referindo-se à magistratura, distingue Ferrajoli duas modalidades: a legitimidade formal é a estrita aplicação do princípio da legalidade; a legitimidade substancial consiste na tutela de direitos fundamentais (Ferrajoli, 2001, p. 543-544).

Em outras palavras, é exatamente a independência dos demais poderes que outorga legitimidade à magistratura. A questão ganha contornos distin-tos quando as duas carreiras (magistratura e MP) e as funções estão constitu-cionalmente delimitadas. No caso francês, os membros do MP são ao mesmo tempo magistrados (Parquet), recrutados mediante concurso público junta-mente com os juízes (Magistrature du Siège), e funcionários públicos subor-dinados hierarquicamente ao Executivo. O verdadeiro consenso sobre a im-portância da ação penal como instrumento de política criminal permite ques-tionar a legitimidade de um MP sem qualquer vinculação com o Legislativo ou Executivo. O principal argumento é que, nos sistemas parlamentaristas, o ministro da Justiça, de forma direta, e o Governo, indiretamente, respondem pela política nacional, cujo fracasso pode acarretar a perda de confiança dos cidadãos e do Parlamento. Dessa forma, deveriam existir formas definidas de controle sobre o MP (Díez-Picazo, 2000; Pauner Chulvi, 1999).

13 Identificado sob perspectiva criminológica como mecanismo de seleção criminal, afirma Figueiredo Dias (1995) a necessidade de uma legitimidade democrática do MP no processo penal. Assim, propõe-se a escolha do chefe do MP pelo Parlamento, respondendo os seus membros unicamente ao superior hierárquico. A independência do MP em relação ao Executivo é vista como condição fundamental para o julgamento dos casos de corrupção.

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Existe, de fato, grande variedade no grau de discricionariedade do MP. Onde o MP dirige a Polícia judiciária ou os inquéritos policiais, o peso de sua atuação acaba sendo mais evidente. Contudo, mesmo nos contextos em que a sua atuação se limita à fase judicial, existe razoável margem para o exercí-cio de poder discricionário, sobretudo diante de atos delituosos com elevada complexidade. Parte da literatura adverte que a consciência de que o MP par-ticipa na formulação e na execução das políticas criminais impõe a adoção de mecanismos de controle. Sustenta-se que a necessidade de se garantir que a ação penal seja exercida com uniformidade e correção recomenda evitar um contato muito estreito do MP com o poder político. Para atender a tais exigên-cias, os países adotaram diversos mecanismos: dispositivos que visam a neu-tralizar a inércia do MP, como a iniciativa popular na França e na Inglaterra ou o recurso ao juiz para impor o exercício da ação penal (Alemanha); dispo-sitivos que determinam ao ministro da Justiça apresentar orientações escritas aos membros do MP (França); normas escritas destinadas a estabelecer priori-dades aos magistrados do MP; normas destinadas a proteger os membros do MP contra a pressão política indireta, como a participação de representante do órgão nos processos de decisão referentes a nomeações, promoções e medidas disciplinares (diferentes modalidades são adotadas na França, na Itália, em Portugal, na Espanha e na Alemanha) (Di Federico, 1998, p. 74-75).

Experiências concretas evidenciam um equilíbrio instável na relação entre independência e responsabilidade democrática. Di Federico ressalta as consequências de um modelo (italiano) que privilegia a independência, negligenciando completamente o valor democrático da responsabilidade. Assim, apesar de consagrado o princípio da obrigatoriedade da ação penal, na prática haveria grande discricionariedade no desempenho da persecução penal. Diante do número crescente de delitos praticados, seriam inevitáveis as opções quanto às prioridades dos recursos a serem destinados a cada in-vestigação e a adoção de medidas restritivas. Um segundo aspecto é o fato de que a ação penal pública se tornou prerrogativa individual do membro do MP, em detrimento dos poderes hierárquicos atribuídos à chefia da ins-tituição. Multiplicaram-se as oportunidades para o tratamento desigual dos cidadãos, ensejando condições para a escolha não dos casos, mas das pessoas a serem investigadas. Além disso, o poder individual acarretou dificuldades nos casos que requeriam maior coordenação entre os membros do MP e co-locou nas mãos da magistratura requerente verdadeiro “poder contratual”. Um terceiro fator considerado na pesquisa seria a inclinação do juiz em favo-recer o colega do MP (Di Federico, 1998, p. 80 e ss.).

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As relações entre MP e poder político são algumas das questões cen-trais da obra clássica Pubblico Ministero e sistema político (Guarnieri, 1984). A análise comparativa do MP em alguns regimes liberal-democráticos (Alema-nha, Itália, França, Estados Unidos e Inglaterra) parte de duas hipóteses: em um regime democrático o MP deve ser independente e a previsibilidade da atuação dos membros do MP decorre da adoção do princípio da obrigatorie-dade da ação penal. Conforme comenta o autor, com exceção da Itália, todos os regimes analisados preveem instrumentos de accountability sobre o MP. As razões que justificam a independência do juiz não se aplicariam ao MP em razão dos distintos papéis assumidos por ambas as instituições. O controle sobre a atividade desempenhada pelo MP é parte do sistema de pesos e con-trapesos no interior do sistema judicial, o que se justificaria não apenas por razões político-constitucionais, mas também organizativas, como a necessi-dade de uma coordenação, a fim de haver razoável nível de uniformidade e adequado rendimento na atuação da instituição.

Contudo, reconhece Guarnieri que não necessariamente a responsabi-lidade do MP é obtida pelo controle político e por uma estrutura burocrática centralizada14. As garantias institucionais podem depender exclusivamente de considerações funcionais e operativas. Ademais, é impossível conceber uma estrutura completamente autônoma do seu ambiente. Assim, aumentar a independência institucional pode acarretar a dependência de fato de outros centros de poder não institucionalizados. Analisando o contexto italiano, re-cusa-se a vinculação ao Executivo em razão do insatisfatório funcionamento dos instrumentos de responsabilização parlamentar. As mesmas observações são estendidas às propostas de vinculação do MP ao Legislativo ou a outros órgãos centralizados. A solução norte-americana (eleição dos membros do MP) apresenta, além do já citado problema relacionado à coordenação das ações da instituição, os riscos relacionados aos compromissos de campanha assumidos (Guarnieri, 1984).

Uma última sugestão de Guarnieri para reconstruir as relações entre MP e sistema político é o aperfeiçoamento profissional daquela instituição, criando-se estruturas de ação fundadas nos valores a serem assegurados.

14 Contrapõe-se o modelo francês ao norte-americano. Aquele, organizado burocraticamente, caracteriza-se pelo relativo isolamento social, uma instituição pesada e centralizada. O modelo norte-americano é mais receptivo ao ambiente externo, povoado pelas demandas de vários grupos sociais, ainda que com problemas de coordenação. Impede-se, assim, a constituição de um vértice único que se constituiria em filtro das demandas, como no modelo francês (Guarnieri, 1984, p. 176-177).

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Em síntese, os controles mais flexíveis que assegurem ao MP status de rela-tiva independência e certa margem de discricionariedade. Devem ser cria-dos mecanismos que impeçam a utilização dos poderes da instituição contra os princípios que inspiram o sistema constitucional, estimulando-se maior homogeneidade com os valores da comunidade política (Guarnieri, 1984, p. 1-16 e 179-188).

Parte da literatura justifica a existência de mecanismos de articulação entre o MP e o Executivo. Flores Prada, processualista espanhol, sustenta que, em um Estado de Direito, todos os poderes públicos estão submetidos ao controle democrático. A forma de controle depende da configuração orgâni-co-funcional do Poder Público. No modelo de Estado Liberal, em decorrência da discricionariedade das funções desempenhadas, o MP foi subordinado ao Executivo. A crise do sistema de legitimação inicia-se no século XX, especial-mente devido à utilização política do MP pelos regimes autoritários. Assim, ganham terreno as teses que defendem a aproximação do MP ao Judiciário (Flores Prada, 1999, p. 365). Contudo, segundo Flores Prada, essa posição estaria equivocada pela diferença entre a função jurisdicional e a função atri-buída ao MP (defesa da legalidade)15.

3.2 Controle penal dos crimes do governo: o interminável debate sobre a independência do Ministério Público

Conforme já mencionado, a busca por novos mecanismos de controle da corrupção (política inclusive) passou a integrar a agenda política de diver-sos países. Além disso, há generalizada preocupação em relação à eficiência do sistema penal (Silva Sánchez, 2001, p. 56). Nesse sentido, o debate em torno da criminalidade dos “poderosos” e da corrupção estimulou a discus-são sobre a posição constitucional do MP. Os escândalos envolvendo elites políticas de distintos países, na última década, colocaram em evidência o po-der de interferência direta dos governos na atuação do MP, impedindo ou reorientando a acusação penal segundo critérios partidários.

O modelo italiano (paradigma de MP independente) é mencionado por parte da literatura especializada como fator decisivo na chamada operação “Mãos Limpas”. A independência em relação ao governo teria propiciado

15 “Los principios de legalidad e imparcialidad convierten a la institución, así, en un filtro de legalidad en la integración de los intereses generales y del interés social en la aplicación judicial del derecho, que no la hacen ni impermeable a ellos, por una parte, ni acrítica correa de transmisión de las mismas.” (Flores Prada, 1999, p. 368-369)

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a persecução da corrupção política e do crime organizado (Andrés Ibáñez, 1997, p. 229). A independência da Magistratura (requerente e judicante) oca-sionou, como em nenhuma outra parte, a criminalização da política italiana. Di Federico adverte ser inquestionável o papel desempenhado pelo MP nas investigações que abalaram o sistema político italiano. Alimentou-se o in-teresse de observadores internacionais, consolidando-se a convicção de que o modelo de MP italiano propiciaria resposta eficaz à corrupção política e administrativa. Para ele, seria simplista concluir-se, a partir do exemplo ita-liano, que a independência do MP e a ausência de controles democráticos propiciariam resposta mais efetiva do sistema de justiça. Argumenta que, ao longo de décadas, a corrupção foi paulatinamente se instalando no sistema político italiano. Embora a magistratura requerente já contasse com as mes-mas garantias de que dispõe na atualidade, não conseguiu trazer à tona ne-nhum caso relevante.

Vários outros fatores deveriam ser considerados para melhor compre-ensão do que de fato ocorreu na Itália com a divulgada operação “Mãos Lim-pas” (Di Federico, 1998, p. 85-86). A análise coincide com a tese sustentada por Alberti. Segundo a autora, o estatuto legal do MP italiano é importante para se compreender o papel dos promotores de justiça na persecução da corrupção política na Itália. Porém, é fundamental considerar as mudanças políticas havidas no contexto sociopolítico italiano. A queda do muro de Ber-lim ocasionou redefinição das forças políticas e gerou grande insatisfação popular com o governo, tornando cada vez menor o número de empresários dispostos a colaborar com o esquema de corrupção (Alberti, 1996, p. 273-292). Não é diferente a análise de Pujas. Se o sistema de justiça italiano foi decisi-vo no combate à corrupção política, outros fatores devem ser considerados. Apenas com a ruptura do pacto com os poderes corruptos é que os casos apareceram e foram investigados pelo MP italiano (Pujas, 2000, p. 41-60)16. Transcorridos 20 anos dos escândalos que abalaram a democracia italiana, a independência do MP é uma das variáveis analisadas nos modelos explicati-vos sobre as formas de controle da corrupção política. Contudo, outros fato-res devem ser considerados. As pesquisas sugerem que a atuação do sistema de justiça enfrenta limitações importantes (Pederzoli, 2013).

Em análise recente, Guarnieri (2015) retoma tema de seu interesse há mais de 30 anos. O autor relembra a peculiaridade do modelo de Ministério

16 Conferir análise da proposta de reforma do estatuto do MP italiano em uma perspectiva comparada, na qual se defende a necessidade de manutenção da independência em relação ao Executivo: Bruti Liberati (1997).

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Público adotado na Itália nos últimos 40 anos, quando ganhou independên-cia e garantias conferidas aos magistrados. O momento coincidiu com as in-vestigações complexas contra o crime organizado e a corrupção política. As diversas propostas de reformas do estatuto do Ministério Público, apresen-tadas nos últimos anos, não abalaram a estrutura da acusação pública, que continua muito influente no sistema político italiano. Por outro lado, os mem-bros do Ministério Público também incursionaram na carreira política, o que acabou evidenciando a necessidade de mecanismos de freios e contrapesos, bem como de instrumentos de responsabilização política e distanciamento da magistratura, como forma de concretização da imparcialidade judicial. Guarnieri discute as vantagens e os riscos do modelo de Ministério Público instituído na Itália e, em análise conjuntural, apresenta os argumentos que desacreditam as propostas de reformas do modelo de Ministério Público, o que sugere que essa organização ocupará um papel relevante no jogo político na Itália dos próximos anos (Guarnieri, 2015).

Em que pesem os argumentos quanto aos fatores que propiciaram a investigação dos casos de corrupção política e crime organizado na Itália, surgem as comparações com o que ocorreu e ainda ocorre em países que ado-taram um modelo de MP submetido ao controle do governo (Andrés Ibáñez, 1997, p. 229). Na Alemanha, por exemplo, foi criticada a pouca eficiência do modelo de MP totalmente dependente do Executivo17. O tema ocupou as pá-ginas dos principais jornais alemães no início da década de 90 (século XX) e gerou intenso debate entre governo e oposição. Em razão disso, em 1993, foi criada Comissão parlamentar de investigação em Baden-Württemberg para apurar suposta conivência do MP em relação a atos ilícitos praticados por membros do governo. A combinação de uma estrita estrutura hierárquica e a aplicação prática do princípio da oportunidade da ação penal teria pro-piciado o arquivamento de processos envolvendo personagens do mundo político e das altas finanças na Alemanha. As carências do sistema alemão motivaram a remessa de projeto de reforma da estrutura hierárquica, o qual pretendia dar mais autonomia aos promotores durante o processo penal. A necessidade de reforma do modelo de MP alemão foi anunciada pelos meios de comunicação e acabou incorporada como uma das conclusões da mencio-nada Comissão (Muhm, 1994, p. 93-96).

17 “La labor del fiscal en Alemania, desde hace algunos años, es objeto de ásperas críticas. La opinión pública está percibiendo, con estupor y aprensión, la aparente incapacidad de los fiscales para ejercer la acción penal frente a personajes influyentes del mundo político y económico.” (Muhm, 1994, p. 93)

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Na França, a preocupação com a atuação do MP iniciou-se com o des-taque da mídia à crescente judicialização da política francesa18. O fenômeno revelou a ambiguidade do estatuto do MP, bem como a influência do minis-tro da Justiça. Ficou cada vez mais evidente que, em razão das instruções do governo, pode-se dar destino diferente à denúncia, segundo os interesses do partido no poder, o que minou progressivamente a credibilidade dos Pode-res Executivo e Judiciário (Pauner Chulvi, 1999, p. 199-200).

Em razão da crescente insatisfação, no dia 21 de janeiro de 1997, o pre-sidente Jacques Chirac instituiu a Comissão de Reflexão sobre a Justiça, cujo objetivo era elaborar relatório sobre os mais sérios problemas acerca da ad-ministração da Justiça francesa, detendo-se em dois pontos sensíveis para a opinião pública: as relações entre o mundo da Justiça e o mundo da política e o respeito pelo princípio da presunção da inocência, sobretudo nas causas com notoriedade nos meios de comunicação (Díez-Picazo, 2000, p. 134-140). Constituída por vinte e uma personalidades, não apenas do meio jurídico, mas também jornalistas, filósofos e sociólogos, a comissão foi presidida pelo primeiro presidente da Corte de Cassação, Pierre Truche, nome pelo qual ela ficou conhecida.

O modelo do MP e os critérios para se implementar a política criminal do governo ocuparam a maior parte do relatório final. A Comissão teceu, no final, as seguintes considerações: reconhecia o conteúdo político da decisão inicial de um processo penal; considerava necessária a legitimidade demo-crática para o exercício da ação penal, não se satisfazendo com a observância da legalidade, em virtude da ampla margem de discricionariedade de que dispõe o jurista na interpretação da lei. Partindo dessa premissa, a Comis-são reafirmou o princípio da oportunidade da ação penal. As propostas para evitar a manipulação partidária do princípio da oportunidade seriam os se-guintes: aumentar a eficiência no gerenciamento das informações entre as várias unidades do MP e o ministro da Justiça; publicar em Diário Oficial, sob forma de circulares, as instruções gerais ditadas pelo ministro da Justiça aos membros do MP, eliminando-se a possibilidade de instruções para casos

18 A denúncia de que a França também teria se convertido em uma “República dos Magistrados” insere-se no contexto específico em que os socialistas acusavam o crescente poder do Parquet e dos juízes de instrução. Na França, pode-se falar em dois movimentos que contribuíram para o clima de desconfiança em relação aos mundos político e judicial (Pauner Chulvi, 1999, p. 200-201). Apesar dos inúmeros casos de corrupção e fraudes financeiras surgidos durante a última década na França, foram evidenciados os limites para atuação do sistema de justiça quando o MP é dependente do governo (Texier, 1998, p. 141).

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particulares. O ministro da Justiça poderia atuar como acusador, faculdade que visava a suprir a inércia e não impedir a persecução penal. O ministro da Justiça deveria apresentar relatório anual ao Parlamento sobre os objetivos e sobre a sua administração em matéria de política da ação penal, ensejando o debate político e a exigência de responsabilidade política. A Comissão foi favorável à manutenção da estrutura do MP: subordinação ao governo, hie-rarquia e movibilidade de seus membros. Foi recusado o modelo italiano, por ser inadequado a uma “autêntica política da ação penal”. Por estar arraigada na cultura francesa, não foi proposta a separação entre as magistraturas du Siège e du Parquet. Contudo, a Comissão defendeu o controle de um juiz de garantias sobre quaisquer decisões que implicassem interferência aos direitos fundamentais das pessoas19.

O caso espanhol também é paradigmático. Alguns dos analistas po-líticos mencionam acontecimentos que teriam contribuído para conformar uma visão geral do MP como órgão a mais do governo (Díez-Picazo, 2000, p. 171 e ss.). A evolução de políticas supranacionais de combate à corrupção e a consolidação de organismos multilaterais de cooperação evidenciam dois níveis de análise. Se o discurso político nacional reitera o apoio às iniciativas de combate à corrupção, as práticas parecem apontar em direção distinta.

Em avaliações na Espanha, o Grupo de Avaliação do Grupo de Re-pressão à Corrupção (Greco) criticou a dependência do MP espanhol em sua primeira avaliação das políticas anticorrupção da Espanha. No relatório foi mencionada a possibilidade de o governo nomear e demitir o procurador--geral, bem como o poder de dar instruções sobre casos específicos. A depen-dência orçamentária do MP espanhol em relação ao ministro da Justiça pode-ria também contribuir para a sensação de dependência do Poder Executivo, embora fosse reconhecida a existência de mecanismos para evitar o simples abandono de causas, como o poder de investigação do juiz e a ação popu-lar. Ao final, foi recomendado o fortalecimento da promotoria anticorrupção, com o aumento dos recursos material e humano do órgão, e mais transparên-cia nas relações entre o governo e o MP. Assim, as instruções gerais deveriam ter como único parâmetro o princípio da legalidade, impedindo-se as ordens para casos específicos (Informe..., 2001). Recentemente, diante dos escânda-los envolvendo a corrupção política em diferentes comunidades autônomas, novos relatórios do Greco relatam que o governo espanhol não implantou as

19 Em 1998, a Ministra de Justiça Elisabeth Guigou envia à Assembleia Nacional projeto de reforma da justiça francesa, sendo um dos destaques a mudança da forma em que está institucionalizada a hierarquia do MP francês (Pauner Chulvi, 1999).

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medidas anticorrupção necessárias. Uma vez mais, a falta de autonomia do MP surge como questão a ser enfrentada (Garteiz, 2015).

Nos Estados Unidos, o escândalo Watergate reacendeu o debate sobre a criminalidade do governo e a necessidade de se instituir um modelo de MP independente do governo. Deflagrado pela notícia de que pessoas relaciona-das ao presidente Nixon teriam, durante a campanha presidencial em 1972, adentrado a sede do partido democrático com o objetivo de obter informa-ções favoráveis ao candidato republicano, o assunto ganhou a atenção nos meios de comunicação, confirmando-se o envolvimento de colaboradores do Nixon. Este, em resposta, autorizou o attorney-general a nomear um special prosecutor. Foi nomeado para o cargo Archibald Cox, constitucionalista que havia servido ao governo de Kennedy. A posterior identificação por jorna-listas de gravações de conversas entre Nixon e colaboradores diretamente envolvidos na operação acabou levando à demissão de Cox. A repercussão do escândalo obrigou Nixon a nomear novo special prosecutor, Leon Jaworski, que pleiteou as gravações, culminando o caso com o impeachement do presi-dente, em 1974.

A sentença United States versus Nixon reacendeu no contexto norte--americano o debate sobre o estatuto jurídico do special prosecutor. Na de-cisão, ficou estabelecido que, enquanto não se revoga a delegação pelo attorney-general, aquele disporia de plena autoridade. Nos anos seguintes houve intenso debate sobre a necessidade de reforma do sistema de justiça norte-americano, instituindo-se um Departamento de Justiça independente do Executivo. Apenas no governo Carter, quando o partido democrata reto-mou o poder, aprovou-se a lei Ethics in Govenment Act. De acordo com o título VI, foi regulamentada a figura do special prosecutor, previsto para qualquer caso envolvendo prática de delitos pelo presidente, altos cargos do Executi-vo ou agentes eleitorais do presidente em exercício, além de outros casos de concreto conflito de interesses20. A lei, por sua grande popularidade, foi ree-

20 A iniciativa de nomear o promotor independente era do attorney-general, de ofício ou por provocação de uma das Câmaras do Congresso, cabendo então à Special Division, grupo de três juízes da U.S. Court of Appeals of The District of Columbia, a nomeação. Ao special prosecutor eram conferidas faculdades negadas a juízes ordinários, como a faculdade de se opor à negativa de apresentar provas em razão do chamado executive privilege, instituto utilizado por Nixon. A demissão passou a estar vinculada ao que a lei denominava de extraordinary impropriety ou incorreção profissional extraordinária. A mencionada lei previa prazo fixo de vigência por cinco anos, disposição conhecida no Direito norte-americano por sunset laws, técnica legislativa em voga na época e que foi posteriormente abandonada.

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ditada em 1983 e 1987, durante o governo Reagan, conferindo-se mais liber-dade ao attorney-general para iniciar procedimento de nomeação do promotor independente, que, então, passou a ser denominado independent counsel. Em 1992, com a perspectiva de vitória democrata e o pouco interesse de ambos os partidos, expirou o prazo da lei sem que esta fosse renovada21. A figura do independent counsel teve o seu ocaso com o caso “Lewinski”. Os “excessos” de Keneth Starr e as suas práticas pouco ortodoxas acirraram as críticas ao instituto criado. Starr foi acusado de participar de uma “justiça de aparên-cias” e com forte conotação política, razão pela qual, ao expirar o prazo da lei que instituía o independent counsel e com a absolvição de Clinton, não houve muitos protestos diante da extinção do cargo (Díez-Picazo, 2000, p. 85-108).

Os contextos selecionados para a análise sugerem que o modelo or-ganizacional do Ministério Público é recorrente nas análises direcionadas à persecução penal da corrupção, especialmente política, e os denominados “crimes do governo”.

4 O MODELO BRASILEIRO: ATUAÇÃO, LIMITES E PROPOSTAS

No Brasil, a impunidade, em especial nos crimes praticados contra a Administração Pública, é vista como um dos grandes incentivos à corrup-ção22. As críticas, dirigidas especialmente contra o Judiciário, avaliado como ineficiente, abrangem o sistema de justiça de forma geral, incluindo-se a Po-lícia e o MP. As garantias e a autonomia conquistadas com a CF/1988, soma-das aos instrumentos legais criados nas últimas décadas, transformariam o MP em agente privilegiado no controle das instituições públicas. Entretanto, por estar organizado de forma monocrática (não há hierarquia funcional), há amplo espaço para o “voluntarismo político” (Arantes, 2002). Assim, a efeti-vidade do controle da corrupção depende da ação pessoal de cada membro do MP, o que, por seu turno, depende das características individuais e do grau de independência real dos poderes políticos (Speck et al., 2002, p. 264).

A extensa literatura sobre as trajetórias do MP brasileiro desautoriza ge-neralizações. Há enorme diversidade entre os modelos construídos em cada Estado. A fim de compatibilizar princípios constitucionais, busca-se reforçar

21 As circunstâncias políticas que levaram à não renovação do prazo de vigência da lei foram examinadas no artigo intitulado Shameful Death of a Worthy Reform, publicado no dia 2 de outubro de 1992 pelo New York Times (Díez-Picazo, 2000, p. 96).

22 “É um lugar-comum entre os formadores de opinião a idéia de que a impunidade seria um dos incentivos principais para agentes corruptos.” (Speck et al., 2002, p. 259-260)

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a unidade de atuação e políticas institucionais, o que muitas vezes coloca em debate a extensão da independência funcional. Em pesquisa anterior, ressal-tamos que a persecução penal da corrupção depende de inúmeras variáveis. Em determinados casos, a independência funcional mostrou as contradições internas e os conflitos organizacionais entre a cúpula (procuradores gerais) e determinados membros em face da persecução penal (ou inércia) em casos emblemáticos de corrupção política. Evidenciou-se que existem, também no contexto brasileiro, muitos outros fatores a ser considerados. A independên-cia da organização responsável pelo comando das investigações e a persecu-ção penal é apenas um entre vários (Machado, 2007a; Machado, 2007b)23.

Nos últimos anos, outros casos de corrupção política foram objeto de intenso interesse dos meios de comunicação de massa. O julgamento do caso “Mensalão”24 é paradigmático na história do STF. O Ministro Relator Joaquim Barbosa ganhou notoriedade pela condução do caso, que redundou na condenação de políticos, funcionários públicos e empresários. Se, de um lado, a independência da Procuradoria-Geral da República nas distintas fases da investigação e persecução penal é objeto de interesse e sugere compara-ções em relação ao desempenho da instituição ao longo da história recente do MPF, as circunstâncias que permitem que os casos venham à tona também evidenciam que a atuação depende de múltiplas variáveis e nem sempre os casos são conhecidos e investigados. A independência para a persecução pe-nal é apenas um dos fatores para compreender as condições em que atuam as organizações do sistema de justiça.

Recentemente, a operação “Lava Jato” colocou a corrupção política no foco dos meios de comunicação de massa. A Procuradoria-Geral da Repúbli-ca lançou, em 20 de março de 2015, medidas “para aprimorar a prevenção e o combate à corrupção e à impunidade”. Relata-se que decorreram do trabalho da “Força-Tarefa Lava Jato” e foram debatidas por comissões de trabalho.

23 As ações das instituições de controle penal em caso de corrupção não direcionaram o foco apenas para a estrutura organizacional do MP e eventuais conexões com o poder político. Recentemente, reacendeu-se a discussão sobre a independência da Polícia Federal (PF). A mobilização da associação de delegados da PF pela aprovação de emenda constitucional que confere independência administrativa e financeira à instituição foi objeto de intenso interesse dos meios de comunicação de massa. O cenário aparentemente favorável à demanda por independência vem ocupando espaço na mídia sobre o modelo ideal para a investigação em casos de corrupção política (Prates, 5 abril 2015, p. 5).

24 Conferir análise detalhada da evolução do caso na Folha de São Paulo (Silva, acesso em: 30 mar. 2015).

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As medidas teriam por objetivo “combater” o desvio de recursos públicos e garantir mais transparência, celeridade e eficiência ao trabalho do Ministério Público brasileiro25. As medidas, em síntese, buscam imprimir mais celerida-de às ações penais, administrativas e de improbidade administrativa. Sugere seja adotado o “teste de integridade para os servidores públicos”, a crimina-lização do enriquecimento ilícito e do Caixa 2, e a cominação de penas ele-vadas para a corrupção. Ao final, recomenda alterações processuais, a fim de evitar as hipóteses de prescrição, o cabimento de habeas corpus e os entraves do sistema recursal.

As medidas sugeridas pela Procuradoria-Geral da República confir-mam a insatisfação com diferentes aspectos do modelo normativo. Conforme anunciado na introdução deste artigo, a realização da pesquisa “A investiga-ção e a persecução penal dos delitos econômicos e da corrupção no sistema de justiça federal” sugere distintos aspectos para a análise sobre a atuação em casos de corrupção. E vai além do modelo organizacional, aqui focalizado. Durante a realização do trabalho de campo foi possível identificar algumas

25 “O lançamento foi feito pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pelos coordenadores da Câmara de Combate à Corrupção do MPF, Nicolao Dino, da Câmara Criminal do MPF, José Bonifácio Andrada, e pelo coordenador da Força-Tarefa Lava Jato do MPF no Paraná, Deltan Dallagnol. No lançamento, Rodrigo Janot explicou que, ao assumir o cargo de procurador-geral da República, colocou como ênfase atuar de forma propositiva na melhoria do sistema penitenciário brasileiro e combater a corrupção. Ele falou sobre a criação da Câmara de Combate à Corrupção para coordenar a atuação nessa área tanto no viés penal quanto não penal e acrescentou que, nesse âmbito, criou comissões de trabalho com o objetivo de encaminhar sugestões de mudança legislativa para implementar medidas de combate à corrupção. O trabalho teve início com os estudos desenvolvidos pela força-tarefa do MPF na Operação Lava Jato na primeira instância. Segundo o coordenador da Câmara de Combate à Corrupção, Nicolao Dino, o Brasil vive um momento decisivo, revelado a partir de manifestações de insatisfação em face dos elevados índices de corrupção percebidos na sociedade. Para ele, essa percepção se deve a um momento democrático e também em razão da atuação incisiva, responsável e serena do MPF no enfrentamento dos casos de corrupção que têm sido divulgados no cotidiano. ‘É um momento de transformação desse sentimento de insatisfação em reflexão e ação para que possamos extrair resultados concretos de tudo isso’, disse. O coordenador da Força-Tarefa Lava Jato do MPF no Paraná, Deltan Dallagnol, explicou que o caso Lava Jato indignou o país e que o sonho do brasileiro é ter um país melhor, com menos corrupção e menos impunidade. ‘Se você é um brasileiro que não vê saída nessa situação, eu gostaria de dizer que existe uma luz – e aí uma referência à lâmpada nas dez medidas de combate à corrupção – e que cada um de nós, a imprensa, o Ministério Público, os órgãos públicos e a sociedade têm um grande poder e uma grande responsabilidade na implementação dessas mudanças’, conclamou.” (MPF combate à corrupção. Acesso: 30 mar. 2015)

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questões relevantes para este artigo. A fase quantitativa indica as dificul-dades que supõem o início das investigações (Machado, Costa e Zackseski, 2015). Em 2012, ano base da pesquisa quantitativa (informações obtidas na base estatística do MPF), entre os 60.582 registros que contabilizaram as pro-moções de arquivamentos e denúncias ofertadas, foram identificadas 17.259 denúncias (28,49% do total).

Os percentuais de denúncias em relação ao total de inquéritos policiais (somatório de denúncias e arquivamentos), conforme base de dados do Sis-tema Único – MPF, indicam que Mato Grosso do Sul é o Estado onde o MPF tem o maior percentual de denúncias em relação aos procedimentos arquiva-dos (49,67%). São Paulo e Roraima apresentam as menores taxas, com 5,78 e 7,46%, respectivamente. Os Estados do Piauí, Amazonas, Espírito Santo, To-cantins, Pará e Rio Grande do Sul apresentam taxas entre 40 e 50%. Paraíba, Paraná, Mato Grosso, Minas Gerais, Rondônia, Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará Santa Catarina, Sergipe e Goiás registram variações entre 30 e 40%. Pernambuco e Distrito Federal entre 20 e 30%. Rio de Janeiro, Maranhão, Alagoas e Acre, entre 10 e 20%. A distribuição de denúncias e arquivamentos nas unidades da federação selecionadas na pesquisa pode ser visualizada no quadro a seguir (Machado, Costa e Zackseski, 2015, p. 14):

I – Tabela referente aos percentuais de denúncias e arquivamentos nos Estados de Pernambuco, Paraná,

São Paulo e Distrito Federal

UF DENÚNCIA ARQUIVAMENTO TOTAL % DENÚNCIAS

DF 489 1.530 2.019 3,33

PE 419 1.146 1.565 2,58

PR 2.619 4.061 6.680 11,03

SP 747 12.175 12.922 11,03

OUTROS 12.985 24.411 37.396 61,73

TOTAL 17.259 43.323 60.582 28,79

Em relação aos crimes contra a Administração Pública, especialmente peculato, concussão e corrupção passiva, o índice de denúncia varia entre 10 e 20% do total de investigações. Em relação aos crimes de corrupção ativa e passiva, destacam-se os seguintes percentuais de denúncias e arquivamentos (Machado, Costa e Zackseski, 2015, p. 30), conforme apresentado nos qua-dros a seguir:

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II – Tabela referente aos percentuais de denúncia e arquivamento dos crimes de corrupção passiva

UF DENÚNCIA ARQUIVAMENTO TOTAL % DENÚNCIAS

DF 5 14 19 26,32

PE 1 7 8 12,50

PR 2 12 14 14,29

SP 2 64 66 3,03

OUTROS 29 114 143 20,28

TOTAL 39 211 250 15,60

III – Tabela referente aos percentuais de denúncia e arquivamento dos crimes de crimes de corrupção ativa

UF DENÚNCIA ARQUIVAMENTO TOTAL % DENÚNCIAS

DF 2 6 8 25,00

PE 2 2 4 50,00

PR 9 6 15 60,00

SP 3 39 42 7,14

OUTROS 63 52 115 54,78

TOTAL 79 105 184 42,93

A discussão vai além da independência formal garantida à instituição. Mas é pertinente porque revela questões organizacionais relevantes para compreender as condições em que são desempenhadas as funções.

Na fase qualitativa, a realização do trabalho de campo permitiu apro-fundar diferentes aspectos do desempenho do trabalho pelos membros do MPF26. Notamos, em regra, que a distribuição das atribuições entre os dife-rentes ofícios é objeto de grande interesse. A proposta de criação do NCC (Núcleo de Combate à Corrupção) é avaliada positivamente pelos procura-dores da República, embora não tenha sido aprovada em todas as capitais. Há enorme insatisfação em relação ao suporte humano e técnico disponi-

26 Analisamos unicamente os relatos de procuradores da República, a partir de entrevistas em profundidade e grupos focais. Foram realizadas entrevistas e grupos focais com magistrados federais, delegados da Polícia Federal, Agentes da Polícia Federal e Peritos. Foram entrevistados servidores do COAF, Bacen, CGU e TCU.

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bilizado para as procuradorias. Avalia-se como insuficiente para atender a todas as demandas e, especialmente, para a realização de investigações mais complexas. Os procuradores da República, em regra, ressentem-se de um distanciamento com os procuradores regionais da República, pela ausência de mecanismos institucionais de interação. Embora muitos relatos apontem a evolução do papel das Câmaras de Coordenação e Revisão na função coor-denadora, uma das críticas recorrentes é a escassa atividade de coordenação. Além disso, critica-se o que é retratado como posição dissociada das realida-des locais. As câmaras deveriam promover o debate sobre a necessária sele-tividade das instituições na atuação penal, priorizando os casos mais graves.

Uma das questões debatidas quando se analisa o modelo organizacio-nal do MP refere-se ao controle exercido sobre a investigação, especialmente em razão da dependência da Polícia em relação ao Executivo. Em pesquisa realizada sobre as relações interorganizacionais entre o MP e as organizações que integram o sistema de justiça, tivemos a oportunidade de aprofundar e discutir questões abordadas em pesquisas anteriores (Machado, 2007a, p. 207-214)27. Na pesquisa realizada com os membros do MPF em Brasília em 2004, a grande maioria dos procuradores da República entrevistada repre-sentou, de forma negativa, a proximidade da Polícia com o Executivo. Uma vez mais, a tensão entre as profissões aparenta estar associada à ressonância recíproca das comunicações dos sistemas político e jurídico. A imagem da Polícia como órgão que sofre interferência direta do governo é compartilha-da pelos próprios delegados de Polícia. No survey realizado em 2002 com delegados de Polícia do Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, a interferência política na cúpula da instituição foi apontada por 72,6% dos entrevistados como obs-táculo muito importante ao bom desempenho da Polícia Civil (Sadek, 2003, p. 20). No discurso dos participantes da pesquisa, o controle externo da ativi-dade policial também surgiu como fator de tensão entre as carreiras. Embora recorrente na fala dos entrevistados a necessidade de insistir na tese de que o MP pode e deve investigar, os participantes apresentaram uma visão comple-xa da interação com a Polícia Federal. Na construção de estratégias de intera-ção, as relações pessoais seriam decisivas. A ausência de suficiente estrutura para a Polícia desempenhar as suas funções apareceu também nos relatos dos participantes da pesquisa, retratada em imagens como “O governo suca-teou a Polícia” ou “a quem interessa uma Polícia bem aparelhada?” Por outro

27 Sobre a metodologia da pesquisa com procuradores da República em Brasília e promotores de justiça no MPDFT, conferir: Machado, 2007a, p. 45-50; Machado, 2007b, p. 25-30.

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lado, nos relatos apareceram também as parcerias bem-sucedidas e imagens como: “Apesar de tudo a Polícia tem uma estrutura [para investigação] que nós não temos”. Em alguns dos casos, a interação com a Polícia permitiu aprofundar investigações de difícil elucidação. “Aproximar a Polícia do MP é uma alternativa”, afirmaram alguns dos entrevistados. Segundo essa lógica, seria possível exercer controle mais eficaz da atividade policial, trazendo-a para trabalhar próxima do MP, superando os ciúmes suscitados pelo controle externo. A experiência das chamadas forças-tarefas compostas por delegados de Polícia Federal e procuradores da República para investigação de crimes com alta complexidade demonstra como a organização-resposta se mostra insuficiente para o desempenho das atribuições definidas em lei (Machado, 2007a; Machado, 2007b)28.

Na fase qualitativa da pesquisa da nossa pesquisa, os relatos dos pro-curadores da República indicaram que a interação com os delegados da PF é difícil e pouco institucionalizada (Machado, Costa e Zackseski, 2015). Entre os procuradores da República que participaram da pesquisa, escassas foram as referências a interações diretas com peritos e agentes da PF. As relações pessoais ainda predominariam nas experiências de atuação conjuntas. Os procuradores que participaram da pesquisa relataram ressentir-se da falta de transparência da PF na definição das prioridades. As grandes operações, muitas vezes, seriam deflagradas sem o necessário acompanhamento do res-ponsável pela persecução penal. O inquérito foi criticado por todos os procu-radores como procedimento burocrático e ineficiente, particularmente para a investigação da corrupção e dos delitos econômicos. Em relação ao Judici-ário, predominaram as críticas à morosidade e aos “critérios diferenciados” para o julgamento dos delitos econômicos. As críticas foram mais acirradas em relação ao desempenho dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais Su-periores. A especialização das Varas foi elogiada como necessária, avaliaram os procuradores que participaram da pesquisa, mas nem todos os magistra-dos teriam vocação para a matéria. Algumas instituições, como a Receita Fe-deral, o TCU, o Bacen e a CGU, foram elogiados pela qualidade do trabalho

28 As disputas entre as organizações também repercutem no campo político. Em 2013, a PEC 37, que pretendia afirmar a exclusividade da Polícia na condução da investigação criminal, foi rejeitada pela Câmara de Deputados, sob forte pressão popular. Reacendeu-se a discussão sobre a possibilidade de o MP conduzir investigações diretamente, assim como a necessidade de delimitar de forma clara os procedimentos investigatórios das diferentes organizações que compartilham esta função. Certamente, as acusações de retaliação por atuações que incomodaram o poder político trouxeram novamente à cena nacional um longo debate que ainda está longe do fim.

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técnico. Os procuradores entrevistados enfatizaram a necessidade de prover treinamento para estas agências, a fim de aprofundar as suas investigações de forma a permitir a persecução penal pelo MPF. Assim, o inquérito poli-cial seria prescindível em muitos casos envolvendo os delitos econômicos e a corrupção.

CONCLUSÕESO debate sobre o modelo organizacional do MP no Estado de Direi-

to apenas pode ser adequadamente compreendido no contexto das grandes transformações sociais, políticas e econômicas contemporâneas. Os novos significados atribuídos a determinadas práticas, redefinidas como socialmen-te reprováveis, acentuam o debate sobre as formas de controle, ambiente em que ocorre o debate sobre os limites e as possibilidades do controle punitivo.

A possibilidade de expansão do controle penal de condutas lança ao centro do debate as organizações do sistema de justiça criminal. A seletivi-dade do sistema de justiça criminal, a percepção sobre a cifra oculta e os obs-táculos para a persecução penal colocam em questão a independência das organizações. Embora o foco tenha sido o MP, a reflexão obviamente deve ser expandida a outras organizações que participam da divisão do trabalho jurídico-penal.

O contexto descrito, aparentemente, sugere a pressão de distintos se-tores sociais, inclusive internacionais, por um modelo organizacional de MP independente do poder político. As realidades locais mostram, contudo, que o jogo político muitas vezes transforma as declarações internacionais em pa-lavras vazias. Há extensos e variados exemplos desse fenômeno.

O debate sobre os limites e a extensão da autonomia das organizações conecta-se, também, com a discussão sobre a exigência de mecanismos de responsabilização pelos atos. O equilíbrio entre autonomia e responsabiliza-ção remete aos distintos mecanismos do accountability horizontal.

As propostas de reforma legislativa apresentadas pela Procuradoria--Geral da República revelam que a própria organização (MPF) percebe que o controle da corrupção supõe um amplo pacote de medidas, tanto preventivas quanto punitivas. O controle penal atuaria, nessa perspectiva e de acordo com a percepção da cúpula do MPF, como contraestímulo, o que reforça o argumento de que a independência é um elemento importante para a atuação do sistema de justiça.

A reflexão é parcial, fragmentada, mas sugere um horizonte amplo e complexo para repensar a engenharia institucional dos Estados contemporâ-

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neos, especialmente em um ambiente em que as organizações do sistema de justiça criminal são desafiadas a exercer as suas funções constitucionais.

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CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA E DA PSICOLOGIA PARA A (NÃO) JUSTIFICAÇÃO

PENAL DIANTE DE DILEMAS MORAISCONTRIBUTION OF PHILOSOPHY AND PSYCHOLOGY TO THE

CRIMINAL DEFENSES IN CASES OF MORAL DILEMMASRafaeL feRReiRa Vianna*-**

RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em refletir sobre a pos-sibilidade, sob qual fundamento e com que limites o Direito Penal pode responsabilizar e reprovar (ou não) a conduta de alguém que atingiu um resultado penalmente desvalorado diante da necessida-de da tomada de decisão em uma situação de dilema moral. Buscar--se-á entender e traçar relações possíveis entre o juízo legítimo de reprovação penal, os conceitos da filosofia moral e os modernos es-tudos da psicologia moral, ciência esta que procura desvendar por quais processos mentais e emocionais uma pessoa chega a justificar e legitimar regras, princípios e valores morais para as suas escolhas.PALAVRAS-CHAVE: Dilemas morais; Direito Penal; justificação; desculpa; estado de necessidade defensivo.ABSTRACT: The purpose of this article is to think about the possibi-lity and how the Law can reprove (or not) someone who has violated a criminal law in a situation of moral dilemma. We will seek to un-derstand and trace possible links between the legitimate judgment of criminal reproach, the concepts of moral philosophy and modern studies of moral psychology, science that seeks to unravel the men-tal and emotional processes that a person comes to justify and legiti-mize rules, principles and moral values for their choices.KEYWORDS: Moral dilemmas; Criminal Law; justification; excuse; criminal defenses.SUMÁRIO: Introdução; 1 Dilemas morais e Direito Penal; 1.1 Casos de dilemas morais e direcionamentos do Direito Penal; 1.2. (In)Con-sistência das respostas penais aos casos de dilemas morais: sempre prevalece o dever de omissão em casos de conflito de ação versus

* Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Pesquisador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

** Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9072342373582166, e-mail: [email protected], blog: www.delegadorafaelvianna.blogspot.com.

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omissão?; 2 Contribuição da filosofia aos casos de dilemas morais; 3 Perspectiva psicológica das decisões diante de dilemas morais; 4 Considerações sobre a justificação ou a desculpa diante de dile-mas morais; 4.1 A impossibilidade do estado de necessidade justi-ficante defensivo de terceiro; 4.2 Consequências jurídico-penais de-correntes de situações que envolvem dilemas morais e conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO

Já, de início, cabe convencionar, na esteira de Paul Ricoeur1 e Bernard Williams2, que será utilizado o termo “moral” para designar o campo que busca estudar e responder qual ação deve ser adotada diante de um sistema normativo interno que procura estabelecer o que é correto fazer, qual é a “ação boa”.

A ética – intrinsecamente ligada à moral, já que se entende que é a ética que define o conteúdo moral – é compreendida como o campo que tenta res-ponder a questionamentos sobre quais valores devem nortear nosso “modo de vida”, seja individualmente ou como seres sociais. Logo, a ética trata de uma reflexão sobre princípios, valores e organizações que conduzem a vida humana, isto é, que dizem respeito às escolhas morais, à vida em sociedade e à busca da virtude de uma maneira geral3.

Dilemas morais ou conflitos morais existem quando ocorre uma situa-ção em que o indivíduo se encontra impossibilitado de cumprir dois princí-pios ou deveres morais ao mesmo tempo, tendo que optar por um deles (mal igual ou mal menor). Em outras palavras, pode-se dizer que existem dilemas morais quando o agente, seja qual for a ação que escolha, estará sempre erra-do (em alguma medida) para si mesmo ou para o julgamento moral isolado de uma ou outra ação4. Para clarificar os elementos formadores de um dile-

1 RICOEUR, Paul. Da metafísica à moral. Trad. Sílvia Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 39 e ss.

2 WILLIAMS, Bernard. Ethics and the limits of philosophy. 2. imp. Glasgow: Fontana Press/Collins, 1987. p. 174 e ss.

3 FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Trad. Vera Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 33.

4 Artigos seminais sobre o conceito de dilemas morais são os de MARCUS, Ruth Barcan. Moral Dilemmas and Consistency. The Journal of Philosophy, New York, v. 77, n. 3, p. 121-136, mar. 1980; e o de WILLIAMS, Bernard. Conflicts of Values. In: WILLIAMS, Bernard. Moral Luck. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. p. 71-82.

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ma moral, o conceito analítico proposto por Philippa Foot (1920-2010)5 é útil, pois relaciona a necessidade de a situação ser um caso especial de dilema em que existam evidências favoráveis e evidências contrárias a certa conclusão sobre o que o indivíduo envolvido na situação deve fazer (dever prático) e a necessidade de se tratar de um conflito de princípios morais em que um pode substituir o outro, já que ambos conseguem assumir julgamentos válidos e causam ambiguidade em relação a qual a ação correta, uma vez que todos os deveres não podem ser seguidos ao mesmo tempo.

A partir da conceituação do tema central do estudo, elegeram-se três casos-chaves para nortear as reflexões propostas, os quais permitirão consi-derações sobre a completude, a adequada fundamentação e os limites da res-ponsabilidade criminal de indivíduos que provocam resultados desvalora-dos, atingindo bens jurídicos penalmente protegidos, quando se encontram diante de situações de dilemas morais.

Para auxiliar a reflexão, alguns conhecimentos traçados pela filosofia e pela psicologia moral serão correlacionados com figuras da dogmática penal, nomeadamente as causas de justificação (conflito de deveres e estado de ne-cessidade defensivo) e causas de exculpação ou desculpa (inexigibilidade de conduta diversa).

1 DILEMAS MORAIS E DIREITO PENAL

1.1 Casos de dilemas morais e direcionamentos do Direito Penal

Nem todos os dilemas morais possíveis de serem vivenciados pelo ser humano vão constituir verdadeiro estado de necessidade ou conflito de de-veres jurídicos, pois o Direito busca, ao fixar os seus princípios norteadores e as suas normas-regras, somente oferecer os direcionamentos básicos mais importantes para as condutas que afetam esferas jurídicas de terceiros e in-teresses juridicamente tutelados6. Dilemas morais constituem um conjunto

5 FOOT, Philippa. Moral dilemmas and other topics in moral philosophy. Reprinted. New York: Clarendon Press/Oxford University Press, 2008. p. 177 e ss.

6 Para uma perspectiva crítica sobre a relação da moral com o Direito, a tese da “diferença prática” e as funções motivacionais e epistêmicas das normas jurídicas nas deliberações dos cidadãos, ver BASTOS, Miguel Brito. Positivismo jurídico inclusivo: sobre a possibilidade da relevância de critérios morais no reconhecimento do Direito. In: OTERO, Paulo et al. Estudos em memória do Professor Doutor J. L. Saldanha Sanches. Coimbra: Coimbra, v. I, 2011. p. 901-936.

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mais amplo de dúvidas sobre a melhor ação ou a escolha correta diante de situações nas quais o sujeito não vê em seu julgamento interior qualquer op-ção inteiramente válida e que compatibilize as razões da ação que realiza com a que deixa de fazer.

A complexidade da vida e dos seres humanos por vezes coloca o indi-víduo diante de situações em que a melhor decisão a ser adotada, ou aquela que é exigida pelo Direito, não é tão clara, sendo relevante para este estudo o que vou denominar de “dilemas morais-criminais”, isto é, aqueles dilemas morais cujas consequências das escolhas afetam bens e interesses penalmente protegidos.

Os casos de dilemas morais juridicamente relevantes são tratados pela dogmática penal no campo da ilicitude, com a previsão de algumas causas de justificação (direito de necessidade e conflito de deveres), e no campo da culpa, analisando-se o grau de reprovabilidade do agente diante da conduta que realizou (estado de necessidade desculpante e inexigibilidade de condu-ta diversa).

Basicamente, o direito de necessidade7 assegura que não é considerada ilícita (contrária ao Direito) uma conduta que resulte no sacrifício de certo interesse ou bem jurídico quando somente foi praticada para salvaguardar, afastando um perigo atual, outros interesses sensivelmente superiores.

Não constituem o objeto de análise do presente estudo situações em que haja um interesse “sensivelmente superior”8 a ser protegido e que para salvá-lo seja razoável impor ao lesado o sacrifício do seu bem jurídico, pois não se estará, em última análise, diante de um dilema moral-criminal, uma vez que há uma intuição moral comum às pessoas para agirem dessa forma e uma expressa indicação jurídica do que deve ser feito.

Diferentes são as situações pensadas para o estado de necessidade desculpante9, pois aí o interesse protegido não é sensivelmente superior ao sacrificado, podendo ser inferior ou de mesmo patamar, desde que seja re-

7 Previsto no art. 34º do Código Penal português.8 O significado do termo “sensível superioridade do interesse” não é sempre evidente.

Surgem dúvidas sobre a sua amplitude e possibilidade da existência de um estado de necessidade defensivo, como se verá adiante no desenvolvimento do relatório, nos casos de conflito entre vidas, como bem explica PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal – Parte geral – A teoria geral da infracção como teoria da decisão penal. Lisboa: AAFDL, 2013. p. 290 e ss.

9 O estado de necessidade desculpante é previsto no art. 35º do Código Penal português.

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lativo à vida, à integridade física, à honra ou à liberdade (do agente ou de terceiro). Nesses casos, há um verdadeiro dilema moral-criminal, pois não se vislumbra uma opção de ação inteiramente aceitável, mas entende-se que o agente escolheu uma conduta para proteger algum bem jurídico importante. A partir de um juízo de razoabilidade sobre o que é possível se exigir de uma pessoa na situação concreta, pode o Direito desculpar o agente que escolheu uma ação considerada ilícita.

No entanto, a solução a priori indicada pela interpretação estrita do di-reito de necessidade e do estado de necessidade desculpante não é suficiente quando se está diante de uma colisão de bens jurídicos imponderáveis ou de igual valor (vida versus vida no caso da tábua de Carneades, por exemplo). Como criticado por Arthur Kaufmann (1923-2001)10, haveria uma estranha consequência de o Direito exigir, para não ocorrer nenhuma conduta ilícita, que uma das pessoas morresse voluntariamente ou que ambas vencessem o instinto natural de preservação da própria vida e morressem (para não matar).

Fernanda Palma pondera que existem alguns casos em que não se pode negar o direito de legítima defesa aos envolvidos na situação de um dilema moral-criminal/estado de necessidade11, mas ao mesmo tempo não ganham esses conflitos irresolúveis de interesses e valores dimensões de uma causa de justificação em sentido forte, ficando em um campo de “não proibido” ou de “permissão fraca”12.

Em uma interpretação restrita e rigorosa da dogmática penal, como a realizada por Jescheck (1915-2009)13 e Germano Marques da Silva14, em qualquer caso de ação a pessoa agiria sempre ilicitamente, ainda que pudes-

10 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 2. ed. Trad. António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 340-341.

11 “Por um lado, a alínea c) [do art. 34º do CP português] subtrai a vida, indiscutivelmente, ao objecto passivo do estado de necessidade, por outro lado, a negação do direito de defesa àqueles agentes que meramente se estejam a defender contra os causadores, por actos não ilícitos, do perigo contra a vida, remetê-los-ia para um estado de absoluta sujeição.” (PALMA, Maria Fernanda. Direito... op. cit., p. 295)

12 PALMA, Maria Fernanda. A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos. Lisboa, AAFDL, v. II, 1990. p. 814 e ss.

13 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. Trad. S. Mir Puig e F. Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, v. 1, 1981. p. 490 e ss.

14 SILVA, Germano Marques da. Direito penal português: teoria do crime – Parte geral II. Lisboa: Editorial Verbo, 1998. p. 125.

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se ser desculpada devido à situação motivacional extrema e a sua intenção ser de salvamento da própria vida e não de violação do bem jurídico (vida) de terceiro. No entanto, considerando sempre a ilicitude da ação nesses ca-sos, chegar-se-ia a aporia de se permitir a legítima defesa por meio de uma conduta ilícita que ao mesmo tempo estaria proibida, conforme descrito por Kaufmann15.

Assim, para vencer essa contradição lógica, surgem duas alternativas principais: i) a aceitação de um espaço livre de valoração jurídica, como de-fendido por Kaufmann16, em razão de o próprio Direito não conseguir estabe-lecer o que seria correto fazer em tal situação extrema; e ii) a aceitação de uma cláusula geral/supralegal de estado de necessidade defensivo justificante, como defendido por Fernanda Palma17.

Fundamenta a primeira proposta de solução que, em razão de não exis-tir um critério unívoco e seguro para se afirmar diante do conflito moral e ju-rídico do caso como o agente deveria agir, não se poderia formular um juízo de desvalor da ação típica, cabendo ao Direito aceitar que há situações, mes-mo ocorrendo um resultado juridicamente desvalorado, em que a escolha de como agir deve ficar inteiramente restrita ao campo moral da consciência do agente, não sendo ela proibida e nem valorada positivamente pelo Direito.

Já a segunda linha de resposta possível, da qual se ocupará de forma mais próxima neste estudo, propõe que existem situações extremas de perigo e dilema existencial nas quais o Direito não pode impor à pessoa que suporte o sacrifício de um bem jurídico fundamental, mesmo quando em conflito com o de outrem. Para esses casos, portanto, é cogente que se aceite a existência de uma hipótese supralegal de justificação chamada estado de necessidade de-fensivo, que permitirá que se considere lícita/não contrária ao Direito (ainda

15 “Se ambos os náufragos lutarem entre si para alcançar a tábua, deverá a sua acção ser em qualquer caso considerada como uma agressão ilícita. Perante uma agressão ilícita pode agir-se em legítima defesa. Legítima defesa em face de legítima defesa não existe todavia.” (KAUFMANN, Arthur. Filosofia... op. cit., p. 341)

16 Idem, p. 337-349.17 PALMA, Maria Fernanda. A justificação por... op. cit., p. 797 e ss.; e PALMA, Maria Fernanda.

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que em um sentido fraco)18 a conduta que atingiu um resultado penalmente desvalorado (conduta típica justificada) diante de um dilema moral-criminal.

O conflito de deveres19, como espécie ou manifestação particular do direito de necessidade/estado de necessidade justificante, ocorre por não es-tarem em confronto apenas interesses, bens ou valores20, mas pelo Direito exigir a realização de condutas incompatíveis entre si, seja por serem anta-gônicas ou pela impossibilidade de realização de todas ao mesmo tempo21.

No caso de conflito de deveres de ação de igual valor22, como o Direito não estabelece critérios de escolha, consistindo em deliberado “espaço livre de direito” no campo da análise do injusto penal23, exige-se apenas que o agente cumpra um dos deveres para a sua conduta não ser considerada ilícita. No entanto, quando o conflito é entre um dever de ação e outro de omissão, mesmo não estando expressamente previsto na legislação penal, entende-se que deve prevalecer o dever de omissão em razão dos princípios fundamen-tais do Direito e do dever geral de não ingerência em bens jurídicos alheios24.

18 Expressão utilizada por Maria Fernanda Palma (A justificação por... op. cit., p. 798-799), ao tratar dos casos de condutas defensivas próximas à legítima defesa, mas em que tanto o “agressor” quanto o defendente são juridicamente inocentes.

19 Previsto como causa de justificação específica no art. 36º do Código Penal português.20 PALMA, Maria Fernanda. Direito... op. cit., p. 298.21 SILVA, Germano Marques da. Direito... op. cit., p. 123-124.22 Os dois exemplos clássicos de conflito de deveres de ação são: i) o do pai que só pode salvar

um dos dois filhos que se encontram em perigo simultâneo de afogamento, sendo que o pai salva um e o outro morre; e ii) o caso do médico que só consegue atender um de dois pacientes que chegam simultaneamente em perigo de vida, sendo que um é atendido e o outro morre, conforme SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. rev. e ampl. Curitiba: Lumen Juris, ICPC, 2007. p. 254.

23 Parece que neste ponto fica prejudicada a conclusão de que a doutrina do “espaço livre de direito” importaria apenas a áreas “pré-típicas”, não existindo qualquer implicação ou relevância de tal doutrina dentro da análise do injusto, como parece defender SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito... op. cit., p. 223.

24 Em que pese alguns doutrinadores considerarem que tanto o atuar quanto o omitir são igualmente merecedores de desaprovação e que, portanto, só podem ser tratados no âmbito da exclusão da culpabilidade, como, por exemplo, JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado... op. cit., p. 499-500.

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Assim, entende a doutrina majoritária25-26 que não se poderia propriamente falar em conflito de deveres (onde bastaria escolher uma das exigências do Direito para a conduta não ser ilícita), pois o Direito não poderia exigir uma conduta que implicasse a violação de um de seus princípios fundamentais27.

Não merece maior atenção o conflito entre deveres de omissão, pois bastaria o agente não realizar nenhuma das condutas e estaria cumprindo ambos os deveres28. Ainda que se considere, no entanto, possíveis esses con-flitos, pensando em casos nos quais haveria uma impossibilidade de se omitir na violação de bens jurídicos de diversas pessoas, a solução para esses casos seguiria a mesma lógica do conflito de deveres de ação, em que iria se esco-lher proteger o bem de maior valor ou, sendo iguais, escolher-se-ia apenas uma ação para violar o dever de omissão, omitindo-se em relação às demais esferas jurídicas29.

A reflexão sobre as decisões que envolvem dilemas morais, seja no campo da filosofia moral, seja do Direito Penal ou, mesmo, da psicologia mo-ral, tem como exemplo comum o caso do trem desgovernado30, em que pese ainda exista pouca crítica sobre a mudança de julgamento moral e as suas

25 Conforme ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 2. ed. atual. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2010. p. 190, nota 5.

26 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida contra vida: conflitos existenciais e limites do Direito Penal. Coimbra: Coimbra, 2009. p. 340-344.

27 O Direito pode aceitar e até valorar positivamente, como, por exemplo, quando o agente é um garantidor que tem o dever de evitar um resultado e para isso viola um bem jurídico de outrem, mas tais casos podem ser refletidos sob a mesma avaliação e lógica que os casos de direito de necessidade ou estado de necessidade justificante, o que se permitirá fazer sem a indicação em todos os momentos de ser especificamente um conflito de deveres ou pertencer tão somente à categoria geral do estado de necessidade justificante.

28 SILVA, Germano Marques da. Direito... op. cit., p. 124.29 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida... op. cit., p. 806-807.30 Há dúvida se foi formulado pela primeira vez pela filósofa Phillipa Foot ou pelo penalista

Hans Welzel, conforme HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas: casos difíciles de estado de necesidad desde la perspectiva filosófica-moral y jurídico-penal. Trad. Nuria Pastor Muñoz. Revista para el Análisis del Derecho, Barcelona, n. 2, 31 p., jul. 2010. Disponível em: <http://www.indret.com/pdf/744_es.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2014. É certo, contudo, que o caso do trem desgovernado vem sendo discutido por diversos penalistas até hoje, como, por exemplo, JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado... op. cit., p. 499-500; e ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General – Fundamentos. La estructura de la Teoria del Delito. 2. reimp. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña et al. Madrid: Civitas, t. I, 2003. p. 687.

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consequências quando se apresenta o segundo cenário para se parar o trem desgovernado. Basicamente, o dilema consiste na conjectura de um trem des-governado estar se deslocando em direção a cinco trabalhadores que estão na linha férrea e que não podem ser avisados ou retirados dos trilhos. Na primeira hipótese, o agente pode desviar o trem para uma linha secundária puxando uma alavanca, mas, neste caso, a sua decisão, em que pese salvar a vida de cinco pessoas, ocasionará a morte de outro trabalhador que se encon-tra nessa segunda linha. E uma segunda hipótese seria a possibilidade de pa-rar o trem, e, assim, salvar a vida dos trabalhadores que estão nos trilhos, em-purrando um terceiro indivíduo na frente do trem. É a partir dessa segunda hipótese que os estudos da influência psicológica das emoções nas decisões e nos julgamentos morais ganharam relevo contemporâneo, pois se verificou que a maioria das pessoas utilizaria um julgamento racional utilitarista para puxar a alavanca, mas se recusaria a empurrar uma pessoa com as próprias mãos nos trilhos do trem para evitar a morte dos trabalhadores31.

Outro exemplo, um caso real ocorrido em junho de 2005, é o dilema moral dos “pastores afegãos”. Sucintamente, trata-se da decisão que quatro soldados americanos, os quais foram cumprir uma missão de vigilância de uma aldeia afegã, tiveram que tomar quando se depararam com três pastores de cabras afegãos desarmados. Não tendo como amarrá-los ou prendê-los, os soldados precisaram decidir se matariam os pastores ou os deixariam ir, mesmo com o risco de eles informarem os insurgentes talibãs da presença dos soldados. A decisão no caso concreto foi de não matar os pastores afe-gãos, que acabaram informando os talibãs, ocasionando, posteriormente, a morte de três dos quatro soldados envolvidos na decisão, além de outros 16 soldados estadunidenses que foram em socorro aos quatro soldados e, ainda, a queda de um helicóptero norte-americano32-33.

Em que pesem as situações extremas e improváveis dos exemplos ci-tados, dilemas morais fazem parte da vida em sociedade, vislumbrando-se

No campo da psicologia moral, pode-se ver o caráter central que tal dilema adquire em GREENE, Joshua. Moral Tribes: emotion, reason and the gap between us and them. New York: The Penguin, 2013. p. 113 e ss.

31 GREENE, Joshua. Moral... op. cit., p. 116.32 O caso é relatado pelo suboficial Marcus Luttrell, o único sobrevivente da operação inicial,

em LUTTRELL, Marcus; ROBINSON, Patrick. Lone Survivor: the eyewitness account of Operation Redwing and the lost heroes of Seal Team 10. New York: Little, Brown and Company, 2007.

33 A história também foi relatada no filme de 2013 Lone Survivor, dirigido por Peter Berg.

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vários deles no contexto de condições sociais adversas, em que os vínculos normativos comunitários são rompidos para preservar os valores concreta-mente superiores, como citado por Juarez Cirino dos Santos34, em procedi-mento médicos de pronto atendimento e em operações policiais de forças de segurança.

Assim sendo, a principal função deste artigo consiste em tentar harmo-nizar (ou constatar ser impossível) os julgamentos que são feitos com os prin-cípios que se afirmam no Direito Penal. Em outras palavras, a aplicação do Direito Penal em casos como esses não significa tão somente a aplicação da lei penal a um caso concreto específico, mas sim as luzes que indicam o caminho e a direção do que se entende como a moral adequada (a coisa certa a fazer) na sociedade e a justiça ou ética que se busca (a melhor maneira de viver).

1.2 (In)Consistência das respostas penais aos casos de dilemas morais: sempre prevalece o dever de omissão em casos de conflito ação versus omissão?

Para facilitar a reflexão proposta, concentrar-se-á na discussão dos di-lemas que envolvem a colisão vida contra vida35, na perspectiva de um tercei-ro com obrigação de evitar o resultado morte, que não tem o seu bem jurídico em situação de perigo, e quando o conflito consiste em sua ação de salvar uma vida (ou várias) coincidir na violação do seu dever geral de omissão/de não matar. Em outras palavras, refletir-se-á sobre os casos em que um terceiro garante (não pertencente à comunidade de perigo36) só pode salvar uma ou algumas vidas matando outra(s) pessoa(s)37. Verificar-se-á, portanto,

34 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito... op. cit., p. 340-343.35 Tema extensamente tratado por CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida... op. cit.36 “Uma parte da doutrina julga – desde há muito – encontrar ocasião para uma resposta

afirmativa [sobre a licitude/existência de causa de justificação] nos casos chamados de ‘comunidade de perigo’: quando, havendo várias pessoas todas elas colocadas numa situação comum de perigo para a vida, se sacrifica uma ou algumas delas como única e adequada forma de impedir que outra ou outras pereçam.” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – Parte geral – Questões fundamentais e a doutrina geral do crime. 2. ed. (2. reimp.). Coimbra: Coimbra, t. I, 2012. p. 452)

37 O problema proposto relaciona-se, como se verá, com diversas reflexões desenvolvidas por Maria Conceição Ferreira da Cunha, sendo, no entanto, mais complexo, uma vez que mescla conceitos por ela tratados nas “comunidades de perigo alternativas” com situações da vítima estar “marcada pelo destino” e “arrastando” outrem para a morte, conforme CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida... op. cit., maxime p. 321 e ss. e 693 e ss.

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se é possível um estado de necessidade defensivo de terceiro, qualificando o terceiro como garante para intensificar a problemática proposta. É neste ponto particular que se pode contribuir com a insuficiente reflexão existente na doutrina penal.

Como visto, para fins heurísticos, pode-se reunir as possíveis respostas da doutrina jurídico-penal para os dilemas morais (sejam eles do tipo ação x ação ou ação x omissão, importando no momento esta última categoria) em três principais linhas: i) os que consideram que só se pode tratar desses casos no campo da exclusão da culpabilidade/desculpa, pois são casos em que há uma colisão de deveres insolúvel juridicamente, nos quais qualquer escolha do agente o levará a cometer um ato ilícito38; ii) os que defendem a doutrina do “espaço livre de direito”39, cuja essência consiste em aceitar a insuficiência da valoração da conduta típica apenas na oposição binária lícito ou ilícito, reconhecer que o Direito não consegue dizer o que é o correto ou o errado em casos extremos de dilemas morais e que é possível um instituto penal “não proibido, nem permitido”, para analisar a conduta típica e não caracterizar o injusto penal; iii) os que entendem em alguns casos ser viável tratar dos dile-mas existenciais no campo da antijuridicidade por considerarem a existência de uma causa de justificação supralegal de estado de necessidade defensivo, na qual se enquadrariam casos em que uma pessoa representa uma fonte de perigo para a outra40.

Para refletirmos sobre o estado de necessidade e sobre as consequên-cias (éticas e jurídicas) de um enquadramento justificante ou desculpante, imagine-se um exemplo que se aproxima da clássica situação dos alpinis-tas utilizada pela doutrina penal41, mas que com ela se diferencia de forma significativa e que caracteriza um dilema moral difícil de ser valorado pelo

38 ROXIN, Claus. Derecho... op. cit., p. 688-690; e JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado... op. cit., p. 499-500.

39 KAUFMANN, Arthur. Filosofia... op. cit., p. 345-349.40 A doutrina penal portuguesa tem fortes representantes desta posição como PALMA, Maria

Fernanda. Direito... op. cit., p. 278-283; PALMA, Maria Fernanda. A justificação... p. cit., maxime p. 798-815; e DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., maxime p. 454-456.

41 O exemplo clássico estudado pelo Direito é aquele em que dois alpinistas ficam pendurados por uma corda capaz de aguentar apenas um deles e o que se encontra na posição superior corta a corda abaixo dele, matando o outro alpinista que cai no abismo. Já se encontra este exemplo sendo citado em 1895, quando foi publicada a primeira edição de MERKEL, Rudolf. Die Kollision Rechtmässiger Interessen und die Schadenersatzpflicht bei Rechtmässigen Handlungen. Reimp. London: Forgotten Books, 2013.

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Direito: um guia de alpinismo, que tem o dever jurídico pessoal de evitar o resultado morte ou lesão corporal dos indivíduos que o contrataram para guiá-los em segurança em uma montanha (garante ou garantidor), comete um erro e os seus conduzidos A e B ficam pendurados um de cada lado de uma única corda. Tome-se como verdade que o guia não consegue puxar os dois, não existe como conseguir socorro/resgate e que a corda não suportará os dois indivíduos, um de cada lado, por muito tempo, sendo necessário para salvar um dos indivíduos, cortar o lado da corda do outro, ocasionando-lhe a morte inevitavelmente.

Observe-se que não se trata de um indivíduo que se encontra em si-tuação de perigo e que, para salvaguardar o seu próprio bem jurídico vida, sacrifica o de outrem, como também não se trata de simplesmente escolher entre um dos deveres de ação em conflito e deixar de salvar o outro.

O problema do exemplo é que a obrigação de ação impõe ao mesmo tempo, na mesma conduta, uma violação ao dever de omissão a um terceiro que não tem nenhum bem jurídico em perigo. Escolher um dos dois para sal-var significa matar o outro, violar o dever de omissão de não retirar a vida de um inocente, a qual o garantidor tinha, de forma mais contrastante, o dever jurídico especial de proteger.

Não se está neste caso diante de um conflito de deveres de ação, nem de um conflito de deveres de ação e omissão como os pensados tradicional-mente pela doutrina penal, pois todas as alternativas impõem uma violação inaceitável pelo Direito em outras situações já analisadas.

Por outro lado, em uma primeira análise, também não parece aceitável que o sujeito simplesmente se omita, condenando ambos à morte, quando poderia salvar ao menos uma vida humana42.

Resolver dilemas morais não é apenas uma questão moral, mas uma questão ética, de fornecer indicativos por meio do Direito sobre o que se espe-ra da vida em sociedade, das pessoas e do que se considera justiça. Não con-siderar ilícita uma conduta ativa do guia de alpinismo (seja por ser justificada ou por ser enquadrada em um instituto de “não proibido, nem permitido”) retira a concepção de princípio absoluto da prevalência da omissão ao ato de matar um inocente em relação ao ato de salvar outro. Tal concepção absolu-

42 Posição já defendida, como redução de um mal inevitável, por WEBER, Hellmut von. Das Notstandsproblem und seine Lösungen in den deutschen Strafgesetzentwürfen von 1919 und 1925. Leipzig: Weicher, 1925. p. 30.

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tista já foi questionada pela doutrina43, mas ficou em aberto do ponto de vista da valoração jurídico-penal (apesar de a previsão legal ter sido considerada inconstitucional) quando o Tribunal Constitucional alemão discutiu sobre o abate de aeronaves de passageiros sequestradas por terroristas44. Contudo, há fortes argumentos para se considerar a ação de abate como justificada pelo estado de necessidade defensivo45, apesar de tal direcionamento gerar inevi-tavelmente interpretações mais extensivas sobre o que é aceito pelo Direito diante de ponderações entre vidas. Ao menos a lógica que se utiliza para esta discussão é modificada, pois caso se aceite um cálculo utilitarista, ainda que conduzido pelo que se considera a “irreversibilidade aparente do destino”, por que não se aceitaria tal lógica sempre?

Evidentemente que existe sempre uma incerteza do desdobramento dos eventos, o que dificulta qualquer análise de dilemas morais, mas ou o Direito analisará os casos em retrospectiva diante de um caso concreto ou em perspectiva como ora se faz, o que iguala as situações em uma ponderação sobre a incerteza do momento e o drama da experiência existencial do agente. Esses são fatores que o julgador irá ponderar diante do caso concreto, mas que não permitem uma diferenciação de lógicas em uma reflexão acadêmica em que se busca questionar o que seria moral e juridicamente ideal fazer. É a partir dessas reflexões que se estabelecem os paradigmas do Direito e da justiça que se quer como sociedade46. São os seres humanos e a sociedade que têm que decidir o que é certo fazer.

43 PALMA, Maria Fernanda. O estado de necessidade justificante no CP de 1982. In: PALMA, Maria Fernanda; ALMEIDA, Carlota Pizarro de; VILALONGA, José Manuel (Coord.). Casos e materiais de direito penal. Coimbra: Almedina, 2000. p. 183 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., maxime p. 450-456.

44 HÖRNLE, Tatiana. Matar... op. cit., p. 5 e ss.45 Conforme DIAS, Augusto Silva. Torturando o inimigo ou libertando da garrafa o gênio do

mal? Sobre a tortura em tempos de terror. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 10, n. 18, p. 39-83, 2010, maxime p. 67 e ss.

46 Quando se afirma simplesmente que se trata da “opção entre um mal total e um mal parcial mais próximo”, como em um primeiro momento afirma Maria Conceição Ferreira da Cunha (Vida... op. cit., p. 345) (reabrindo a discussão e a reflexão no decorrer da tese), se adota um posicionamento ético que trará reflexos e uma lógica que não pode simplesmente ser cindida sem consequências de dúvidas permanentes sobre a ética e a decisão moral em casos limites. Far-se-ão algumas considerações no decorrer do trabalho, ainda que não de forma exaustiva, sobre a corrente filosófica denominada particularismo, que em um primeiro momento apresentaria divergência com as considerações agora realizadas.

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Isso pode, como visto, levar à conclusão de que o Direito em alguns campos não pode atuar, ou seja, deve deliberadamente se abster de valorar algumas decisões/condutas e deixá-las apenas a cargo da consciência e do julgamento moral do agente. Entretanto, antes de se filiar a tal posicionamen-to ou de negá-lo, o que talvez não possa ser peremptória e satisfatoriamen-te concluído neste artigo, precisa-se: a) estudar os critérios utilizados pela filosofia e pela psicologia para resolver casos de dilemas morais; b) refletir sobre as contribuições e os argumentos que tais ciências podem trazer para a solução dos dilemas morais-criminais aqui esboçados; c) esgotar a reflexão jurídica sobre as possibilidades de solução e as suas consequências dentro da dogmática penal. É o que se passa a fazer, ao menos em parte, na sequência.

2 CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA AOS CASOS DE DILEMAS MORAIS

Talvez a teoria filosófica que melhor responda aos questionamentos que surgem quando nos encontramos diante de dilemas morais seja a do uti-litarismo, pois, além de intuitiva, ela permite uma racionalização das vanta-gens e desvantagens das escolhas possíveis. Isso ocorre porque o utilitarismo entende que é possível mensurar e comparar todos os valores e bens em uma única escala de valores, a da utilidade ou, especificamente, a da felicidade/prazer e da infelicidade/dor47. Em uma lógica de custo e benefício, em que o objetivo seria sempre maximizar a utilidade de uma escolha, ou seja, pro-porcionar o maior “bem-estar”/felicidade para o maior número de pessoas48.

Mesmo que prevaleçam os valores intrínsecos da personalidade do indivíduo no momento da decisão, é impensável que o Direito, em algum momento de uma análise retrospectiva do fato, não pondere ou questione qual foi o cálculo de custo e benefício na situação concreta e que deveria o agente ter ao menos considerado hipoteticamente em sua avaliação mental no momento dos fatos.

Observe-se que não se trata especificamente das teorias utilitaristas de Jeremy Bentham (1748-1832)49 ou John Stuart Mill (1806-1873)50, as quais, para

47 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 4. ed. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 48 e ss.

48 BENTHAM, Jeremy. The Principles of Morals and Legislation. 7. reimp. New York: Hafner Press, 1973. p. 3.

49 BENTHAM, Jeremy. The Principles... op. cit.50 MILL, John Stuart. Utilitarianism. 4. ed. London: Longmans, Green, Reader and Dyer, 1871.

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guardar uma lógica sistêmica de teoria, não podem fazer certas concessões, mas trata-se de uma lógica utilitarista que permeia essas teorias, o pensamen-to humano e o julgamento moral de dilemas morais.

No caso do guia de alpinismo que precisa escolher entre se omitir e deixar que duas pessoas morram ou matar uma delas para salvar a outra, não se cotejam apenas “vidas”. Ao avaliar a situação, o guia pondera como se en-xergará no futuro, como conversará com a sua consciência nos momentos de solidão, o que os familiares de quem ele matar sentirão e como lhe julgarão, o que espera como sociedade e como esperaria ser tratado se estivesse na situa-ção contrária. Esses valores não são quantificáveis, mas podem ser colocados em uma balança de ponderação mental quando se reflete sobre a ética e a moral aceitáveis ou desejáveis em uma situação de dilema como essa.

A visão fundamentalista de que não se ponderam vidas humanas sob nenhuma circunstância51 descarta rápido demais as contribuições que esta corrente da filosofia moral pode fornecer. Não parece, contudo, que o utilita-rismo filosófico nos forneça respostas suficientes e adequadas para o dilema hipotético proposto, pois não é possível verificar prima facie, ou sem a elabo-ração de uma argumentação com elementos mais longínquos e incertos, qual seria a escolha com maior utilidade, isto é, moralmente certa.

A moral kantiana traz respostas mais seguras e confiáveis para alguns casos, como, por exemplo, o dos pastores afegãos, pois, de acordo com Imma-nuel Kant (1724-1804), fazer a coisa certa é escolher e se motivar pelo dever, alcançado aprioristicamente pela racionalidade humana universal, que faz com que uma ação seja boa em si mesma, independentemente das suas con-sequências ou de qualquer experiência52.

51 O caso dos médicos nazistas (que matavam algumas poucas crianças doentes mentais para evitar que fossem substituídos por médicos alinhados ao governo nazista e que matariam todas as demais ou em um número muito maior) é visto como uma impossibilidade da utilização do utilitarismo para o caso de vidas humanas, não podendo existir uma causa de justificação para o caso. Neste sentido, por exemplo, ROXIN, Claus. Derecho... op. cit., p. 687-688; e DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., p. 453-454.

52 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 261-269.

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O ser humano só age moralmente quando age autonomamente53, isto é, sem influências que não as advindas da sua reflexão racional54, que cria os imperativos categóricos55, os quais devem ser cumpridos tão somente por constituírem deveres.

Partindo dessa concepção anticonsequencialista, os soldados estaduni-denses agiram moralmente, ou seja, fizeram a coisa certa ao não executar os pastores afegãos. O dever é não matar pessoas desarmadas, pouco importan-do as consequências que o não matar pode gerar. E foi assim que os soldados escolheram, não existindo, sob esta ótica, qualquer dúvida de que decidiram bem, corretamente.

Diferente é o caso do guia de alpinismo, pois a lei universal alcançável pela razão impõe que não se deve matar um inocente, mas ao mesmo tempo impõe que se deve salvar ao menos a vida de uma pessoa quando não é pos-sível salvar as de todos os que se encontram em perigo. Neste caso, o dever de não agir para matar um inocente deve prevalecer, mesmo impondo um dano absoluto, já que as duas pessoas morreriam? Não se estaria instrumen-talizando o ser humano (usando-o como meio), impondo o sacrifício de duas vidas humanas, quando seria possível salvar uma ao menos, para simples-mente manter a lógica de uma teoria moral abstrata e formal?

Em manifesta oposição às ideias de Kant, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) ataca o universalismo da moral defendendo que não existem

53 “O agir livre é o agir moral; o agir moral é o agir de acordo com o dever; o agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza. Daí decorre que o sumo bem só pode ser algo que independa completamente de qualquer desejo exterior a si, de modo que consistirá no máximo cumprimento do dever pelo dever.” (Idem, p. 264)

54 Não se discutirá aqui, por não ser o objeto central deste relatório, ainda que se trate de uma dúvida fundamental, a possibilidade ou não da liberdade no sentido de Kant, como questionada por André Comte-Sponville, ao refletir sobre se é o cérebro que quer o que se quer, como se poderia ser realmente autônomo se, no presente, não se consegue ser, pensar ou querer outra coisa senão o que se pensa ou o cérebro pensa? Ver COMTE-SPONVILLE, André; FERRY, Luc. A sabedoria dos modernos: dez questões para o nosso tempo. Trad. Filipe Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. p. 33-38.

55 “O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade [...] se a acção é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.” (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 50)

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ações boas ou más em si mesmas, exigindo-se, antes de determinar o valor de uma conduta, a verificação de quem a está realizando e em que circuns-tâncias56.

Para Nietzsche, qualquer julgamento moral deveria incluir uma análi-se da subjetividade do indivíduo, dos seus desejos e das suas necessidades, não desprezando ou tomando como ruins os instintos naturais sempre pre-sentes no ser humano.

O ponto central de sua filosofia moral para este trabalho consiste em sua defesa da impossibilidade de generalização de valores e no fato de consi-derar que a vontade nada mais é do que um complexo de sensações incons-cientes que decorrem de fatores/direcionamentos fisiológicos e psicológicos, inerentes à natureza humana e aos desejos e às necessidades de sobreviver e ter “potência”. Em A Gaia Ciência, Nietzsche propõe um critério interessan-te para cada pessoa descobrir se deve fazer um ato ou não, se aquele ato é “bom” para ela naquele momento e naquelas circunstâncias: a ideia do “eter-no retorno”57. Tal modelo pode auxiliar na reflexão sobre como solucionar dilemas morais, consistindo basicamente em imaginar como se agiria caso soubesse que aquela situação concreta, exatamente como a que se apresenta, fosse retornar eternamente, infinitas vezes, na sua vida.

Utilizando o critério de decisão moral do eterno retorno, parece que a maioria das pessoas diante de dilemas morais como o dos soldados esta-dunidenses, do guia de alpinismo ou do trem desgovernado simplesmente se recusaria a aceitar viver aquilo repetida e infinitas vezes. Não se decidira assim infinitas vezes, porque não existe ação boa possível diante da esco-lha apenas entre opções más. Mesmo em um sistema filosófico como o de Nietzsche, em que há um relativismo moral, forçar decisões extremas a partir de um raciocínio do “eterno retorno” seria possível apenas para um homem irreal e ainda assim seria uma escolha pela “não decisão”.

Talvez em casos extremos de dúvidas sobre qual a melhor maneira de agir, de fato o livre-arbítrio não exista, ou fique muito mitigado, restando impulsos inconscientes e primitivos, inalcançáveis na área da filosofia58, mas que precisam ser compreendidos para o Direito manter alguma coerência lógica e sistêmica.

56 Neste sentido, FOOT, Philippa. Moral... op. cit., p. 149.57 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia

das Letras, 2012, aforismo 341 (A carga mais pesada).58 FOOT, Philippa. Moral... op. cit., p. 153.

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3 PERSPECTIVA PSICOLÓGICA DAS DECISÕES DIANTE DE DILEMAS MORAIS

Yves de La Taille baliza que a moral do ponto de vista psicológico con-siste em uma autoimposição de deveres pelo indivíduo, “um sentimento de obrigatoriedade que pode receber diversos conteúdos”59.

Excluindo os casos de patologias psicológicas e psiquiátricas, as pesso-as experimentam, de alguma maneira, sentimentos de obrigatoriedade que elas mesmas aceitam como próprios. O conteúdo desses sentimentos pode advir de diversas fontes e ser variado, existindo sempre, em alguma medida, a adoção e internalização pelo indivíduo de valores culturais e sociais do meio em que vive60.

São esses sentimentos de obrigação, quando em conflito, que consti-tuem os dilemas morais61, pois esses nada mais são do que uma experiência interior/psicológica de dúvida sobre o que fazer que é imposta quando se depara com uma situação fática, no mundo exterior ao dos pensamentos, que não permite adotar/realizar ao mesmo tempo condutas que são considera-das obrigatórias. Um dos deveres que se impõe não será realizado ou uma obrigação de não fazer será violada para realizar um dever. Tal obrigação é sentida independente da lógica moral que se utiliza, pois o utilitarista se sente obrigado a escolher de acordo com o princípio da maior utilidade/bem-estar; enquanto o anticonsequencialista se sente com a obrigação de en-contrar a melhor ação em si mesma, a que deve fazer por um dever/valor maior ou preponderante.

A decisão moral (correta) em casos de dilemas morais não é evidente, ainda mais quando o resultado gerado pela(s) conduta(s) escolhida(s) pode

59 LA TAILLE, Yves de. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 31.

60 Não será possível abordar de maneira satisfatória, por questões metodológicas, devido ao que se propõe este artigo, a discussão sobre o relativismo antropológico ou a existência de conteúdos morais universais, questão que contrapõe diversas teorias psicológicas, sociológicas e antropológicas, como, por exemplo, Durkheim, Freud, Piaget e Kohlberg, conforme LA TAILLE, Yves de. Moral... op. cit., p. 12 e ss.

61 “[...] a indecisão não é decorrência de indiferença ou desleixo, mas sim de uma busca sincera e criteriosa de argumentos fortes. Aliás, pode até acontecer de serem sujeitos morais mais sofisticados que aqueles que já tomam posição, se estes o fizeram sem maiores reflexões, adotando dogmas ou limitando-se a seguir fielmente as decisões de autoridades políticas ou religiosas. Em resumo, o sentimento de obrigatoriedade moral não implica sempre o saber- -se qual o dever a ser seguido.” (Idem, p. 34-35)

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atingir bens juridicamente e penalmente tutelados. É preciso estudar por meio de quais processos mentais se decide e quais forças impulsionam para a ação diante de dilemas morais, pois o direito penal não pode ficar indiferente (fechando-se em um normativismo dogmático abstrato) às angústias do ser humano diante de situações limites/extremas de dúvida moral e existencial, quando muitos sentimentos e pensamentos conflitantes são experimentados pelo agente.

Considerando as duas dimensões psíquicas tradicionais, cognitiva ou racional e afetividade ou emocional62, durante muitos anos a psicologia moral ficou restrita a estudar o desenvolvimento do raciocínio moral que conduzia as pessoas a fazerem determinados julgamentos e a escolherem certas condu-tas63, existindo uma prevalência das pesquisas e teorias que consideravam a dimensão intelectual das decisões morais.

A teoria do desenvolvimento moral64, elaborada por Lawrence Kohlberg (1927-1987), por exemplo, preconiza que todo ser humano pode atingir uma plena competência moral com o desenvolvimento intelectual, existindo seis estágios para se atingir a autonomia, nível “pós-convencional”, em que o indivíduo conseguiria ter um elaborado raciocínio moral com base em princípios éticos universais de justiça e de dignidade humana65.

Pesquisas na área da psicologia do desenvolvimento66 revelam que nem sempre há correspondência entre o estágio de desenvolvimento moral em que uma pessoa se encontra, o seu julgamento moral e as ações por ela

62 Heuristicamente, pode-se dividir os variados aspectos multidimensionais que constituem a natureza psicológica do ser humano em quatro dimensões, que se correlacionam mutuamente: cognitiva, afetiva, biológica e sociocultural, conforme ARAÚJO, Ulisses Ferreira de. Conto de escola – A vergonha como um regulador moral. Campinas: Unicamp, 1999. p. 68 e ss.

63 PAXTON, Joseph M.; UNGAR, Leo; GREENE, Joshua. Reflection and Reasoning in Moral Judgment. Cognitive Science, v. 36, n. 1, p. 163-164, 2011.

64 Conforme Lawrence Kohlberg (The Philosophy of Moral Development: Moral Stages and the Idea of Justice. New York: Harper and Row, 1981. maxime p. 409 e ss.), os estágios do desenvolvimento moral são: 1) Punição e obediência; 2) Propósito instrumental individual e troca; 3) Expectativas mútuas interpessoais, relacionamentos e conformidade; 4) Sistema social e consciência de manutenção; 5) Direitos básicos, contrato social e utilidade; 6) Princípios éticos universais.

65 Idem, p. 190 e ss.66 BIAGGIO, Ângela M. B. Psicologia do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1988.

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realizadas na prática, isto é, o seu comportamento “moral”67. O ser humano tem diversas forças motivacionais/propulsoras além da razão, que assume mais uma função de guia para como agir, o que faz com que o “saber moral” (dimensão intelectual) nem sempre corresponda ao “querer fazer moral” (di-mensão afetiva)68 ou até mesmo ao conseguir fazer moral. Há outras determi-nantes para os comportamentos, existindo uma concorrência de influências que podem ser mais fortes do que o próprio sentimento de obrigação moral experimentado racionalmente pelo sujeito69.

Infere-se que, diante de dilemas morais, tais correlações sejam ainda mais complexas, pois o julgamento moral racional iguala as opções de esco-lha, não conseguindo argumentos suficientemente eloquentes para determi-nar qual é a conduta correta a ser adotada.

As modernas pesquisas da psicologia moral – que tradicionalmen-te focavam-se em modelos racionalistas, isto é, na ligação entre desenvol-vimento intelectual e moral ou, em outras palavras, entre raciocínio moral e julgamento moral – têm como cerne entender as funções e relações entre as emoções, as intuições afetivas, a reflexão e o raciocínio nos julgamentos morais70. Joshua Greene, professor e pesquisador-chefe do Moral Cognition Lab, do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard71, trabalha a partir da neuroimagem funcional com experimentos comportamentais em situações de dilemas morais, buscando entender os elementos cognitivos, os processos automáticos de “reações viscerais”, o processo psicológico-cerebral e a importância das emoções em julgamentos morais, tendo as suas pesquisas interesse especial e evidente para este estudo.

67 Conforme SANTOS, Flávia Carla Nepomuceno dos. Educação moral e redução da agressão em adolescentes. 2000. 82 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento) – Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000. p. 23 e ss.; e LA TAILLE, Yves de. Moral... op. cit., p. 23.

68 Conforme termos empregados por LA TAILLE, Yves de. Moral... op. cit.69 “E penso também que os ‘eclipses’ morais – habituais, infelizmente – não se devem à uma

suposta falta total de senso moral que acometeria a quase todos, mas sim ao simples fato de o sentimento de obrigatoriedade ser às vezes mais fraco do que outros sentimentos.” (Idem, p. 35)

70 PAXTON, Joseph M. et al. Reflection... op. cit., p. 172.71 A explicação de sua linha de pesquisa, seu curriculum vitae, bem como diversos de seus

artigos estão disponíveis em sua página pessoal na Internet (Disponível em: <http://www.wjh.harvard.edu/~jgreene/>. Acesso em: 4 jul. 2014).

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Correlacionando a dimensão intelectual com a emocional, a chamada “revolução afetiva”, defende-se que, embora a origem da moralidade huma-na possa advir de um conjunto de emoções ligadas à expansão das habilida-des cognitivas que faz com que os indivíduos passem a se preocupar com o bem-estar dos outros72, há uma preponderância das emoções em situações de julgamento/escolha moral que, a partir de um modelo de intuição social, assemelha-se ao julgamento estético73. Tal ideia torna menos provável a hipó-tese de que a capacidade de raciocínio moral conduz sempre a julgamentos morais.

Em suma, as recentes pesquisas da neuropsicologia moral sugerem que ao ver uma situação ou ouvir uma história tem-se um imediato sentimento de aprovação ou reprovação, não existindo qualquer raciocínio moral em um primeiro momento74.

A neuroanatomia funcional do cérebro humano aponta, por meio de pesquisas de imagem de ressonância magnética cerebral (MRI, na sigla em inglês) em indivíduos confrontados com fotos de conteúdo moral ou proble-mas de dilemas morais75, que não há uma área cerebral específica para rea-lizar os julgamentos morais, existindo muitas áreas envolvidas no processo, principalmente a área responsável pelos processos emocionais automáticos76.

Esses processos afetivo-emocionais surgem automaticamente quando alguém se depara com um dilema moral, em um juízo que se aproxima mais da forma como se fazem avaliações estéticas, em que os sentimentos intuiti-vos aparecem imediatamente, sem qualquer análise racional das hipóteses, ponderações sobre os argumentos ou busca para inferir conclusões. Parece, portanto, que o julgamento realizado diante de dilemas morais é imediato quanto a algo ser certo ou errado, bom ou mau. Após o surgimento do senti-mento intuitivo, que a princípio seria decorrência de atavismos e de concep-ções e influências socioculturais, ocorre uma tentativa racional de organizar

72 GREENE, Joshua; HAIDT, Jonathan. How (and where) does moral judgment work? Trends in Cognitive Sciences, v. 6, n. 12, p. 517-523, dec. 2002, p. 517.

73 HAIDT, Jonathan. The Emotional Dog and its Rational Tail: A Social Intuitionist Approach to Moral Judgment. Psychological Review, New York, n. 108, p. 814-834, 2001.

74 GREENE, Joshua; HAIDT, Jonathan. How (and where)... op. cit., p. 517.75 Ver GREENE, Joshua et al. An fMRI Investigation of Emotional Engagement in Moral

Judgment. Science, v. 293, p. 2105-2108, sep. 2001.76 GREENE, Joshua et al. How (and where)... op. cit., p. 517-518.

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as conclusões e decisões automaticamente/intuitivamente tomadas e buscar argumentos para justificar, fundamentar e motivar logicamente o julgamento moral77. Em outras palavras, hoje se acredita que em situações de dilema mo-ral o julgamento moral precede o raciocínio moral; e não o contrário.

A teoria do duplo processo dos julgamentos morais, desenvolvida por Joshua Greene a partir da busca de respostas sobre o porquê de as pessoas realizarem julgamentos diversos nos dois cenários da situação de dilema mo-ral do trem desgovernado78 – isto é, têm julgamentos utilitaristas de salvar o maior número de vidas humanas quando se trata de apenas apertar um botão ou mexer uma alavanca/volante; mas não aceitam a mesma lógica quando ela implica empurrar com as próprias mãos uma pessoa na frente do trem – propõe que existem dois tipos fundamentalmente diferentes de julgamento moral: de um lado, o julgamento moral é dirigido por disposições socioemo-cionais instintivas/automáticas; e, por outro lado, o julgamento moral é in-fluenciado pela capacidade humana única de raciocínio abstrato sofisticado, que pode ser utilizada para qualquer assunto ou problema79.

Assim, entende-se que os julgamentos morais estão submetidos ao mesmo tempo a, no mínimo, dois processos de análise (emocionais/automá-ticos e cognitivos/racionais), o que pode gerar um envolvimento pessoal ou impessoal com a situação de violação moral e com a forma como se analisa o dilema.

77 HAIDT, Jonathan. The Emotional... op. cit., maxime p. 821 e ss.78 Em diversas pesquisas Joshua Greene e outros utilizam o dilema do trem desgovernado

para avaliar os julgamentos morais diante de dilemas, existindo pequenas variações da história, sem afetar, contudo, a essência do aqui relatado. Em alguns testes, por exemplo, há apenas a substituição do trem por um automóvel desgovernado, em que em um primeiro cenário você é o motorista e basta virar o volante para deixar de atropelar várias pessoas, ainda que atropele uma; e, no segundo cenário, você está na calçada e precisará empurrar uma pessoa que está ao seu lado na frente do carro para pará-lo, conforme GREENE, Joshua et al. How (and where)... op. cit., p. 519.

Em outra pesquisa, que apresenta argumentos mais elaborados e que busca testar os limites de decisões utilitaristas, propõe-se uma situação hipotética em que o mesmo trem desgovernado irá se chocar no final da linha com a barragem de uma repressa (no exemplo eles colocam que foram esquecidos explosivos na linha férrea, o que é irrelevante para a reflexão), o que ocasionará a inundação de uma cidade inteira e a morte de milhares (meio milhão) de pessoas, conforme PAXTON, Joseph M. et al. Reflection... op. cit., p. 168-169.

79 GREENE, Joshua. Moral... op. cit., p. 131 e ss.

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O que explicaria a diferença de decisão nos dois cenários do dilema moral do trem desgovernado seria que a análise feita na primeira hipótese, de apenas apertar o botão ou puxar a manivela, consiste em um julgamento moral impessoal, no qual há uma prevalência de processos racionais na ava-liação do dilema; enquanto no segundo cenário, já que o agente mudaria o caminho normal da ameaça de maneira mais direta e próxima e ocasionaria sérios danos corporais a uma pessoa específica, há um sentimento de envol-vimento pessoal no dilema, o que acarreta o uso de áreas do cérebro mais relacionadas à emoção do que ao raciocínio abstrato, impulsionando uma decisão automática de repulsa ao ato (“Não posso fazer isso!”)80.

Diversos estudos nesse campo continuam a ser desenvolvidos81, mas existem alguns consensos provisórios nessa área da ciência: i) de que os jul-gamentos morais envolvem diversas áreas do cérebro; ii) que tanto os pro-cessos emocional-afetivos quanto os cognitivo-racionais estão envolvidos na solução de dilemas morais, existindo uma prevalência da resposta emocional negativa (de desaprovação, dever de não fazer certos atos) em dilemas mo-rais pessoais e do raciocínio abstrato utilitarista em outros dilemas (morais impessoais ou não morais); iii) ocorre sempre um controle cognitivo adicio-nal em qualquer hipótese de dilema moral82-83.

Em que pesem os incipientes conhecimentos sobre as descobertas na área da psicologia moral e social, da neurociência e da anatomia cerebral, mas buscando relacionar a literatura sobre as pesquisas realizadas por essas ciências com as ideias filosóficas estudadas, parece que se constatou a neces-sidade de reflexão no campo jurídico sobre as consequências penais dos juí-zos morais não serem imediatamente racionais em uma situação de dilema, existindo forte influência emocional-instintiva-intuitiva. Releva ainda mais tal reflexão no campo do Direito Penal os resultados das pesquisas demons-trarem que mesmo existindo uma resposta automática intuitiva, ela advém

80 Para comprovar as áreas dos cérebros utilizadas para a repulsa de um ato, o controle é feito a partir da confrontação prévia dos indivíduos com cenas que não envolvem qualquer dilema moral, como, por exemplo, um indivíduo lambendo o chão de um banheiro público muito sujo, conforme GREENE, Joshua et al. How (and where)... op. cit., p. 518.

81 GREENE, Joshua. Emotion and Morality: a tasting menu. Emotion Review, v. 3, n. 3, p. 1-3, 2011.

82 GREENE, Joshua. Why are VMPFC patients more utilitarian? A dual-process theory of moral judgment explain. Trends in Cognitive Sciences, v. 11, n. 8, p. 322-323, 2007.

83 GREENE, Joshua et al. How (and where)... op. cit., p. 522-523.

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em alguma escala da formação cognitiva que o indivíduo se impôs ao longo da vida e sofre um juízo racional-reflexivo (juízo contraintuitivo)84, o qual pode ser guiado pela ética e pelas normas jurídicas.

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIFICAÇÃO OU A DESCULPA DIANTE DE DILEMAS MORAIS

4.1 A impossibilidade do estado de necessidade justificante defensivo de terceiro

O enquadramento dogmático de condutas realizadas em situações de dilemas morais como causas de justificação, de desculpa ou mesmo de im-possibilidade de valoração jurídica, antes de consistir em uma irrelevante discussão acadêmica, já que o resultado prático é sempre a não punição do agente, guarda a sua importância na reflexão sobre o papel de direcionamen-to ético que o Direito deve ou pode exercer85.

Ao se afirmar que determinada conduta será sempre ilícita, se absolver um agente por não considerar a sua conduta contrária aos valores do ordena-mento jurídico ou apenas desculpá-lo, a decisão sinaliza qual modo de vida é esperado em determinada sociedade e quais os valores aceitáveis ou prepon-derantes nas relações pessoais.

Existe, portanto, um mínimo ético que é sempre realizado nas deci-sões de casos penais, consistindo a análise de dilemas morais-criminais um

84 PAXTON, Joseph M. et al. Are “counter-intuitive” deontological judgments really counter-intuitive? An empirical reply to Kahane et al. (2012). Social Cognitive and Affective Neuroscience. Disponível em: <http://www.wjh.harvard.edu/~jgreene/GreeneWJH/Paxton-Bruni-Greene-SCAN13.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2013.

85 Como uma explicação sucinta e clara sobre o particularismo racional, o Professor Paulo de Sousa Mendes explicita tal pressuposto mesmo para essa doutrina: “A regra estabelece então o que deve ser feito nessas situações segundo uma ponderação relativa das razões previsíveis. Se ocorrer realmente uma situação dessas, o destinatário da regra pode confiar nela, dessa maneira poupando tempo e esforço, bem como reduzindo os riscos associados aos erros de avaliação, que existem sempre que os prós e contras de uma data situação são abordados à pressa. [...] O particularismo racional também pode usar um modelo dedutivo de raciocínio prático. Mas um particularista só usará esse modelo se não encontrar no contexto do caso motivos de revogação da regra orientadora” (MENDES, Paulo de Sousa. Em defesa do particularismo moral e do pluralismo liberal – Em especial no domínio do Direito Penal. In: BELEZA, Tereza Pizarro et al. (Org.). Multiculturalismo e direito penal. Coimbra: Almedina, 2014. p. 148-149).

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importante momento de meditação sobre qual dos caminhos quer-se ilu-minar para direcionar as ações dos indivíduos, que devem manter alguma congruência com os valores sociais historicamente conquistados e com o que se considera uma ética fundamental ou um senso de justiça mínimo para a vida em sociedades democráticas86.

Em casos de dilemas existenciais, portanto, parece ser a ética que so-luciona ou define o que é a coisa certa a fazer, tanto do ponto de vista moral e psicológico87 quanto jurídico. Mesmo as reações automáticas/emocionais do cérebro, como visto, são historicamente condicionadas, já que a constru-ção dos valores estéticos de agradar ou desagradar é social/culturalmente edificada e internalizada, ainda que de forma inconsciente pelo indivíduo. Nada na natureza humana parece ser desvinculado do ser social, nem as suas reações automáticas e instintivas. Desta forma, os direcionamentos éticos ba-lizam o aceitável e agradável, o moral ou o repulsivo, cabendo ao Direito se posicionar nesta construção. O Direito, nessa perspectiva, pode ser uma fonte do sistema moral e do próprio julgamento psicológico (um sistema circular de retroalimentação representaria melhor essa relação), necessitando debater as suas posturas a partir de uma perspectiva ética.

O que decorre disso, especificamente em relação ao ora estudado, é que ainda que seja possível a construção doutrinária de uma causa de justificação supralegal de estado de necessidade defensivo para quando um dos envol-vidos na comunidade de perigo atua para salvar a própria vida, matando outrem que era a causa de perigo88, parece eticamente indefensável e indese-jável a aplicação da mesma perspectiva para a atuação de um terceiro alheio à comunidade de perigo.

Pode-se ponderar a razoabilidade ética e jurídica da primeira hipótese (estado de necessidade defensivo próprio), desde que se pense em um caso

86 PALMA, Maria Fernanda. O estado... op. cit., p. 183-184.87 “[...] é no plano ético que devemos buscar as causas do conflito e de sua resolução.” (LA

TAILLE, Yves de. Moral... op. cit., p. 57)88 Para igualar os exemplos deste estudo, em que nenhuma das pessoas está à partida mais

condenada do que a outra, excluindo ponderações sobre pessoas marcadas pelo destino ou criação de um perigo anterior, tem-se que citar o caso dos dois homens em um balão, em que ambos morreriam se um deles não fosse jogado para fora, conforme PALMA, Maria Fernanda. O estado... op. cit., p. 186.

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excepcional de legítima defesa contra uma conduta não ilícita89; ou considere--se, para manter maior coerência jurídico-sistêmica, a existência de um espaço livre de valoração jurídica, tendo em vista o conflito irresolúvel de interesses e valores90. Alguns argumentos contribuem para a viabilidade desse posicio-namento ético-jurídico, como: i) a teoria do duplo efeito e o não desvalor da ação91 (já que a intenção é de salvamento próprio); ii) a impossibilidade do Direito obrigar uma pessoa a não realizar condutas dirigidas para a sua au-toconservação, sujeitando-a a morte certa92; iii) a ideia de “não proibido” ou de causas de “justificação em sentido fraco”, como já referido anteriormente.

No entanto, em que pese considerar-se plausível a construção supra, ainda restam dúvidas se não se está apenas legitimando o direito do mais forte – especificamente quando nenhum dos envolvidos é o criador do pe-rigo ou está mais condenado do que o outro, sendo impossível a utilização do argumento “salvar o que é possível salvar”93. Deste modo, se realmente quer-se manter uma ética construída em um “universo cultural” humanista e respeitador da igual dignidade de todos os seres humanos, parece-me não ser possível a aceitação como “não proibido” da prevalência do mais forte, mesmo em situações de calamidade e de conflito existencial94.

89 Como aceita a Professora Fernanda Palma, já que em nosso estudo nenhum dos envolvidos é o causador do perigo, há proporcionalidade de natureza e valor entre os bens em conflito, a Professora admite defesa justificada contra defesa justificada em algumas situações e os princípios da insuportabilidade da não defesa e da igualdade de proteção jurídica constituem o efeito-valor típico da justificação, conforme PALMA, Maria Fernanda. A justificação por... op. cit., maxime p. 813 e ss. e 839 e ss.; e PALMA, Maria Fernanda. Justificação penal... op. cit., p. 74 e 79 e ss.

90 PALMA, Maria Fernanda. O estado... op. cit., p. 197-198.91 PALMA, Maria Fernanda. A justificação por... op. cit., p. 800 e ss.92 PALMA, Maria Fernanda. O estado... op. cit., p. 184-186, maxime notas de rodapé.93 Considera-se questionável o critério de ser possível uma causa de justificação de estado

de necessidade defensivo apenas por uma pessoa já “estar marcada pelo destino”, mas possível, uma vez que pelos conhecimentos advindos da experiência humana é possível fazer um juízo de probabilidade e previsibilidade sobre como os fatos vão se desenrolar, não sendo o “(des)valor da vida que se sacrifica que justifica o facto, mas o valor das vidas que se salvam à custa de uma já condenada pelo destino”, conforme defendido por DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., p. 454.

94 PALMA, Maria Fernanda. O estado... op. cit., p. 192.

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Não parece um “puro doutrinarismo” irreal ou uma moralidade ex-tremada tal posicionamento95, pois poder-se-ia excluir a culpa/desculpar o agente que decidiu em uma situação limite de conflito existencial. Não se obriga ninguém a suportar o insuportável, mas afirma-se que certas condu-tas são sempre erradas e guardam em todas as situações um desvalor em si mesmas, apesar de se compreender e não se culpar o agente. Valora-se po-sitivamente a preservação de vidas humanas, mas valora-se negativamente com mais intensidade retirar a vida de inocentes. Uma conduta que adote tal postura, mesmo que para evitar um mal igual ou “maior”, não deixa de ser contrária aos valores fundamentais do Direito, não desejada e, portanto, ilícita. A prevalência do mais forte contra um inocente será sempre contrária ao Direito, ainda que o agente mais forte também seja inocente e não possa ser reprovado por assim ter agido96.

Na hipótese de atuação de um terceiro alheio à comunidade de peri-go, não parece sequer defensável e possível, tanto do ponto de vista jurídico quanto ético e moral, um estado de necessidade defensivo de terceiro. Estar--se-ia nesses casos evidentemente, ao se aceitar uma causa de justificação, concedendo o direito a um terceiro decidir entre inocentes quem irá viver ou morrer.

Nesses casos, soma-se ao desvalor da ação de matar um inocente o desvalor de um terceiro decidir sobre qual vida deve ser sacrificada e qual deve “ser vivida”. Ao se aceitar tal possibilidade, estar-se-ia concedendo e concordando que alguém assumisse o papel e as funções do “destino” ou de “Deus”, decidindo sobre a vida de inocentes em igual situação diante das “marcas do destino”97. Os princípios básicos do Direito e do que se considera desejável em uma vida em sociedade seriam violados, não persistindo, de forma marcante, qualquer valor essencial das causas de justificação98.

A dignidade de quem fosse o escolhido para morrer seria violada ao se impor a ele que suportasse a ofensa à sua vida por um terceiro imune a qualquer perigo e pelo fato de o Direito não considerar tal ofensa um mal

95 Como acusa DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., p. 451-452.96 Posicionamento também adotado por ROXIN, Claus. Derecho... op. cit., p. 688-690.97 Não serve para essas situações, como já visto, a ideia da intervenção salvadora limitar-se

a aproveitar as oportunidades de sobrevivência de quem ainda não “estava marcada pelo destino”, conforme CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida... op. cit., p. 361 e ss.

98 Os três grandes princípios definidores do efeito-valor típico da justificação são trazidos por PALMA, Maria Fernanda. Justificação penal... op. cit., p. 74.

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em si mesmo, uma ação com desvalor próprio e independente das razões ou consequências. A dignidade da pessoa humana que foi salva seria maculada por se saber um produto-resultado (ainda vida humana) de uma violação de outra vida, tão inocente quanto a sua. Mais do que isso, saber-se-ia devedor da sua vida a um “Homem-Deus” ou a um destino personificado que a esco-lheu quando podia não a escolher. Já a dignidade humana de quem teve a sua escolha justificada, o terceiro, seria violada pelo Direito o considerar capaz de legitimamente escolher entre vidas tão dignas de serem vividas quanto a sua própria. Estar-se-ia, por estranho que pareça, diante de uma violação da dignidade da pessoa humana para o mais, que seria atingida por ter a si atribuída capacidades que lhe retiram a humanidade. São em situações como essa que se consegue encontrar o limite ético do aceitável pelo Direito, já que é necessário um parâmetro último sobre o que nunca é certo e lícito fazer.

O princípio da igualdade na proteção jurídica traz como decorrência lógica a necessidade de o Estado assegurar, em todas as situações, a prote-ção do direito de autodeterminação, da dignidade da pessoa humana e da não aceitação de que alguém se arrogue o direito de escolher qual inocente deve morrer para que outro sobreviva99. São principalmente em situações limites de conflito existencial que a proteção do Direito e do Estado são exi-gidas, sendo nesses momentos que o Direito não pode diferenciar quem será protegido e quem será abandonado ao julgamento pessoal de um terceiro. Ao contrário de um “espaço livre de direito”, parece que em tais situações encontra-se o espaço em que o Direito e os seus valores fundamentais são mais demandados. Para garantir a igualdade da proteção só existe a hipótese de considerar sempre ilícita qualquer atitude, contra qualquer um dos envol-vidos na situação de perigo, de um terceiro que atente contra a sua vida, a sua dignidade e a sua autodeterminação. Considerar possível a justificação da ação defensiva de um terceiro não envolvido no estado de necessidade equivale a não proteger a esfera e a dignidade da vítima por ele escolhida. Não se trata de um espaço livre de valoração jurídica ou de “não proibido”, ainda que não valorado positivamente. Trata-se, ao contrário, de proibir e considerar ilícito quaisquer que sejam a situação ou as consequências de tal ato. A não existência de critérios morais e jurídicos possíveis para decidir quem deve morrer e quem deve viver não leva à ação; mas, antes, conduz à proibição de ação. O viés deve sempre ser a partir da perspectiva do inocente escolhido para morrer.

99 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito... op. cit., p. 453.

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Por fim, o princípio da prevalência do interesse superior seria violado porque, nesses casos, o valor preponderante é de que ninguém viole o bem jurídico vida de um inocente. A intenção de salvar uma vida ou várias não faz frente ao dever de nunca retirar a vida de um inocente, uma barreira que jamais deve ser ultrapassada. Parece que tal valor é uma escolha necessá-ria para qualquer visão de mundo ou de concepção ideológica da vida em sociedade. Não se pode pensar em uma vida em sociedade organizada que não considere proibido o homicídio de inocentes. Mesmo pensando-se em estados ditatoriais e sanguinários, verifica-se a necessidade de transformar as suas vítimas em culpadas, inimigas ou agressoras. Nem em regimes dita-toriais se aceita a morte de inocentes. Os argumentos da prevalência da omis-são, estudados anteriormente, reforçam tal concepção. Pensar o contrário é deixar a vida de um inocente ao arbítrio de um terceiro.

Ainda que a vida humana não tenha um valor absoluto, não se pode pensar que o interesse preponderante para o Direito inclua o sacrifício de um inocente (não agressor, não culpado, não criador de qualquer perigo anterior), escolhido arbitrariamente (já que sem critérios racionais, morais e jurídicos plausíveis) por um terceiro que não se encontra em perigo ou sob ameaça.

Evidentemente que o Direito não pode exigir ações sobre-humanas ou de super-heróis das pessoas, mas não é isto que está em causa quando se ana-lisa uma conduta no plano do injusto. Esse é o campo ético do Direito Penal, em que se mostra o que se quer como sociedade, o que se valoriza, tolera-se ou consideram-se bens e valores importantes de serem preservados. Mesmo considerando o agente e suas subjetividades no momento do fato injusto, ele deve ser sempre considerado em um plano ético e jurídico comum, que o representa também como indivíduo social. Assim, as normas de proibi-ção orientam decisões em dilemas morais, consistindo a assunção do papel de senhor do destino da vida de um inocente, independente dos resultados devastadores que a omissão possa ocasionar, em um ato sempre proibido. Pode-se perder tudo que estava em jogo, mas não por uma conduta e uma escolha humana. É ela que importa ética e juridicamente; não o destino cruel que impôs um mal total.

4.2 Consequências jurídico-penais decorrentes de situações que envolvem dilemas morais e conclusões

Solucionados os dilemas morais em um plano ético-jurídico, forçosa a verificação das consequências em relação à legítima defesa da adoção incon-dicional da norma de proibição básica erigida supra, a de que nunca se mata

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um inocente. Parece possível uma generalização também neste plano, pois o especial desvalor ético de uma conduta contrária à referida prevalência da omissão (o que transforma a ação em uma agressão ilícita)100 assegura sempre a possibilidade de se opor legítima defesa contra o terceiro, seja pelos envol-vidos ou mesmo por uma quarta pessoa.

No caso do trem desgovernado, por exemplo, por ser considerado ilí-cito qualquer cálculo utilitarista, estaria sempre autorizada a legítima defesa, mesmo contra um terceiro que pensasse que pudesse parar o trem (e salvar os cinco trabalhadores que estavam no trajeto original) matando o maquinista inocente.

Diferente pode parecer a questão dos soldados americanos, pois o de-senrolar da situação comprovou que os pastores afegãos não eram totalmen-te inocentes, o que lhes permitiria uma ponderação distinta dos interesses globais se disso soubessem. Ocorre que no momento do julgamento moral os pastores eram inocentes e o princípio ético fundamental supraconcebido deve ser aplicado no momento da decisão, o que não permitiria outra escolha aos soldados estadunidenses. Os pastores eram inocentes desarmados, não agressores ou culpados101 naquele momento, não podendo por um possível ato futuro incerto o Direito legitimar (ou considerar não proibido) as suas mortes. Por outro lado, qualquer ato de defesa realizado pelos pastores ou por um terceiro para protegê-los, caso a conduta dos soldados não tivesse sido omissiva, estaria juridicamente justificada, já que consistiria em legítima defesa contra um injusto penal.

O caso do guia de alpinismo gera maior dúvida sobre as consequências jurídico-penais da escolha em razão da posição de garante do guia o colocar, em tese, como autor de um duplo homicídio por omissão caso se abstenha de salvar ao menos um dos alpinistas. No entanto, pelo supraexposto, não existe

100 Construção possível mesmo se aceitando causas de justificação para condutas meramente não desvaliosas, o que não é o caso, já que aqui se trata de uma inarredável conduta eticamente desvaliosa. Em uma interpretação não das exceções, a contrário senso, pode-se inferir a conclusão exposta no corpo do texto a partir da ideia geral de que as causas de justificação revelam especial proteção jurídica e valor ético, assegurando que contra aquela conduta não será possível opor legítima defesa, conforme PALMA, Maria Fernanda. Justificação penal... op. cit., p. 77 e ss.

101 Não é possível discutir neste artigo o valor absoluto da vida humana ou da legitimidade da pena de morte para autores de determinados crimes. No entanto, utiliza-se o termo “culpado” em uma perspectiva ampla para realçar que ainda que se considere possível a pena de morte, ela será sempre inadmissível para inocentes.

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a opção jurídica do guia matar um inocente, inexistindo, desta forma, já que umbilicalmente ligadas, também a possibilidade da ação de salvamento. Em uma razão prática, mesmo que impossível de se obter sucesso, o que se exi-giria moralmente do guia seria ir buscar ajuda, não ficando inerte diante da situação; mas em hipótese alguma ele poderia se arvorar em decidir qual ino-cente iria sobreviver e qual seria sacrificado. O terceiro-garantidor, portanto, só tem a sua ação justificada omitindo-se e deixando o destino cumprir o seu papel original102.

Como estudado, as normas morais de proibição podem exercer papel preponderante nos juízos afetivos automáticos103, cabendo ao Direito reforçar tais valores éticos por meio de um claro posicionamento sobre o que conside-ra contrário aos seus bens jurídicos e valores e, portanto, ilícito.

Ressalte-se, novamente, que não se propõe um rigor moral e ético no Direito desvinculado da realidade da vida e das fragilidades humanas, mas se propõe que tais ponderações se desencadeiem no plano da culpa. A inexi-gibilidade de conduta diversa como cláusula geral de desculpa é útil para um Direito Penal que fundamenta a responsabilização penal em um princípio geral da desculpa, como proposto pela Professora Maria Fernanda Palma104, e que parece o mais adequado à efetivação do princípio da culpabilidade em um Estado de Direito Democrático, no qual se fundamentaria o indescul-pável para se culpar. É no campo da culpa, portanto, e não da justificação, que se devem desenrolar essas discussões, analisando-se as motivações, as contingências do momento e o que não poderia ser exigido do agente especí-fico. Em que pese o juízo moral no campo da justificação não poder ser visto exclusivamente sob um ângulo de reivindicação de universalidade105, há de existir uma linha final, inultrapassável, em que o Direito se afirma como exi-gência para existir.

Parece que, mesmo para quem considera que há um relativismo moral ou que a ética é tão somente fruto de uma construção histórico-sociocultural que levou, em uma visão utilitarista, a uma forma de organização em socie-dade, é necessário um parâmetro último, um anteparo entre o caos e a vida

102 No mesmo sentido, JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado... op. cit., p. 497.103 NICHOLS, Shaun. Norms with feeling: towards a psychological account of moral judgment.

Cognition, [s.l.], v. 84, n. 2, p. 221-236, jun. 2002.104 PALMA, Maria Fernanda. O princípio da desculpa em direito penal. Coimbra: Almedina, 2005.

maxime p. 165 e ss. e 196 e ss.105 RICOEUR, Paul. Da metafísica... op. cit., p. 42.

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possível entre os seres humanos. Essa última barreira, concretamente expres-sa e não apenas considerada como princípio ou núcleo de valores fundamen-tais, é a regra moral e ético-jurídica de que não se pode matar um inocente, independente de quaisquer argumentos ou ponderações. O que se escolhe como ético e lícito pode ser contraintuitivo, contra a natureza humana ou a razão utilitarista, pois são essas disposições que construirão as decisões mo-rais, apesar dos instintos e das fraquezas humanas.

Não se trata, observe-se bem, mais uma vez, para finalizar, de qualquer solução desarrazoada e que conduz a um formalismo desumano106; mas, ao contrário, é por saber das dificuldades humanas de decidir em uma situação de dilema moral e de como a razão e as emoções podem conduzir por ca-minhos pedregosos em casos limites, que o Direito posiciona-se sobre o que nunca será a coisa certa a fazer e o que jamais poderá ser aceito como lícito. O que parece um formalismo desumano e cruel é deixar uma pessoa aban-donada na solidão do silêncio vazio da dúvida sobre o que é a coisa certa a fazer em uma situação existencial limite. Afirmar em momentos de lucidez racional qual é o limite ético inultrapassável é aceitar a condição humana e tentar superar o cruel jogo de argumentos e questionamentos que a mente impõe em momentos de dúvidas morais extremas.

Argumentos podem ser levantados para quase tudo, mas – na esteira de Joshua Greene107, que conclui que precisamos refletir sobre a ética que se quer para saber como decidir moralmente, mesmo no plano psicológico, já que um juízo racional faz sempre parte do julgamento moral e que os sen-timentos automáticos/instintivos também são formados pelas visões éticas – há de existir algum princípio que não é usado como argumento, mas para encerrar argumentos. Esse princípio é de que nunca se tira a vida de um inocente, nem que seja preciso morrer por isso ou acabar com a sociedade. Morre-se com uma decisão moral, com uma vida pensada eticamente. Outra escolha revelará apenas que já não existe Direito ou sociedade organizada. Em algum ponto o homem deve superar a sua humanidade.

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106 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Vida... op. cit., p. 359.107 GREENE, Joshua. Moral... op. cit., p. 350.

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DIRETRIZES DE PUBLICAÇÃO E AVALIAÇÃO DE ARTIGOS

A) DAS NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

1. O envio de material editorial para a Revista de Estudos Criminais pressupõe a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. Da mesma forma, implica a cessão dos direitos autorais do material enviado para a Revista de Estudos Criminais. Uma vez en-viado o material, cabe à Revista decidir as características editoriais e gráficas, o preço, os modos de distribuição e disponibilização bem como a data em que o artigo será veiculado. A única contrapresta-ção financeira pela cessão dos direitos autorais será o envio ao autor de um exemplar da Revista em que o seu trabalho for publicado. Em caso de artigo em coautoria, cada coautor receberá um exemplar. A Revista de Estudos Criminais fica autorizada a proceder modificações e correções para a adequação do texto às normas de publicação.

2. Os textos enviados para a Revista de Estudos Criminais deverão ser inéditos no Brasil, levando em consideração qualquer forma de pu-blicação impressa e/ou digital, sendo vedado o seu encaminhamen-to simultâneo a outras revistas.

3. O envio dos artigos deverá ser realizado unicamente por correio ele-trônico. Os trabalhos deverão ser endereçados diretamente à Direto-ria da Revista, para o endereço eletrônico: [email protected]. Re-comenda-se que os textos sejam enviados em formato word.doc. Tex-tos em formatos que não permitem modificações, a exemplo de .pdf, não serão aceitos.

4. Os artigos deverão ser enviados com uma folha de rosto na qual conste os dados pessoais do autor. Os dados exigidos são: nome completo; qualificação (incluindo a universidade, instituto ou fun-dação ao qual o autor esta vinculado); endereço completo; endereço eletrônico.

5. Os trabalhos deverão ter, preferencialmente, de 15 a 35 páginas. Ca-sos excepcionais serão analisados pela Diretoria da Revista. Deverá

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ser utilizada a fonte times new roman, tamanho 12, no corpo do texto. Ainda, deverá ser utilizado espaçamento entrelinhas de 1,5, com margens superior e inferior 2,0 cm e laterais 3,0 cm. A forma-tação do tamanho do papel deverá ser A4 e o texto deverá estar justificado.

6. Os textos poderão estar em língua portuguesa, espanhola, italiana ou inglesa.

7. No que pertine à qualificação do autor, deverá ser iniciada por suas titulações acadêmicas e atividade de magistério, informando a exis-tência de possível vínculo com algum órgão financiador. Em segui-da, deverá ser complementada pelas atividades jurídicas práticas do autor.

8. Os textos deverão ser precedidos de um resumo de 05 a 10 linhas. Deverá constar uma versão do título e do resumo em língua portu-guesa e uma em língua inglesa.

9. Os trabalhos deverão ser precedidos, ainda, de 04 a 06 palavras--chaves, as quais devem constar também em língua inglesa, e de um sumário numerado.

10. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/2002 (Norma Brasileira da Associação Brasileira de Nor-mas Técnicas – ABNT – Anexo I). As referências devem ser citadas em notas de rodapé ao final de cada página, ou na forma (AUTOR, ANO). O texto deverá apresentar uma forma de citação uniforme.

11. Caso o autor queira dar destaque ao texto, deverá utilizar itálico e não negrito ou sublinhado. O uso de aspas deverá ser feito para a citação de outros autores.

12. No que concerne à referência legislativa, não há necessidade da ci-tação do diploma legal, seja no rodapé, seja na bibliografia ao final do texto.

13. Diretoria da Revista de Estudos Criminais não se compromete a efe- tuar complementação dos requisitos de publicação não atendidos. Os trabalhos enviados sem o atendimento às normas de publicação da Revista não serão aceitos.

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diRetRizes de PubliCação e avaliação de aRtigos

Revista de estudos CRiminais 60JaneiRo/maRço 2016

B) DA ANÁLISE E SELEÇÃO DOS TRABALHOS

1. Os trabalhos serão analisados e avaliados, tanto em forma, como em conteúdo, pelo Comitê Científico da Revista de Estudos Criminais.

2. Recebido o trabalho pela Diretoria da Revista, o autor será imedia-tamente informado, presumindo-se a cessão de seus direitos auto-rais e a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos.

3. A avaliação será realizada pelo sistema de pareceres duplo blind. Para tanto, será suprimido do texto qualquer elemento que possa identificar o autor e, após, o trabalho será enviado para dois parece-ristas anônimos, membros do Comitê Científico da Revista de Estu-dos Criminais. Os pareceristas poderão aprovar o texto, não aprovar ou aprovar com ressalvas.

4. Os pareceres anônimos ficarão à disposição do autor, que será infor-mado do resultado da avaliação e das recomendações para adequa-ção do texto em caso de aprovação com ressalvas.

5. Em caso de haver dois pareceres discordantes sobre a publicação do trabalho, o texto será encaminhado para um terceiro parecerista.

6. Sendo o artigo aprovado sem ressalvas, ou realizada a adequação do texto pelo autor em caso de aprovação com ressalvas, a Diretoria da Revista avaliará a pertinência e a oportunidade para a publica-ção. A decisão final sobre a publicação do texto será da Diretoria da Revista de Estudos Criminais.

7. A par do sistema de pareceres duplo blind, em casos excepcionais, a Diretoria da Revista poderá aceitar trabalhos de autores convidados quando considerar sua contribuição científica de grande relevância para o tema em questão.

8. A Diretoria da Revista de Estudos Criminais ficará à disposição dos autores para qualquer queixa e/ou esclarecimento sobre a publi-cação ou não de seus trabalhos. O contato deverá ser feito, sempre, pelo endereço eletrônico: [email protected].

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