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3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS INVESTIGATIVAS
NO ENSINO DE MICROBIOLOGIA: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA PARA
INICIAÇÃO À PESQUISA E À DOCÊNCIA”.
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso pra constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso pra conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1997, p. 32)
3.1 Ensinando, buscando ... reprocurando
Em nossa vida profissional, desde a educação básica até o ensino superior,
temos continuamente procurado maneiras para melhorar a qualidade da nossa
prática docente. Acreditamos que em tudo que fazemos, a forma como fazemos está
intimamente ligada à nossa subjetividade. Como apreciamos muito teatro, música,
poesia, enfim, arte em geral, em diversas de nossas tentativas de inovação
recorremos a esses recursos, combinando-os com outros de caráter mais técnico.
Das reflexões sobre nossas vivências pessoais e profissionais ao longo do
tempo, percebemos que houve um significativo amadurecimento em nossa práxis
pedagógica: as tentativas foram se mostrando mais elaboradas, melhor
fundamentadas e, sem deixar de dar vazão à criatividade, com maior rigor.
Consideramos o produto apresentado nesta dissertação como o mais sólido e
atribuímos isso às reflexões que o mestrado nos propiciou, às intensas interlocuções
que mantivemos com professores e colegas desse curso.
No que se refere a inovações metodológicas que tentamos no ensino
superior, o grande desafio encontrado na formação de professores tem sido o
enorme abismo entre o “saber dizer” e o “saber fazer”. A discussão do processo
ensino-aprendizagem avança e, na maioria das vezes, o discurso de um ensino que
auxilie o aluno no processo de construção e significação do conteúdo é apropriado.
Contudo, quando os alunos vão exercer a ação docente, pouquíssimos conseguem
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incorporar o discurso às suas práticas, ou romper com modelos que eles mesmos
criticam.
Em vista disso, nossa intenção nas últimas experiências realizadas tem sido
tentar diminuir o abismo entre o “saber dizer” e o “saber fazer”, propondo situações
de ensino-aprendizagem nas quais o aluno entre em conflito conceitual,
procedimental e também atitudinal, buscando por meio da análise dessas situações
mostrar a incoerência entre discurso /prática e possíveis modalidades de superação.
A proposta ora exposta tem como referência um trabalho realizado em 2005
na disciplina de microbiologia, no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do
PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DO ESTADO (PROESP)
destinado a professores não licenciados do Estado da Bahia, realizado pela
UNEB/CAMPUS X. A proposta tinha suporte metodológico em Freire (1997) e Pozo
(2002), concebendo a prática educativa como meio para proporcionar a autonomia
do educando e enfatizando seu contexto de vida. Apesar de ser um curso de
formação de professores de Biologia, muitos lecionavam outras disciplinas e um dos
pontos positivos da proposta foi o fato de a turma ter-se envolvido bastante com o
curso e demonstrado maior identificação e interesse na área.
O objetivo geral consistia em propiciar a esses professores-discentes um
novo olhar sobre a realidade, usando os conhecimentos adquiridos na disciplina
microbiologia, contextualizando-os e interrelacionando-os com os aspectos
socioculturais, além de enfatizar a importância da relação entre ensino e pesquisa
na formação docente. Seus objetivos específicos foram: utilizar o estudo do meio,
como metodologia no ensino da biologia; incentivar a pesquisa bibliográfica para
responder a uma necessidade concreta; perceber as diferentes variáveis que
propiciam a transmissão e a manutenção de doenças infecciosas em um
comunidade; incentivar a produção escrita por meio de um trabalho de natureza
investigativa; incentivar a cooperação e o trabalho em equipe. Devemos esclarecer
que nessa proposta os objetivos não envolviam procedimentos laboratoriais, e sim
as condições higiênico-sanitárias de alimentos comercializados em feiras livres,
praças ou ruas das localidades onde residiam os professores-discentes.
Na ocasião, os participantes do curso avaliaram de forma muito positiva a
proposta. Os objetivos foram alcançados, embora a qualidade da escrita e da
metodologia de pesquisa não fosse plenamente satisfatória, em virtude da
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dificuldade de orientação personalizada para cada grupo. Quando essa proposta
foi aplicada não dispúnhamos de monitor para a disciplina. Nossa avaliação foi que
para melhorar a qualidade da escrita e a metodologia científica, seria essencial um
acompanhamento sistematizado e com regularidade para que percebêssemos as
dificuldades específicas dos grupos de trabalho e fizéssemos as intervenções
necessárias.
3.2 Pesquisando para conhecer
A discussão de que os estudantes cada dia aprendem menos é questionada
por diversos autores, inclusive Pozo (2002) que, ao refletir sobre isso, argumenta
que a sociedade em que vivemos hoje demanda que aprendamos a lidar com uma
série de informações jamais conhecidas na história humana, sob pena de sermos
excluídos até mesmo de atividades cotidianas, como lidar com nosso dinheiro, se
não aprendermos a usar, por exemplo, um caixa eletrônico.
É inegável que as crianças chegam à escola dominando muito mais
informações do que outrora. Mas, por que o ensino escolar parece regredir à medida
que a necessidade de conhecimento aumenta? Na maioria das escolas, o ensinar e
o aprender estão centrados na oralidade e na memorização e parecem não ter
mudado muito desde a instituição da escola. Não se questiona a necessidade de
memorização em determinadas situações, contudo, memorizar informações não
quer dizer ter a capacidade de usá-las quando necessário. Apesar disso, a escola
continua valorizando a memorização mecânica. A sociedade mudou, suas
demandas mudaram, mas a escola valoriza principalmente habilidades que uma
sociedade de outrora valorizava, quando o acesso aos escritos e sua necessidade
na vida cotidiana eram muito limitados se comparados aos atuais. A mudança da
sociedade e suas demandas implicam diretamente questionar por que e para que
ensinar e aprender na sociedade atual. O que é realmente importante ensinar numa
sociedade onde o acesso e a quantidade de informação são imensos, e que
requisita que saibamos usar o conhecimento em situações cada vez mais diversas?
Pozo (2002) defende que o processo ensino-aprendizagem deva priorizar o
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ensino de estratégias para aprender a aprender e lidar com as informações e
conhecimentos adquiridos. Mas para que o aluno se aproprie das estratégias de
aprendizagem é preciso que o professor tenha atitudes estratégicas em relação ao
seu fazer pedagógico. Para tanto, é preciso que o ofício do ensinar e do aprender
seja concebido como um problema, uma tarefa complexa e aberta, que pode ter
diversas respostas dependendo das intenções e estratégias escolhidas para resolvê-
lo.
3.2.1 Práticas investigativas como estratégia de ensino-aprendizagem
Partilhando das idéias de Pozo (2002), acreditamos que as práticas
investigativas na graduação podem funcionar como uma metodologia mais
adequada para o ensino-aprendizagem na sociedade da informação, o que também
é defendido por Galiazzi (2003) e Demo (1996), que tratam do como educar pela
pesquisa, e Freire (1997) que nos alerta para o fato de que é a curiosidade que nos
move para aprender e que ensino e pesquisa não devem ser dissociados.
O educar pela pesquisa “como uma possibilidade de transformação da
formação inicial dos professores”, é defendido por Galiazzi (2003) porque, em sua
compreensão, “se pode fazer da sala de aula um lugar de aproximação do ensino e
da pesquisa, desde que o aluno se construa e se constitua pesquisador nesse
processo” (GALIAZZI, 2003, p. 111). A autora tem como suportes teóricos Demo
(1998) e Habermas (1989) e usa a proposta desses estudiosos para estabelecer
diferentes níveis de pesquisa (GALIAZZI, 2003, p. 92):
1. A interpretação reprodutiva.
2. A interpretação própria.
3. A reconstrução.
4. A construção.
5. A criação de novos paradigmas.
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Galiazzi (2003,p. 92)) propõe a pesquisa em três situações:
1. No planejamento e avaliação dos projetos curriculares;
2. Como parte da função do professor, sendo instrumento para seu
aperfeiçoamento profissional;
3. Como metodologia para a aprendizagem dos alunos.
Galiazzi fundamenta-se, ainda, em Porlán e Rivero (1998), Porlán e outros
(1997-1998) Cañal e outros (1997) para defender que a pesquisa surge como
principio articulador dos demais, superando teorias reducionistas, limitadas à
reprodução de conhecimento cientifico. (GALIAZZI, 2003, p. 93-94). Os autores
propõem que a metodologia de pesquisa escolar constitua a estratégia de ensino
prioritário para o ensino de ciências, considerando os seguintes momentos no
planejamento das atividades de ensino:
1. Orientação de unidade: o ponto de partida da pesquisa é um problema de
interesse intelectual e afetivo dos alunos.
2. Expressão e contraste dos conhecimentos iniciais dos alunos: estes
precisam expor aos demais as idéias que têm sobre o problema a ser estudado.
3. Planejamento do trabalho: construir conceitos e hipóteses baseados nas
concepções iniciais dos alunos, contrastando-os; aqui se incluem o planejamento
sobre a obtenção de novas informações, a análise dos dados, a comunicação dos
resultados e a avaliação do processo desenvolvido.
4. Execução do planejamento, que inclui a obtenção de novas informações, a
análise dos dados, interpretação dos recursos obtidos e a obtenção de conclusões.
5. Estruturação secundária: usar os conhecimentos produzidos em situações
variadas, incluindo sínteses, elaboração do produto e a formulação de novos
30
problemas.
6. Comunicação dos resultados: os alunos precisam comunicar seus
resultados com a própria sala ou com comunidades mais amplas.
7. Avaliação do processo de pesquisa, incluindo processos metacognitivos
sobre as aprendizagens alcançadas.
Neste trabalho optamos por usar a expressão práticas investigativas em lugar
de pesquisa para diferenciá-las da atividade de pesquisa, que é realizada na pós-
graduação. Sobre esta questão, Dias Sobrinho enfatiza que:
Não se trata, aqui, da grande pesquisa em áreas nobres que os centros de excelência e instituições científicas internacionalmente reconhecidas produzem; porém, mais propriamente daquela produção e reconstrução do conhecimento vinculadas com a docência e quase sempre orientadas às realidades mais próximas. Não se trata, porém, de atividades menos nobres ou menos importantes que aquelas desenvolvidas pelas prestigiosas universidades de fama internacional. Certamente correspondem essas atividades ao que faz a maioria das instituições superiores com vocação pública e que pretendem fazer um trabalho educacional sério. (DIAS SOBRINHO, 2000, p. 45).
A iniciação à pesquisa científica pode ser uma excelente oportunidade para o
desenvolvimento do trabalho de equipe e para favorecer as interações entre os
alunos, o respeito às diferenças, a autodisciplina e a autonomia. Além disso, oferece
condições para que haja uma desmitificação da pesquisa e do pesquisador, para
esclarecer a freqüente confusão entre técnicas e pesquisa e possibilita a discussão
da ética na pesquisa.
A indicação para lidar com práticas investigativas na graduação encontra na
LDBEN Lei 9.394/1996 seus princípios: (i) fortalecimento da articulação da teoria
com a prática, valorizando a pesquisa individual e coletiva, assim como os estágios
e as atividades de extensão, as quais poderão ser incluídas como parte da carga
horária curricular; (ii) estímulo das práticas de estudo independente, visando a uma
progressiva autonomia profissional e intelectual do aluno; (iii) incentivo de sólida
formação geral, necessária para que o futuro graduado possa vir a superar os
desafios de renovadas condições de exercício profissional e de produção do
conhecimento, permitindo variados tipos de formação e habilitações diferenciadas
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em um mesmo programa.
O Parecer Câmara de Ensino Superior do Conselho Nacional de Educação
(CES/CNE ) nº. 1.070/99, aprovado em 23.11.99, também reforça a implementação
de práticas investigativas como procedimentos pedagógicos no ensino superior e
descreve que:
As práticas investigativas como pesquisa bibliográfica, estudos de caso, pequenos trabalhos de campo sob a orientação dos docentes, o trabalho em escritórios de advocacia associados aos cursos de Direito, trabalhos individuais ou coletivos de experiências nos laboratórios constituem procedimentos pedagógicos essenciais para ensino de qualidade e para a formação adequada de futuros profissionais e devem ser estimulados, tanto nas universidades quanto em outras instituições de ensino.
As práticas investigativas encontram-se ainda defendidas em diversas
Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação. A esse respeito,
citem-se, por exemplo, as Diretrizes para a Formação de Professores da Educação
Básica, instituída pela Resolução 1 do Conselho Nacional de Educação – Conselho
Pleno (CNE/CP), de 18 de fevereiro de 2002, que no seu artigo 2º preconiza
diversas formas de orientação inerentes à formação para a atividade docente, entre
as quais o preparo para o aprimoramento em práticas investigativas, constituindo-se
em procedimentos que propiciam a desejada articulação entre ensino, pesquisa e
extensão.
A proposta aqui apresentada envolveu os alunos numa prática investigativa,
em que o conhecimento científico foi requisitado para responder as questões do dia-
a-dia e, em contrapartida, refutá-lo, validá-lo ou ampliá-lo, à medida que as
observações empíricas buscam nas referências bibliográficas suporte para
sistematizar e fundamentar tais observações e dados levantados.
Retomando Freire (1997, p. 32), lembramos que ele enfatiza a intrínseca
relação entre ensino e pesquisa - “se encontram um no corpo do outro”-, diz ele.
Mas mesmo no cotidiano da Universidade há ruptura entre ensino e pesquisa, e,
muitas vezes, os professores não se dão conta de que, ao ensinar, fazem uma
transposição didática de conhecimentos que são fruto de pesquisa, que surgiram
das indagações acerca do mundo. Nesse contexto do desconhecimento, o
pesquisador, o cientista é considerado um ser diferente dos demais.
Mas o professor também não pesquisa? Não deveria ser o ensino de Ciências
e Biologia uma forma de incentivar a curiosidade natural, como Freire (1997) sugere,
32
promovendo a superação do senso comum de forma que a curiosidade, que não
deixa de ser curiosidade, criticiza-se a partir da aproximação com o conhecimento
científico?
É uma queixa generalizada entre os universitários o fato de os conteúdos
pedagógicos não serem vivenciados em sua vida estudantil. A diversificação de
metodologias, a avaliação usando diferentes instrumentos, por exemplo, não são
aplicadas na universidade. As teorias pedagógicas não encontram na universidade
seu espaço de aplicação.
Por isso, esta proposta defende que “o profissional da educação seja
pesquisador, isto é, que maneje a pesquisa como princípio científico e educativo e a
tenha como atitude cotidiana” (DEMO, 1998, p. 2). Assim é que compreendemos e
justificamos o uso de práticas investigativas no ensino superior como meio para o
desenvolvimento de estratégias produtivas de ensino-aprendizagem.
3.2.2 A natureza dos conteúdos curriculares
Observando os parâmetros curriculares nacionais, e comparando-os com a
ação da maioria dos professores da Educação Básica, vemos que o discurso da
moda pode ser incorporado, algumas atividades também, mas isto não é suficiente
para dizer que houve um rompimento com um modelo tradicional de ensino adotado.
Na perspectiva que defendemos, acreditamos que seja necessário primeiro
apropriar-se das concepções de uma prática construtivista, identificar-se com ela,
para, então, executá-la. É preciso urgentemente buscar a coerência nas práticas
educativas. Alguns professores são bons professores, mas rotulados de
tradicionais em virtude do tipo de atividade de ensino que executam. Apesar de
optarmos por outra posição, julgamos melhor que continuem sendo bons
professores, ao invés de se perderem em modelos de ensino cujas concepções não
se apropriaram e com os quais não se identificam.
Isto não quer dizer que as mudanças não possam acontecer. Além do
cuidado com o superficialismo de algumas tentativas de inovação que chegam à
escola, a mudança depende da vontade do professor e de formação continuada
33
adequada, para que não levantemos questionamentos de práticas que são tomadas
pela metade, como “remendo novo em vestido velho”. Talvez seja possível impor
uma ação, mas mudança de concepção e postura não pode ser imposta,
dependendo da adesão dos professores.
É certo que a teoria por si só não modifica a prática docente, nem tampouco a
prática por si só garante a qualidade de ensino. É grande a dificuldade dos
estudantes para contextualizarem no dia-a-dia e em sua prática docente os
conhecimentos aprendidos na vida acadêmica. São perguntas muito comuns entre
os alunos, em especial quando estão realizando o estágio supervisionado, como
poderão executar na sala de aula as teorias e metodologias estudadas em termos
conceituais durante o curso, se não tiveram experiência enquanto alunos com as
mesmas? Se não sabem como fazer? Se não aprenderam o procedimento?
Na concepção defendida por Zabala (1999), tudo que pode ser aprendido
pode ser considerado como conteúdo. Entretanto, o elenco de um currículo escolar
seleciona o que é relevante para ser ensinado na escola, restando saber que
critérios são usados nessa seleção? Não podemos perder de vista que todo
currículo é socialmente construído; por isso mesmo, a relevância dos conteúdos
escolares é questionável.
No presente trabalho mantêm-se os conteúdos conceituais constantes das
ementas dos programas das disciplinas da maioria das universidades e faculdades,
conforme levantamento na Internet. Insistimos que esta proposta reconhece outros
conteúdos além dos conceituais e, por isso, usa a discriminação tipológica como
critério de classificação: o quê os discentes devem saber dizer, saber fazer e ser
(ZABALA, 1999, p. 161): o saber dizer define os conteúdos conceituais ligados
principalmente a conteúdos que são verbalizados, ou utilizam-se da escrita para
serem expressos; saber fazer define os conteúdos procedimentais, isto é, conjuntos
de ações ordenadas destinadas à consecução de um fim, incluem técnicas,
métodos, destrezas ou habilidades; saber ser define os conteúdos atitudinais que se
referem a valores, normas, atitudes .
De acordo com Pozo (2002), conteúdos conceituais, procedimentais e
atitudinais são de natureza distinta, as formas de aprendê-los envolvem processos
cognitivos também distintos, de maneira que se apropriar do conteúdo conceitual
não implica apropriação do procedimental ou vice-versa. Por isso alguns sabem
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dizer como fazer, mas não sabem fazer; enquanto outros sabem fazer, embora não
saibam explicar como e porque fazem.
Defendemos que para se apropriar dos conteúdos procedimentais e
atitudinais, tão discutidos e proclamados pelas disciplinas pedagógicas nos cursos
de licenciatura, os alunos precisam aprender a fazer e a ser. Só se aprende a fazer
fazendo ou tentando fazer, e a ser sendo ou tentado ser.
A universidade deveria ser o espaço para que esses conteúdos sejam
efetivamente trabalhados. Como o aluno aprenderá a se expressar de forma escrita,
se esta não é uma habilidade requisitada pelos professores? Como poderão fazer
pesquisa se só aprendem os conteúdos conceituais da metodologia científica, se
não puderam aplicar essa metodologia em uma situação concreta? Como saber se o
aluno consegue aplicar o conteúdo conceitual ensinado em situações diversas, se
ele não é desafiado a fazê-lo?
Buscando superar os desafios do processo ensino-aprendizagem
compartilhamos com Pozo (2002), que sintetiza, em dois “mandamentos”, os
princípios que deveriam ser observados para que mais estudantes pudessem
aprender (p. 272-273):
I – Refletirás sobre as dificuldades que teus aprendizes enfrentam e buscarás meios de ajudá-los a superá-las. II – Transferirás progressivamente para os alunos o controle de sua aprendizagem, sabendo que a meta última de todo mestre é se tornar desnecessário.
Compreendemos que a finalidade de todo processo educativo é promover os
estudantes em todos os aspectos humanos e na educação formal, especialmente, o
desenvolvimento da autonomia intelectual (FREIRE, 1997; POZO, 2002; DEMO,
1998; GALIAZZI, 2003). A autonomia intelectual deve ser um objetivo explícito a
alcançar quando decidimos pelas estratégias de ensino mais adequadas. Um
mesmo conteúdo pode ter diversas abordagens e nossas escolhas têm razões que
muitas vezes não estão explícitas, mas, com certeza, estão ligadas à nossa
formação inicial, à nossa vivência como discentes e ao contexto social.
Uma vez que tenhamos nossos objetivos bem estabelecidos, como escolher
entre diferentes atividades de ensino? Raths (1973) citado por Zabala (1999, p. 157),
elenca os critérios para comparar diferentes tipos de atividades de ensino,
35
pressupondo que:
Em iguais condições, uma atividade é preferível a outra se: 1. Permite que o aluno tome decisões razoáveis sobre como desenvolvê-la e
veja as conseqüências de sua escolha. 2. Atribui ao aluno um papel ativo em sua realização. 3. Exige do aluno uma pesquisa de idéias, processos intelectuais,
acontecimentos ou fenômenos de ordem pessoal ou social o estimula a envolver-se nela.
4. Obriga o aluno a interagir com sua realidade. 5. Pode ser realizada por alunos de diversos níveis de capacidade e
interesses diferentes. 6. Obriga o aluno a examinar, em um novo contexto, uma idéia, conceito, lei
etc., que já conhece. 7. Obriga o aluno a examinar idéias ou acontecimentos normalmente aceitos
sem questionamento pela sociedade. 8. Coloca o aluno e o educador em uma posição de êxito, fracasso ou crítica. 9. Obriga o aluno a reconsiderar e rever seus esforços iniciais. 10. Obriga a aplicar e dominar regras significativas, normas ou disciplinas. 11. Oferece ao aluno a possibilidade de planejá-la com outros, participar do
seu desenvolvimento e comparar os resultados obtidos. 12. For relevante para os propósitos e interesses explícitos dos alunos.
Os critérios citados anteriormente nortearam o produto proposto e testado que
ora dissertamos.
3.2.3 A organização cooperativa – os pequenos grupos
Todo trabalho foi estruturado com base no conceito de “pequeno grupo”, ou
“grupo de interação face a face” (AFONSO, 2002, p. 14), pois o processo ensino-
aprendizagem é, em sua essência, o encontro com o outro (GIUSTA, 2003), uma
prática social, que, como tal, não ocorre de forma solitária (FIGURA 2).
36
FIGURA 2: Alunos organizados em pequenos grupos durante a execução dos trabalhos laboratoriais.
Fonte: Foto da autora
Afonso (2002) concebe a constituição do grupo de interação face a face como
uma “rede de relações” com poucas pessoas partilhando objetivos em comum,
algum traço de identidade e vinculados pela interdependência de sua condição,
projeto e/ou trajetória social. Em nosso trabalho, o objetivo comum era a proposta da
prática investigativa e da aquisição dos conhecimentos e estratégias para alcançá-
lo. Todos os participantes eram estudantes matriculados na disciplina, sendo esse o
vínculo de interdependência. A execução dos trabalhos se deu em grupos de três a
cinco pessoas, grupos estes formados por afinidades, sem a interferência da
professora ou das monitoras. A composição dos grupos guarda relação, também,
com a seguinte definição de Piaget:
O método do trabalho em grupo consiste numa organização de trabalhos em comum. Um certo número (quatro ou cinco por exemplo) se junta para resolver um problema, recolher a documentação de um tema de história ou de geografia, para fazer uma experiência de química ou de física, etc. A experiência mostra que os fracos e preguiçosos, não são abandonados à própria sorte, são então estimulados e mesmo obrigados pela equipe, enquanto os adiantados aprendem a explicar e dirigir, muito melhor do que permanecessem na situação de alunos solitários. Além do benefício intelectual e da crítica mútua do aprendizado, da discussão e da verificação, adquire-se desta forma um sentido da liberdade e da responsabilidade
37
conjuntas, da autonomia na disciplina livremente estabelecida. (PIAGET, 1944, p. 203).
A aprendizagem se dá, desta maneira, em um contexto social no qual a
interação entre os atores do processo ensino-aprendizagem é uma condição
necessária para que a aprendizagem ocorra, e este contexto afeta os resultados do
processo. (POZO, 2002; FREIRE, 1997). Compartilhamos, ainda, com Wallon (1979)
a afirmação segundo a qual “o indivíduo, se se compreende como tal, é
essencialmente social, não na seqüência de contingências exteriores, mas na
seqüência de uma necessidade íntima. Ele é biologicamente social” (WALLON,
1979, p.156).
Apesar da importância do contexto social, tradicionalmente as atividades de
ensino-aprendizagem são prioritariamente individuais, tendendo para a organização
competitiva, mas vários autores têm apontado as vantagens da organização
cooperativa, sobretudo para aprendizagens sociais. O rendimento acadêmico, de
forma geral, é melhor quando apoiado na cooperação do que na atividade individual
em contextos de aprendizagem construtiva. (SLAVIN, 1990; WEINSTEIN, 1991;
COLL; COLOMINA, 1990; MELERO; FERNÁNDEZ BERROCAL, 1995 apud POZO,
2002). A eficiência da organização cooperativa de ensino-aprendizagem reside em
dois processos fundamentais: o conflito cognitivo e o suporte para solução de
problemas e conflitos. (POZO, 2002) .
Entre colegas, durante a realização de uma atividade, as explicações são
confrontadas e o surgimento do conflito cognitivo desequilibra os conceitos
alternativos dos alunos, que buscarão soluções para superá-los, podendo assim
alcançar os conceitos científicos que se pretendem ensinar. Além de superar os
conflitos cognitivos, devem também superar conflitos de natureza diversa, razão
porque Pozo (2002) chama esses conflitos de sociocognitivos.
Refletindo sobre a organização cooperativa de ensino-aprendizagem a partir
das zonas de desenvolvimento propostas por Vigotsky, devemos considerar que a
sala de aula apresenta alunos em diversos níveis de desenvolvimento cognitivo, e,
diante de uma situação de aprendizagem mediada por problemas, eles podem
interagir e auxiliarem-se mutuamente (GIUSTA, 2003). Os alunos que conseguem
responder primeiro conseguem, também, entender melhor as dificuldades dos
colegas e explicar como fizeram para resolvê-las, pois as zonas de desenvolvimento
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estão mais próximas entre eles do que em relação ao professor. (POZO, 2002).
Há uma tendência dos professores a acreditar que somente os que se
encontram em zona de desenvolvimento real menos desenvolvida são favorecidos
em uma organização cooperativa de ensino-aprendizagem. Entretanto, as pesquisas
têm demonstrado que os mais aptos no que diz respeito ao tema ou ao problema
sob sua responsabilidade desenvolverão iniciativa, habilidades de orientação e
socioafetivas, à medida que ajudam os colegas. Melero e Fernández Berrocal
(1995), citados por Pozo (2002), pontuaram que, nessas experiências, o aluno que
atua como orientador é o que mais aprende.
Considerando que os conhecimentos prévios dos estudantes são
heterogêneos, a organização cooperativa permite partilhar vivências sociais
diferenciadas, podendo contribuir de forma variada na resolução do problema e na
ampliação das possibilidades de aprendizagem pensadas para a atividade, pois
durante o processo interativo o professor não tem controle sobre o conteúdo das
interações. Além dos processos já citados, a organização cooperativa permitirá “a
aprendizagem por modelos e o planejamento estratégico da aprendizagem” (POZO,
2002, p. 259), uma vez que para concluir o problema proposto é necessário que o
grupo se organize.
Apesar de todas as vantagens citadas, vários autores (COLL apud POZO,
2002) concordam que a cooperação por si só não produz aprendizagem. A partir das
contribuições de Slavin (1990), Echeita (1995) e Melero e Fernández Berrocal
(1995), Pozo (2002) estabelece as condições para o sucesso de uma organização
cooperativa:
a) A tarefa dever ser comum para todo o grupo, trabalhando de forma sistêmica e não cartesiana; b) Evitar que os aprendizes se escondam no grupo, avaliando o trabalho em conjunto, mas não esquecendo a contribuição individual para o coletivo; c) O acesso ao êxito na atividade proposta deve ser democrático, em que o aluno seja avaliado pelo seu desempenho e não pela comparação com os demais;
As atividades em grupos oportunizam a cooperação e a autonomia, sendo,
portanto, conteúdos atitudinais privilegiados neste tipo de organização de trabalho:
A cooperação é o conjunto das interações entre indivíduos iguais (por oposição às interações entre superiores e inferiores) e diferenciados (por oposição ao conformismo obrigatório). A cooperação supõe então
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autonomia dos indivíduos, isto é, a liberdade de pensamento, a liberdade moral e a liberdade política. ”“Mas é preciso compreender que a liberdade, que surgiu da cooperação, não é a-nomia ou a anarquia; ela é a autonomia; isto é, a submissão do indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à constituição da qual ele colabora com sua personalidade. (PIAGET, 1944, p. 201)
Nesta proposta, fundamentamo-nos no conceito de autonomia defendido por
Maturana (1995), segundo o qual as pessoas são sistemas autônomos, isto é,
sistemas que se auto-organizam e estão constantemente trocando informações com
o meio, buscando melhor condição de adaptação. Por isso, Morin sugere o uso de
uma expressão mais ampla e mais expressiva, ou seja, sistemas auto-eco-
organizadores, em lugar de simplesmente sistemas auto-organizadores. (MORIN
apud GIUSTA, 2003).
Acreditamos, ainda, que o desenvolvimento da autonomia é a condição para o
surgimento da cooperação entre as pessoas e de uma educação que conduza à
prática da liberdade (FREIRE, 1997; PIAGET, 1944).
3.2.4 A mediação do professor
Para alcançar o fim a que se propõe, uma organização cooperativa deve
atender determinadas condições, entre as quais ressaltamos a mediação do
professor. É arriscado deixar o grupo entregue a si mesmo, crendo que na troca
entre iguais o conhecimento pretendido será automaticamente apropriado pelos
alunos, pois sem a participação direta do professor que planeja, orienta e
acompanha é menos provável atingir-se o objetivo proposto.
A relação ensino-aprendizagem é uma relação altamente complexa e, por isso, incerta e, na maioria das vezes, tensa. Se tivéssemos que resumir, diríamos com muita adequação que essa relação é probabilística e, portanto, o problema que se coloca para os profissionais do ensino, antes de tudo, é: como aumentar a probabilidade para que a relação ensino/ aprendizagem ocorra ? e, além disso, o que se deve priorizar para tirar o máximo de proveito possível dos momentos em que ela ocorre ? (GIUSTA, 2003 , p. 25)
Ao concordamos com a afirmação de Giusta (2003), não cabe imaginar que
procedimentos técnicos são atividades mecânicas, que uma vez ensinadas qualquer
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pessoa é capaz de aprendê-los e repeti-los. Isso nos leva, nesta proposta, a partilhar
que:
Para imitar, é necessário possuir os meios para se passar de algo que já se conhece para algo novo. Com o auxílio de uma outra pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha – ainda que se restringindo aos limites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 1987, p.89).
Defendemos, portanto, que a execução de um procedimento técnico depende
dos meios que o aprendiz já possui, e que é necessário um mediador, uma pessoa
que o auxilie para que ele possa ir além do que ele já sabe. No caso da educação
formal, o mediador de direito e de fato não pode deixar de ser o professor.
Assim, deve-se considerar que em uma organização cooperativa de ensino-
aprendizagem o papel do professor é muito mais do que o de prover informações,
cabendo-lhe planejar, administrar e supervisionar os grupos de trabalho. Ao exercer
seu papel nesses termos, a legitimação da autoridade do professor, questão crucial
nesse tipo de organização, é preservada. Tardif (1991), analisando os saberes dos
professores afirma que a autoridade do professor é concedida pela sociedade, em
virtude de uma formação que o capacita para ministrar determinados conteúdos,
mas que essa autoridade precisa ser legitimada no seu ambiente de trabalho.
Vale lembrar que como os alunos não estão acostumados com este tipo de
prática, poderão se sentir entregues a si mesmos em atividades que acham que é só
para ocupar o precioso tempo de aprender (daqueles que assim desejam), ou uma
desculpa para o professor não trabalhar e ludibriar os alunos. Sendo assim, a prática
investigativa é vista como sem importância e eles vão preferir usar seu tempo para
fazer coisas mais interessantes. Por isso é essencial que o mediador assuma
plenamente sua função no processo (FIGURA 3).
41
FIGURA 3: Monitoras (jaleco rosa) acompanhando as práticas investigativas desenvolvidas pelos alunos.
Fonte: Foto da autora
Pozo (2002) chama a atenção para o fato de que um mestre que trabalha
lançando mão de estratégias deve, aos poucos, ensinar a elaboração de estratégias
aos alunos de forma que estes cada vez mais ganhem autonomia e possam criar
estratégias próprias para aprender. Desta forma, mestres estratégicos podem formar
aprendizes estratégicos.
3.3 A intervenção - educando os atores do processo
3.3.1 Vivenciando práticas investigativas no ensino de microbiologia
A disciplina microbiologia1, por sua própria definição, tem conteúdos explícitos
1 Ementa da disciplina Microbiologia (60 h): Estuda a biologia, importância e distribuição dos microorganismos.
42
de natureza conceitual e procedimental e, na proposta de trabalho que estamos
apresentando, destacamos também os atitudinais. Os conteúdos conceituais e
procedimentais classicamente trabalhados na disciplina não foram alterados.
Entretanto, a proposta traça um trabalho diferenciado para a abordagem dos
conteúdos procedimentais e atitudinais fundamentada nos pressupostos teóricos
que adotamos.
A maioria dos cursos de microbiologia nas universidades separa créditos
teóricos e práticos, o que nos leva a deduzir que o caráter procedimental é também
trabalhado na disciplina. A separação dos créditos pode ter razões diversas, mas se
não se tomar cuidado, a disciplina acaba se desdobrando em duas. Em alguns
cursos, um professor trabalha os créditos teóricos e um outro os créditos práticos,
indicando que a concepção cartesiana ainda é muito forte na área, não sendo raros
os casos em que existem aula teórica e aula prática em horários separados. Muitas
vezes essa separação é necessária para organização do tempo/espaço escolar, já
que não é possível trabalhar procedimentos com uma turma grande em laboratório
de microbiologia, porém, muitas vezes, ela reflete realmente a dicotomia entre o
“saber dizer” e o “saber e o fazer”.
Os conteúdos procedimentais “aulas práticas” referem-se a: meios de
cultura/semeadura; provas bioquímicas; coloração e bacterioscopia. Apesar da
ementa mais ampla, em microbiologia as “práticas”, na maioria dos cursos, são
direcionadas para a bacteriologia.
Os conteúdos procedimentais e a vivência no laboratório de microbiologia são
importantes para desenvolver, também, conteúdos atitudinais, como disciplina
cooperação, organização, entre outros. É arriscado para professores e alunos
trabalhar neste ambiente sem incorporar práticas de autocuidado, cuidado coletivo,
organização e principalmente disciplina.
Levando em conta o risco dos procedimentos, questões de biossegurança e
prevenção de acidentes devem estar sempre em primeiro plano, pois lidamos com
gás inflamável, fogo, substâncias voláteis, vidros e microrganismos. Quando uma
amostra é contaminada propositalmente para uma aula, podemos até ter certeza de
que o microrganismo não é patogênico, mas quando analisamos uma amostra
coletada no ambiente, não podemos garantir. É, portanto, essencial a adoção de
medidas preventivas. Este é um grande problema com alunos novatos, quando o
43
imaginário parece estar repleto de idéias de filmes que mostram um ambiente
excitante e cheio de novidades, que pesquisadores e técnicos são pessoas
extravagantes, malucos e muito divertidos. No entanto, diante da realidade
percebem que é justamente o oposto. O ambiente pede concentração, disciplina,
não admite brincadeiras, conversas, sob risco de não se conseguir cumprir o
protocolo do procedimento ou sofrer algum acidente. A observação no microscópio,
antes tão imaginada, é um exercício que poucos alunos do nosso curso têm a
paciência necessária para a ela se dedicar e adquirir destreza, pois exige muito mais
exercício do que eles estão dispostos a fazer, e não desperta empolgação nenhuma
em procurar algo que, muitas vezes, não sabem do que se trata.
Podemos comparar um laboratório de microbiologia com uma grande cozinha:
pesamos e levamos ao fogo meios de cultura, semeamos, colocamos na estufa,
levamos à geladeira - muitos materiais estragam em ambientes inadequados,
amostras são perdidas, materiais precisam ser lavados, secados e o ambiente deve
ser mantido constantemente limpo e em ordem. Incorporar essa rotina é um
processo lento e, neste momento, muitos alunos reconhecem que não é essa a área
da Biologia com que se identificam.
Os conteúdos procedimentais precisam ser exercitados para serem
aprendidos; não basta “dar” a receita, é preciso executá-la. É na execução que os
alunos aprendem “como semear o meio, abraçando o fogo” e outras coisas que a
observação da execução ajuda a entender, mas isso só não garante o
desenvolvimento da habilidade. Exercitar a técnica é essencial para incorporá-la de
forma que seja automatizada. Nessa proposta defendemos que o exercício da
técnica se dê em um contexto de prática investigativa, onde os alunos, em grupos,
escolhem o objeto da investigação de acordo com as condições e recursos
disponíveis, pois a escolha implicará métodos, reagentes, tempo etc.
É pouco provável ensinar adequadamente os conteúdos procedimentais e
atitudinais necessários em uma turma de quase 50 alunos. Por isto, a turma foi
dividida em três para aula prática, com aproximadamente 15 alunos cada. Por sua
vez, cada turma de aula prática foi subdividida em grupos de três a cinco pessoas,
que se organizaram por afinidade pessoal e que deveriam ser mantidos durante
todas as atividades da prática investigativa.
As monitoras de ensino trabalharam nesta etapa planejando e organizando os
44
materiais necessários para as aulas “práticas” e executando-as com a supervisão da
professora-pesquisadora (FIGURA 4). Após o término da aula havia uma reunião de
reflexão e avaliação entre monitoras e professora/pesquisadora. Desta reunião
saiam os encaminhamentos para o planejamento e providências para a aula
subseqüente. As aulas práticas ocorriam uma vez por semana e eram agendados
horários extras, quando necessário, para acompanhar o crescimento das culturas e
outras rotinas pertinentes. As monitoras também acompanharam e avaliaram, com a
supervisão da professora, os relatórios das aulas, de acordo com modelo e critérios
estabelecidos.
FIGURA 4: Monitoras organizando o laboratório para as aulas práticas. Fonte: Fotos da autora
Além de permitir exercitar as técnicas aprendidas, a proposta de uma prática
investigativa objetivou ir além da técnica, oportunizando o desenvolvimento de
estratégias, pois para escolher o objeto de investigação precisariam pesquisar em
bases disponíveis na Internet, monografias disponíveis no curso e revistas
especializadas e, diante das possibilidades e condições de execução, dos interesses
dos membros do grupo etc., propor um problema para investigação. Uma vez feita a
escolha, o grupo deveria organizar as informações coletadas em uma planilha
analítica para nortear a investigação e a execução do planejamento. Após a
45
execução, deveriam planejar a apresentação dos resultados alcançados,
descrevendo o processo que foi utilizado, para socialização com os demais colegas.
Na tentativa de tornar o processo mais didático possível, separamos o seu
desenvolvimento por etapas. Ressaltamos a importância das monitoras nesta fase
do trabalho, pois suas vivências como estudantes e bolsistas de iniciação científica
em microbiologia foram essenciais para chegar a uma organização didática que
favorecesse ao máximo a aprendizagem, articulando todas as etapas de forma que,
no encerramento das atividades, os alunos se apropriassem do processo como um
todo (FIGURA 5).
46
FIGURA 5: Etapas da iniciação à pesquisa.
Iniciação à Docência
Iniciação à Pesquisa
Planejamento
Planejamento da prática
investigativa
Execução do planejamento
Socialização dos
resultados
Organização e divisão das tarefas
Pesquisa bibliográfica
Elaboração do relatório
Coloração Gram e bacterioscopia
Meios de cultura e semeadura
Provas bioquímicas
Coleta e análise das amostras
Confecção da planilha analítica
Capacitação técnica
Proposta do problema
Práticas Investigativas em
Microbiologia Planejamento das aulas práticas
Preparação do laboratório
Org. e elaboração do seminário
Orientar o planejamento
Escolha do problema
Execução das aulas laboratoriais
Tutoria aos grupos de alunos
Avaliação dos grupos
Refletir os encaminhamentos
Orientar a confecção das planilhas
Avaliação das aulas
Orientar a coleta e análise
Execução
Socialização
Problema de investigação
Capacitação técnica
Avaliar o desempenho
Orientar a elaboração do relatório
Orientar a elab. das apresentações
Refletir os encaminhamentos
Avaliar as apresentações
Avaliar e refletir todo o processo
Refletir os encaminhamentos
Refletir os encaminhamentos
Avaliar o desempenho
Acompanhar os grupos
47
Nesse momento, as monitoras puderam sistematizar conhecimentos
procedimentais e rever alguns aspectos de biossegurança considerados
inadequados. A elaboração conjunta da professora-pesquisadora e monitoras deu
acesso, de forma democrática ao processo: elas foram co-autoras e tinham o
conhecimento de toda estrutura do processo, não tendo sido simplesmente
executoras. Consideramos esse fato decisivo para os resultados indicados na
avaliação alunos.
A proposta teria que se adequar ao calendário acadêmico, por isso o
planejamento foi pensado, organizado e reorganizado várias vezes antes da
execução, buscando chegar num formato mais sistêmico possível. A prática
investigativa realizada pelos alunos teve 30 h/aula e a iniciação à docência 50
h/aula. Assim, quando iniciamos a execução, todo o processo já tinha sido definido e
em seu desenvolvimento foi ajustando-se à medida que os problemas apareciam.
3.3.1.1 Etapas do trabalho
Na intenção de apresentar didaticamente as atividades, pontuamos as etapas
na seqüência cronológica em que foram executadas e os principais conteúdos
enfocados. Isso não restringe os conteúdos trabalhados, principalmente os
atitudinais; apenas destacamos os que seriam indispensáveis para que cada grupo
pudesse chegar ao final do cronograma proposto com um trabalho para ser
socializado na culminância da atividade. As etapas foram as seguintes:
1. Capacitação técnica
2. Proposta do problema de investigação
3. Planejamento da prática investigativa
4. Execução do planejamento proposto
5. Socialização dos resultados da prática investigativa
48
3.3.1.1.1 A Capacitação técnica
Nesta etapa foram contemplados os conteúdos conceituais, procedimentais
e atitudinais elementares para o desenvolvimento da prática investigativa, embora a
ênfase tenha recaído no “saber fazer” e “saber ser”. Os conteúdos trabalhados
foram: Conteúdos conceituais (meios de cultura; provas bioquímicas; coloração e
bacterioscopia); Conteúdos procedimentais (técnicas relacionadas aos conteúdos
conceituais); Conteúdos atitudinais (normas de biossegurança, normas de utilização
do laboratório de microbiologia, cooperação, disciplina e organização).
Acreditamos, conforme já dito, que, “na aprendizagem das matérias
escolares, a imitação é indispensável” (VYGOTSKY, 1987, p.89), e que as
condições de aprendizagem que permitem a cooperação e a ação do mediador
podem aumentar a probabilidade de que o aluno passe da imitação para novos
níveis de desenvolvimento.
A primeira etapa do projeto foi organizada em quatro blocos, de acordo com
os conteúdos conceituais e procedimentais a serem abordados, de forma que
houvesse coerência interna. Os blocos tinham número de aulas variado, em função
dos conteúdos e do tempo disponível dentro da disciplina: as aulas aconteciam uma
vez por semana, no período vespertino, com duração de 50 minutos. A seguir serão
apresentados tais blocos e os assuntos tratados por cada um deles:
Bloco 1 - apresentação do laboratório de microbiologia (equipamentos, materiais,
normas de utilização) e normas de biossegurança.
Bloco 2 – meios de cultura e semeadura.
Bloco 3 – provas bioquímicas.
Bloco 4 – coloração de Gram e bacterioscopia.
O bloco 1 teve uma aula concebida como introdutória e obrigatória e
49
nenhum aluno poderia desenvolver as demais atividades sem assisti-la, uma vez
que os conteúdos dessa aula seriam requisitados ao longo de todo o trabalho e a
execução das normas avaliada em todas as aulas seguintes. Em virtude disso,
compreendemos que não haveria necessidade de relatório, pois a avaliação seria
processual e os conteúdos retomados, sempre que necessário, nas aulas
posteriores. O objetivo principal deste bloco era despertar o cuidado individual e
coletivo durante os procedimentos laboratoriais.
Os blocos 2, 3 e 4 apresentaram as técnicas e os alunos deveriam
executá-las com roteiro preparado pelas monitoras (ênfase procedimental), e aplicar
as normas de biossegurança e de uso do laboratório, além da cooperação (ênfase
atitudinal). Compreendemos que os conteúdos conceituais foram trabalhados, pois
todas as aulas começavam com uma fundamentação teórica do que seria visto nas
técnicas (FIGURA 6), mas, no transcorrer da aula, eram os conteúdos
procedimentais e atitudinais que estavam em primeiro plano.
As técnicas usadas na proposta são clássicas e demandam poucos recursos
de infraestrutura, pois o laboratório de microbiologia do DEDC-X não dispõe dos
equipamentos necessários para todas as análises microbiológicas.
FIGURA 6: Monitoras (próximas ao quadro) explicando aos alunos os aspectos teóricos das atividades práticas que seriam realizadas por eles, posteriormente.
Fonte: foto da autora
50
3.3.1.1.2 Proposta do problema de investigação
Nesta etapa foram realizadas a pesquisa bibliográfica, a escolha do
problema para a prática investigativa de cada grupo e a confecção da planilha
analítica. A ênfase desta etapa estaria no “saber dizer/escrever”, embora a estrutura
de escrita acadêmica também possa ser considerada um procedimento. Os
conteúdos trabalhados foram: de ordem conceitual (métodos em microbiologia,
relação entre microrganismos e o homem - doenças, indicadores, produção de
alimentos etc., relação entre a ação metabólica dos microrganismos e sua relação
com o homem; metodologia científica); de ordem atitudinal (cooperação, autonomia,
fazer escolhas, defender interesses, negociar respeitando as diferenças)
Embora os conteúdos conceituais programados tenham sido esses, como a
atividade é do tipo aberta, muitos outros podem surgir à medida que os alunos se
aprofundam na pesquisa bibliográfica como, por exemplo: boa parte dos artigos
sobre contaminação de alimentos introduz o assunto falando da importância
daquele alimento.
Uma primeira limitação para os estudantes proporem temas para a prática
investigativa foi que somente poderíamos analisar materiais líquidos ou diluídos,
uma vez que não dispúnhamos de equipamentos para análises microbiológicas de
materiais sólidos.
Outro limite foi à quantidade de amostras e repetições, pois devido à
quantidade de alunos não teríamos o material de consumo suficiente para todos A
solução foi, então, dividir a sala em grupos de trabalho, que eram fixos em todas
aulas de laboratório e que, na sua maioria, se mantiveram na prática investigativa .
Apesar de a atividade ser realizada em grupos, ainda assim o número de amostras
analisadas precisou ser limitado, duas por equipe, em virtude da disponibilidade dos
meios de cultura.
51
3.3.1.1.3 Planejamento da prática investigativa
Nesta etapa a ênfase estaria no saber fazer e ser. Os alunos realizaram o
levantamento das atividades necessárias à prática investigativa, organizaram o
cronograma com os responsáveis pela execução da coleta de amostras, seu
processamento, resultados e análise. Os conteúdos abordados foram: conteúdos
procedimentais (planejamento, levantamento e alocação de recursos, definição de
tarefas) e conteúdos atitudinais (cooperação, liderança).
A intenção durante esta etapa era que os alunos desenvolvessem estratégias
para alcançar um objetivo estabelecido, considerando “os problemas” envolvidos na
escolha do tema da prática investigativa. Acreditamos que formando profissionais
que vivenciam o processo de elaboração de estratégias, eles também poderão
repetir o processo, o que é essencial quando refletimos que estamos trabalhando
com futuros professores. A elaboração de estratégias ultrapassa a fronteira do
componente curricular e passa a ser uma habilidade aplicada nas mais diversas
situações, sejam elas escolares ou não (POZO, 2002).
3.3.1.1.4 Execução do planejamento proposto
Nesta etapa os grupos colocaram em prática o planejamento da prática
investigativa, cuja ênfase estaria no “saber fazer”. Os conteúdos programáticos
foram de natureza procedimental (execução de atividades planejadas, execução de
técnicas) e atitudinal (disciplina, compromisso com horários e colegas, normas de
biossegurança e uso do laboratório, cooperação, respeito nas relações pessoais).
Todos os procedimentos laboratoriais aconteceram com a tutoria das monitoras.
Diante de uma situação concreta, os alunos puderem repetir as técnicas
aprendidas na primeira etapa, a da capacitação, mas o ensino e o domínio da
técnica ou procedimento são insuficientes para que elas sejam aplicados nas mais
diversas situações com que nos deparamos. Um exemplo disso é quando os
resultados esperados para as análises microbiológicas não demonstram
52
concordância com informações das condições do ambiente, e o estudante não
consegue analisar o procedimento para localizar o problema: nos meios de cultura?
nos aparelhos? na coleta? na amostra? É essencial ir além do ensino da técnica e
ensinar estratégias (POZO, 2002). Por isso, foi preciso contar com a tutoria das
monitoras.
3.3.1.1.5 Socialização dos resultados da prática investigativa
Esta etapa foi dedicada à escrita do relatório do trabalho, resultados
encontrados, discussão, confrontação com outras pesquisas publicadas;
organização e preparação da apresentação do material produzido para o seminário
de socialização de práticas investigativas, com ênfase no “saber dizer/escrever”.
Os conteúdos trabalhados foram de natureza conceitual - metodologia
científica e conteúdos específicos de cada tema escolhido pelos grupos; de natureza
procedimental - planejamento das atividades necessárias, execução das normas de
escrita acadêmica; de ordem atitudinal (disciplina, compromisso com horários, com
colegas, cooperação, respeito nas relações pessoais)
O seminário foi organizado como atividade de culminância do processo para a
apresentação das práticas investigativas e envolveu os alunos, as monitoras de
ensino e a professora-pesquisadora. Como a ênfase da etapa era no “saber dizer”,
os grupos deveriam apresentar oralmente, durante 20 minutos, o problema escolhido
e os resultados alcançados. Esta etapa pressupõe o domínio teórico do conteúdo
pesquisado, e engloba, também, os conteúdos procedimentais - as normas de
apresentação - e os atitudinais: autoconfiança para se expor diante dos colegas,
monitoras e professora, para ser avaliado e saber lidar com críticas e respeito nas
relações pessoais, pois a apresentação exigiria a participação de todos os membros
do grupo.
53
3.3.1.2 A avaliação do processo
A avaliação das atividades foi feita, na sua maioria, considerando o
desempenho do grupo, por entendemos que a forma escolhida é coerente com os
princípios de uma organização cooperativa e enfatiza o caráter sistêmico da
proposta (POZO, 2002). Os instrumentos para essa avaliação foram:
1. Relatório de aula prática (três relatórios): cada um dos blocos foi avaliado
por meio de um relatório, com modelo e aspectos que deveriam ser incluídos, com
exceção do bloco 1 (Apêndice C).
2. Proposta, planejamento e execução da prática investigativa: avaliação feita
pelas monitoras durante os encontros de acompanhamento das atividades.
3. Relatório e socialização da prática investigativa: foram avaliados o trabalho
escrito e a apresentação durante o seminário de socialização (Anexo B).
O desempenho individual foi avaliado no transcurso do processo com critérios
esclarecidos para toda a turma, sobretudo os conteúdos atitudinais, por meio do
acompanhamento das monitoras que faziam as anotações após cada aula. Cada
monitora era responsável por quatro grupos fixos formados por três a quatro
pessoas. O cumprimento de normas de biossegurança e do uso do laboratório, que
implicavam a questão de segurança pessoal e do grupo, era avaliado em termos
quantitativos e qualitativos, o que foi declarado para os alunos na primeira aula.
Compreendemos que normas e regras, principalmente quando implicam
questões de segurança, são obrigatórias e estão implícitas nos procedimentos que
deveriam ser executados, pois os comportamentos individuais não podem ser
“escondidos” pelo grupo, e, de acordo com Pozo (2002), não podemos esquecer a
contribuição individual para o coletivo. Quando ocorreram comportamentos
inadequados, os estudantes foram chamados para tomarem ciência da avaliação
que foi feita e para que refletissem sobre as conseqüências dos atos em relação à
segurança pessoal e coletiva.
54
3.3.1.2.1 Os relatórios de aula prática
Após as aulas que compunham o bloco, os alunos deveriam entregar um
relatório cujo modelo lhes fora encaminhado. Entendemos que, nesse momento, o
conceitual prevalecia, pois eles precisavam “saber dizer” o quê fora executado. No
relatório, pedia-se um referencial teórico dos procedimentos executados, resgatando
assim os conceitos e “porquês” do fazer.
O relatório também tinha uma intenção de verificar procedimentos, pois a
culminância da proposta pedia um relatório da prática investigativa que tivesse
estreita relação com as normas exigidas pelas revistas da área de microbiologia
para o envio de artigos. Consistia num exercício, tinha a finalidade de resgatar o
conteúdo conceitual das “aulas práticas” do bloco, mas também de aprender a fazer
um relatório da prática investigativa que seria realizada.
O relatório do bloco 2 foi corrigido e devolvido com observações para que os
grupos pudessem adequá-lo ao que tinha sido solicitado, sendo facultado aos
grupos corrigi-lo, já que todos estavam esclarecidos de que seria uma das notas da
disciplina. Enfatizamos a necessidade de alguns relatórios serem refeitos, pois
estavam muito abaixo da média de aprovação da instituição (sete). Já para os
alunos que tinham aproveitamento acima de 80%, não se exigia correção, contanto
que as observações fossem aplicadas no relatório subsequente.
3.3.1.2.2 Proposta, planejamento e execução da prática investigativa
Esta etapa foi avaliada por meio do acompanhamento processual de cada
grupo pelas monitoras. Os contatos entre estas e os grupos aconteceram em
horários previamente agendados e via e-mail. Elas acompanharam o levantamento
de referências bibliográficas e organização da planilha analítica, além de auxiliá-los
no planejamento do cronograma e da execução da prática investigativa. Desta
maneira, tinham elementos para avaliar o desempenho do grupo durante o
processo.
55
3.3.1.2.3 Relatório e socialização da prática investigativa
Conforme já dito, o relatório da prática investigativa foi avaliado por critérios
pré-estabelecidos e conhecidos pela turma. Cada monitora fez uma avaliação
preliminar dos grupos que acompanhou, havendo, depois, uma discussão da qual
participaram a professora-pesquisadora e todas as monitoras.
A culminância do processo se deu através de um seminário, com a presença
da professora-pesquisadora, das monitoras, dos alunos e do professor das
disciplinas Projeto de Pesquisa I e II, que colaborou conosco avaliando
qualitativamente os trabalhos e indicando possibilidades de aperfeiçoamento, caso
os estudantes tivessem interesse em realizar a monografia de conclusão de curso a
partir da prática investigativa apresentada.
3.3.2 Vivenciando novas possibilidades para a ação docente
Partimos da suposição de que a monitoria de ensino possa ser um meio para
formar professores pela e para a pesquisa, desenvolvendo autonomia e, para além
do domínio da técnica, formar profissionais estratégicos. (POZO, 2002).
Lembramos que a disciplina de microbiologia dispõe de uma bolsista monitora
de ensino cujas atividades a serem desenvolvidas, ao longo do semestre, cabe ao
professor definir. Ao percebermos a necessidade de mais apoio, optamos pelas
monitoras voluntárias. Pode-se pensar que “quanto mais, melhor”, mas na prática
não é bem assim. O trabalho em equipe é muito enriquecedor, contudo, é bastante
complexo; é preciso, antes de qualquer coisa, esforço para lidar com os nossos
limites e os dos outros. Trabalhar a compreensão do processo que se deseja
construir, seus objetivos e superar conflitos pessoais em prol desses objetivos, foram
a tarefa mais difícil. Em nosso projeto, as atividades da monitoria de ensino estavam
relacionadas às etapas da proposta de práticas investigativas com os graduandos,
tendo como funções as relatadas a seguir:
56
Etapa 1 - Capacitação prioritariamente técnica
• Escrever o projeto da monitoria.
• Propor cronograma das atividades e o prazo para serem desenvolvidas.
• Planejar as aulas práticas semanais e confeccionar os roteiros.
• Preparar laboratório e materiais de consumo necessários para a aula
planejada.
• Executar as aulas planejadas.
• Prestar tutoria aos alunos durante a semana, acompanhando a elaboração
dos relatórios de aula prática.
• Avaliar, usando planilha específica, o desenvolvimento dos grupos, suas
notas de relatório, a incorporação dos procedimentos de biossegurança e
das técnicas realizadas.
• Avaliar e refletir cada aula semanal com a professora-pesquisadora para
os encaminhamentos da aula seguinte.
Etapa 2 - Proposta do problema de investigação:
• Acompanhar, semanalmente, 16 grupos durante a atividade de pesquisa
bibliográfica;
• Orientar a confecção de planilha analítica para a atividade da prática
investigativa;
• Avaliar o desempenho dos grupos e dos alunos durante o processo;
• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora as planilhas analíticas
propostas, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido e discutir os
encaminhamentos necessários.
Etapa 3 - Planejamento da prática investigativa:
• Orientar o planejamento da execução da prática, em especial do
cronograma de execução;
• Avaliar o desempenho dos grupos e dos alunos durante o processo;
• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora os planejamentos
57
dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido, discutindo os
encaminhamentos necessários.
Etapa 4 - Execução do planejamento proposto:
• Orientar e acompanhar a coleta de amostras e as análises microbiológicas;
• Avaliar o desempenho dos grupos e alunos durante o processo;
• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora a execução dos
planejamentos dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido
discutindo os encaminhamentos necessários.
Etapa 5 - Socialização dos resultados da prática investigativa:
• Orientar e acompanhar a confecção dos relatórios das atividades de
pesquisa.;
• Orientar e acompanhar o planejamento da apresentação dos grupos para
seminário de socialização;
• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora a execução dos
planejamentos dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido
discutindo os encaminhamentos necessários;
• Assistir e avaliar qualitativa e quantitativamente as apresentações, fazendo as
observações pertinentes para o aperfeiçoamento do trabalho.
Além das atividades relacionadas às etapas da proposta da prática
investigativa com os alunos, ao final do processo as monitoras deveriam:
• Avaliar e refletir sobre todo processo desenvolvido com a professora-
pesquisadora;
• Produzir uma reflexão escrita, com pressupostos teóricos indicados, sobre a
experiência vivenciada.
As ações propriamente ditas iniciaram-se com a apresentação da proposta de
58
trabalho para as monitoras, que deveriam sistematizar suas atividades em uma
programação com referenciais teóricos, no modelo utilizado para o estágio
supervisionado, e o cronograma de trabalho para as aulas, já que o tempo era
escasso e as aulas práticas deveriam ser agrupadas e sequenciadas de forma a
permitir aos alunos refazerem o caminho, quando propusessem a atividade de
pesquisa.
Elas também tiveram a responsabilidade de propor um cronograma para a
organização das atividades no laboratório, uma vez que desde a coleta de amostras
até o crescimento das culturas deveria haver tempo hábil para cada etapa,
considerando a data prevista para o fechamento do trabalho. Algumas coisas, elas
receberam prontas, como, por exemplo, o esquema de datas de aulas práticas e de
encerramento da disciplina, que seria marcado pela apresentação de seminário de
socialização do projeto de pesquisa e dos resultados preliminares, em virtude das
datas do semestre letivo.
As aulas de laboratório aconteciam com grupos de 15 alunos, com duração
de 50 minutos, eram ministradas no turno da tarde, sendo três aulas práticas, uma
para cada turma de 15 alunos. Para que os conteúdos teórico-práticos pudessem
ser plenamente desenvolvidos sem correr o risco de comprometer o planejamento
total do projeto, as aulas eram planejadas com rigor para o tempo destinado a cada
ponto da aula, nunca perdendo de foco o seu objetivo. Na primeira aula isso não
funcionou plenamente, mas, após as aulas de cada dia, havia uma reunião de
reflexão e avaliação para encaminhamentos da aula seguinte. Desta forma,
conseguimos detectar as dificuldades desde a primeira aula e os ajustes
funcionaram nas aulas posteriores.
Esse esquema de acompanhamento foi um ganho considerável para as
monitoras, pois mesmo durante os estágios curriculares os planejamentos eram
feitos mais para dar satisfação às professoras de estágio do que para ser seguido.
Durante essa monitoria elas puderam reconhecer o real valor de um planejamento
bem feito, seja para uma aula, seja para um projeto inteiro, porque com os reparos
necessários foi possível executar tudo que tinha sido previsto.
Na programação das aulas, todas as monitoras deveriam desempenhar
alguma atividade durante a execução das mesmas. Assim, em cada aula, elas se
revezavam: uma fazia a introdução teórica da aula, outra explicava os
59
procedimentos que seriam executados e outra dava suporte (FIGURA 7). No
momento da execução da técnica, as três ficavam disponíveis para tirar dúvidas e
garantir que os alunos, em sua totalidade, conseguissem cumprir a meta
estabelecida para a aula. Todas as aulas foram acompanhadas pela professora-
pesquisadora.
O processo foi feito com o acompanhamento sistemático e sempre em grupo.
Como as monitoras já tinham experiência em pesquisa microbiológica, pensamos
que seria mais fácil, mas percebemos que pensar sobre o processo é diferente de
realizá-lo. Elas relataram que foi a primeira vez que tiveram tanta autonomia na
execução de uma atividade acadêmica. A questão da autonomia, tão defendida por
Piaget (1944), Freire (1997) e Pozo (2002), mostrou-se o grande desafio para elas,
que relataram não estar acostumadas nem se sentir preparadas para tanta
responsabilidade. Por diversas vezes, o “problema” da autonomia apareceu.
FIGURA 7: Monitora (à esquerda) auxiliando o grupo de alunos a fazer a leitura dos resultados microbiológicos
Fonte: Fotos da autora
Uma das exigências para as aulas práticas era que as monitoras
organizassem um roteiro do procedimento de tal forma que ele pudesse ser seguido
sem orientações verbais no momento da execução, no moldes de procedimentos
operacionais padrão (POP) usados em laboratório (Apêndice D). Assim, os grupos
de trabalho deveriam tentar executar o procedimento descrito e só pedir a ajuda das
60
monitoras quando se defrontassem com algo que não pudessem resolver sozinhos.
Na descrição da proposta aqui relatada e analisada, podemos ver que se trata
de uma atividade bastante complexa, que exige do professor organização e
planejamento muito maiores do que em aulas baseadas em uma organização
competitiva. Em contrapartida, dá-nos a dimensão do que poderia ser um trabalho
do profissional de educação, se ele encarasse as situações de ensino-aprendizagem
como problemas que lhe cabem analisar, propor soluções, aplicá-las, supervisionar
e analisar os resultados, ou seja, gerir processos de ensino-aprendizagem.
As práticas vivenciadas e os conflitos gerados na tomada de decisões tinham
como intenção pedagógica aumentar a probabilidade para a ocorrência da
aprendizagem e tirar o melhor proveito da situação que a monitoria de ensino
propicia (GIUSTA, 2003), pois neste momento era necessário articular conteúdos de
microbiologia com conteúdos pedagógicos estudados durante o curso. Para Pozo
(2002), existe uma grande diferença entre “conhecimento declarativo”, que enuncia
“saber dizer”, a exposição verbal consciente, e o “conhecimento procedimental” que
é o “saber fazer”, muitas vezes automático, para sustentar a distinção entre os dois
tipos de conhecimento: “a idéia básica é que dispomos de duas formas diferentes, e
nem sempre relacionadas, de conhecer o mundo” (RYLE, 1949; ANDERSON,1983
apud POZO, 2002, p. 229).
Apesar disso, muitas vezes declaramos conhecimentos que não conseguem
influenciar nossas ações. O autor mencionado também cita um fato que todos nós,
professores, já vivenciamos, frustramo-nos em sala de aula e que muitos estudos
comprovam: “os alunos não sabem transformar seus conhecimentos acadêmicos
descritivos e conceituais em ações ou previsões eficazes” (POZO, 2002, p. 229).
Talvez esteja aí a enorme dificuldade de aplicação dos conhecimentos pedagógicos
estudados. Existe um conhecimento declarativo, mas não o conhecimento
procedimental. Eram intenções deste trabalho que o conhecimento procedimental da
ação pedagógica fosse vivenciado de forma mais intensa, em quantidade e
qualidade; que o planejamento sistemático e contínuo das atividades de
aprendizagem (geral e diário) ocorresse de fato, assim como as intervenções que
incentivam a autonomia. Em resumo, que fosse exercido um papel de “planejador”,
assessor e orientador de atividades de aprendizagem ao invés de um simples
provedor de informações. Os termos aqui usados foram tomados de Pozo (2002)
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que estabelece cinco papéis para o professor: provedor, treinador, modelo, assessor
e orientador.
Não desmerecemos o papel do professor na transmissão do conhecimento,
mas compreendemos que, apenas isso, não é suficiente para atender a demanda de
aprendizagem escolar da sociedade da informação. Nesta, destacam-se as
exigências de que esses papéis estejam integrados e que o professor tenha
consciência deles para que as situações de ensino-aprendizagem sejam vistas como
problemas que precisam de planejamento estratégico, aumentando, assim, as
chances de sucesso para todos os alunos.
Concordamos com Pozo (2002) que as situações de ensino-aprendizagem
devem ser analisadas como problemas que podem ter várias respostas. O que
importa, na verdade, não é ensinar as respostas, uma vez que vivemos em
condições de incerteza e o tempo todo surge novos problemas, mas que o
conhecimento seja visto com possibilidade para organizar estratégias para a solução
dos problemas.
A resposta dependerá da natureza do problema, portanto, precisamos
desenvolver a capacidade de análise das circunstâncias, dos recursos de que
dispomos, do que precisamos, para dar a melhor resposta em uma dada situação.
Estarmos prontos para refletir sobre o caminho escolhido, avaliarmos, corrigir a rota,
num processo que pede que estejamos envolvidos na dinâmica e na novidade do
dia-a-dia. Isso é muito diferente de pensar a ação docente como uma prática
monótona “que corrói o desejo de aprender dos que se veem submetidos a ela,
como também de ensinar dos que vivem seu trabalho de modo rotineiro” (POZO,
2002, p. 260).