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VIRTUDE, RAZÃO PRÁTICA E VALOR MORAL DA AÇÃO
NA ÉTICA KANTIANA
3.1
Vontade, moral e razão prática
Podemos encontrar a definição kantiana de “vontade” no seguinte trecho
da Fundamentação da Metafísica dos Costumes:
Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. 341
Analisemos os diversos elementos contidos nesta definição, começando
pela ênfase na noção de “lei”. A nosso ver, é possível enxergar, neste ponto, uma
influência da ciência moderna, que já gozava de um grande prestígio na época de
Kant, particularmente a física newtoniana: no prefácio à segunda edição da
Crítica da Razão Pura, de fato, o filósofo alemão comenta que a elaboração dos
conhecimentos pertencentes ao domínio próprio da razão deve seguir “a via
segura da ciência”.342 Mais adiante, elogia os êxitos recentes alcançados pela
física, tornados possíveis graças à compreensão de que “a razão só entende aquilo
que produz segundo seus próprios planos”, baseando-se, assim, em princípios que
determinam seus juízos segundo leis constantes, o que permite “forçar a natureza
a responder às suas interrogações, em vez de se deixar guiar por esta”. Conclui
afirmando que falta à metafísica, agora, seguir esta via, e nisto consistiria,
basicamente, o projeto kantiano.343
Percebe-se, nesta rápida exposição, algumas referências que nortearão toda
a obra do filósofo alemão: o caminho seguro da ciência é compreendido a partir
do estabelecimento de leis constantes, e estas não podem ser derivadas dos objetos
empíricos, mas sim de princípios a priori pertencentes à própria faculdade da
341 KANT, FMC 4:412. Cf. ibidem, 4:428: “a vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis”. Cf. idem, CRPr 5:15;60. 342 KANT, CRP 3:7. No prefácio da edição que estamos adotando, temos: “tem sido afirmado, e com razão, que é o modelo da ciência da natureza que se encontra na base da filosofia de Kant” (KANT , 2008b, p. VIII (préfacio de Alexandre F. Morujão)). 343 KANT, CRP 3:10.
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razão; somente assim a lei possui a necessidade que lhe é própria344. A “revolução
copernicana” se dá, assim, quando percebemos que não é o conhecimento que se
regula a partir dos objetos, mas o contrário.345 Estas tendências se refletirão na
ética kantiana: no prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de
fato, Kant coloca lado a lado a Filosofia Natural – a física - e a Filosofia Moral – a
ética. Comenta que a “natureza da ciência” exige que se distinga a parte empírica
da parte racional destas doutrinas. Esta última seria a metafísica, baseada apenas
em princípios puros, ou seja, a priori. A “metafísica dos costumes”, assim, seria
uma investigação dos princípios racionais puros da moral.346
Podemos assim considerar que a ética kantiana afirma a relação intrínseca
entre razão e moralidade, que, como mostramos anteriormente, também é
postulada por Aristóteles. Obviamente, os argumentos que levam a esta conclusão
são diferentes: vimos que para o filósofo grego esta ligação se baseia no
argumento do érgon – o bem do homem está no bom exercício daquilo que lhe é
peculiar, ou seja, a razão. Já a justificação de Kant sobre este ponto não fica, a
nosso ver, muito clara: o filósofo alemão parece, de fato, aceitar como implícita a
idéia de que a moral deve necessariamente derivar da racionalidade. Há, como
vimos, a proposta geral de que a filosofia precisa procurar seguir o caminho da
ciência, e, portanto, a ética, enquanto doutrina filosófica, também deve estabelecer
os princípios a priori que regem seu funcionamento. Kant também se baseia na
visão do senso comum sobre as obrigações morais, que tendem a ser entendidas
como “leis”:
Que tenha que haver uma tal filosofia, ressalta com evidência da idéia comum do dever e das leis morais. Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha que valer moralmente, isto é como fundamento de uma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o mandamento: “não deves mentir” não é valido somente para os homens e que outros seres racionais se não teriam que importar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por conseguinte, o princípio da obrigação não se há-de buscar aqui na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura, e que qualquer outro preceito
344 KANT, CRP 4:11. Como diz Schneewind: “na Crítica da Razão Pura ele [Kant] argumentou que a experiência perceptual do mundo só mostra o que de fato acontece. Como as leis dizem o que tem que acontecer, elas precisam envolver um aspecto não-experimental ou a priori, e deve ser isso o que explica a necessidade que elas transmitem” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obligation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 314-315, tradução nossa). 345 KANT, CRP 3:11-12. 346 KANT, FMC 4:389. Na Crítica da Razão Prática, Kant compara o trabalho do filósofo com o de um químico, que faz experimentos (Experiment) com a razão prática para poder separar o “puro” do “empírico” (KANT, CRPr 5:92).
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baseado em princípios da simples experiência, e mesmo um preceito em certa medida universal, se ele se apoiar em princípios empíricos, num mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral.347
É interessante observar como a centralidade da noção de lei moral,
segundo o senso comum da época de Kant, pode, em certa medida, ser associada
ao cristianismo: muitos autores, de fato, consideram que a dimensão deontológica
das éticas modernas é herdeira deste tipo de concepção.348 A formação pietista do
filósofo alemão pode ser considerada relevante neste ponto.349 Kant está fazendo
aqui, portanto, uma interessante conjunção entre elementos oriundos da ciência e,
através do senso comum, da religião: ambas estas perspectivas, de fato, tendem a
valorizar o conceito de “lei”. É preciso igualmente lembrar que Kant possui forte
ligação com o Iluminismo, sendo, assim, um defensor da autonomia da razão
frente a fontes externas de autoridade. O resultado destas influências, assim, é a
visão de que a moral precisa se basear em “leis”, mas estas devem ser princípios
racionais – ou seja, como veremos mais adiante, princípios formais, a partir da
concepção kantiana de racionalidade.
A nosso ver, portanto, a ligação intrínseca entre moral e racionalidade, na
ética de Kant, deve ser compreendida mais a partir de pressupostos de seu
pensamento do que de uma argumentação que lhe seja interna: a filosofia,
inclusive a ética, precisa seguir o caminho da ciência, portanto é preciso
estabelecer quais são os princípios racionais a priori que regulam seu
funcionamento, o que está de acordo com a visão de senso comum que temos da
moral. Desta forma explica-se a ênfase na noção de “lei” contida na definição de
vontade, citada no início deste capítulo.350 Podemos, agora, continuar nossa
347 KANT, FMC 4:389. Mais adiante, o filósofo alemão comentará que os princípios puros da moral estão implícitos em nossos juízos de senso comum, e que o objetivo de seu procedimento é apenas elucidá-los (Cf. RAWLS, 2005, p. 168). 348 RAWLS, 2005, p. 9-10; TUGENDHAT, 2003, p. 67-68; STATMAN, 1997, p. 4. 349 Como diz Rawls, “esses aspectos religiosos, mesmo pietistas, da filosofia moral de Kant se afiguram óbvios; toda consideração de sua filosofia moral que os negligencie perderá muito do que lhe é essencial” (RAWLS, 2005, p. 186). 350 Existe em Kant uma discussão sobre como provar a existência da lei moral. Segundo Rawls, este seria o objetivo Crítica da Razão Prática; “evidenciar que a razão prática pura existe e efetivamente mostra sua existência em nosso pensamento, sentimento e conduta. (...) Em outras palavras, o objetivo da segunda Crítica é evidenciar que a razão pura pode ser prática e pode determinar diretamente nossa vontade” (RAWLS, 2005, p. 292). A resposta de Kant a este problema consistiria em mostrar que a lei moral é um “fato da razão” (Faktum der Vernunft), conceito que, como diz novamente Rawls, não fica muito claro (ibidem, p. 297 Cf. J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in
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análise, abordando os outros elementos contidos nesta definição: vimos que para
Kant a vontade deve ser entendida como uma capacidade de agir a partir da
representação das leis, o que leva o autor a identificá-la com a razão prática.
Como entender este ponto?
O filósofo alemão parece estar querendo, aqui, fazer uma importante
diferenciação entre as leis da ética e as da natureza: se as primeiras fossem como
as últimas, de fato, todos nós agiríamos necessariamente de forma moral. A
relação intrínseca com a razão, no entanto, faz com que a moralidade envolva uma
atividade do intelecto: isso significa que suas leis não podem ser seguidas
“naturalmente”, como ocorre com uma pedra que cai segundo a gravidade, por
exemplo. O que é característico de um ser racional é a capacidade de agir de
acordo com a representação das leis, ou seja, de acordo com princípios
(Grundsätze). A vontade é definida por Kant, assim, como a faculdade
(Vermögen) que nos torna capazes de agir segundo princípios, ou, como vemos na
Crítica da Razão Prática, “uma faculdade de determinar a sua causalidade pela
representação de regras”.351 A identificação entre vontade e razão prática ocorre,
portanto, pelo fato de ambas poderem ser entendidas, no fundo, como a
capacidade que tem nossa razão de determinar nossas ações.352
Esta capacidade, conforme procuramos argumentar, é que faltaria à
concepção de Aristóteles e dos antigos em geral. Para o estagirita, como vimos,
GUYER, 2008, p. 330, tradução nossa: “há uma considerável dificuldade em esclarecer o que Kant supõe ser o fato de razão”). Podemos citar, como exemplo, a seguinte passagem de Kant: “A lei moral também nos é dada, de certo modo, como um fato da razão pura de que somos conscientes a priori e que é apoditicamente certo, supondo mesmo que não se pudesse encontrar na experiência exemplo algum em que ela fosse exatamente observada. Por conseguinte, a realidade objetiva da lei moral não pode ser demonstrada por nenhuma dedução, nem por todo o esforço da razão teórica, especulativa ou empiricamente sustentada; e, por conseqüência, mesmo se se quisesse renunciar à certeza apodítica, também não pode ser confirmada pela experiência e assim ser demonstrada a posteriori; e, apesar de tudo, mantém-se firme por si mesma” (KANT, CRPr 5:47). Este “mantém-se firme por si mesma”, mesmo sem poder ser demonstrada ou comprovada, é interpretado, por Rawls, como significando simplesmente que temos consciência da lei moral (isto é um fato, que se impõe, por assim dizer, à nossa consciência), enquanto lei que é dotada para nós de suprema autoridade e sumamente reguladora (RAWLS, 2005, p. 298). Para Schneewind, o fato de razão seria revelado a nós através de nossa consciência moral de que temos obrigações incondicionais, e assim seria “pura racionalidade se revelando de forma tão imediata quanto possível para seres racionais imperfeitos” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 330, tradução nossa). De qualquer forma, esta discussão não nos interessa diretamente, pois o que nos importa é a relação intrínseca entre razão e moralidade, que, como dissemos, parece ser pressuposta por Kant. 351 KANT, CRPr 5:32. Cf. idem, FMC 4:428: “a vontade é concebida como a faculdade de determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis”. 352 Barbara Herman diz, neste sentido, que a vontade é a “face ativa” (active face) da razão prática (HERMAN, 1996, p. 171). Em outro trecho, a autora americana chama a vontade de “organização psíquica de um agente racional determinando a si mesmo a agir por razões” (ibidem, p. 213).
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nossos atos são sempre determinados, em última instância, pelo desejo, e é
somente na medida em que este “ouve” a parte racional de nossa alma que as
ações podem ser consideradas em conformidade com a razão, adquirindo, assim,
valor moral. Podemos talvez interpretar esta relação afirmando que, embora a
causa formal de um determinado ato possa ser o intelecto, a causa eficiente é
sempre o desejo. Kant parece acreditar, no entanto, que a razão prática pode ser
não somente a causa formal, mas também eficiente de nossas ações, o que
significa dizer que existem determinados atos – os morais – que não são
realizados “por inclinação”, como dirá o filósofo alemão.353
A capacidade da razão prática de determinar diretamente as ações, assim, é
que levará Kant a identificá-la com a “vontade”. No entanto, a partir desta
identificação, podemos considerar que nosso agir deveria estar sempre em acordo
com a razão. Para compreender por que isso não ocorre, é preciso analisar a
psicologia prática do filósofo alemão. Em primeiro lugar, é importante considerar
que nossas ações são sempre “escolhidas” – este aspecto pode ser considerado
como aquilo que caracteriza a agência racional propriamente dita, tanto em Kant
quanto em Aristóteles.354 Na concepção kantiana, esta escolha é realizada pela
faculdade de escolha, Willkür, muitas vezes confundida com a vontade
propriamente dita, Wille. A diferença entre ambas pode ser sutil, e, como diz
Howard Caygill, o próprio Kant às vezes parece fazer esta confusão.355 A
faculdade de escolha pode ou não se determinada pela razão – como veremos mais
adiante, ela também pode ser influenciada por impulsos sensíveis, como as
inclinações. Já a vontade é um poder de auto-determinação, e, neste sentido,
independe destes impulsos. A Wille seria, justamente, uma fonte de obrigações
353 “[a vontade] é um poder (Vermögen) de fazer de uma regra da razão a causa motora de uma ação” (KANT, CRPr 5:60). Como diz Rawls, “Kant pensa que a razão prática pura existe e é por si só suficiente para determinar a vontade, independentemente de nossas inclinações e desejos naturais” (RAWLS, 2005, p. 173). A idéia de que a razão prática possa “determinar” a vontade, muitas vezes repetida pelo próprio Kant, parece contraditória com a tese de que a segunda se identifica à primeira. A resposta a esta aparente contradição está no fato de que esta identidade só existe na medida em que a Wille determina a Willkür, o que significa que a noção kantiana de “vontade” deve, provavelmente, se referir às duas faculdades. Voltaremos a este ponto mais adiante. 354 “Considero que Aristóteles e Kant, portanto, compartilham uma visão sobre o caráter distintivo da ação humana, ou pelo menos – para acrescentar a qualificação característica de Aristóteles – ações humanas adultas. A ação humana, para dizê-lo simplesmente, é ação governada pela razão: ou seja, é escolhida. Dizer que uma ação é escolhida é dizer que ela tem a aprovação da razão do agente, que é concebida como boa, e é por esta concepção que o agente é movido” (KORSGAARD, 2008, p. 190, tradução nossa). 355 CAYGILL, 2000, p. 318.
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que, quando determina a faculdade de escolha, a torna também independente dos
desejos empíricos enquanto princípio determinante.356
As ações seriam escolhidas pela Willkür a partir de dois elementos: o
incentivo (Triebfedern) e o princípio (Grundsatz). Podemos considerar que o
incentivo “propõe” à mente uma determinada ação, apresentando seu fim como
elegível: em outras palavras, sugere que um curso de ação deva ser adotado para
realizar um certo objetivo.357 Os exemplos mais conhecidos de incentivos são
356 CAYGILL, 2000, p. 318. Mais adiante, temos: “Kant pode sustentar que a vontade é livre e cria uma obrigação para com a lei moral, ao mesmo tempo que afirma que a capacidade humana de escolha (Willkür, não Wille) é patologicamente afetada por impulsos sensíveis. (...) A partir disso, Kant infere que, na medida em que a vontade pode determinar a capacidade de escolha, ela é, de fato, a própria razão prática’.”(ibidem, p. 319). Para Dean, Wiilkür é o “poder de fazer escolhas sobre quais fins adotar”, enquanto Wille apresenta ou legisla princípios morais categóricos para o agente (Richard Dean, “The Formula of Humanity as an End in Itself”, in HILL, 2009, p. 85, tradução nossa). Podemos considerar que aquilo que temos chamado de “vontade”, no decorrer deste trabalho, corresponde, sobretudo, à Wille kantiana, mas talvez tenhamos que designá-la de uma maneira mais ampla, que também inclua a Wilkür: a Wille seria nossa vontade legisladora, que estabelece os princípios da razão prática pura, mas também os fins das ações de acordo com estes princípios – podendo, assim, ser entendida como uma faculdade de fins: “se poderia definir a vontade [Wille] pela faculdade dos fins, na medida em que eles são sempre motivos determinantes da faculdade de desejar segundo princípios” (KANT, CRPr 5:58-59). Como diz Eisler, “a vontade [Wille] é a faculdade dos fins, a faculdade de fazer com que seu desejo seja determinado por conceitos, por representações de fins, a faculdade de se deixar conduzir por uma regra” (EISLER, 1994, p. 1078.). Esta capacidade, é que faltaria, como vimos na parte 1, à concepção aristotélica, onde a razão não pode, por si só, estabelecer o fim da ação – e, portanto, não pode gerar a própria ação independentemente do desejo empírico, pois para o filósofo grego, assim como para o alemão, toda ação tem necessariamente um fim. A Wille, no entanto, não pode determinar diretamente a ação, pois, como vimos acima, é essencial, a qualquer agência racional, a capacidade do indivíduo de agir a partir de uma escolha. Este aspecto é fundamental para a dimensão da voluntariedade e da responsabilidade moral, como vimos na parte 1 em relação a Aristóteles. Se compreendermos a vontade, assim, como a capacidade de nossa razão em determinar nossas ações, é preciso considerá-a como o conjunto formado pela Wille e pela Willkür. Vários comentadores parecem seguir esta linha de interpretação, como, por exemplo, Hill - “Kant parece distinguir dois sentidos de vontade – um poder de escolha (Willkür) e uma vontade racional legislativa (Wille)” (Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 32, tradução nossa), e Robert N. Johnson – “a vontade nos seres humanos é o poder de escolha baseado em princípios” (Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 24, tradução nossa). O próprio Kant também parece enfatizar esta relação, como, por exemplo, na Metafísica dos Costumes: “a vontade [Wille] ela mesma, estritamente falando, não possui fundamento determinante; na medida em que é capaz de determinar a escolha [Willkür], ela é, ao contrário, a própria razão prática” (KANT, MC 6:213. Cf. EISLER, 1994, p. 389). Desta forma, embora o filósofo alemão muitas vezes pareça associar a vontade somente à Wille, podemos considerar que a relação com a Willkür está sempre implícita: a vontade seria, assim, a segunda quando determinada pela primeira, ou, ainda, a primeira enquanto capaz de determinar a segunda. Esta denominação parece estar de acordo com a maneira pela qual a Wille é descrita em diversas passagens, como, por exemplo, quando Kant nos diz que a razão prática deve exercer influência sobre a vontade, produzindo, assim, uma Boa Vontade (guter Wille) (KANT, FMC 4:396). Se a vontade se identifica à razão prática, então que sentido há, de fato, em se falar da determinação da primeira pela segunda? Parece-nos que neste caso, assim, o que é chamado de Wille é o conjunto formado por Wille e Willkür, e esta será a maneira pela qual entenderemos a “vontade” kantiana no decorrer de nosso trabalho (mas sempre assinalando quando a distinção entre Wille e Willkür for relevante). 357 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 217.
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nossos desejos e inclinações (Neigung).358 Estes elementos, no entanto, não
podem operar diretamente como causa de nossas ações – daí, justamente, a idéia
de que eles apenas as “sugerem”, fornecendo considerações que levamos em conta
para decidir o que fazer. Esta decisão é baseada em uma “escolha” ou “princípio
de volição”, podendo ser considerada, portanto, como um ato da faculdade de
escolha, Willkür.359 Como veremos mais adiante, existem apenas dois tipos de
princípio de volição, o formal (a moral) e o material (o amor próprio).360
É interessante realizar, aqui, uma comparação com Aristóteles. Vimos, de
fato, que para o estagirita nossas ações também são sempre escolhidas, a partir da
decisão (προαίρεσις), resultado da deliberação (βούλευσις). Como diz Korsgaard,
a escolha, tanto em Kant quanto em Aristóteles, representa a capacidade do agente
racional em não agir imediatamente por impulso, dando um “passo atrás”, por
assim dizer, e avaliando a ação antes de decidir agir:
A visão que para mim Kant e Aristóteles têm em comum é esta: quando seres humanos agem, nós não somos levados ou diretamente determinados a agir por desejo, paixão, inclinação ou instinto. Algum incentivo, para usar a linguagem de Kant, apresenta um certo curso de ação para nós como elegível – ele nos sugere que nós poderíamos executar uma certa ação para realizar um certo fim. Mas a razão nos dá a capacidade de recuar, formar uma visão deste curso de ação como um todo, e fazer um julgamento sobre seu valor.361
Em Aristóteles, esta capacidade está ligada, como comentamos na parte 1,
ao caráter indeterminado das ações, devido à potência racional ser uma potência
de contrários. Desta forma, embora o fim que buscamos seja colocado pelo desejo,
este não nos determina imediatamente a agir – vimos, de fato, que a deliberação
exerce em Aristóteles um papel fundamental quanto à responsabilidade moral,
pois o agente passa a atuar a partir de razões, e não apenas por impulso. Podemos
nos perguntar, agora, qual seria a diferença entre a posição de Aristóteles e a de
Kant, relativa à noção de vontade que, segundo nossa tese, haveria na concepção
do segundo mas não na do primeiro: a diferença está, justamente, na capacidade 358 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 206-207. 359 Como diz Korsgaard, “a motivação do agente envolve duas coisas – o incentivo que apresenta a ação junto com seu fim como elegível, e o princípio de volição que governa a escolha do agente em agir por este incentivo” (Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 208, tradução nossa). Cf. RAWLS, 2005, p. 176: “A vontade tem de agir sempre segundo algum princípio de volição”. 360 KANT, FMC 4:428. Cf. Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 207. 361 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 217, tradução nossa.
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da razão prática kantiana em determinar diretamente a faculdade de escolha, nos
levando a agir, como veremos mais adiante, a partir de princípios “puramente
racionais”, o que não seria possível para Aristóteles. Para este último, só podemos
endossar ou não aquilo que é sugerido pelo desejo – em outras palavras, nós
podemos não agir de acordo com nossas inclinações, mas não existe a
possibilidade, como haverá em Kant, de agirmos de maneira completamente
independente do desejo. Esta é a diferença entre o fenômeno aristotélico da
continência e a vontade kantiana: o homem continente é capaz de resistir a seus
impulsos “maus”, mas não pode agir livre de qualquer impulso. Voltaremos a
tratar deste assunto mais adiante, quando falarmos da noção de virtude em Kant.
Vimos, assim, que para o filósofo alemão nossas ações são sempre
baseadas em escolhas, feitas a partir de determinados princípios de volição, o
formal (Lei Moral) e o material (amor próprio). Conforme já comentamos, Kant
está aqui enfatizando um aspecto que seria essencial à agência racional, que é a
capacidade de agir a partir de razões ou motivos. Como diz Korsgaard, escolher
uma ação – ou seja, decidir agir a partir de um princípio de volição -, é agir por
razões.362 Estas podem ser consideradas o motivo (Bewegungsgrund) que leva o
agente a atuar363 - daí Kant chamar este último de “princípio objetivo do
querer”,364 associando-o, assim, aos princípios de volição que determinam nossas
escolhas. Os incentivos – desejos, inclinações etc – não são as verdadeiras razões
pelas quais agimos, mas estão relacionados aos motivos, pois estes últimos geram
escolhas baseadas nas “sugestões”, como vimos, dos primeiros. Como diz
Herman, “um agente age pelo motivo m quando ele tem um incentivo que apóia m
e considera que m fornece boas razões para a ação”.365
362 “Sua decisão é um ato de volição, realizado de acordo com um princípio de volição. Portanto escolher uma ação é ser movido pela concepção do impulso de fazer aquilo como uma razão” (Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 212, tradução nossa). Cf. HERMAN, 1996, p. 217, tradução nossa: “ao distinguir princípios práticos materiais e puramente formais, Kant está classificando os diferentes tipos de razão que um agente pode ter”. 363 HERMAN, 1996, p. 11. Como diz Korsgaard, a “motivação” pode ser entendida como a maneira pela qual os atos se relacionam com suas razões (KORSGAARD, 2008, p. 227). Neste sentido é que a razão pode ser considerada o motivo, pois ela já trás dentro de si a força motivadora que nos leva de fato a agir. Seguindo mais uma vez Korsgaard, “ter uma razão é ser motivado por certas considerações, tomando-as como sendo uma base apropriada para a motivação” (ibidem, p. 227 (nota), tradução nossa). 364 KANT, FMC 4:428. Neste mesmo trecho, Kant opõe os “motivos” aos “móbeis” (ou incentivos), que são o princípio subjetivo do desejar. 365 HERMAN, 1996, p. 221 (nota) (Cf. ibidem, p. 95 (nota): “os motivos de um agente são aqueles incentivos (Triebfedern) que ele julga lhe dar boas razões para agir”). Neste sentido, a autora
122
É preciso considerar, no entanto, que os indivíduos não agem diretamente
a partir dos princípios objetivos da vontade, mas sim a partir de máximas, que são
os princípios subjetivos do querer.
Máxima é o princípio subjetivo da ação e tem de se distinguir do princípio objetivo, quer dizer da lei prática. Aquela [a máxima] contém a regra prática que determina a razão em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com sua ignorância ou as suas inclinações), e é portanto o princípio segundo o qual o sujeito age.366
A máxima, assim, é um princípio prático, mas que se diferencia dos outros
pelo fato de ser subjetivo - ou, como diz Onora O’Neill, “um princípio de um
agente racional particular, em um tempo particular”, ao passo que os princípios
objetivos são válidos para todos os seres racionais em quaisquer circunstâncias.367
A máxima, enquanto princípio subjetivo, descreve a ação a ser realizada pelo
sujeito, se considerarmos que esta descrição abrange não só o ato em si, mas
também a razão e o fim pelo qual se age.368 Schneewind, neste sentido, a chama
de “regra privada”, ou “plano de ação pessoal ou subjetivo, incorporando as
razões do agente em agir, assim como uma indicação sobre qual ação as razões
requerem”.369
O comentador está aqui, provavelmente, chamando de “razões” os fins
visados pela ação: para Kant, de fato, as ações de um agente racional sempre têm
um propósito.370 Estes fins são muitas vezes confundidos com os motivos para
americana chama os incentivos de “fontes” de razões (sources of reason), e, em outro trecho, de “potenciais motivacionais” (motivational potential) (ibidem, p. 33 (nota)). 366 KANT, FMC 4:421 (nota do autor) (cf. ibidem, 4:400 (nota do autor)). Nesta definição, Kant parece estar chamando ambos os princípios de volição – moral e amor-próprio – de “lei prática”, mas, um pouco antes, o filósofo alemão já havia especificado que somente a moral pode ser chamada de “lei” no sentido próprio, pois somente este princípio possui uma necessidade incondicional, ao passo que a lei ligada ao princípio material possui uma necessidade apenas condicionada (ibidem, 4:420). Na Crítica da Razão Prática, Kant afirma que os princípios práticos (“proposições que contêm uma determinação geral da vontade, a qual inclui em si várias regras praticas”) são subjetivos – máximas – quando o princípio é considerado válido pelo sujeito somente para sua vontade, e é objetivo – lei prática – somente quando sua condição é reconhecida como sendo objetiva, ou seja, válida para a vontade de todo ser racional (idem, CRPr 5:19). Se considerarmos que a máxima é elaborada a partir da escolha feita pela Willkür, então é possível afirmar que nossa vontade legisladora, Wille, é a fonte dos princípios objetivos da razão prática, enquanto a Willkür é responsável pelos princípios subjetivos do agente. 367 O’NEILL, 1975, p. 34. Cf. HERMAN, 1996, p. 221, tradução e itálico nossos: “descrições de uma ação em uma máxima são incompletas se não incluem material suficiente para justificar a acão do ponto de vista do agente”. 368 Korsgaard considera, neste sentido, que a razão pela qual agimos não é algo que está “por trás” da ação, mas a própria ação tornada inteligível. (KORSGAARD, 2008, p. 227). 369 J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 318-319, tradução nossa. 370 KANT, CRPr 5:34.
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agirmos, mas, na verdade, há uma diferença entre as duas noções, embora estejam
ligadas: como diz Herman, os motivos introduzem razões que determinam a
concepção que o agente tem de seu fim371 - podemos considerar, assim, que o
motivo explica o interesse do agente pelo propósito da ação, ou seja, em que
sentido este último é considerado atrativo – “bom” – e é esta dimensão que pode
ser considerada como a “razão” para o perseguirmos.372 Neste sentido, justamente,
é que podemos chamar de “razões” ou “motivos” os princípios práticos a partir
dos quais escolhemos nossas ações, a lei moral e a felicidade ou amor próprio.373
A estrutura das máximas, assim, pode ser enunciada, em geral, como
“realizar-este-ato-visando-atingir-este-fim”.374 Rawls a expressa como “devo fazer
X nas circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z”, onde X é uma ação e
Y um fim, ou seja, um estado de coisas.375 Onora O’Neill considera que a máxima
dever conter uma descrição do agente, do ato, e de um “componente de propósito”
(purposive component), que pode ser entendido como uma ampliação da descrição
do próprio ato: a esquematização mais simples da máxima, assim, seria “X
deveria (poderia, mereceria) fazer/omitir Y se Z”,376 e a versão ampliada, que
inclui o propósito, seria “X deveria fazer Y para obter Z”.377 Herman descreve
este esquema como “fazer X, nas circunstâncias Y, para obter Z”.378 A partir dessa
estrutura, podemos citar, como exemplos de máximas, “se estiver chovendo, devo
371 HERMAN, 1996, p. 29. 372 HERMAN, 1996, p. 25; p. 221. Para ajudar a diferenciar as duas noções, a autora comenta que um mesmo fim pode ter vários motivos: ajudar um amigo, por exemplo, pode ser um ato motivado por compaixão, medo de rejeição, prudência etc (Cf. ibidem, p. 96). Na mesma linha, Korsgaard comenta que a razão é aquilo que torna a ação inteligível e explica o seu valor, o que o fim nem sempre faz: por exemplo, se dizemos que uma pessoa foi de uma cidade a outra para comprar clipes de papel, este fim claramente não pode ser a “razão” da ação (KORSGAARD, 2008, p. 220-221). Korsgaard também comenta que o fim é exterior ao ato, enquanto a razão não (ibidem, p. 227). No capítulo seguinte, discutiremos em que sentido um fim pode ser considerado “bom” para Kant. 373 Podemos assim considerar que, para Kant, justificamos nossas ações sempre a partir de um principio material (“fiz isso porque contribui para minha felicidade”), ou formal (“fiz isso porque é o certo”). Como veremos mais adiante, em ambos os casos a máxima possui a estrutura “realizar-este-ato-para-atingir-este-fim”. A diferença está que, o primeiro caso, o fim visado é dado e determinante, enquanto no segundo o fim é determinado pela regra prática. 374 KORSGAARD, 2009, p. 10. 375 RAWLS, 2005, p. 194. 376 O’NEILL, 1975, p. 35. 377 O’NEILL, 1975, p. 37. 378 HERMAN, 1996, p. 64 (nota). Em outro trecho, a autora descreve a máxima como “um princípio subjetivo que corretamente descreve o que o agente tenciona fazer e por quê (para qual fim e em resposta a qual motivo)” (ibidem, p. 75).
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levar um guarda-chuva para ficar seco, a não ser que consiga uma carona”,379 ou
“devo mentir para conseguir dinheiro se estiver precisando e não conseguir obtê-
lo de outro jeito”, ou “devo procurar emprego para sustentar minha família”, ou
“devo treinar muito para ser um grande tenista”, “devo omitir ajuda a instituições
de caridade por estas serem corruptas e desperdiçarem os donativos”380 etc.
Podemos considerar que o uso do verbo “dever” (sollen), nesta
esquematização básica das máximas, reflete a relação destas, enquanto princípios
subjetivos, com os princípios objetivos de volição, a partir dos quais, como vimos,
são escolhidas as ações descritas nas máximas.381 Kant considera, de fato, que nos
seres racionais finitos a vontade não é necessariamente determinada pelos
princípios objetivos: em outras palavras, aquilo que é objetivamente necessário
não o é subjetivamente.382 As condições subjetivas a que estão submetidos os
agentes finitos, assim, fazem com que sua conformação às leis objetivas da
própria vontade seja entendida como uma obrigação (Nötigung). Havíamos visto
que os seres racionais são aqueles capazes de agir a partir da representação das
leis, ou seja, de princípios. O fato de nossa vontade não ser plenamente
conformada à razão,383 assim, leva estes últimos a assumirem a forma de
mandamentos, cuja fórmula é um imperativo (Imperativ), que se expressa, como
vimos, pelo verbo “dever”. 379 J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 319. 380 HERMAN, 1996, p. 64. 381 Como diz Schneewind, um agente racional testa suas máximas antes de agir por elas, e, para isso, ele usa as duas leis da vontade racional, amor-próprio e lei moral (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 319). Herman comenta, neste sentido, que a função da máxima, na ética kantiana, é justamente a de apresentar a ação sob uma forma passível de ser avaliada a partir dos princípios da razão prática (HERMAN, 1996, p. 143. Cf, ibidem, p. 76, tradução nossa: “o interesse de usar máximas como o objeto da avaliação moral é ter ações julgadas como elas são intencionadas pelo agente”). Este teste pelo qual as ações são avaliadas, através das máximas, pode ser visto, justamente como o processo deliberativo que culmina na escolha ou decisão de agir. No capítulo 2.3, veremos que este processo deliberativo é descrito, por Kant, a partir do procedimento do Imperativo Categórico. 382 KANT, FMC 4:412-413. Na Crítica da Razão Prática, Kant comenta que o homem é finito enquanto afetado por necessidades (Bedürfnissen) e causas motoras sensíveis, diferentemente de uma vontade “santa”, incapaz de máximas opostas à lei moral, que não teria, assim, a forma de um imperativo (KANT, CRPr 5:32). 383 Como comentamos anteriormente, este aspecto parece contraditório com a tese de que a vontade se identifica à razão prática. Podemos considerar, assim, que aquilo que chamamos aqui de vontade – como aparece em várias traduções, e inclusive, às vezes, no original em alemão como Wille – é a faculdade de escolha ou Willkür, ou, ainda, o conjunto formado por Wille e Willkür, quando a segunda é determinada pela primeira, ao basear suas escolhas no princípio formal de volição, a lei moral (como vimos, esta capacidade da razão prática em determinar diretamente nossas ações é que levaria Kant a também chamá-la de “vontade”), ou, ao contrário, acolher a influência das inclinações, quando baseia suas escolhas no amor próprio ou princípio material de volição.
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Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen), e mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação).384 (..) os imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação ente leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por exemplo.385
As fórmulas dos imperativos estarão ligadas aos dois únicos princípios de
volição, que, conforme comentamos, determinam a decisão do agente em agir: a
moral e o amor próprio (Eigenliebe). Este último pode ser expresso da seguinte
forma: se queremos atingir um determinado propósito, então devemos
necessariamente querer os meios para obtê-lo: “quem quer o fim, quer também (se
a razão tem influência decisiva sobre as suas ações) o meio indispensavelmente
necessário para o alcançar, que esteja no seu poder”.386 O filósofo alemão afirma,
em seguida, que esta proposição é analítica, o que significa que a relação entre
“querer o fim” e “querer os meios” pode ser considerada lógica. É exatamente
neste sentido, a nosso ver, que este princípio é uma lei da razão prática: não é
racional querer o fim e não os meios.387 O imperativo correspondente a esta lei –
ou seja, como ela é representada por um agente racional finito – é hipotético, ou
seja, a ação é necessária em função de alguma outra coisa - além da ação em si
mesma - que o agente quer.388 Em outras palavras, a ação prescrita pelo
imperativo é apenas um meio para atingir um fim que lhe é anterior e exterior. O
filósofo alemão procura então distinguir os diversos tipos de fins: enquanto a
384 KANT, FMC 4:413. Mais adiante, o filósofo alemão comenta que os imperativos não valem para a vontade divina nem para a santa, onde o querer já coincide, necessariamente, com a lei (ibidem, 4:414). 385 KANT, FMC 4:414. 386 KANT, FMC 4:417. Cf. J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 319. 387 Mais adiante, o filósofo alemão comentará que o imperativo categórico, ao contrário do hipotético, deve ser considerado uma proposição sintético-prática (KANT, FMC 4:420). Como diz Rawls, “Kant considera o imperativo hipotético como analítico e não sintético, e diz que ele não se sustenta em virtude da razão pura, mas da razão prática empírica. Para Kant, o simples caráter racional determina que, se queremos o fim, queremos também o meio (mais eficaz). Para ele, não há dificuldade em compreender como os imperativos hipotéticos podem determinar nossa vontade. Ele não o vê como um problema” (RAWLS, 2005, p. 86). O caráter sintético a priori dos imperativos categóricos é explicado, por Rawls, pelo fato destes serem incondicionalmente impostos sobre pessoas razoáveis e racionais, sem serem, no entanto, derivados do conceito de pessoa como razoável e racional (ibidem, p. 87). 388 KANT, FMC 4:414. Embora derivado de uma lei da razão, o imperativo hipotético não pode ser considerado moral, pelo fato da razão, aqui, estar subordinada ao desejo (exercendo, assim, um papel instrumental, como costuma ser atribuído – erroneamente, conforme comentamos – à concepção de Aristóteles). Este aspecto se liga à questão da autonomia, de que falaremos mais adiante.
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maioria destes são apenas possíveis, ou seja, que podemos ou não buscar, a
felicidade aparece com o único fim subjetivamente necessário, devido a uma
constituição da natureza dos seres racionais – a intenção que visa a felicidade
pode ser considerada como sendo a priori, pertencente à essência destes: “Há no
entanto uma finalidade da qual se pode dizer que todos os seres racionais a
perseguem realmente (...), e, portanto uma intenção que não só eles podem ter,
mas de que se deve admitir que a têm na generalidade por uma necessidade
natural”.389 No primeiro caso, os imperativos são problemáticos ou de destreza,
enquanto no segundo são assertóricos ou de prudência (Klugheit). Na Crítica da
Razão Prática, Kant comentará que, embora seja um fim necessário, a felicidade é
apenas o “título geral dos princípios subjetivos de determinação” – em outras
palavras, cada um tem sua própria concepção de felicidade. Neste sentido,
enquanto princípio material de determinação, esta noção só pode se conhecida
empiricamente – ela é, devido a uma lei natural, subjetivamente necessária, e não
objetivamente, e, portanto, não pode fornecer uma “lei” no sentido racional do
termo.390
O segundo princípio de volição no qual baseamos nossas escolhas é a
moral, e o imperativo correspondente é categórico, ou seja, a ação é representada
como necessária em si mesma, e não em função de outra coisa – alguma finalidade
a que se chegaria através dela -, e pode ser considerado, neste sentido, como um
princípio apodítico.391 Kant diferencia a “necessidade” implicada nestes três tipos
de imperativo, chamando os primeiros de regras (pertencentes à técnica ou arte),
conselhos pragmáticos (pertencentes à felicidade ou bem-estar), e mandamentos
(pertencentes à moralidade). Somente este último possuiria uma necessidade
incondicional, ao passo que os outros possuem uma necessidade condicionada a
elementos empíricos que são os fins visados pela ação (Kant comenta que isto
seria válido mesmo no caso do único fim “necessário”, que é a felicidade, pois
esta possui um conteúdo indeterminado).392
389 KANT, FMC 4:415. É preciso considerar que, para Kant, tudo aquilo que se refere à nossa natureza racional – mesmo o que pertence “necessariamente” a ela – é considerado contingente, em oposição à necessidade da lei moral (HERMAN, 1996, p. 215). Em A Religião nos Limites da Simples Razão temos: “A felicidade própria é o fim último subjetivo de seres racionais do mundo (fim que cada um deles tem em virtude da sua natureza dependente de objetos sensíveis)” (KANT, Rel. 6:6 (nota do autor)). 390 KANT, CRPr 5:25. 391 KANT, FMC 4:415. 392 KANT, FMC 4:418.
127
A diferença entre a ação moral e a não-moral, assim, pode ser
compreendida a partir da distinção entre imperativos categóricos e hipotéticos,
que deriva, por sua vez, dos dois princípios de volição nos quais baseamos nossas
ações. É preciso compreender, assim, a tese de que nossas escolhas sempre se
baseiam na moral ou no amor próprio: por que há apenas dois princípios de
volição, e porque justamente estes?
Kant fundamenta esta tese em uma distinção que é central em sua filosofia:
aquela entre o a priori e o a posteriori, que pode ser entendida como a diferença
entre o racional e o empírico, ou, ainda, entre o formal e o material. Podemos
considerar, de fato, que a moral é um princípio formal de volição, e o amor
próprio um princípio material. Faz sentido, assim, que a vontade seja determinada
apenas por estes dois preceitos. Como diz Rawls, “a vontade tem de agir sempre
segundo algum princípio de volição (...) há dois tipos de princípio de volição,
formal e material, os quais são mutuamente exclusivos e exaustivos”.393 Kant
considera, portanto, que a moral deve necessariamente ser baseada em princípios
a priori, ou seja, formais. Isto leva a uma cisão radical entre moral e felicidade,
pois esta última consiste, para o filósofo alemão, em um princípio material ou a
posteriori.394 Quando nossas ações são escolhidas a partir de critérios formais, o
resultado é um imperativo categórico, que expressa, como vimos, a relação entre o
princípio objetivo, a lei moral, e o princípio subjetivo que é a máxima. No
segundo caso, obtém-se um imperativo hipotético.
Podemos considerar que este formalismo é uma conseqüência direta da
relação entre razão e moralidade: vimos, de fato, que o projeto filosófico kantiano
procura seguir “o caminho seguro da ciência”, a partir do estabelecimento de leis
constantes, que não podem derivar de elementos empíricos, mas sim de regras a
priori pertencentes à própria faculdade da razão. Desta forma, “agir
racionalmente” em um sentido forte (“autônomo”, como veremos mais adiante),
para Kant, significa agir a partir de princípios formais.395 Christine Korsgaard
expressa esta dimensão afirmando que a moral se refere à maneira pela qual os
diferentes elementos de uma máxima – o ato e seu fim - estão relacionados, ou
393 RAWLS, 2005, p. 176. Para o comentador americano, este aspecto torna possível até mesmo falar de duas razões práticas, uma “empírica” e uma “pura”, que se expressariam, respectivamente, no imperativo hipotético e no categórico (ibidem, p. 190). 394 KANT, CRPr 5:34. 395 “Todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão” (KANT, FMC 4:412).
128
seja, à forma da máxima. A ação possui valor moral quando a máxima possui a
forma de uma lei, que é uma propriedade interna, ligada à maneira pela qual suas
partes se relacionam entre si.396
Podemos, neste ponto, fazer uma rápida comparação com Aristóteles:
vimos que o filósofo grego também estipula, embora por argumentos diferentes,
uma relação intrínseca entre ética e racionalidade. Ora, podemos considerar que
esta última também possui, dentro da concepção do estagirita, uma dimensão
formal: na parte 1, procuramos associar a prescritividade da razão – a “regra reta”,
όρθός λόγος – à doutrina da mediania. Ora, o meio-termo (µεσότης) pode ser
visto, justamente, como um princípio formal, ligado ao ideal grego de “nada em
demasia” ou “devida proporção”, que seria, para a cultura clássica, uma
característica intrínsecas à própria racionalidade. Vimos, de fato, que a mediania é
compreendida a partir da eqüidistância entre as extremidades, o méson, o que
deixa claro o seu caráter formal. Neste sentido é que, como diz mais uma vez
Korsgaard,
Aristóteles acredita que a boa ação possui uma propriedade de correção ou de nobreza, que é encontrada no logos que a descreve. Eu estou preparada para sustentar que para Aristóteles, como para Kant, é em virtude da forma do logos que a ação possui esta propriedade. Pois não é o ato, o alvo, o tempo, o lugar ou a maneira que tornam a ação correta, mas sim que estes possam se relacionar uns aos outros da maneira certa. Uma ação para Aristóteles é como uma obra de arte, com suas partes trabalhando juntas para produzir um belo e harmonioso todo. Ela é bem formada. Uma ação má, por outro lado, é deformada e defeituosa.397
Neste sentido, podemos afirmar que para Aristóteles a moral também é
entendida a partir da racionalidade enquanto princípio formal de determinação de
396 KORSGAARD, 2009, p. 15-16. Cf. HERMAN, 1996, p. 177, grifos nossos, tradução nossa: “obrigação não é uma questão de performances requeridas, mas de comprometimentos com uma maneira de determinar como agir”. 397 KORSGAARD, 2009, p. 17, tradução nossa. Podemos assim considerar que para Aristóteles uma ação nobre – com valor moral – é uma “bela” ação, o que reforça, assim, a dimensão formal da regra reta. Como dizem Gauthier & Jolif, o termo grego kalos (καλλος), em geral traduzido por “belo”, “beleza”, é usado pelo estagirita neste sentido: “apenas excepcionalmente kalos designa para ele [Aristóteles] a beleza estética; ordinariamente a palavra evoca a seus olhos, de maneira imediata e exclusiva, a bondade moral, o que nós chamamos hoje de valor. (...) Em que consiste para Aristóteles este valor? Ele se aplicou a estabelecê-lo ex professo no livro II da Ética a Nicômaco: o que faz o valor de um ato é a medida. A noção de medida tem origem quantitativa, e Aristóteles, quando a aplica à virtude, não soube talvez afastá-la inteiramente de suas origens; ela não deixa de adquirir para ele um sentido essencialmente analógico. Ser medida, para uma ação, é estar conforme ao que é a medida da ação, e esta medida só poderia ser aos olhos de Aristóteles um logos, ou seja, uma regra racional” ((GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 568 (tomo II), tradução nossa)).
129
nossas ações.398 A diferença com a doutrina de Kant se dá, fundamentalmente, na
relação deste princípio com o material, que corresponde - mais uma vez para
ambos os autores - aos nossos desejos. Como vimos, a ética aristotélica se baseia
na capacidade destes últimos em “ouvir” a razão, o que resulta em um processo de
transformação de nossas inclinações – que envolve educação e deliberação,
culminando com a sabedoria prática – pelo qual estas são “moldadas” pela
dimensão formal da razão. Podemos assim afirmar que a moral se baseia, em
Aristóteles, em uma harmonização entre o formal e o material. Kant, por outro
lado, defende uma cisão entre estas dimensões, como fica claro pelo fato de os
dois princípios de volição serem, como vimos, mutuamente exclusivos. Ora,
podemos compreender esta diferença – esta é a nossa tese - a partir da noção de
vontade: a ausência deste conceito em Aristóteles faz com que o princípio
material seja a única causa eficiente de nossas ações, e, portanto, a ação moral
deve necessariamente conter tanto o elemento formal quanto o material, que
precisam, assim, ser harmonizados. A concepção de vontade, no entanto, leva
Kant a afirmar que o princípio formal pode ser a causa eficiente de nossos atos. A
ação pode ser, assim, “puramente formal” – esta busca da pureza moral, de fato, é
uma característica marcante da ética kantiana.399 A tese central de nosso trabalho
consiste em mostrar que, apesar destas diferenças, a estrutura básica das duas
concepções ainda seria a mesma, pois, conforme comentamos, para Aristóteles a
moral também se basearia na razão enquanto princípio formal prescritivo.
Esta descrição que estamos fazendo da ética aristotélica pode parecer
incompatível com o seu eudaimonismo. De fato, este último aspecto, central para
a concepção do estagirita, é claramente um princípio substantivo, e não formal.
398 “Aristóteles insiste que a ação virtuosa precisa estar de acordo com o orthos logos, a reta razão ou regra reta. Na verdade ele diz que a ação não deve ser realizada apenas de acordo, mas a partir da reta razão. (...) Isso sugere que para Aristóteles uma ação boa é aquela que o agente vê como uma materialização da reta razão, assim como para Kant uma ação com valor moral é aquela que o agente vê como uma materialização da forma da lei” (Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 216, tradução nossa). “A associação de Aristóteles do nous com o divino permite tomar a identificação do ‘eu’ [self] com o nous como um padrão de referência absoluto, interno ao ‘eu’, análogo à lei moral de Kant” (Jennifer Whiting, “Self-love and Authoritative Virtue”, in GUYER, 2008, p. 182, tradução nossa). 399 “A moralidade deve ter tanto maior força no coração humano quanto mais puramente é representada” (KANT, CRPr 5:156). O filósofo alemão está, neste trecho, criticando a “mescla de motivos” das inclinações, que seria um obstáculo à influência da lei moral sobre o coração humano. Esta busca da “pureza” pode, mais uma vez, ser associada à influência do cristianismo sobre Kant, através da sua formação pietista (cf. ibidem, 5:127). É preciso considerar que, para Kant, toda ação possui uma matéria, ou seja, um fim: na ação moral, no entanto, esta é determinada pelo princípio formal (a lei moral), e não pelo material (inclinações).
130
Podemos argumentar, no entanto, que o “substantivo”, no sentido aristotélico,
também não é puramente material, mas sim – seguindo a teoria geral do filósofo
grego sobre a noção de substância – uma união do formal com o material. A
eudaimonia, assim, conteria estas duas dimensões, e a parte racional de nossa
alma contribuiria, justamente, com o elemento formal, ao passo que a parte
irracional – os desejos – contribuiria com o material. Daí, justamente, a melhor
tradução para eudaimonia ser “felicidade verdadeira”, conforme comentamos
anteriormente, e daí, da mesma forma, o bem visado pelo homem virtuoso ser o
“verdadeiro” bem – esta dimensão “objetiva” refletiria a contribuição da razão,
enquanto princípio formal, para a concepção de bem e de felicidade.
A partir daí, podemos discordar das críticas de Kant à mediania
aristotélica, como encontramos, por exemplo, na Metafísica dos Costumes:
A distinção entre virtude e vício nunca pode ser procurada no grau em que alguém acata certas máximas; deve ser, ao contrário, procurada somente na qualidade específica das máximas (sua relação com a lei). Em outras palavras, o famoso princípio (de Aristóteles) que situa a virtude na mediania entre dois vícios é falso. Digamos que a boa administração, por exemplo, consiste na mediania entre dois vícios, prodigalidade e avareza; como uma virtude, não pode ser representada como tendo surgido seja de uma gradual redução da prodigalidade (através da poupança) seja de um aumento de gasto da parte do avarento – como se esses dois vícios, se movendo em direções opostas, se encontrassem na boa administração. Diferentemente disso, cada um deles possui sua máxima distintiva, que necessariamente contradiz a máxima do outro.400
Nossa análise da concepção de Aristóteles procurou mostrar, justamente,
que a diferença entre virtude e vício, para o estagirita, não é apenas de grau, mas
sim uma diferença qualitativa, pois a mediania é estabelecida por uma regra reta
da razão. A ação virtuosa possui uma forma que é diferente da das ações viciosas
– daí, como já comentamos, a ação nobre poder ser descrita como “bela”. O
equilíbrio e a justa medida, que os gregos – sobretudo no período clássico –
tendiam a associar à racionalidade, pode parecer um princípio quantitativo (pois
se refere à “proporção” etc), mas a nosso ver trata-se, obviamente, de um
principio formal. A interpretação de Kant talvez se deva ao fato de que os antigos,
e particularmente Aristóteles, procuravam relacionar o formal ao material, e não
separá-los, como faz o filósofo alemão. O logos, de fato, tende a ser visto como
um princípio ordenador do real. Esta relação levaria a uma certa “quantificação”
do elemento material, para que ele possa se conformar, justamente, ao formal.
400 KANT, MC 6:404.
131
Assim, a harmonização do irracional ao racional, na ética aristotélica, implica em
uma moderação da intensidade das paixões, portanto em uma questão de “grau”,
mas esta gradação é necessária para que nossas ações estejam de acordo com a
regra reta, que é de onde deriva, de fato, o seu valor. Podemos considerar que a
busca de Kant pela “pureza” moral o leva a enxergar a “formatação do material
pelo formal” como um elemento material tout court, e isso, a nosso é ver, é injusto
com os gregos: os já mencionados ideais de nada em demasia e justa medida - que
levam aquilo que tem valor a ser quase sempre associado ao que é “belo” - deixam
claro como a questão da forma era essencial para os gregos (o que fica
evidenciado, sobretudo, na filosofia grega, o logos como princípio ordenador, o
mundo das Idéias de Platão etc). Este princípio formal, no entanto, é de certa
maneira voltado para o material, ligando-se a ele, e isso é que parece ser
inaceitável para Kant.
A estratégia do filósofo alemão, assim, consistiria em separar radicalmente
estes dois elementos, e não mesclá-los, como faz Aristóteles, e daí adviria, em
grande parte, sua forte crítica ao eudaimonismo dos antigos.401 Podemos nos
perguntar, no entanto, em que medida aquilo que o filósofo alemão chama de
“felicidade” corresponderia, de fato, à noção aristotélica de eudaimonia. Para
responder a esta pergunta, é preciso retomar os elementos contidos na psicologia
prática de Kant, que abordamos anteriormente - incentivos, motivos e fins -, e
analisá-los, agora, à luz da diferença entre os princípios formal e material de
volição.
Vimos que o autor chama de “incentivos” (Triebfedern) aquilo que
“propõe” à mente uma determinada ação, apresentando seu fim como elegível.
Neste sentido, Barbara Herman os chama de “potenciais motivacionais”:402 ou
seja, não são motivos no sentido próprio do termo – pois estes são razões, portanto
baseados em princípios de volição403 – mas são, em um certo sentido, fontes de
razões para agir: nossas escolhas são, por assim dizer, feitas a partir de nossos
incentivos. Também havíamos mencionado que os exemplos mais conhecidos
401 Por exemplo, no prefácio da parte II da Metafísica dos Costumes, onde critica os eudaimonistas por fazerem da felicidade o motivo da ação. Comentaremos este trecho mais adiante. 402 HERMAN, 1996, p. 33 (nota). 403 Como diz Onora O’Neill, “o motivo de um agente não é, para Kant, simplesmente algum tipo de emoção ou sentimento. É aquilo pelo que um agente realiza alguma ação. Ações feitas para atingir algum fim desejado são todas feitas pelo motivo de atingir o que é desejado, ou seja, por amor próprio” (O’NEILL, 1975, p. 38).
132
destes últimos são nossos desejos ou inclinações. Na Metafísica dos Costumes, a
faculdade de desejar (Begehrungsvermögen) é definida como a “faculdade de
mediante as próprias representações ser a causa dos objetos (Gegenstände) dessas
representações”.404 Ela estaria essencialmente ligada à noção de “vida”, entendida
como “o poder de um ser agir segundo as leis da faculdade de desejar”.405 Esta
faculdade recebe determinações diferentes se remete a seu objeto segundo o
sentimento de prazer ou, a partir de conceitos, segundo a ação que visa produzir o
objeto. Neste primeiro caso, é o “desejo” (Begierde) no sentido estrito.406
Podemos assim considerar que existe uma forte relação entre desejo e prazer
(Vergnügen, Lust).407 Este último, de fato, é definido na Crítica da Razão Prática
como a “representação da concordância do objeto ou da ação com as condições
subjetivas da vida”, ou seja, pela definição acima, com a faculdade de desejar.408
Kant define as inclinações (Neigung) como “dependência em que a
faculdade de desejar está em face das sensações”,409 em uma clara alusão,
podemos considerar, à ligação do desejo com o objeto exterior que é visado por
ele. Stephen Engstrom comenta que por esta definição as inclinações estão
inseridas no gênero “desejo sensitivo”, ou seja, aquele que resulta de um efeito
produzido sobre o sujeito por um objeto externo, através das sensações.410 Neste
sentido mais estrito, a ligação entre as inclinações e o prazer é bastante forte,
mesmo direta: o desejo sensitivo, de fato, surge a partir do prazer sentido
imediatamente na sensação, ou seja, a partir da representação imediata de algum
objeto existente. Kant chama este prazer sensitivo de “agrado” ou “satisfação”
404 KANT, MC 6:211. Cf. idem, CRPr 5:9 (nota do autor). 405 KANT, CRPr 5:9 (nota do autor). 406 KANT, MC 6:212 (Cf. EISLER, 1994, p. 389). No segundo caso, a faculdade de desejo é chamada de vontade (Wille): “a faculdade do desejo [Begehrungsvermögen] é a faculdade de mediante as próprias representações ser a causa dos objetos dessas representações. (...) A faculdade do desejo cujo fundamento determinante – e daí até mesmo o que lhe é agradável – se encontra na razão do sujeito é chamada de vontade [Wille]” ( ibidem, 6:213). 407 Kant considera que as duas noções não estão necessariamente ligadas - não é possível haver prazer sem desejo, mas o contrário sim, por exemplo quando o objeto da representação não existe de fato; quando há a ligação, o prazer pode ser tanto a causa quanto o efeito do desejo (KANT, MC 6:212). 408 KANT, CRPr 5:9 (nota do autor). Kant define ainda o sentimento (Gefühl) como a capacidade de experimentar o prazer e o desprazer em uma representação (idem, MC 6:211). O prazer o desprazer, assim, podem ser entendidos como a maneira pela qual a representação de um objeto afeta o sentimento. Mais adiante, o filósofo alemão especifica que está falando aqui do prazer “prático”, que se diferenciaria, por exemplo, daquele que não está ligado ao desejo por um objeto, como o prazer contemplativo (ibidem, 6:212). 409 KANT, FMC 4:413 (nota do autor). 410 Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 125.
133
(Vergnügen), e aquilo que agrada – a própria sensação – é o “agradável”
(Angenehm).411 Desta forma, o desejo sensitivo tem sua fonte no agradável
enquanto tal, e, portanto, no prazer que dele decorre.412 Engstrom comenta ainda
que, por este processo, o agradável também se torna o objeto do desejo sensitivo:
“o objeto cuja realização é o efeito do desejo sensitivo é o mesmo objeto cuja
atualidade produz o desejo ao agradar o sujeito”.413 Devido a esta propriedade –
ter como efeito sua própria causa – o desejo sensitivo tende a se converter em um
hábito, pois ao realizar seus efeitos reforça suas causas e fica, assim, cada vez
mais forte e enraizado, tornando-se, com isso, uma “inclinação” no sentido
próprio do termo: desta forma, como comenta, mais uma vez, Egstrom, em um
sentido mais amplo as inclinações podem ser compreendidas como “desejos
habituais”414 (o que permite uma interessante aproximação com a noção
aristotélica de “disposição” (έζις), que, como vimos, consiste em determinadas
tendências, fixadas pelo hábito, de nos comportarmos em relação às emoções).
Podemos assim considerar que para Kant nossas inclinações sempre visam
o “agradável”, obtido a partir da realização do objeto deste último, ou seja, a partir
da satisfação do desejo. É exatamente a partir desta caracterização que o filósofo
alemão elaborará sua concepção de felicidade (Glückseligkeit): “a consciência que
um ser racional tem do agrado da vida, que acompanha ininterruptamente toda a
sua existência, é a felicidade, e o princípio de fazer desta felicidade o supremo
princípio determinante é o princípio do amor de si”.415
As noções de felicidade, desejo, inclinação e agradável estão, portanto,
intrinsecamente ligadas: como vimos anteriormente, a busca pela felicidade é
parte da própria natureza de um ser finito racional, sendo o único fim que não é
apenas possível para estes seres, mas real e necessário. O desejo pode ser
compreendido a partir deste impulso primordial: “ser feliz é necessariamente o
anelo de todo o ser racional, mas finito e é, por conseguinte, um inevitável
411 KANT, Antr. 7:230. Em outro trecho da Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, Kant chama este prazer sensitivo (agrado, satisfação) de “sentimento de promoção da vida” (ibidem, 7:231). 412 Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 126. 413 Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 126, tradução nossa. 414 “O apetite [ou desejo] habitual (habituelle Begierde) é chamado inclinação” (KANT, MC 6:212. Cf. idem, Antr. 7:251: “o desejo sensível habitual chama-se inclinação”). 415 KANT, CRPr 5:22.
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princípio determinante da sua faculdade de desejar”.416 O desejo, por sua vez,
liga-se ao prazer enquanto “concordância do objeto com as condições subjetivas
da vida”, ou seja, como sua satisfação.417 As inclinações, enquanto desejos
sensitivos tornados habituais, visam o agradável, entendido como o prazer das
sensações.
Podemos assim afirmar que para Kant a felicidade consiste na obtenção do
agradável. É isto é que seria “sugerido” pelas inclinações enquanto incentivos à
ação: um fim tido como agradável, dentro de um contexto mais amplo de busca
pela felicidade. A decisão de agir de acordo com este incentivo pode ser
considerada um princípio material de volição, pois “no desejo de felicidade, não é
a forma da conformidade com a lei que importa, mas apenas a matéria, a saber, se
eu devo aguardar prazer, e quanto, na observância da lei”.418 Vimos que este
princípio material é chamado pelo filósofo alemão de “amor próprio”. A
satisfação do desejo, neste caso, é o “motivo” que leva o agente a agir, de acordo
com o preceito de que “quem quer os fins quer também os meios”: eu ajo desta
maneira porque desejo tal fim, e esta ação é uma forma de atingi-lo. Vimos que o
imperativo correspondente a esta lei é o hipotético. Como diz uma vez Korsgaard,
Kant identificou o que ele pensou ser um segundo tipo de imperativo hipotético [o primeiro, como vimos, são os problemáticos ou de destreza], um princípio de prudência, que nos instrui a tomar os meios, em um sentido amplo de meios, para nossa própria felicidade, algo que ele concebeu como uma maximização ou completude da satisfação do desejo.419
Esta seria, assim, a estrutura da máxima escolhida de acordo com o
princípio material do amor próprio: o incentivo são as inclinações, o motivo o
próprio princípio, e o fim o agradável, ou, em um sentido mais amplo, a
felicidade.420
Podemos nos perguntar, agora, qual seria esta estrutura no caso da lei
416 KANT, CRPr 5:25. Mais adiante, o filósofo alemão comenta que o conceito de felicidade está na base da relação prática entre os objetos e faculdade de desejar (ibidem, 5:25). 417 Na Crítica da Razão Prática, Kant afirma que a relação da representação de um objeto ao sujeito, pela qual a faculdade de desejar é determinada para a realização deste objeto, é chamada de “prazer” na realidade do objeto (KANT, CRPr 5:21). 418 KANT, CRPr 5:25. 419 KORSGAARD, 2009, p. 52, tradução nossa. 420 Como diz Onora O’Neill, “todos os motivos empíricos são impulsos para atingir algum fim desejado. Estes motivos podem todos ser classificados como amor próprio. Sob este título estão muitos motivos comuns e nem tão comuns, como vingança, gratidão, egoísmo, afeição etc. Estas formas de amor próprio se diferenciam umas das outras por seu objeto ou fim. Mas todos seus fins podem ser classificados como felicidade” (O’NEILL, 1975, p. 103).
135
moral. De fato, parece ser relativamente simples associar noções como “fins” e
“incentivos” aos desejos e inclinações, mas isso não é tão óbvio quando se trata de
um princípio formal de volição. Kant, aqui, elabora uma psicologia moral que
pode ser considerada inovadora: ele começa investigando os efeitos, sobre o
sentimento, da determinação da vontade pelo princípio formal. Na ação
propriamente moral, isto ocorre unicamente a parti da lei, sem a cooperação,
portanto, das inclinações, o que leva a uma submissão de todas elas, enquanto
poderiam se opor a esta determinação.421 Este dano causado às inclinações é, ele
próprio, um sentimento (de dor ou de humilhação), que é provocado, portanto, não
por um objeto sensível, mas por um princípio puro da razão prática.
Na Crítica da Razão Prática, Kant descreve da seguinte maneira o
processo pelo qual ocorre este “dano”: o conjunto das inclinações (cuja satisfação,
insiste ele, se chama felicidade pessoal) é o egoísmo (Selbstsucht), que também
podemos chamar de amor de si (Selbstliebe) ou princípio da felicidade própria.
Este pode ser “amor próprio”, Eigenliebe, ou presunção (Eigendünkel, também
chamada pelo autor de “pretensões da alta estima”).422 O amor próprio pode ser
entendido como a tendência de nosso eu empírico (Selbst, patologicamente
determinável pela matéria da faculdade de desejar), de fazer valer suas pretensões
como primeiras e originais, ou seja, de fazer de si mesmo princípio determinante
objetivo da vontade (daí, como vimos, consistir no princípio material de volição).
Esta tendência torna-se “presunção” quando se erige em legisladora e em
princípio prático incondicionado. Kant considera que a razão pura prática causa
no amor próprio uma restrição ou dano (dor), enquanto a presunção é aniquilada
(humilhação).
Este efeito negativo da lei moral sobre as inclinações teria como
contrapartida a geração de um sentimento positivo, que é o que Kant chama de
respeito (Achtung). Trata-se de um sentimento de natureza peculiar, pois tem uma
causa intelectual: por ser unicamente produzido pela razão, Kant o chama de
“sentimento moral”, diferenciando-se, desta forma, das inclinações, entendidas
421 KANT, CRPr 5:72-73. 422 KANT, CRPr 5:73.
136
como sentimentos patológicos. 423 O respeito ou Achtung é que seria, assim, o
incentivo propriamente moral.
Conforme comentamos, podemos enxergar nesta noção uma inovação da
ética kantiana: de fato, como diz Schnewind, na época de Kant a psicologia moral
ainda tendia a se basear em um desejo pelo bem e uma aversão pelo mal. O
filósofo alemão rompe com esta visão, ao afirmar, como vimos, que a obediência
à lei moral é motivada pelo respeito a ela – ou seja, por um interesse não pelos
fins da ação, mas pela sua forma.424 Mais adiante, Schnewind acrescenta que esta
noção pode ser entendida como uma resposta à visão de Hume, pela qual a razão
não pode motivar nossas ações.425 Kant considera, ao contrário, que a razão
prática é capaz de gerar sua própria motivação: este aspecto está diretamente
ligado, assim, à noção de vontade, ou seja, à tese de que a razão pode nos
determinar diretamente a agir. Seguindo a mesma linha, Korsgaard afirma que o
respeito não é um desejo em obedecer a lei, nem um sentimento que seja
independente desta, mas sim a própria lei operando como incentivo – ou seja, para
Kant a vontade racional fornece não somente o fundamento da escolha, mas
também o incentivo de agir de acordo com esta escolha.426 Esta relação estreita
entre as noções de vontade e de respeito é ainda corroborada por Rawls, que
define este último como “o reconhecimento de um princípio de volição como uma
lei para nós, isto é, como algo que determina diretamente nossa vontade, sem
423 Korsgaard descreve este aspecto da seguinte forma: o egoísmo ou amor de si nos leva a buscar a satisfação das inclinações. O amor próprio é a tendência que os seres humanos têm de tratarem seus desejos e inclinações como possuindo autoridade, ou seja, “pensar que o fato de desejar fazer algo é em si mesmo uma razão para fazê-lo”, enquanto a presunção nos leva a considerar o simples fato de querer fazer algo como justificativa para fazê-lo. Quando a lei moral nos comanda a não agir de acordo com a inclinação, isso causa dano ao amor próprio e humilha a presunção – estes sentimentos são dolorosos, aquilo que Kant chama de “efeito negativo” da lei moral sobre o sentimento. Ao mesmo tempo, no entanto, a capacidade de deixar as inclinações de lado nos torna conscientes de nossa liberdade, experimentada, portanto, como um senso de independência das necessidades da inclinação, um senso semelhante ao prazer ou êxtase. A complexa mistura de afetos que daí resulta é o sentimento de respeito pela lei (Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 213). 424 J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 326. O comentador inglês acrescenta que esta ruptura com a visão dos antigos teria sido realizada primeiramente por Crusius, que afirmava obedecer às leis de Deus simplesmente por estas serem ordenadas por Ele. Kant teria aceitado esta mudança em relação à tradição greco-romana, o que a reforça a visão, que já comentamos, pela qual sua ênfase na noção de “lei moral” pode ser parcialmente interpretada como uma herança do cristianismo. 425 “A razão é, e deve ser apenas a escrava das paixões; não pode aspirar a outro papel senão o de servi-las e obedecer-lhes” (HUME, 2001, p. 482). 426 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 213.
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referência ao que nossas inclinações desejam”.427
O respeito pela lei pode ser considerado, assim, um incentivo “formal”,
enquanto as inclinações forneceriam apenas incentivos empíricos.428 Esta
diferença pode ser melhor compreendida a partir da noção de interesse (Interesse):
Kant designa por este termo a “dependência em que uma vontade
contingentemente determinável se encontra em face dos princípios da razão”.429
Mais uma vez, podemos considerar que o filósofo alemão se refere, aqui, à
Willkür enquanto determinada pela Wille, já que, como vimos, esta última se
confunde com a razão prática, não podendo, assim, ser “contingentemente
determinável” por esta. A Willkür, no entanto, pode ser influenciada seja pela
razão seja pelas inclinações, de acordo com o princípio de volição – material ou
formal – em que baseia suas escolhas.430 A relação destas últimas com os
primeiros é que seria chamada, assim, de “interesse”. Kant faz uma distinção entre
tomar interesse por algo – quando baseamos nossas escolhas no princípio formal
da lei moral, a partir do incentivo do simples respeito por esta lei -, e agir por
interesse, quando a escolha se baseia no princípio material, a partir dos incentivos
das inclinações. No primeiro caso ocorre um interesse prático pela própria ação,
enquanto no segundo há um interesse patológico pelo objeto da ação.431 Cabe aqui, mais uma vez, uma comparação com Aristóteles: podemos
considerar que, para este último, a motivação por trás de nossas ações está sempre
ligada ao desejo de atingir algum fim. A noção de “bem” de cada um, no entanto,
427 RAWLS, 2005, p. 176. 428 O’NEILL, 1975, p. 38; p. 103. A autora comenta que a terminologia de Kant, neste sentido, nem sempre é consistente – o filósofo alemão às vezes chama o respeito pela lei moral de “motivo” (Bewegungsgrund) e as inclinações de incentivos (Triebfeder), e às vezes, como na Crítica da Razão Prática, usa o último termo de forma genérica, englobando tanto o respeito quanto as inclinações. Em todos estes casos, no entanto, a divisão entre formal e empírico é mantida (ibidem, p. 103 (nota)). Ao longo de nosso texto, preferirmos manter a divisão que nos parece fazer mais sentido, pela qual tanto o respeito quanto as inclinações são incentivos, o termo “motivo” designando os dois princípios de volição – material (amor próprio) e formal (lei moral) – nos quais baseamos nossas escolhas, feitas, como dissemos, a partir dos incentivos. 429 KANT, FMC 4:413 (nota do autor). 430 É preciso considerar que, em ambos os casos, estamos agindo “por motivos”, pois toda escolha se baseia em razões. Quando a base é a lei moral, no entanto, Kant considera que estamos agindo em função dos princípios da razão em si mesmos, ao passo que no segundo caso a razão apenas fornece a regra prática para socorrer a necessidade da inclinação – os princípios da razão, então, não estão sendo seguidos em si mesmos, mas sim em proveito da inclinação (KANT, FMC 4:413 (nota do autor)). 431 Como diz Herman, esta diferença pode ser entendida em termos das “razões” que temos para agir: “razões morais, por outro lado, são do interesse do agente moral, mas, diferentemente de razões de amor-próprio, a condição de serem razões não é o interesse subjetivo e contingente do agente” (HERMAN, 1996, p. 149, tradução nossa).
138
é afetada pela capacidade de nossos impulsos em ouvir a razão, levando, como
vimos na parte um, ao bem “objetivo” ou “verdadeiro”, enxergado pelo homem
virtuoso, e que incorporaria, por assim dizer, a contribuição especifica da razão
enquanto princípio formal. Podemos nos perguntar, agora, qual o “interesse” do
agente aristotélico em agir de acordo com a mediania, ou seja, com a regra da reta
razão. A resposta do filósofo grego parece ser a de que o indivíduo “educado”,
embora ainda busque os fins determinados por seu desejo, visará aqueles que
absorveram o ideal da justa medida. É preciso considerar que a própria ação não
poderá se basear no simples respeito pela lei moral, como ocorre em Kant: como
dissemos, para este último nossos atos podem ser se basear em princípios
puramente formais, o que não é possível na concepção do estagirita, devido à
ausência de uma noção de vontade. Podemos nos perguntar, no entanto, em que
medida o processo pelo qual a parte irracional de nossa alma ouve a racional não
se basearia em alguma forma de respeito – a metáfora usada por Aristóteles, da
relação entre pai e filho, parece apontar nesta direção. De fato, o que poderia levar
nossos desejos a escutar a razão e se deixar moldar por ela, senão o
reconhecimento de sua autoridade enquanto faculdade superior? Desta forma,
podemos considerar que os fins “nobres” e “objetivos” do homem virtuoso já
contêm, embutidos, o respeito pelos ditames da razão, levando ao reconhecimento
de que a felicidade verdadeira é constituída pela virtude. Este “respeito” estaria
ligado ao reconhecimento do valor da razão, enquanto elemento determinante da
natureza humana (e, portanto, imprescindível para o cumprimento de sua função).
Voltaremos a este ponto no capítulo seguinte.
Na Crítica da Razão Prática, Kant também comenta como a razão prática,
quando é patologicamente determinada, apenas “administra” o interesse das
inclinações, sob o princípio sensível da felicidade.432 Esta visão instrumental é,
com freqüência, associada aos antigos e particularmente a Aristóteles, devido à
dimensão eudaimônica de suas éticas, que seriam, assim, centralizadas no
conceito de felicidade. Na parte 1, no entanto, nós procuramos mostrar que esta
visão não se aplica, realmente, ao estagirita: em primeiro lugar, é preciso
considerar, conforme havíamos comentado, que o argumento do érgon apresenta
uma concepção de valor diferente daquela descrita no início da Ética a Nicômaco,
432 KANT, CRPr 5:120.
139
onde os bens são os fins visados pelas ações, portanto desejados. Esta última
estaria mais próxima daquilo que Kant chama de “felicidade”. O érgon, no
entanto, complementa esta visão ao introduzir uma relação intrínseca entre a
função do homem – seu bem supremo – e a racionalidade. A noção de felicidade
apresentada anteriormente (enquanto satisfação do desejo) está claramente
subordinada a esta última, como atesta a tese de que a parte irracional de nossa
alma deve “ouvir” a racional. Como já dissemos, podemos considerar que em uma
concepção instrumental o contrário é que ocorreria: a razão é que se encontraria
em uma relação de subordinação aos desejos, “ouvindo-os” e, como diz Kant,
apenas administrando seus interesses. Este tipo de relação corresponderia, em
Aristóteles, à descrição do homem intemperante, onde a deliberação, por não ter
como objeto o verdadeiro bem, torna-se mera astúcia e não sabedoria, como no
homem virtuoso. Percebe-se, assim, que a razão prática não possui uma função
meramente instrumental na ética aristotélica, mas sim a de um princípio formal ao
qual nossas ações devem se conformar para possuir valor moral. A ausência da
noção de “vontade”, no entanto, faz com que esta conformação se dê a partir de
uma transformação do desejo, que se racionaliza, ao ouvir a parte puramente
racional de nossa alma, sem no entanto deixar, por sua natureza, de pertencer à
parte irracional.433
Podemos assim considerar que o conceito kantiano de “felicidade” difere,
em vários aspectos, da eudaimonia aristotélica. A noção de vontade, ao permitir
uma cisão entre a razão, enquanto princípio formal, e as inclinações, enquanto
princípio material, leva a felicidade a ser entendida como uma simples busca pelo
agradável e pela satisfação de nossos desejos. Este aspecto também está, de certa
forma, contido na eudaimonia, mas “moldado” por assim dizer, pela
prescritividade da razão, de forma que a felicidade, para Aristóteles (e para os
antigos em geral), possui uma dimensão moral: não se trata, por assim dizer, de
433 Esta visão instrumental se aplicaria àquilo que Rawls chama de “razão prática empírica”: “esta razão procede de nossas inclinações e desejos naturais e procura organizá-los em um sistema ordenado de carências para alcançar, através de um plano racional, nossa maior felicidade” (RAWLS, 2005, p. 296). A razão prática pura, assim, seria aquela que conteria, em sua própria natureza, o princípio formal de volição, a lei moral. Como argumentamos acima, a razão prática aristotélica também possui esta dimensão formal – a regra reta, όρθός λόγος, que determina a mediania. Desta forma, como dissemos, na concepção do estagirita a razão prática não administra apenas o interesse das inclinações, mas modifica a noção de “felicidade” destas últimas, levando ao conceito de eudaimonia ou "felicidade verdadeira", que pode ser vista como um bem objetivo, válido para todos os seres racionais.
140
uma “simples” busca pelo agradável, pois a regra reta nos dirá quais são os fins
que merecem serem perseguidos, e como perseguí-los – um pouco, como veremos
mais adiante, como a noção de “ações moralmente permissíveis” de Kant. Como
dissemos na parte 1, na concepção de Aristóteles é preciso, para ser feliz, desejar
bem, e este “bem” é compreendido a partir de uma dimensão formal fornecida
pela razão prática. Desta forma, podemos reconhecer que há, sim, diferenças
importantes entre a visão do filósofo alemão e a do estagirita, mas estas não
correspondem exatamente à crítica que o primeiro dirige ao eudaimonismo: a
diferença consiste, basicamente, no fato de que Aristóteles procura harmonizar o
elemento formal com o material, o que leva as ações com valor moral a ainda
conterem uma dimensão irracional, o que Kant rejeitará. No entanto, esta
harmonização se dá a partir de uma subordinação do irracional ao racional, e não
o contrário, como sustentará Kant em sua crítica.434 A ausência de uma noção de
vontade impedirá os antigos de atingir a “pureza” moral preconizada pelo filósofo
alemão: isso não impede que suas concepções, e particularmente a de Aristóteles,
possuam uma estrutura similar à kantiana, apontando, por assim dizer, na mesma
direção desta. Neste sentido, a diferença entre os dois tipos de concepção seria
mais quantitativa – de grau – do que propriamente qualitativa, ao contrário do que
tende a ser colocado no debate entre as éticas do dever e da virtude.
Podemos, agora, nos voltar para o último elemento contido na máxima que
ainda não analisamos no caso do imperativo categórico, que é o fim da ação.
Havíamos comentado, de fato, que toda máxima possui a forma “realizar-este-ato-
para-atingir-este-fim”. No imperativo hipotético – quando a máxima é escolhida a
partir do princípio material de volição, o amor próprio – este fim é colocado,
como vimos, pelo desejo. O fato do incentivo das inclinações ser rejeitado pelo
434 Na Crítica da Razão Prática, por exemplo, Kant comenta que o erro dos antigos foi o de fazerem a investigação moral incidir sobre a determinação do conceito do soberano bem - ou seja, de um objeto de que eles pensavam fazer em seguida o princípio determinante da vontade na lei moral -, ao invés de buscar uma lei formal como princípio determinante da lei prática (KANT, CRPr 5:64). Ora, podemos considerar, como dissemos, que a ética de Aristóteles se baseia, sim, em uma dimensão formal da razão prática, a partir da qual deve ser determinada a eudaimonia enquanto soberano bem. De fato, o fim visado pelo homem virtuoso seria aquele onde o ideal da justa proporção foi assimilado. A crítica de Kant, ao falar de um “objeto” que antecederia a lei moral, se aplica de maneira mais óbvia ao conceito de “bem” como aquilo que é visado por nossas ações, apresentado no início da Ética a Nicômaco. No caso do argumento do érgon, baseado na noção de “função”, a questão se torna mais complicada: trata-se de um conceito de bem que parece, de fato, anteceder a dimensão formal da moral, fundamentando-a, mas, ao mesmo tempo, esta anterioridade não é a de um “objeto” desejado. Voltaremos a discutir essas questões no próximo capítulo, ao falar da noção de valor em Kant.
141
imperativo categórico parece sugerir que as ações morais não teriam nenhum
objetivo. Kant, no entanto, considera que toda ação visa um fim - ou seja, possui
não somente uma forma, mas também uma matéria.435 A diferença estaria que, no
caso do imperativo hipotético, esta matéria é o fundamento de determinação e a
condição da máxima – daí, justamente, esta ser escolhida a partir de um princípio
material de volição. No caso da ação moral, o princípio, como vimos, é formal, e é
a partir deste fundamento que é determinada a matéria da ação.
Se o objeto (Objekt) é aceite como o princípio determinante da nossa faculdade de desejar, deve anteceder-se a possibilidade física do mesmo pelo livre uso das nossas forças antes de julgar se é ou não um objeto (Gegenstand) da razão prática. Pelo contrário, se a lei pode considerar-se a priori como o princípio determinante da ação e esta, por conseguinte, como determinada pela razão pura prática, o juízo sobre se alguma coisa é ou não um objeto (Gegenstand) da razão pura prática é totalmente independente da comparação com o nosso poder (Vermögen) físico, e a questão é somente de se nos é permitido querer uma ação que se dirige à existência de um objeto (Objekt), se este estivesse em nosso poder, por conseguinte, o que deve preceder é a possibilidade moral da ação; pois, aqui, não é seu objeto (Gegenstand), mas a lei da vontade o seu princípio determinante.436
Wood comenta, neste sentido, que “o uso prático da razão é aquele onde a
razão procura não conformar suas representações a objetos, mas produzir objetos
correspondendo às suas representações”.437 A partir desta caracterização, podemos
chamar os fins visados pelo desejo de “fins subjetivos”, enquanto aqueles
determinados pela vontade ou razão prática seriam “fins objetivos”.438 Como diz
435 “É certamente inegável que todo o querer deve ter também um objeto (Gegenstand), por conseguinte, uma matéria” (KANT, CRPr 5:34). Cf. idem, MC 6:384-385: “um fim é um objeto de livre escolha, cuja representação o determina para uma ação (pela qual o objeto é instaurado). Toda ação, portanto, possui seu fim”. Como comenta Rawls, o que Kant chama de “objeto” é o fim da ação: “Um objeto é entendido como o fim de uma ação; para Kant, todas as ações têm um fim neste sentido” (RAWLS, 2005, p. 305). 436 KANT, CRPr 5:57. Em outro trecho da Crítica da Razão Prática, de fato, Kant comenta que todos os princípios que pressupõem um objeto da faculdade de desejar são sempre empíricos: “Todos os princípios (Prinzipien) práticos que pressupõem um objeto (Objekt) (matéria) da faculdade de desejar, enquanto princípio determinante da vontade, são no seu conjunto empíricos e não podem fornecer nenhumas (siq) leis práticas. Entendo por matéria da faculdade de desejar um objeto (Gegenstand) cuja realidade (Wirklichkeit) é desejada. Quando o desejo deste objeto precede a regra prática e é a condição para se fazer a si um princípio, digo (em primeiro lugar) que este princípio é, então, sempre empírico” (ibidem, 5:21). 437 WOOD, 2008, p. 131, tradução nossa. Cf. RAWLS, 2005, p. 173: “a razão prática diz respeito a como devemos efetivar objetos de acordo com uma idéia (ou uma concepção) destes objetos”. Em outro trecho, o autor americano usa esta caracterização para diferenciar a razão prática da teórica: “a razão prática concerne à produção de objetos de acordo com uma concepção destes objetos, ao passo que a razão teórica concerne ao conhecimento de objetos dados” (ibidem, p. 250). 438 “Um fim objetivo (i.e., o que devemos ter) é aquele que nos é dado como tal pela simples razão” (KANT, Rel. 6:6). Cf. idem, MC 6:385: “Assim, não se trata aqui dos fins que o ser humano realmente adota no acatamento dos impulsos sensíveis de sua natureza, mas de objetos de livre escolha em submissão às suas leis, dos quais ele deve fazer seus fins. O estudo da primeira
142
Rawls:
Assim entendida, a interpretação positiva enfatiza que há fins objetivos: aqueles que são válidos para todas as pessoas razoáveis e racionais no sentido de que todas elas devem considerar estes fins como fins que precisam promover. (...) Em uma palavra: a lei moral, além de determinar a forma, determina elementos da matéria da vontade pura.439 A razão prática pura não pode extrair suas diretrizes de nenhum objeto, nem mesmo de uma idéia racional apresentada à razão como um objeto. (...) Em outras palavras: a razão prática pura deve construir a partir de si mesma seu próprio objeto.440 Ou a lei moral é fundada em um objeto que lhe é dado, caso em que ela dependeria de nossa suscetibilidade e do prazer que supomos antecipadamente extrair da realização do objeto, ou a lei moral como razão prática pura determina (constrói) seu próprio objeto a partir de si mesma.441 Agir segundo a razão prática pura envolve, primeiramente, efetivar um objeto cuja concepção seja estruturada à luz das idéias e princípios da razão prática pura e, em segundo lugar, ser movido (do modo apropriado) por um interesse prático puro na realização desta concepção.442 Uma das características essenciais da espontaneidade absoluta da razão é sua capacidade de estabelecer fins para si mesma.443
Kant chamará de Bem (Gut) e Mal (Böse) os fins enquanto objetos da
vontade.444 Voltaremos a tratar deste assunto no capítulo seguinte, quando
abordaremos sua teoria de valor. Se formos agora, mais uma vez, fazer uma rápida
comparação com Aristóteles, vimos que para este último a razão não é capaz de
estabelecer fins que lhe sejam próprios – aspecto relacionado, conforme estamos
procurando argumentar, à ausência de uma concepção de “vontade”, que permite à
razão prática determinar diretamente nossas ações, estabelecendo, assim, fins que
independem das inclinações. No entanto, vimos também que para o estagirita os
fins colocados pelo desejo podem ser “racionalizados”, se conformando, assim, ao
princípio formal fornecido pela razão prática, e se tornando, desta forma, fins
“objetivos”, visados pelo sábio. Podemos assim considerar que a concepção de
Aristóteles possui uma estrutura similar à de Kant, no sentido de que os fins
possuem uma dimensão formal, estabelecida pela razão prática, e é nesta
modalidade de fins pode ser chamada de doutrina técnica (subjetiva) dos fins; trata-se realmente da doutrina pragmática dos fins, contendo as regras da prudência nas escolhas dos fins de cada um. O estudo da segunda espécie de fins, entretanto, precisa ser chamada de doutrina moral (objetiva) dos fins”. Cf. O’NEILL, 1975, p. 83-84. 439 RAWLS, 2005, p. 224. 440 RAWLS, 2005, p. 259; p. 260. 441 RAWLS, 2005, p. 270. Esta dimensão da razão prática kantiana levará Rawls a descrever a concepção do filósofo alemão como “construtivista”. 442 RAWLS, 2005, p. 305. 443 RAWLS, 2005, p. 325. 444 KANT, CRPr 5:58.
143
dimensão que estaria a objetividade e o valor moral do fim – a diferença estaria na
pureza do formalismo kantiano, o que pode ser considerado, como já
argumentamos, mais uma diferença de grau do que estrutural, se entendermos
“estrutura” como estamos propondo – a relação entre razão prática, virtude e valor
moral da ação.
Podemos, agora, encerrar este capítulo tratando da questão da autonomia.
Vimos, de fato, que para Kant há uma relação intrínseca entre razão e moralidade.
O filósofo alemão considera, assim, que nossas ações só podem ser consideradas
“morais” quando se baseiam, insistimos mais uma vez, em um princípio formal de
volição, a lei moral, que é, dentro da concepção kantiana, uma maneira de dizer
que as ações são racionais, diretamente determinadas pela razão. Vimos que há,
ainda, o princípio material de volição, o amor próprio, nos quais baseamos aquelas
ações que visam a felicidade, entendida por Kant como satisfação dos desejos, ou
seja, como busca pelo agradável.445 Analisamos, então, a diferença entre estas
duas formas de agir, a partir dos elementos contidos na máxima, que descreve a
ação: incentivos, imperativos e fins.
A análise destes elementos nos permitiu compreender melhor a cisão,
estabelecida por Kant, entre moral e felicidade enquanto princípios determinantes
da vontade, ou seja, entre razão e desejo. Esta cisão estaria ligada à noção de
vontade, pela qual nossas ações podem ser diretamente determinadas pela razão
prática. Isso permite à doutrina kantiana falar de uma pureza moral que não era
acessível para os antigos. Podemos considerar que a mais alta expressão desta
“limpidez” racional está na noção de autonomia: na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, Kant considera que o homem, ao agir moralmente, está
sujeito apenas à sua própria legislação, ou seja, às leis da sua própria vontade.446
De fato, havíamos comentado, no início deste capítulo, que a relação intrínseca
entre razão e moralidade se dá, para o filósofo alemão, a partir da noção de “lei”:
agir moralmente consiste em agir segundo leis racionais. Estas últimas podem ser
consideradas inerentes à própria natureza da razão prática. Como comenta Wood,
esta última é um poder (Kraft) ou faculdade (Vermögen), ou capacidade, que pode
445 Podemos, obviamente, complexificar esta noção de “agradável”, considerando que não se trata necessariamente do agradável imediato – muitas vezes, de fato, realizamos ações “desagradáveis” visando um prazer maior posterior – esta questão remete ao “útil”, por sua vez ligado à noção kantiana de “interesse”. Mas não nos cabe analisar este ponto aqui, pois, como dissemos, isto apenas complexifica a questão, sem modificar o fato de que a felicidade se liga ao agradável. 446 KANT, FMC 4:434.
144
ser entendida, grosso modo, como “a maneira pela qual um ser vivo realiza algo
através de processos ou ações que são concebidas e guiadas normativamente”.447
Toda faculdade, assim, teria normas internas que regem seu funcionamento,
determinando quando este se dá de forma correta; no caso da razão prática, cujo
bom funcionamento resulta em ações racionais, as normas seriam representadas
pelos imperativos técnico, pragmático e moral, aos quais já nos referimos.448 A
mais alta norma seria a moral, pois somente através dela a vontade é inteiramente
auto-determinada – daí a lei possuir uma necessidade incondicional, e não
condicionada, como nas regras de prudência. Quando agimos a partir de princípios
formais, assim, estamos agindo unicamente de acordo com a própria natureza de
nossa vontade ou razão prática – é isto o que significaria, assim, “agir
racionalmente” no sentido mais forte do termo.449 Kant chama esta capacidade de
auto-legislação da vontade – ou seja, gerar ações que seguem unicamente leis
inerentes à sua própria natureza – de autonomia: “autonomia da vontade é aquela
sua propriedade graças à qual ela é para si mesma sua lei”.450 Esta propriedade se
opõe à heteronomia, que ocorre quando a vontade é determinada por uma lei que
não lhe é interna, mas baseada na natureza de seus objetos: neste caso, “não é a
vontade que então se dá a lei a si mesma, mas é sim o objeto que dá a lei à
vontade pela sua relação com ela”.451 Podemos considerar que os imperativos
categóricos são sempre representações de leis autônomas da vontade, e os
447 WOOD, 2008, p. 114-115, tradução nossa. Mais adiante, o autor comenta que “porque a faculdade é conceitualizada em termos de normas que se aplicam a ela, a natureza de toda faculdade é normativa” (ibidem, p. 116). Cf. Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 108: “se a vontade é razão prática, é um poder causal e, portanto, tem uma lei que governa seu exercício; e se é razão prática, então é o poder de um ser racional, e portanto seu exercício é governado pela concepção desta lei”. Cf. ibidem, p. 108, tradução nossa: “o conceito de lei é interno ao conceito de vontade”. 448 WOOD, 2008, p. 115. 449 Como diz Schneewind, “para assegurar a autonomia do agente moral, a lei moral precisa se pura e a priori. Isto significa, Kant insiste, que a lei precisa ser formal” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 318, tradução nossa). 450 KANT, FMC 4:440. Cf HERMAN, 1996, P. 202: “A autonomia de Kant é a propriedade que tem a vontade racional de ser auto-legisladora. Esta é uma tese metafísica sobre a natureza da agência racional”. Cf. ibidem, p. 228, tradução nossa: “a Fórmula da Autonomia nos diz para considerar o agente racional como auto-legislador: alguém que pode tomar a si mesmo (e, pelo argumento do terceiro capítulo da Fundamentação, que precisa tomar) como agindo por razões ‘de cabo a rabo’ [all the way down]. Menos metaforicamente, isso quer dizer que agentes racionais podem determinar completamente suas ações a partir de razões”. 451 KANT, FMC 4:441.
145
hipotéticos de leis heterônomas.452
Agir racionalmente, portanto, significa agir a partir de princípios que a
razão dá a si mesma. A relação intrínseca entre moral e razão torna-se então
patente pelo fato da autonomia ser chamada por Kant de princípio supremo da
moralidade: “a moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da
vontade”,453 “a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e
dos deveres a elas conformes”.454 Christine Korsgaard faz um interessante
comentário a este respeito, distinguindo dois tipos diferentes de éticas
racionalistas: aquelas onde os princípios morais são derivados de princípios
racionais, e onde os primeiros são, eles próprios, racionais.455 A tese segundo a
qual a moralidade deve ser compreendida a partir da autonomia da vontade mostra
que esta relação possui, na concepção de Kant, este sentido forte: a moral não é
derivada da razão, ela é a própria razão, ou seja, há uma identidade entre “agir
moralmente” e “agir racionalmente”.
Aqui cabe, mais uma vez, uma comparação com Aristóteles: podemos
considerar que esta mesma relação forte existe na concepção do estagirita, pois o
argumento do érgon, como vimos, atesta que o bem do homem está no bom
exercício da razão, e não em algo que conseguimos através dele. Para o filósofo
grego, assim, também existe uma identidade entre o “certo” e o “racional” – a
regra reta, portanto, é compreendida a partir de características intrínsecas à própria
racionalidade. Daí, como dissemos, esta regra poder ser vista como um principio
formal, assim como em Kant, o que corresponde perfeitamente à descrição que
Aristóteles faz dela enquanto mediania, de acordo com o ideal grego de equilíbrio
e justa medida.
Neste sentido, a crítica em Kant ao eudaimonismo, que seria
necessariamente um tipo de concepção heterônoma, está, pelo menos no caso de
452 KANT, FMC 4:441. Kant associa o conceito de autonomia ao de “reino dos fins” (Reich der Zwecke), ao qual pertenceria todo ser racional enquanto legislador de leis universais às quais ele mesmo se submete (ibidem, 4:433). Trata-se, nas palavras do filósofo alemão, de uma “ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns”, que deve ser vista, obviamente, como um ideal a ser perseguido mas nunca alcançado (ibidem, 4:433). Embora seja um conceito importante para a ética kantiana, não nos ateremos a ele, por não afetar diretamente o tema de nossa tese. 453 KANT, FMC 4:440. 454 KANT, CRPr 5:33. 455 KORSGAARD, 2009, p. 47. Como exemplo do primeiro tipo de relação, onde os princípios morais são derivados de princípios racionais sem se identificar com eles, a autora cita as concepções neo-hobbesianas, onde a moralidade é compreendida a partir do interesse próprio, considerado como um princípio racional.
146
Aristóteles, em parte equivocada. Entendamos este “em parte”: a autonomia
kantiana pode ser entendida como a identificação entre o certo e o racional, ou
seja, à idéia de que o “certo” não pode ser definido a partir de alguma outra coisa
além de si próprio, o que, segundo o filósofo alemão, ocorreria nas concepções
dos antigos: “o certo é aquilo que contribui para a felicidade”.456 Neste sentido, as
éticas gregas se baseariam somente em imperativos hipotéticos. Vimos, na parte 1,
que esta interpretação não se aplica realmente a Aristóteles, devido à tese de que a
parte irracional de nossa alma é que deve ouvir e se conformar à racional: desta
forma, o certo é definido a partir da própria natureza da razão – assim como em
Kant – e a felicidade é que é, então, compreendida a partir do que é “certo”; daí,
justamente, a eudaimonia aristotélica não corresponder exatamente à visão
subjetivista moderna de felicidade (que é, grosso modo, a de Kant). Se
entendermos a autonomia como a identidade entre o certo e o racional, assim, a
ética aristotélica é tão “autônoma” quanto a de Kant.
Podemos considerar, no entanto, que o conceito kantiano de autonomia
não se refere somente à definição da lei moral, mas também à capacidade do
indivíduo de agir unicamente a partir desta lei. Aqui podemos assinalar uma
diferença importante com a concepção aristotélica, ligada, mais uma vez, à noção
de “vontade”: para o filósofo grego, o princípio formal só afeta nossas ações na
medida em que é ouvido pelo desejo, o que significa que a determinação do agir
pela razão prática não é uma “auto-determinação” – como dissemos na parte 1, a
harmonização entre o racional e o irracional se dá a partir de uma relação onde
ambas as partes fazem mútuas concessões.
A partir destas considerações, podemos nos perguntar se a ética
aristotélica, afinal, deve ou não se considerada heterônoma pelos critérios
kantianos. A resposta, a nosso ver, é um “sim” com reservas. Kant, de fato, tende
a considerar que na heteronomia a razão está sempre submetida ao desejo em uma
relação instrumental de obediência. Se as únicas duas possibilidades que temos
são a heteronomia neste sentido ou a autonomia estrita, então nenhuma das duas
corresponde à visão de Aristóteles - o que mostra, justamente, que estas não
456 Podemos considerar que esta descrição se aplicaria ao utilitarismo moderno, onde o “certo” é entendido como a maximização da felicidade. A partir da leitura que estamos fazendo da ética aristotélica, assim, seria possível fazer uma distinção entre o utilitarismo moderno e a concepção dos antigos que é, muitas vezes, chamada de “conseqüencialista”. Mas este não é o objetivo deste trabalho.
147
podem ser as únicas possibilidades. Para descrever corretamente a concepção do
estagirita, é preciso fazer uma reforma do conceito de heteronomia, distinguindo
uma versão mais fraca de uma mais forte (o que Kant, a nosso ver, não faz): a
heteronomia “forte”, assim, seria aquela em que a razão prática exerce um papel
meramente instrumental, e a versão “fraca”, que corresponde à ética aristotélica, é
aquela em que o desejo ainda está presente, mas comandado pela razão, um pouco
como um filho obedece a seu pai, ou, ainda, como cavalos que seguem as ordens
do cocheiro, para usar a metáfora de Platão.
Reencontramos, nesta distinção, o tema central de nossa tese: de fato,
podemos considerar que a diferença entre a autonomia e a versão forte da
heteronomia é uma diferença qualitativa e estrutural – a função da razão prática
não é a mesma -, ao passo que a divergência com a versão fraca seria mais de
grau: neste último caso, a heteronomia “aponta” na mesma direção da autonomia,
mas sem atingi-la plenamente, devido sobretudo, como estamos procurando
argumentar, à ausência de uma concepção de vontade. A importância desta
ausência se torna patente, a nosso ver, pelo fato, comentado acima, de que se a
autonomia for considerada enquanto identidade entre o moral e o racional, então a
concepção aristotélica é tão “autômoma” quanto a kantiana. Isso deixa claro, nos
parece, que aquilo que “falta” à visão do estagirita é a noção de vontade, mas isso
não impede que a estrutura básica das duas éticas seja a mesma. A partir destas
considerações, poderíamos mesmo, talvez, sermos um pouco mais ousados em
nossa interpretação: de fato, como vimos, posições como a de Aristóteles estão
mais próximas da de Kant, estruturalmente falando, do que daquilo que chamamos
de versão forte da heteronomia. Neste sentido, talvez fosse mais adequado chamá-
las de versão fraca de autonomia. Isso estaria de acordo, a nosso ver, com
determinadas características da ética aristotélica, como a autarquia (άύτάρκειά):
vimos na parte 1 que as virtudes – ou seja, a harmonização de nossas inclinações
com a regra reta - são causas próprias da eudaimonia, exatamente, podemos
considerar, devido à identidade entre o certo e o racional, ou seja, por
corresponderem ao bem supremo do homem enquanto bom exercício da razão.
Isso não impede que os bens exteriores também contribuam enquanto causas
secundárias, devido à participação do desejo na eudaimonia – daí, como dissemos,
podermos talvez falar de uma “versão fraca” de autonomia, onde a razão
determina a ação formalmente, mas não eficientemente (a versão “forte”, onde
148
esta determinação ocorre formalmente e eficientemente, só seria possível a partir
da noção de vontade). Podemos citar, a favor desta aproximação entre a
autonomia kantiana e a autarquia aristotélica, o fato de ambas estarem diretamente
relacionadas à noção de “dignidade”. Voltaremos a tocar neste assunto mais
adiante.457
Podemos, agora, concluir este capítulo: como dissemos na introdução de
nossa tese, o objetivo central deste trabalho consiste em analisar a estrutura das
éticas de Kant e Aristóteles, a partir da relação entre razão prática, virtude e valor
moral da ação. Dentro deste contexto, nós abordamos, neste primeiro capítulo da
parte 2, a relação entre razão e moralidade na ética do filósofo alemão. No
capítulo seguinte, trataremos do problema do valor moral, a partir da teoria
kantiana de valor, para então, no terceiro e último capítulo, abordar a noção de
virtude.
457 Kant também associa a autonomia ao tema da “liberdade”. Faremos apenas um rápido comentário sobre este ponto, pois ele não nos interessa diretamente: na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant distingue uma definição negativa de liberdade – propriedade da vontade dos seres racionais, pela qual ela pode ser eficiente independentemente de causas estranhas que a determinem – e uma positiva, que decorre da anterior, pela qual a liberdade consiste na propriedade da vontade de ser lei para si mesma, confundindo-se com a autonomia – assim, como diz o autor, “vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa” (KANT, FMC 4:447). A idéia de Liberdade é um postulado da razão pura prática (voltaremos a este assunto mais adiante), pois não pode ser demonstrada como algo real, precisando, no entanto, ser pressuposta de um ponto de vista prático para a moralidade - cuja existência, como vimos, se impõe à nossa consciência como um “fato da razão”. É interessante observar como a noção de liberdade remete à divisão kantiana de um mundo numênico e um mundo empírico, e, portanto, à de dois “eus” (ou “pontos de vista”, como diz o filósofo alemão), que estariam ligados a estes mundos: “por tudo isso é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão” (ibidem, 4:452). Existem, obviamente, grandes diferenças entre esta distinção e aquela feita por Aristóteles entre a alma racional e irracional (por exemplo, podemos considerar que a distinção feita pelo filósofo grego é mais psicológica, enquanto a kantiana seria ontológica ou gnosiológica). Ambas, no entanto, apontam para o fato de que tanto a concepção de Kant quanto a do estagirita se baseiam em uma dualidade da natureza humana, que pode ser entendida, grosso modo, como constituída por uma dimensão racional e uma irracional. Este fato tem uma grande importância para a aproximação que estamos fazendo, e nos será útil em diversas ocasiões.
149
3.2
Valor e ação moral na ética kantiana
A ética kantiana é conhecida por se basear, sobretudo, em uma concepção
do “certo”, a partir da centralidade da lei moral. É interessante observar, no
entanto, que a Fundamentação Metafísica dos Costumes, a primeira significativa e
talvez a mais importante obra do filósofo alemão sobre ética, se inicia com uma
discussão sobre o valor: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível
pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma coisa:
uma boa vontade (gute Wille)”.458
Nas linhas seguintes, o filósofo alemão comenta que tudo aquilo que
consideramos como tendo valor – qualidades de caráter, ou elementos ligados à
felicidade (mais uma vez associada ao “bem-estar”), como riqueza, honra, saúde
etc -, tudo isto só pode ser considerado “bom” se a vontade for boa. A boa
vontade, assim, seria a única coisa que possui valor em si mesma, sendo uma
condição para a atribuição de valor a qualquer outra coisa. 459 O que isto significa?
Kant atribui à Boa Vontade, inicialmente, duas propriedades: ela seria
ilimitada (ohne Einschränkung) e absoluta (Absolut). A primeira pode ser
entendida como incondicionalidade ou “não qualificação” - ou seja, todos os
outros bens só possuem valor em determinadas condições: os talentos do espírito e
os dons da fortuna, por exemplo, podem “desandar em soberba” e “tornar-se
muitíssimo maus” em algumas circunstâncias – Kant dá o exemplo da moderação
das emoções e das paixões, em geral louvada, mas execrável sob a forma do
sangue-frio de um facínora.460 Esta condicionalidade dos bens em geral se dá não
somente em termos das circunstâncias, mas também pelo fato de serem
considerados “bons” em função de sua contribuição para alguma finalidade, ao
passo que a boa vontade possui valor em si mesma. Isso é válido mesmo em
relação àquilo que tendemos a valorizar incondicionalmente, como a felicidade:
Kant afirma, de fato, que “um espectador razoável e imparcial” não pode apreciar
o êxito de uma pessoa que não possui boa vontade – ou, podemos interpretar, que
não merece esta felicidade (este ponto remete à questão da dignidade, de que
458 KANT, FMC 4:393. 459 KANT, FMC 4:393-394. Como diz Engstrom, isso significa que o valor de todas as coisas depende destas serem possíveis objetos de uma boa vontade (Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 105). 460 KANT, FMC 4:394.
150
falaremos mais adiante). A Boa Vontade, assim, seria o único bem incondicional,
portanto não qualificável.461 Isso a levaria a ser também a condição de tudo aquilo
que possui valor em si, ou seja, valor objetivo. Este aspecto está ligado à sua
ligação com a lei moral, que é, como veremos mais adiante, o que confere este
tipo de valor a alguma coisa.
O caráter “absoluto” da Boa Vontade significaria que ela é
incomparavelmente boa, isto é, seu valor é incomparavelmente superior ao de
todas as outras coisas. Como diz Rawls, “o valor da boa vontade excede todos os
outros valores, por maiores que estes sejam em seus próprios termos. As
pretensões superiores de uma boa vontade ultrapassam absolutamente as
pretensões de outros valores no caso de tais pretensões entrarem em conflito”.462
Isso implica que nada pode tirar ou diminuir este valor: daí a famosa afirmação de
Kant, segundo a qual se nada mais restasse de bom no mundo, ainda assim a Boa
Vontade “ficaria brilhando por si mesma como uma jóia, como alguma coisa que
em si mesma tem o seu pleno valor”.463 A nosso ver, estas duas propriedades – a
de ser incondicional e a de ser absoluta – estão ambas ligadas à idéia de que a Boa
Vontade possui valor em si mesma, sendo, neste sentido, complementares.
É interessante observar como o procedimento kantiano, aqui, se assemelha
ao de Aristóteles no início da Ética a Nicômaco: o filósofo grego, de fato, também
inicia sua análise com uma investigação sobre a natureza do bem, visando
determinar qual seria o único bem incondicional, a partir do qual tudo o mais
adquiriria seu valor.464 Vimos que este bem é a eudaimonia, conceito complexo
construído a partir, por um lado, daquilo que chamamos comumente de felicidade
– a satisfação de nossos desejos – e, por outro, daquilo que seria a “função” do
homem, o que permite a Aristóteles complementar a noção comum de felicidade
com a necessidade de agirmos de acordo com o bom exercício da razão. Esta
dupla dimensão da eudaimonia estaria ligada à dualidade da natureza humana, que
é irracional e racional. Também comentamos que, na concepção aristotélica, há
461 “Sob certas condições, qualquer um destes bens pode não ser bom. Mas há um outro tipo de valor que permanece bom em quaisquer condições. É o tipo especial de valor que uma pessoa pode ter. (...) O tipo especial de mérito que atribuímos a esta pessoa é o valor central para a moralidade. Ele é melhor entendido como o valor de uma boa vontade” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 325, tradução nossa). 462 RAWLS, 2005, p. 180. 463 KANT, FMC 4:394. 464 Cf. HERMAN, 1996, p. 209.
151
uma submissão da primeira em relação à segunda, ao contrário do que afirmam
muitos críticos do eudaimonismo, inclusive Kant.
O filósofo alemão também aceita esta dualidade da natureza humana – o
“eu” empírico e o numênico -, mas ao contrário do estagirita, não procura
harmonizar estas dimensões. Isto parece sugerir que sua concepção de bem
incondicional não deve ser substantiva, como a de aristotélica, mas sim puramente
formal. Em outras palavras, podemos nos perguntar em que medida a valorização
kantiana da pureza moral afeta sua concepção de Boa Vontade.
Kant parece considerar que o tipo peculiar de valor que possui a Boa
Vontade se deveria à ligação da gute Wille com a lei moral. De fato, na Crítica da
Razão Prática temos:
Ou um princípio racional é já concebido em si como o princípio determinante da vontade sem atender aos objetos (Objekte) possíveis da faculdade de desejar (portanto, simplesmente mediante a forma legal da máxima), e então este princípio é uma lei prática a priori e admite-se que a razão pura é prática por si. A lei determina então imediatamente a vontade, a ação conforme a lei é boa em si mesma; uma vontade, cuja máxima é sempre conforme a esta lei é boa absolutamente, em toda a intenção, e é a condição suprema de todo o bem.465
O valor incondicional da Boa Vontade, assim, parece derivar de sua
conformação à lei moral.466 Podemos compreender melhor este aspecto, a nosso
ver, se o associarmos à noção de valor dos fins, que discutimos no final do
capítulo anterior. Vimos que há uma importante distinção entre aqueles objetivos
que antecedem a regra prática – fins sensíveis ou subjetivos, visados pelo desejo
empírico, como ocorre nos imperativos hipotéticos – e aqueles que são
determinados a partir do princípio formal da razão, ou seja, da lei moral – fins
racionais ou objetivos, como ocorre nos imperativos categóricos. Kant chama os
primeiros de Wohl e Weh – que podemos traduzir, grosso modo, como “bem-
estar” e “dor”, ligados à felicidade -, e os últimos de Gut e Böse, que seriam o
465 KANT, CRPr 5:62. Mais adiante, o filósofo alemão acrescenta: o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (à qual, na aparência, ela deveria servir de fundamento), mas apenas (como também aqui acontece) segundo ela e por ela (ibidem, 5:62-63). 466 Como comentamos anteriormente, esta caracterização só funciona, por assim dizer, se considerarmos a “vontade”, aqui, como o conjunto formado por Wille e Willkür: podemos considerar, de fato, que a máxima subjetiva do agente é fruto de sua escolha em agir (daí esta máxima poder ser considerada como o princípio pelo qual o indivíduo efetivamente age). Como veremos mais adiante, a Boa Vontade se “expressa” em máximas que possuem a forma da lei, ou seja, que foram escolhidas de acordo com a Lei Moral. Isso significa dizer que estas máximas expressam o comprometimento da Willkür em seguir o princípio formal de volição – ou, ainda, que expressam a determinação da Willkür pela Wille.
152
bom e o mau considerados em si mesmos.467 A partir desta associação, e possível
compreender a incondicionalidade da Boa Vontade a partir da necessidade da lei
moral: de fato, os bens ligados à felicidade são sempre condicionados, pois tudo o
que é empírico é, para Kant, contingente. Somente o princípio formal a priori
possui a necessidade da lei, daí, justamente, o valor determinado por este princípio
ser incondicional.468 Como diz Johnson,
As propriedades de alguma coisa que a fazem boa são aquelas propriedades que determinam a vontade por meio das representações da razão. Por ‘representações da razão’ Kant está se referindo aos princípios práticos. (...) Assim, ser bom no sentido pelo qual a boa vontade é boa é ser o objeto de uma vontade racional. Mais ainda, é ser o objeto necessário de uma vontade racional.469
A necessidade da lei moral, assim, confere à Boa Vontade um valor “sem
qualificação”, ou seja, que independe das circunstâncias (portanto das
“condições”, e, sobretudo, das conseqüências da ação):470
O valor de uma coisa é qualificado somente no caso de podermos imaginar alguma circunstância em que ela não é boa. (...) Kant nega que se possa imaginar uma boa vontade sem valor. (...) Desta forma, se alguma coisa é boa sem qualificação, é impossível ela não ser boa, ela é necessariamente boa. A tese de Kant parece ser, primeiro, que é possível haver algo que é necessariamente bom, e segundo, que a única coisa que tem esta propriedade é a boa vontade.471
O valor absoluto da Boa Vontade, assim, deriva de sua conformação à lei
moral – esta pode ser, mesmo, considerada sua definição: na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, Kant comenta que o verdadeiro destino da razão prática
– enquanto faculdade que deve exercer influência sobre a vontade – é o de
467 KANT, CRPr 5:62. Em outro trecho, temos: “assim como a lei moral é princípio formal de determinação da ação, mediante a razão pura prática, assim também ela é, sem dúvida, princípio material, mas unicamente objetivo, de determinação dos objetos da ação sob o nome de bem e de mal” (ibidem, 5:75). 468 “Não é o conceito de bem, como um objeto (Gegenstand), que determina e torna possível a lei moral, mas inversamente, é a lei moral que determina e torna possível acima de tudo o conceito de bem, na medida em que ele merece absolutamente este nome” (KANT, CRPr 5:64 (grifo nosso)). Mais adiante, temos: “os conceitos do bem e do mal (Gut und Böse) determinam para a vontade, em primeiro lugar, um objeto (Objekt). Mas em si mesmos estão submetidos a uma regra prática da razão que, se ela é razão pura, determina a vontade a priori quanto ao seu objeto (Gegenstand)” (ibidem, 5:67). 469 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 25-26, tradução nossa. Herman comenta, neste sentido, que a Boa Vontade é incondicionalmente boa e é boa em função de seus princípio de volição, e portanto o único princípio que poderia ser de uma boa vontade é o imperativo categórico (HERMAN, 1996, p. 237). 470 Na Crítica da Razão Prática, Kant deixa claro, de fato, que o valor moral da ação não depende das conseqüências da ação: “as leis práticas relacionam-se unicamente com a vontade, sem atender ao que é levado a cabo pela sua causalidade e pode abstrair-se da última (como pertencente ao mundo dos sentidos) para as ter puras” (KANT, CRPr 5:21). 471 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 28, tradução nossa.
153
produzir uma vontade boa em si mesma,472 o que dá a entender que a vontade
“boa”, em um sentido absoluto, é aquela plenamente determinada pela lei prática.
Podemos considerar que não se trata de uma definição formal - Rawls comenta,
neste sentido, que o conceito de Boa Vontade não chega a ser definido, mas sim
inferido a partir da diferença com aquilo que é bom condicionalmente -,473 mas a
descrição deste conceito na Fundamentação e na segunda Critica deixam claro, a
nosso ver, que ele deve ser entendido desta forma. É assim que, segundo Onora
O’Neill. “a bondade [goodness] de uma boa vontade repousa em sua rejeição de
motivos empíricos e da heteronomia, em sua conformidade à lei moral como é
formulada pelo Imperativo Categórico”,474 enquanto para Herman “boa vontade é
vontade em conformidade com os princípios da racionalidade prática”.475 Robert
Johnson descreve, justamente, como é possível compreender a Boa Vontade a
partir da definição de vontade:
Como a vontade nos seres humanos é o poder de escolha baseado em princípios, dizer que uma vontade é boa é dizer que uma disposição em exercer este poder de uma certa maneira é boa. Trata-se de uma disposição de adotar, e agir a partir, do tipo correto de plano [policies]. E o tipo correto para Kant são as leis práticas, que poderiam ser aquelas de qualquer agente racional.476
A compreensão da Boa Vontade como uma vontade determinada pela lei
moral levará àquilo que Rawls chama de “prioridade do justo”, que seria, segundo
o comentador americano, uma das mais importantes características da ética
kantiana.477 Citando, mais uma vez, O’Neill:
Se a ética pudesse ser heterônoma, se ela pudesse ser baseada nos desejos humanos ou preferências, então o bem, neste sentido de útil ou agradável, seria anterior à obrigação. Esta é a hipótese das teorias éticas utilitaristas. Mas como a ética não pode ser heterônoma, não podemos formar um conceito determinado do bem moral sem referência à lei moral. (...) Assim, a lei moral é anterior ao bem moral, pois é somente a lei moral que pode determinar a vontade a priori. Não devemos ser confundidos pela primeira parte da Fundamentação, onde Kant parece tomar o conceito de uma Boa Vontade como o conceito ético fundamental.
472 KANT, FMC 4:396. 473 RAWLS, 2005, p. 177. 474 O’NEILL, 1975, p. 112. 475 HERMAN, 1996, p. 216. 476 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 24, tradução nossa. A descrição que Jonhson faz da “vontade” é interessante, pois remete ao problema que havíamos comentado anteriormente, de saber se esta noção, em Kant, se referiria somente à instância legisladora Wille, ou também ao poder de escolha Willkür. Um “poder de escolha baseado em princípios” corresponderia, podemos considerar, à Willkür enquanto determinada pela Wille. É isto, a nosso ver, que Kant chama de “boa vontade”. 477 RAWLS, 2005, p. 160; p. 281. Cf. idem, p. 313: “o conceito de bem e mal deve ser determinado não antes da lei moral, mas somente depois e por meio dela”.
154
Isto é feito apenas para mostrar que o conceito de Boa Vontade só pode ser explicado em termos da lei moral. A lei moral, como é formulada nas várias formas do Imperativo Categórico, é o princípio ético fundamental, e em ética princípios são anteriores a conceitos. A lei moral é anterior à noção de um ato moralmente bom, e este é o único conceito de bem que tem algum lugar na ética.478
Podemos aqui, mais uma vez, realizar uma comparação com Aristóteles:
vimos que o conceito de eudaimonia é elaborado a partir de duas noções
diferentes de “bem”, enquanto fins de nossas ações e enquanto a realização da
função de algo – esta última estabeleceria a centralidade da concepção do “justo”
como a regra reta, fruto do bom exercício da razão. Se considerarmos a relação
desta concepção com a primeira formulação de bem – o objeto do desejo -, então é
possível afirmar que na ética aristotélica também há a prioridade do justo, pois,
conforme comentamos diversas vezes, para o estagirita nossos desejos é que
devem ouvir e se conformar à alma racional, e não o contrário. Se considerarmos
o “bem” enquanto função de algo, então parece haver, à primeira vista, uma
anterioridade do “valor” em relação ao “justo”. Este aspecto, no entanto, não
chega realmente a afetar o tema de nossa tese, por dois motivos: primeiro, nosso
objetivo é analisar a estrutura das éticas de Kant e Aristóteles a partir da relação
entre a prescritividade da razão prática, a virtude e o valor moral da ação. Como
dissemos anteriormente, nosso ponto de partida é a ligação intrínseca entre razão e
moral nos dois autores, ainda que a justificação desta ligação possa ser diferente –
em Aristóteles o argumento do érgon, que envolve uma concepção de “Bem”, e
em Kant a necessidade de se seguir o caminho seguro da ciência, associado à
visão de senso comum da moral.
Em segundo lugar, existem diversos autores que criticam a tese da
“prioridade do justo”, considerando que a concepção de valor, em Kant, é
inseparável ou mesmo anterior ao justo.479 Um bom exemplo deste tipo de
interpretação pode ser encontrado na obra de Barbara Herman: em The Practice of
Moral Judgment, a autora americana contesta a visão tradicional segundo a qual
478 O’NEILL, 1975, p. 101, tradução nossa. 479 Onora O’Neill cita como exemplo destes autores H. A. Prichard e D. Ross (O’NEILL, 1975, p. 97). A própria autora americana considera, após afirmar, como vimos acima, que o princípio da lei moral é anterior ao conceito de Boa Vontade, que isso não implica que o conceito de obrigação seja anterior ao de valor moral: “Dizer que a lei moral determina o que tem valor moral não quer dizer que o conceito de um ato obrigatório é anterior ao de uma ação moralmente boa ou com valor moral. Ambos estes conceitos são dependentes de maneiras complexas da lei moral, mas não idênticas a ela” (ibidem, p. 101, tradução nossa).
155
“o valor da Boa Vontade é uma questão secundária ou derivada de motivação,
uma função de conexão para anteriores e independentes princípios do certo”.480 A
posição de Herman é muito complexa para a expormos aqui em detalhes, mas a
idéia básica parece ser a de que o conceito de “obrigação” só faz sentido se
envolver uma concepção de valor,481 e, portanto, os requerimentos da razão
prática podem ser entendidos nestes termos.482 Sua argumentação envolve a
valorização da natureza humana racional, vista por Kant como um fim em si
mesma, assunto ao qual voltaremos mais adiante. De qualquer forma, a partir dos
autores que acabamos de citar, podemos considerar que a “prioridade do justo” é
óbvia se considerarmos o bem heterônomo, fim visado pelas ações, mas não é tão
óbvia se considerarmos bens incondicionais como a Boa Vontade. De fato, vimos
que a lei moral é intrínseca à faculdade da razão, e, portanto, pode ser ligada ao
“bom funcionamento” desta faculdade, de forma semelhante ao érgon aristotélico.
Ora, o bom funcionamento já implica em um juízo de valor. Como dissemos,
voltaremos a este assunto mais adiante, ao falar da natureza racional como um fim
em si mesma, mas sem nos aprofundarmos muito, pois, como também já
comentamos, este ponto não chega a afetar o tema central de nossa tese.
Podemos, agora, retomar nossa linha principal de análise. O objetivo deste
capítulo consiste em investigar o valor moral das ações na ética kantiana. Vimos
que a Boa Vontade é para Kant um bem incondicional por ser determinada pela lei
moral, que possui uma necessidade a priori. A Boa Vontade também seria a
condição do valor de todas as demais coisas. Como compreender, a partir daí, a
relação entre a Boa Vontade e o valor das ações?
480 HERMAN, 1996, p. 208. 481 “A partir do momento em que a razão prática é o princípio de obrigação, ela é e precisa ser uma concepção de valor” (HERMAN, 1996, p. 239, tradução nossa). 482 “Podemos entender os requerimentos formais da razão prática como concepções de valor” (HERMAN, 1996, p. 239, tradução nossa). Roberto Johnson tenta explicar a posição de Herman da seguinte maneira: “a idéia básica é que você precisa ser capaz de dizer por que se conformar a alguma regra se esta regra deve guiar suas deliberações e decisões. (...) Na visão de Herman, toda a questão do ‘dever’ na ética de Kant está na verdade baseada em uma concepção de valor, que é a concepção de boa vontade (e a noção relacionada da humanidade nas pessoas). (...) Herman quer saber por que se conformar a princípios racionais é bom, por que a própria racionalidade é um valor. Eu só posso pensar que esta deve ser a questão Por que devemos ser racionais? Assim, se Kant sustenta que nós devemos nos conformar ao Imperativo Categórico porque este é um requerimento da racionalidade, nós agora precisamos saber qual é a razão para sermos racionais – por que é bom ser racional. (...) então nós precisamos de alguma forma entender ‘ser racional’ como um valor intrínseco. Isto precisa, como a eudaimonia faz na teoria aristotélica, pôr termo a questões sobre o ponto ou propósito da ação. Se não tivermos este ponto-final da deliberação, ela acha, não seremos capazes de resolver conflitos deliberativos” (Robert N. Johnson, “Was Kant a Virtue Ethicist?”, in BETZLER, 2008, p. 71-73, tradução nossa).
156
Em primeiro lugar, é preciso compreender o que Kant chama de “ação” -
este é um ponto, chamado pelos comentadores, de “problema da descrição das
ações” (action-description problem), ou seja, como achar o método para
determinar a única e correta descrição do agir.483 Podemos considerar que a
máxima é, justamente, a solução encontrada por Kant para resolver este
problema.484 Mas o que significa dizer que a máxima “descreve” a ação? Como
diz Christine Korsgaard, isto significa, primeiramente, distingui-la do simples ato:
este último, de fato, consiste naquilo que fazemos para atingir um determinado
fim, enquanto a “ação” possui um espectro mais amplo, englobando toda a
estrutura descrita na máxima, que é, como vimos anteriormente, “realizar-este-
ato-para-obter-este-fim”. Isto significa, portanto, que o fim não deve ser visto
como algo separado da ação, mas está incluído nela.485
Korsgaard aplica esta noção não somente a Kant, mas também a
Aristóteles: na parte 1, de fato, havíamos visto que o filósofo grego distingue a
“ação” da “produção” em termos da relação com o fim: “Enquanto produzir tem
uma finalidade diferente do próprio ato de produzir, o mesmo não ocorre com o
agir, pois a finalidade da ação está na própria ação”.486 Segundo Korsgaard, dizer
que o fim da ação está nela própria significa dizer, justamente, que o que
chamamos de “agir” não é o simples ato, mas todo o processo:
O que corresponde na teoria de Aristóteles à descrição de uma ação é o que ele chama de logos – como eu interpretarei, um princípio. Uma boa ação é aquela que incorpora o orthos logos ou principio reto: ela é feita no momento certo, da maneira certa, em relação ao objeto certo, e – importante para meus propósitos – com o objetivo certo. (...) A chave para entender a visão de Aristóteles é que o objetivo está incluído na descrição da ação, e que é a ação como um todo, incluindo o objetivo, que o agente escolhe. 487
Korsgaard considera que este aspecto é comum, justamente, a Kant e
Aristóteles: “isto significa que a visão de Aristóteles da natureza da ação é a
mesma de Kant. Kant pensa que uma ação é descrita por uma máxima, e a
máxima de uma ação também tem a estrutura ‘fazer-isso-para-atingir-este-
fim’”; 488 “a visão de que ações – atos-visando-fins [acts-for-the-sake-of-ends] –
483 HERMAN, 1996, p. 218. 484 O’NEILL, 1975, p.41. 485 KORSGAARD, 2008, p. 217-218. 486 ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b6]. 487 KORSGAARD, 2008, p. 217, tradução nossa. 488 KORSGAARD, 2008, p. 218, tradução nossa.
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são objetos da escolha e também portadores de valor moral separam Aristóteles e
Kant de muito filósofos morais contemporâneos”.489
Na parte 1, vimos, efetivamente, que para Kant as ações descritas nas
máximas são propostas pelos incentivos e então “escolhidas” a partir de dois
princípios básicos de volição, o material – amor próprio – e o formal – a lei moral.
O valor de uma ação está diretamente ligado a este aspecto: podemos considerar,
de fato, que “escolher” uma ação significa considerá-la “boa”. Como diz Herman,
“máximas de ação expressam o que um agente quer: sua ação e intenção
compreendidas como sendo boas e escolhidas por serem boas”.490 Podemos nos
perguntar, obviamente, se as ações são boas por serem escolhidas, ou, ao
contrário, são escolhidas por serem boas. A resposta a esta pergunta remete à
diferença entre o bom subjetivo e o bom objetivo: como vimos anteriormente, a
diferença entre o “fim” da ação, no caso do imperativo hipotético e do imperativo
categórico, está no fato de que no primeiro o fim é anterior à regra prática,
enquanto no segundo o fim é posterior à lei moral e determinado por ela. Podemos
considerar que, no imperativo hipotético, o fim é colocado subjetivamente como
sendo “bom” (devido à sua relação com o amor-próprio, isto é, com a felicidade),
e então os meios são escolhidos. No caso do imperativo categórico, o fim é
colocado como objetivamente bom por ser determinado pela lei moral; observe-se
que, neste caso, não são apenas os meios, mas toda a ação, ato-visando-fim, que é
escolhida, e, portanto, considerada “boa”. Neste sentido é que, como diz Kant, no
imperativo categórico a ação é considerada boa em si mesma, enquanto no
hipotético ela é boa condicionalmente, isto é, para outra coisa.491
É interessante observar como este aspecto também pode ser associado a
Aristóteles: como comenta, mais uma vez, Korsgaard, na ética aristotélica o que
confere valor moral à ação é a maneira pela qual ela é escolhida.492 Vimos, de
fato, que a ação moral é aquela que é escolhida em função da regra reta, o que
significa dizer que esta escolha se baseia em determinadas características
intrínsecas ao próprio agir.493 Percebemos, mais uma vez, como é simplista
489 KORSGAARD, 2008, p. 219, tradução nossa. 490 HERMAN, 1996, p. 217, tradução nossa. 491 KANT, FMC 4:414. 492 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 213. 493 “Ambos os filósofos [Kant e Aristóteles], eu argumentarei, acreditam que o que confere valor moral a uma ação é o fato dela ser escolhida por sua correção intrínseca” (Christine M. Korsgaard,
158
acreditar que a escolha se refere somente aos meios, embora o estagirita de fato
afirme isso: o fim é colocado pelo desejo, e estão escolhemos os meios – porém, a
razão é capaz, para Aristóteles, de não realizar uma ação que o agente não
reconhece como nobre. Daí, justamente, o fenômeno da continência. Desta forma,
podemos considerar que aquilo que é “escolhido” não são apenas os meios, mas a
ação como um todo, ou seja, “este-ato(meios)-para-atingir-este-fim-nestas-
circunstâncias”. Se este conjunto não possuir intrinsecamente a propriedade
formal da mediania, a ação não será escolhida e realizada. Em suma, a razão
aristotélica não pode determinar ou “sugerir” fins (como pode a kantiana), mas
pode decidir acatar ou não os fins sugeridos pelo desejo (e, portanto, neste
sentido, “escolhê-los”). Vimos que há todo um processo de racionalização das
inclinações, que as levam a visar objetivos que atendem a estas condições,
permitindo, assim, que a razão os escolha por sua “nobreza” ou “beleza”. Daí as
virtudes serem definidas como “disposições de caráter relacionadas com a
escolha”. Daí, da mesma forma, a afirmação de Aristóteles de que as ações são
escolhidas por si mesmas, e não por aquilo que “produzem”. A diferença
fundamental com Kant é a de que para o filósofo alemão os fins podem ser
determinados de maneira puramente formal (consistindo assim na matéria da
ação), enquanto para Aristóteles o fim é substantivo, fruto de uma harmonização
do material com o formal. No entanto, podemos considerar que, no caso do fim
“objetivo”, visado pelo homem virtuoso, o que torna a ação “boa” são
propriedades formais que lhe são intrínsecas, assim como em Kant.
Que propriedades seriam estas na ética kantiana? Sabemos que trata-se da
“forma” da ação, ou seja, a maneira pela qual os elementos contidos na máxima se
relacionam entre si. Como diz novamente Korsgaard, “a questão de Kant é se o
ato e o fim são dispostos, ou relacionados um ao outro, de maneira que a máxima
possa funcionar como uma lei”.494 Esta propriedade intrínseca – a forma da lei,
que permite, como veremos mais adiante, que a máxima seja universalizada –, é
que conferiria valor moral à ação.
A propriedade de ser bom [the goodness] não repousa nas partes, mas sim na maneira pela qual as partes são combinadas e relacionadas; assim esta propriedade não repousa na matéria, mas sim na forma, da máxima. Se o ato e o propósito estão relacionados um ao outro de maneira que a máxima possa ser
“From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 205, tradução nossa). 494 KORSGAARD, 2009, p. 15, tradução nossa.
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querida como uma lei universal, então a máxima é boa.495
A maneira pela qual o “bom” e o “justo” se relacionam, assim, pode ser
descrita desta maneira: o princípio formal, que estabelece o justo, confere à ação
uma propriedade intrínseca – uma forma - que a torna “boa”, possuindo valor
moral. Esta forma é a da lei, ou seja, da necessidade incondicional. Esta
necessidade está ligada, obviamente, à justificação racional da ação: como diz
Herman, “escolhas e razões de escolher são boas somente se forem
justificadas”.496 Mais adiante, acrescenta que “escolhas (e, portanto, ações), são
justificadas – ou seja, boas -, somente no caso de nossas intenções [willings]
satisfizerem as condições expressas nos princípios da racionalidade prática”.497
Estes princípios, como vimos, correspondem aos imperativos hipotético e
categórico. No primeiro caso, trata-se de uma justificativa – e, portanto, de um
valor – condicionados, e somente no último caso temos uma justificativa e um
valor incondicionais.
Nossas escolhas, assim, ao se basearem nos princípios da racionalidade
prática, conferem valor à ação: “para Wood, ‘a propriedade de ser bom de
qualquer fim consiste no fato de ser um objeto de escolha racional’. A escolha
racional se torna então aquilo que Korsgaard chama de ‘propriedade conferidora
de valor’”.498 Isso significa, portanto, que o valor moral da ação, na ética
kantiana, provém desta ser determinada pelo princípio formal de volição, ou seja,
pela lei moral.499 Esta é a conclusão central à qual queríamos chegar neste
capítulo. A partir de agora, iremos explorar algumas conseqüências desta tese, e
outros temas relacionados.
A primeira coisa que nos cabe analisar é a relação entre o valor
incondicional da ação moral e o valor absoluto da Boa Vontade, já que, como
vimos, esta última é a condição de todos os demais valores. A chave desta relação
495 KORSGAARD, 2009, p. 16, tradução nossa. 496 HERMAN, 1996, p. 214, tradução nossa. Em outro trecho, a autora comenta que “vontades só podem ser boas se tiverem uma certa forma. Nossas vontades são justificadas somente se tiverem uma forma que todos os seres racionais podem adotar” ( ibidem, p. 232, tradução nossa). 497 HERMAN, 1996, P. 214, tradução nossa. 498 Jennifer Whiting, “Self-Love and Authoritative Virtue: Prolegomenon to a Kantian Reading of Eudemian Ethics viii 3”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 162. A autora dá, como fonte das citações de Wood e Korsgaard, respectivamente, “The Dignity of Rational Nature” (não-publicado na época), e “Kant’s Formula of Humanity”, in Kant-Studien 77 (1986), p. 181-202. 499 Na Crítica da Razão Prática, temos: “o essencial de todo o valor moral das ações depende de que a lei moral determina imediatamente a vontade” (KANT, CRPr 5:71).
160
está no fato da máxima poder ser compreendida como a expressão de uma
intenção, ou seja, de uma vontade. De fato, dizer que a máxima é o “princípio
subjetivo” do agente, segundo o qual ele efetivamente age, significa dizer que a
máxima expressaria sua intenção (Absicht) em agir daquela maneira (ou seja,
realizar aquele ato por aqueles motivos para atingir aquele fim).
Uma máxima é um princípio que, na terminologia de Kant, expressa uma determinação do poder de escolha. Dizer que o poder de escolha de um agente é determinado é simplesmente dizer que ele tem a intenção de realizar um tipo específico de ato ou perseguir um fim especifico em alguma situação. Se um agente tem a máxima ‘fazer A se B’, então ele tem a intenção de fazer A se B.500
A intenção pode ser entendida, portanto, como uma volição no sentido
subjetivo do termo, ou seja, como o “querer” do agente. A máxima, assim, por um
lado descreve a ação, e por outro expressa a intencionalidade; podemos, então,
afirmar que a máxima é “a expressão da vontade do agente através da descrição de
uma ação”, ou ainda que ela “descreve a ação enquanto intencionada pelo agente”.
O que nos importa assinalar, aqui, é que através da máxima há uma relação entre a
intenção e forma da ação. A segunda, enquanto descrita na máxima, expressa um
determinado “tipo” da primeira.
Podemos agora nos perguntar que tipo de volição estaria implicada em
uma ação que possui a forma da lei. A resposta é que trata-se de uma intenção
“pura” (no sentido kantiano, ou seja, que prescinde de elementos empíricos), que
pode ser associado à Boa Vontade. Como diz O’Neill, “Agir por reverência à lei é
agir de acordo com máximas que atendem ao requerimento do Imperativo
Categórico. (...) Ter o tipo de intenção que atende a este descrição é ter o que Kant
500 O’NEILL, 1975, p. 40. Rawls comenta, neste sentido, que a máxima, em sua primeira formulação (enquanto “imperativo hipotético particular”), expressa a intenção pessoal do agente de agir segundo a máxima (RAWLS, 2005, p. 194). Este ponto está diretamente ligado ao problema, que já comentamos, de como descrever adequadamente a ação. Neste sentido, há uma discussão, entre os comentadores, sobre que intenção, exatamente, é expressa na máxima: como diz Herman, “máximas têm sido identificadas ou com a ‘intenção específica’ de agir ou com ‘intenções implícitas’ e ‘regras de vida’ (Lebensregeln)” (HERMAN, 1996, p. 219). Em Constructions of Reason, Onora O’Neill aborda longamente este tema, defendendo a tese de que é preciso distinguir a intenção “principal”, expressa pela máxima, e as intenções secundárias, derivadas da principal: “máximas são estes princípios implícitos ou intenções pelas quais nós guiamos e controlamos nossas intenções mais específicas” (O’NEILL, 1995, p. 84; Cf. ibidem, p. 98). As secundárias seriam necessárias para a realização da principal: por exemplo, a máxima “devo ir ao aniversário de minha sobrinha” implica nas intenções mais específicas “ir até o carro”, “comprar um presente” etc. Esta visão de que a ação é resultado de uma “rede de intenções” (ibidem, p. 92) será importante quando falarmos, mais adiante, da “consistência” da máxima, que seria testada no procedimento de universalização do Imperativo Categórico.
161
chama de Boa Vontade”.501 Rawls comenta, neste sentido, que a Boa Vontade
pode ser entendida como um “interesse prático puro, que nos leva a ter interesse
em agir segundo o dever”.502 Havíamos visto, de fato, que para Kant o respeito
pela lei moral seria um incentivo formal, portanto puro. De forma similar, a
intenção de agir de acordo com a lei moral seria uma intenção pura ou formal, que
caracterizaria uma Boa Vontade (que possuiria um valor incondicional, como
vimos, exatamente devido a esta relação com a lei moral). Esta intenção se
expressaria em uma máxima com a forma da lei, que descreve, como vimos, as
ações com valor moral.503 Este aspecto está ligado, conforme já comentamos, à
justificação racional, que é, na ética kantiana, a fonte de todo valor, inclusive o da
Boa Vontade: como diz Herman, esta última é “a condição de toda ação e escolha
justificadas”, e pode ser encontrada “somente em máximas que têm a forma de
leis universais”.504
Esta ênfase na intencionalidade é uma importante característica da ética
kantiana, levando-a a ser chamada, por muitos autores, de “internalista”. Como
diz Herman, “a ética kantiana é uma teria moral baseada na intenção ou volição. O
objeto de avaliação moral não são eventos ou estados de coisas, mas intenções
[willings] (ou ações intencionadas). Coisas que acontecem não são em si mesmas
boas ou más, certas ou erradas: apenas intenções são”.505 Este aspecto está
diretamente ligado à famosa distinção, feita por Kant, entre ações realizadas “por
501 O’NEILL, 1975, p. 104, tradução nossa. Mais adiante, a autora comenta que as ações com valor moral “realizam” a Boa Vontade (ibidem, p. 117). 502 RAWLS, 2005, p. 256. Como diz Hill, “uma boa vontade se expressa somente em atos por dever” (Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 35, tradução nossa).; mais adiante, temos: “atos com valor moral manifestam uma boa vontade na ação” (ibidem, p. 36, tradução nossa). 503 “o valor moral é uma expressão da Boa Vontade em nossas ações” (HERMAN, 1996, p. 35, tradução nossa). Em outro trecho, a autora comenta que “a propriedade de ‘bom’ [the goodness] da boa vontade está em suas volições [willings, que também podemos traduzir por “intenções”], não nos efeitos que produz; (...) a ‘bondade’ na intenção deriva da relação da vontade (através de seus princípios) com a razão prática” (ibidem, p. 213, tradução nossa). Cf. O’NEILL, 1975, p. 119, tradução nossa: “O valor moral é associado a atos por causa dos motivos ou intenções [intentions] pelos quais eles são feitos, e não (ou não somente) por causa de seu status deôntico ou seus resultados”. 504 HERMAN, 1996, p. 154, tradução nossa. Cf. ibidem, p. 214, tradução nossa: “ações são boas por causa da maneira pela qual são intencionadas”. 505 HERMAN, 1996, p. 95, tradução nossa. Cf. ibidem, p. 104, tradução nossa: “o objeto de avaliação moral é uma volição (enquanto expressa em uma máxima)”. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant chega a comentar que “o essencialmente bom na ação reside na disposição, seja qual for o resultado” (KANT, FMC 4:416). Numa nota, o tradutor da versão em português comenta que o termo Gesinnung, traduzido por ele como “disposição”, é traduzido por outros autores, sobretudo franceses, como Delbos e Lachelier, como intention, “intenção”. Cf. O’NEILL, 1975, p. 119, tradução nossa: “a teoria de Kant confere valor moral às ações em virtude da intenção [intention] com a qual são feitas”.
162
dever” (aus Pflicht) e “conforme o dever” (pflichtmässig). Na Crítica da Razão
Prática, temos:
Objetivamente, o conceito de dever exige, pois, na ação a conformidade com a lei, mas subjetivamente, na máxima desta mesma ação, o respeito pela lei enquanto modo único de determinação da vontade pela mesma. E aí se baseia a diferença entre a consciência de ter agido em conformidade com o dever e por dever, isto é, a partir do respeito pela lei; o primeiro caso (a legalidade) é também possível, se as inclinações tivessem sido unicamente os princípios determinantes da vontade, mas o segundo (a moralidade), o valor moral, deve exclusivamente situar-se o fato de a ação ter lugar a partir do dever, isto é, somente por mor da lei.506
As ações feitas “por dever”, assim, são aquelas realizadas pelo puro
respeito pela lei. Conforme já havíamos assinalado, somente estas possuem valor
moral para Kant. O que estamos acrescentando, agora, é a importância da
dimensão interna da “intenção”, que reflete, podemos considerar, a determinação
interna da vontade pelo princípio formal de volição. Na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, o filósofo alemão fornece vários exemplos da distinção
entre “por” e “conforme” o dever: um merceeiro que mantém os preços fixos,
independentemente de os compradores serem muitos ou inexperientes, realiza
uma ação que está de acordo com o dever; ele pode, no entanto, estar fazendo isso
por interesse próprio, ou seja, de acordo com seus desejos e inclinações, visando
sua felicidade pessoal. Neste caso, sua ação não possuirá realmente valor moral,
pois isto só ocorre quando ela é feita a partir do incentivo formal do respeito pela
lei moral, gerado uma máxima que expressa uma intenção pura, ou seja, a Boa
Vontade.507 Outros exemplos dados por Kant são o suicídio (preservar a própria
vida é um dever, mas a maioria das pessoas o faz por conta de uma inclinação
natural), e o famoso exemplo do filantropo, que ajuda os outros devido à
disposição compassiva de sua alma (que o leva a ter um “íntimo prazer” em
espalhar a alegria à sua volta e se alegrar com o contentamento dos outros). Mais
506 KANT, CRPr 5:81. Mais adiante, o filósofo alemão faz um comentário que deixa claro a importância da noção de “intenção”: “não deve admitir-se para móbil um outro princípio subjetivo [além do respeito pela lei] porque, de outro modo, a ação pode certamente ter um resultado como a lei prescreve mas, visto que ela é, sem dúvida, conforme ao dever, não ocorrendo, porém, por dever, então a intenção (Gesinnung) que, apesar de tudo, é o que verdadeiramente importa nesta legislação, não é moral” (ibidem, 5:82, ênfase nossa). 507 KANT, FMC 4:397. Como diz Johnson, ações realizadas por inclinação não têm valor moral porque é somente por acidente que se conformam ao dever (Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 40-41). Mais adiante, o autor comenta que “os princípios que motivam o merceeiro, o filantropo, e por aí adiante, não são princípios que sustentam uma escolha incondicionalmente e intrinsecamente boa” (ibidem, p. 41, tradução nossa).
163
uma vez, o autor argumenta que esta tendência, por mais louvável que possa
parecer, não possui valor moral, a não ser que seja feita por dever, ou seja, a partir
do princípio formal de volição, e não do material.
A noção de “intenção”, assim, reforça a tese de que o valor moral da ação
deriva da determinação da vontade pela lei moral: não basta que a ação possua
uma forma externa de acordo com o dever, é preciso que ela seja internamente
determinada por ele (ou seja, é preciso que nossa vontade seja determinada pela
lei moral). Daí, justamente, a idéia de que a máxima expressa esta dimensão
interna: de fato, as máximas de uma ação feita por amor próprio e por dever serão
diferentes, ainda que o ato pareça ser o mesmo.508 Como já dissemos, esta pode
ser considerada a solução kantiana para o “problema da descrição das ações”, e
esta solução se apoiaria na tese de que esta descrição deve levar em conta a
dimensão volitiva da intenção, que se expressa na forma da máxima (como
veremos mais adiante, esta, para possuir valor moral, deve ter uma forma que
possa se tornar uma lei universal). 509
Como comenta Johnson, Kant parece acreditar que as ações
“exemplificam” ou “expressam” os princípios que as motivam.510 O comentador
americano passa um certo tempo analisando o que isto significa: ações realizadas
a partir de um principio remetem a ele, pelo fato de terem sido escolhidas a partir 508 Podemos considerar que esta diferença aparece, sobretudo, na medida em que a máxima expressa o motivo da ação, relacionado ao seu fim (este motivo não fica claro necessariamente, pois as máximas podem ter versões mais ou menos estendidas e elaboradas). Por exemplo, “devo falar a verdade se quiser agradar os outros”, ou “devo falar a verdade para cumprir o meu dever”. Outro aspecto a ser levado em conta é a relação entre máximas principais e secundárias: o motivo da particular está ligado àquela máxima mais geral, mas isso pode não ficar claro se levarmos em conta apenas a particular. Por exemplo, “devo pegar o táxi para ir à estação de trem” pode se inserir dentro de uma ação moral mais ampla, como a de confessar a verdade a alguém que está em outra cidade. Como dissemos, assim, em princípio máximas baseadas no amor próprio serão diferentes daquelas baseadas na lei moral, mas é preciso levar em conta a complexidade da descrição das ações pelas máximas. A diferença entre os dois tipos pode só transparecer quando estas são submetidas aos “testes” relativos ao procedimento do Imperativo Categórico, como veremos no capitulo seguinte. 509 “Quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas de seus princípios íntimos que não se vêem” (KANT, FMC 4:407). Cf. idem, CRPr 5:159: “o outro ponto, para o qual se deve dirigir a atenção, é a questão de se a ação, também (subjetivamente), tem lugar em virtude da lei moral e, portanto, se tem, segundo a sua máxima, não só retidão moral, enquanto ato, mas também valor moral, como intenção”. Como diz Herman, “o que o valor moral expressa é a relação de um motivo com uma ação (através de sua máxima)” (HERMAN, 1996, p. 13, tradução nossa). 510 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 43. O comentador americano cita, como exemplo desta posição, a passagem da Crítica da Razão Prática em que Kant se refere à reverência ou estima por alguém pelo fato desta pessoa exemplificar a lei moral: “se se examina atentamente o conceito do respeito pelas pessoas, tal como foi anteriormente exposto, perceber-se-á que ele se baseia sempre na consciência de um dever que um exemplo nos apresenta” (KANT, CRPr 5:81 (nota do autor)).
164
dele, e, neste sentido, o “exemplificam”. A intenção exerceria um papel
importante nesta referência:
Intencionar [willing] uma ação que se conforma a um princípio, baseando-se neste mesmo princípio ao qual se conforma, remete [refers] ao princípio. O agente intenciona [intends] que sua ação se conforme ao princípio, e esta intenção faz da ação um exemplo do princípio. Esta referência ao princípio está ausente quando a ação não está motivada e justificada pelo princípio ao qual se conforma. Como ações não podem ser literalmente exemplos de princípio, considero que elas são exemplificações metafóricas, ou, como Goodmam teria dito, expressões de princípios.511
Em suma, a ação só “expressa” a lei moral se é feita por dever, ou seja, se
é motivada pelo próprio cumprimento do dever, o que significa dizer que a
intenção é “pura”: podemos afirmar, portanto, que a ação remete de fato à lei
moral quando expressa a Boa Vontade. Como diz Rawls, “uma boa vontade é uma
vontade cujas intenções concordam com o dever, não segundo a inclinação, mas
segundo o dever (pelo dever)”.512 Para Herman, “Kant parece sustentar que uma
ação [a dutiful action] pode ter valor moral somente se é feita pelo motivo do
dever”; “a discussão do valor moral foi introduzida por Kant para iluminar a
natureza da boa intenção [good willing]”; “é a boa intenção que as ações com
valor moral feitas pelo motivo do dever expressam”; “o valor moral é a marca da
boa intenção na esfera da ação”; “valor moral é uma expressão da boa vontade
[good will] em nossas ações”. 513 Já para Johnson “a tese de Kant de que somente
ações por dever têm valor moral (...) equivale à tese de que, de todas as ações de
agentes racionais humanos, somente ações por dever expressam o não-qualificável
valor de uma boa vontade”.514 As ações com valor moral, assim, são aquelas que
expressam uma Boa Vontade.515 Podemos considerar, de certa forma, que esta
511 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 44-45. O autor Nelson Goodman, a quem Johnson se refere, desenvolveu um conceito de “expressão artística” que envolve uma referência simbólica à coisa exemplificada. Em outro trecho, Johnson considera que a ação de um agente expressa um princípio se: A- a ação se conforma ao princípio; B- a aceitação do princípio pelo agente explica sua escolha pela ação; C- a justificação da escolha é o fato da ação se conformar ao princípio (ibidem, p. 46). 512 RAWLS, 2005, p, 176. 513 HERMAN, 1996, p. 1; p. 16; p. 34; p. 34-35; tradução nossa. 514 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 42, tradução nossa. 515 O’Neill chega a afirmar que “o fim das ações com valor moral, de acordo com a primeira parte da Fundamentação, é a boa vontade exemplificada em cada ação. Se um agente realiza um ato com valor moral, nós podemos atribuir a ele um motivo e um fim específicos. O fim é o de exemplificar uma vontade determinada pelos requerimentos da lei moral; o motivo é o de fazer o que a lei moral requer” (O’NEILL, 1975, p. 104, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 111, tradução nossa: “somente uma máxima selecionada em bases formais evita a heteronomia e assim exemplifica uma boa vontade”.
165
última realiza uma “ponte” entre a lei e as ações morais, através da noção de
intenção. Citando, desta vez, Herman, o valor da Boa Vontade está em suas
intenções (e não nos efeitos que produz), e o valor destas últimas deriva da relação
da vontade com a razão prática, através de seus princípios.516 Segundo Korsgaard,
a Boa Vontade é o tipo específico de valor intrínseco que as ações morais
possuem.517 Johnson resume bem, a nosso ver, todo o processo implícito na
argumentação de Kant:
Ter valor é ser o objeto de uma vontade racional. Ter um valor não-qualificável é ser de forma não-qualificável o objeto de uma vontade racional. E ser o objeto de valor não-qualificável de uma vontade racional é ser intencionado [willed] por agentes racionais, enquanto racionais, em quaisquer circunstâncias concebíveis. O princípio assim intencionado será expresso nas ações de uma pessoa com uma boa vontade. A boa vontade nestas ações expressa o que é o objeto da vontade racional em quaisquer circunstâncias concebíveis, a lei moral, e, portanto, expressa o que é não-qualificavelmente bom.518
Este é um bom momento para realizarmos, mais uma vez, uma rápida
comparação com Aristóteles: havíamos visto que para o estagirita as disposições
virtuosas podiam ser criadas pela repetição das mesmas ações que,
posteriormente, seriam realizadas a partir destas disposições. Assim como para
Kant, a simples aparência externa não é suficiente para que haja valor moral: este
só existe quando os estados disposicionais – as virtudes – se desenvolveram,
sendo que estas disposições são compreendidas a partir de sua relação com a regra
reta.519 De forma similar, na ética kantiana é preciso que haja uma disposição
íntima, a pureza de intenções, que reflete a determinação de nossa vontade pelo
princípio formal. Ambos os autores, assim, podem ser considerados “internalistas”
neste sentido. A diferença entre as duas concepções, mais uma vez, está no fato de
que a “disposição íntima” aristotélica é fruto de uma formatação ou harmonização
de nossos desejos e inclinações à razão, enquanto que para Kant trata-se de uma
volição da vontade, que independe das inclinações.
516 HERMAN, 1996, p. 213. 517 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 216-217. 518 Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 50, tradução nossa. 519 No capítulo 1.2, vimos, seguindo Gauthier & Jolif, que para ser virtuoso não basta realizar as mesmas obras que o homem virtuoso, é preciso realizá-las como ele as faz. E esta “maneira” de realizá-las estaria ligada às disposições subjetivas, à “pureza de intenção” do agente (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 128, tomo II). Citando Ross, vimos que a diferença entre as ações que engendram a virtude e as que se seguem dela está na disposição íntima do agente: “the actions that produce virtue are not in their inner nature but only in their external aspect like those that virtue produces” (ROSS, 1995, p. 201).
166
Antes de terminarmos nossa discussão sobre a noção de valor em Kant, é
preciso mencionar outro aspecto importante desta teoria, que é idéia de que a
natureza humana racional possui valor em si mesma. Vamos agora analisar esta
tese, e sua relação com a determinação do valor moral das ações. Na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, temos:
Admitindo porém que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer de uma lei prática. Ora, digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. (...) os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, que dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nesta medida todo o arbítrio (e é um objeto do respeito). Estes não são portanto meros fins subjetivos cuja existência tenha para nós um valor como efeito da nossa ação, mas sim fins objetivos, quer dizer cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto;520
A natureza humana racional, assim, possui valor em si mesma pra Kant. O
que isso significa? Duas questões se colocam imediatamente: primeiro, o que o
autor chama, exatamente, de “natureza racional”? Segundo, qual sua relação com
a Boa Vontade, já que, como vimos anteriormente, esta última seria a pré-
condição de tudo o que possui valor em si?
Kant tende a associar a natureza racional ao que ele chama de
“humanidade” (Menschheit). Em A Religião nos Limites da Simples Razão, o
filosofo alemão divide a natureza humana em três disposições originárias
(Anlagen): animalidade (capacidades instintivas de sobrevivência, como
sexualidade, auto-preservação e sociabilidade), humanidade (capacidade racional
de estabelecer fins e meios para eles, nosso amor-próprio racional, que fornece
520 KANT, FMC 4:428. Na Crítica da Razão Prática, Kant associa este valor em si da humanidade à autonomia da vontade: “Em toda a criação, tudo o que se quiser e sobre que se tem algum poder pode também utilizar-se simplesmente como meio; unicamente o homem e, com ele, toda criatura racional é fim em si mesmo. Ele é efetivamente o sujeito da lei moral que é santa, em virtude da autonomia da sua liberdade. Justamente por causa desta, toda vontade, mesmo a vontade própria de cada pessoa e dirigida para si própria, está restringida à condição de um acordo com a autonomia do ser racional, isto é, de não a submeter a objetivo algum que não seja possível segundo uma lei que possa brotar da vontade do sujeito passivo; por conseguinte, a nunca utilizar este sujeito simplesmente como meio, mas ao mesmo tempo também como fim” (idem, CRPr 5:87).
167
base para formarmos uma concepção de felicidade e a perseguirmos), e
personalidade (nossa capacidade de legislar a nós mesmos a lei moral e obedecê-
la – Kant chega a chamá-la de “humanidade considerada de modo plenamente
intelectual”).521 Podemos considerar que, em um sentido amplo, o termo
“humanidade” inclui nossa natureza racional, contendo, portanto, tanto a razão
prática empírica, ligada aos imperativos de prudência, quanto a pura, ligada à
moral. Segundo Rawls, de fato, a humanidade consiste em “nossas faculdades e
capacidades que nos caracterizam como pessoas razoáveis e racionais que
pertencem ao mundo natural”, ou seja, ela representa o fato de sermos racionais,
porém inseridos no mundo animal: a personalidade moral faria parte, assim, de
nossa humanidade, assim como as capacidades e habilidades que desenvolvemos
culturalmente (artes, ciências etc). 522 Como comenta Dean, Kant tende a
intercambiar “humanidade” e “ser racional” como fins em si mesmos, embora
ambas as expressões não sejam equivalentes, pois o filósofo alemão sempre
deixou claro que outros seres - como Deus ou eventuais extra-terrestres – podem
ser racionais.523 Podemos considerar, assim, que o que de fato é um fim em si
mesmo é a racionalidade, e a humanidade, por ser parcialmente constituída por
esta dimensão racional, possui um valor incondicional.
Isto posto, é preciso, ainda, compreender exatamente o que, na
humanidade, corresponde à “natureza racional” enquanto fim em si mesma. Como
diz Dean, há vários candidatos a este posto: com certeza não se trata da razão
instrumental; o filósofo alemão divide a razão em dois usos possíveis, teorético e
prático, e Dean comenta, acertadamente a nosso ver, que Kant provavelmente se
refere a este último na fórmula da humanidade, pois ao tratar deste tema em geral
enfatiza a moralidade.524 O uso prático da razão, no entanto, tem dois aspetos, a
521 KANT, Rel. 6:26 (Cf. WOOD, 2008, p. 88). 522 RAWLS, 2005, p. 217. 523 Richard Dean, “The Formula of Humanity as na End in Itself”, in HILL, 2009, p. 83. Cf. KANT, Antr. 7:332. 524 Richard Dean, “The Formula of Humanity as na End in Itself”, in HILL, 2009, p. 86. O comentador cita como exemplo este trecho da Fundamentação: “Ora a moralidade (Moralität) é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Portanto a moralidade, e humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade” (KANT, FMC 4:435). De forma similar, na Crítica da Razão Prática temos: “Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja fim em si mesmo, isto é, que não possa jamais ser utilizado por alguém (nem sequer por Deus) simplesmente como meio, sem ao mesmo tempo ser ele próprio um fim; que, por conseguinte, a humanidade deva ser para nós próprios sagrada na nossa pessoa, eis o que decorre de si mesmo, porque o homem é o sujeito da lei moral (...)” (idem, CRPr 5:131).
168
faculdade de escolha ou Willkür e a vontade legisladora, Wille: a noção de
“natureza racional” se referiria às duas igualmente, ou privilegiaria uma delas?
Ainda segundo Dean, “não há um consenso claro sobre qual dessas possíveis
leituras da ‘natureza racional’ como um fim em si mesma é correta; quase toda
versão recebeu algum apoio em décadas recentes”.525 O comentador argumenta
que a motivação em agir a partir da lei moral – o respeito, Achtung -, também
deve ser levado em conta, e conclui:
O fim em si mesmo é natureza racional, onde natureza racional inclui algum aspecto da razão moral – seja o poder de legislar princípios morais, a capacidade geral de agir a partir de princípios morais, ou o comprometimento em de fato agir a partir deles. Qual dessas leituras é a mais justificada depende em grande parte em qual delas permite a reconstrução mais convincente e plausível do argumento básico de Kant relacionada à fórmula da humanidade.526
Podemos considerar que o que Kant chama de “natureza racional” deve
envolver os principais elementos que relacionam moral e racionalidade – vontade,
escolha e respeito -, embora não fique claro de que maneira ou em que proporção.
A definição exata da natureza racional, no entanto, é uma discussão que não nos
interessa diretamente. O que nos cabe analisar, é em que sentido esta natureza é
um fim em si mesma. A nosso ver, este aspecto está diretamente ligado ao fato da
razão ser, para Kant, aquilo que confere valor objetivo às coisas. Neste sentido, a
natureza racional, enquanto capacidade conferidora de valor, possui ela mesma,
necessariamente, um valor incondicional. Como diz Wood:
Um “fim em si mesmo” é algo que já existe cujo valor fundamenta até mesmo nossa busca por fins produzidos por nossas ações.527 (...) o sentido de “bom” que Kant explica como o que é requerido pela razão independentemente de inclinações.528 (...) Mas a capacidade pela qual nós podemos representar a idéia de algo como bom tanto como fim como quanto meio não é representado meramente como o objeto de uma inclinação contingente, nem é representado como bom apenas enquanto meio. Precisa ser estimada como incondicionalmente bom, como um fim em si mesmo.529 O argumento de Kant não mostra que seres racionais são fins em si mesmos, mas somente que ao estabelecer fins de acordo com a razão, nós precisamos supor que
525 Richard Dean, “The Formula of Humanity as na End in Itself”, in HILL, 2009, p. 85, tradução nossa. 526 Richard Dean, “The Formula of Humanity as na End in Itself”, in HILL, 2009, p. 87, tradução nossa. 527 WOOD, 2008, p. 85. 528 Wood cita esta passagem da Fundamentação: “praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para todo o ser racional como tal” (KANT, FMC 4:413). 529 WOOD, 2008, p. 91, tradução nossa.
169
são.530
Na mesma linha, Herman afirma:
Ações cujas máximas têm a forma da lei universal expressam respeito pela agência racional ao levar em conta o fato de que todos os agentes racionais são fontes derradeiras de razões para normas regulativas de ações. Se nós aceitamos que a natureza racional é conferidora de valores neste sentido regulativo forte, ela precisa ter um tipo ou magnitude especial de valor (...).531
A argumentação de Kant, assim, parece se basear na idéia de que a
capacidade de conferir valor – a natureza racional – possui necessariamente, ela
própria, um valor incondicional. Isso faz perfeitamente sentido, pois esta
capacidade é uma pré-condição de todo valor, portanto não há nenhuma
circunstância em que ela possa ser desprovida dele. Trata-se de uma tese que
lembra aquilo que vimos acerca da Boa Vontade. Podemos agora nos perguntar,
justamente, qual a relação entre estas duas noções. Como diz O’Neill, Kant se
refere a outros fins, além da Boa Vontade, como em si mesmos e objetivos - por
exemplo, a natureza racional -, e isso nos deixa com a tarefa de tentar enxergar a
conexão entre eles.532 A própria autora fornece, mais adiante, uma interpretação
desta conexão: segundo ela, “é porque a natureza racional é a única possuidora de
uma vontade que pode ser boa que a natureza racional é um fim em si mesmo”.533
De fato, havíamos visto, mais acima, que a noção de vontade deve fazer
parte do que chamamos de “natureza racional”, sobretudo em sua ligação forte
com a moral: esta última se baseia na capacidade de nossa razão de determinar
nossas ações (enquanto causa formal e eficiente), o que só é possível devido à
noção de vontade. Podemos assim considerar que a natureza racional é um valor
em si mesmo por ser a pré-condição do valor dos fins e das ações, mas este último
valor só ocorrerá de fato quando nossa vontade for determinada pela lei moral. A
Boa Vontade, assim, realiza uma espécie de “ponte” entre o valor incondicional
da natureza racional e o das coisas: esta natureza é uma “capacidade conferidora
530 WOOD, 2008, p. 93. Wood também é citado por Jennifer Whiting, a partir de um texto não publicado, “The Dignity of Rational Nature”: “a idéia de Kant, de acordo com Wood, é que a capacidade de estabelecer fins é o que confere à natureza racional um valor absoluto e incondicional, fazendo dela um fim em si mesmo. Além disso, o exercício esta capacidade é a condição para o valor de todos os outros fins” (Jennifer Whiting, “Self-Love and Authoritative Virtue: Prolegomenon to a Kantian Reading of Eudemian Ethics viii 3”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 162, tradução nossa). 531 HERMAN, 1996, p. 237. 532 O’NEILL, 1975, p. 105. 533 O’NEILL, 1975, p. 106.
170
de valor”, e é através da Boa Vontade que este valor é conferido. Isso pode
parecer contraditório com a dimensão incondicional do valor da Boa Vontade –
pois nesta interpretação este valor seria derivado do da natureza racional -, mas
esta contradição desaparece, a nosso ver, se considerarmos a vontade como
elemento constituinte, justamente, desta natureza.
Dizer que a natureza racional é um fim necessário ou objetivo não
significa dizer que ela seja um estado de coisas a ser promovido (por exemplo,
maximizando o número de seres racionais no mundo, ou o número de escolhas
racionais). Como comentam Wood e Dean, o valor incondicional da natureza
racional significa que trata-se de uma razão que precisa ser levada em conta em
qualquer deliberação, o que implica em uma determinada maneira de tratar a
humanidade enquanto natureza racional.534 Voltaremos a tocar neste assunto no
capítulo seguinte.
O valor em si da natureza racional se liga ao que Kant chama de
“dignidade” (Würde), que coloca o ser racional acima de qualquer “preço”, ou
seja, de qualquer valor relativo.535 Como a moralidade é a condição pela qual a
natureza racional é um fim em si mesma, podemos também considerar, assim, que
é a moral – e, portanto, a autonomia - a fonte desta dignidade.536 Este ponto se
liga, a nosso ver, a outro importante conceito da teoria kantiana do valor, que pode
ser relevante na comparação com Aristóteles: o de soberano bem (höchstes Gut).
Trata-se, grosso modo, da combinação da felicidade com o mérito de ser feliz, ou
seja, com a virtude.537 Na Crítica da Razão Prática, o filósofo alemão considera
que o soberano bem é um objeto necessário da razão pura prática (embora não
seja seu princípio determinante, que é a lei moral),538 o que significa que este
objeto deve ser representado como possível.539 A idéia de que a virtude produza
felicidade é falsa enquanto causalidade no mundo empírico, mas é possível
enquanto relação suprasensível, levando Kant a estabelecer dois postulados da
razão pura prática, Deus (que adequa a felicidade à virtude) e a Imortalidade da
alma (pois o sumo bem requer a total conformidade das intenções à lei moral, que 534 Richard Dean, “The Formula of Humanity as na End in Itself”, in HILL, 2009, p. 89. Cf. WOOD, 2008, p. 85. 535 KANT, FMC 4:434. Por valores “relativos” Kant entende aqueles que podem ser comparados entre si. 536 KANT, FMC 4:434. 537 CAYGILL, 2000, p. 300. 538 KANT, CRPr 5:109. 539 KANT, CRPr 5:118-119.
171
é um processo ao infinito).540 Estes postulados precisam ser pressupostos de um
ponto de vista prático, pois, sem eles, não seria possível explicar a moralidade.541
Se formos, agora, fazer uma rápida comparação com Aristóteles, podemos
considerar que este conceito de sumo bem ameniza, de certa forma, a cisão
kantiana entre felicidade e moralidade, ao mostrar que estas duas noções, embora
incompatíveis enquanto princípios determinantes da vontade, podem ser
compatibilizadas “metafisicamente”, por assim dizer. No entanto, como vimos, a
separação é mantida no mundo empírico, onde a moral e a felicidade não possuem
relação necessária. O homem virtuoso (que, como veremos no próximo capítulo, é
aquele que age moralmente), é, assim, digno de ser feliz, mas não o é
necessariamente.542 Há, aqui, uma clara crítica ao eudaimonismo dos antigos, pelo
qual parece haver uma ligação causal empírica entre moral e felicidade. Podemos
considerar, no entanto, a partir do que vimos na parte 1, que, se para Aristóteles a
harmonização entre desejo e razão estabelece esta ligação, isso se deve ao fato de
que a felicidade é compreendia a partir da moralidade. Ou seja, para sermos
“verdadeiramente felizes” precisamos “desejar bem” (de acordo com os preceitos
da razão), o que significa que a eudaimonia não corresponde mais a uma busca
vulgar pelo agradável, como tende a entender Kant.543 Uma das conseqüências
deste aspecto é que a eudaimonia não dependerá tanto dos “infortúnios da vida”
quanto a noção kantiana de felicidade. É preciso considerar que, para Aristóteles,
estes infortúnios também têm seu peso, mas enquanto causas secundárias ou
atributos, ao passo que a virtude são causas principais ou essenciais da felicidade,
como vimos na parte 1. Esta proeminência das virtudes levará Aristóteles a
também enfatizar a noção de “dignidade”, que, assim como em Kant, é fruto de
uma certa autonomia da razão, como comentamos anteriormente, que em
Aristóteles se liga à noção de “autarquia” ou auto-suficiência (άύτάρκειά).
540 KANT, CRPr 5:122. Estes postulados se somam ao da Liberdade, de que falamos anteriormente. 541 KANT, CRPr 5:132. Kant ainda acrescenta que estes postulados conferem objetividade às Idéias da razão especulativa, que são exigências estruturais da razão, abordadas na Crítica da Razão Pura. 542 KANT, CRPr 5:130. 543 Este aspecto está ligado ao fato de que a felicidade dos antigos é entendida como uma atividade, e não um “estado de coisas” a ser produzido, como ocorre no utilitarismo, e, a nosso ver, na própria concepção kantiana de felicidade. Cf. Robert N. Johnson, “Was Kant a Virtue Ethicist?”, in BETZLER, 2008, p. 62, tradução nossa: “para o utilitarismo, o florescimento [flourishing] é um estado valioso a ser promovido por nossas ações. Para as éticas da virtude, o florescimento é uma atividade, a de ‘fazer bem’ enquanto ser humano”.
172
Se formos, agora, concluir este capítulo sobre a teoria kantiana de valor,
dentro do âmbito de nossa tese, vimos que para Kant algo só possui valor quando
é fruto de uma escolha racional. Desta forma, mesmo nossos fins subjetivos,
ligados às inclinações, possuem valor, quando são escolhidos de acordo com o
princípio material de volição, o amor próprio. Este valor, no entanto, é apenas
condicional. Algo só possui valor incondicional, em si mesmo, quando é
escolhido a partir do princípio formal de volição, a lei moral – este é o caso,
notadamente, das ações morais. Podemos afirmar, assim, que o valor moral da
ação deriva de sua conformação ao princípio formal da razão prática. Esta
conformação, no entanto, se dá internamente, e não através de uma mera
aparência externa: isso se deve ao fato de que ações apenas “conforme” o dever
podem, na verdade, ser determinadas pelo princípio material de volição. Para que
a ação possua valor moral, assim, o princípio formal deve determinar nossa
vontade, o que significa que a “intenção” de agir deve ser pura, ou seja, motivada
pelo puro respeito à lei moral. A partir daí, Kant descreve a Boa Vontade – a
vontade enquanto determinada pela lei moral – como sendo absolutamente e
incondicionalmente boa, pré-condição de todo o que possui valor em si. De forma
relacionada, a natureza racional, enquanto capacidade de realizar escolhas
racionais – portanto enquanto “capacidade conferidora de valor” – também deve
possuir um valor incondicional, e o valor da Boa Vontade pode ser compreendido,
como procuramos argumentar, como uma “ponte” entre o valor da natureza
racional e o dos demais bens objetivos, notadamente o valor moral das ações.
A partir deste rápido resumo, podemos considerar que a concepção
aristotélica possui várias similaridades com a kantiana: vimos que, para o filósofo
grego, também é possível distinguir um valor objetivo de um meramente
subjetivo, e o primeiro está diretamente ligado a um princípio formal fornecido
pela razão prática, a regra reta. Obviamente, o chamado “bem objetivo” também
possui uma dimensão ligada às inclinações, porém harmonizadas com o princípio
formal. Vimos que para Kant as ações morais também possuem uma dimensão
material, porém determinada pela lei moral, e não o contrário, como ocorreria nas
ações não-morais. Isso não está muito distante do que ocorre na concepção
aristotélica, onde a regra reta é a causa formal do bem objetivo, embora o
elemento material esteja presente.
Em Aristóteles, assim como em Kant, as ações voluntárias são sempre
173
“escolhidas” – e, de forma também similar entre os dois filósofos, para o estagirita
o valor moral de uma ação depende de como ela é escolhida:544 vimos, de fato,
que a noção de “ação”, em Aristóteles, pode ser compreendida como uma
descrição de todo o processo, este-ato-para-este-fim, assim como a máxima
kantiana. A escolha se deveria ao fato da ação ser considerada “boa” em algum
sentido.545 Podemos considerar que, no caso da ação moral, o valor deriva de uma
propriedade intrínseca que é a forma da ação, sua nobreza, justa proporção,
mediania - feita no momento certo, da maneira certa, em relação ao objeto certo e
com o objetivo certo -, estabelecidas pela razão prática enquanto princípio formal.
Kant, como vimos, se move deste quadro de ação humana para um quadro de valor moral. Uma ação moralmente boa é escolhida por ser intrinsecamente boa, porque tem a forma intrínseca da lei. Existe algo similar em Aristóteles? Se não assumimos de antemão que aquilo que estes dois filósofos estão dizendo precisa ser diferente, uma coisa aparece imediatamente como similar. Aristóteles insiste que a ação virtuosa precisa estar em acordo com o orthos logos, a razão ou regra reta. Na verdade, ele diz que a ação não só precisa estar de acordo, mas ser realizada a partir dela (...). Isto sugere que para Aristóteles uma boa ação é aquela que o agente vê como a personificação [embodiment] da razão reta, assim como Kant pensa que uma ação moralmente boa é aquela que o agente vê como a personificação da forma da lei.546
Desta forma, para Aristóteles, assim como para Kant, o valor moral da
ação depende de sua adequação à regra reta (enquanto princípio formal da razão
prática), o que implica que a ação possua uma determinada forma. Também de
maneira similar a Kant, esta adequação deve ser interna, ou seja, as disposições do
agente devem estar harmonizadas com a reta razão – daí, como vimos na parte 1, a
virtude ser definida pelo estagirita como “uma disposição de caráter relacionada
com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, determinada por
um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática”. A partir
deste aspecto, Korsgaard chega mesmo a comparar a “nobreza” aristotélica à Boa
Vontade kantiana: “quanto à nobreza, Aristóteles parece concebê-la muito como
Kant concebe a boa vontade – é o tipo específico de valor intrínseco que as ações
544 “Ele [Aristóteles] sustenta que o que confere às ações valor moral é a maneira pela qual são escolhidas” Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 213, tradução nossa. 545 “A deliberação nos mostra que a ação é em algum aspecto boa” (Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 215, tradução nossa). 546 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 216, tradução nossa.
174
morais e aqueles que as executam possuem”.547
Mais uma vez, podemos considerar que as principais diferenças entre as
duas concepções estão ligadas à ausência de uma concepção de “vontade” em
Aristóteles: como para este último a causa eficiente de nossos atos é sempre o
desejo, para que as ações se conformem à regra reta será preciso que nossas
inclinações se harmonizem com a razão, o que exige um processo complexo,
como vimos, que envolve educação, racionalização do desejo pela deliberação e
sabedoria prática. Em Kant, esta conformação se dá a partir de volições da
vontade que têm uma natureza diferente das inclinações. A “pureza de intenções”
de que falará o filosofo alemão, assim, terá uma certa independência em relação à
constituição subjetiva – o temperamento ou caráter empírico – do agente. Isso não
impede, no entanto, que haja uma proximidade, entre as duas teorias, acerca do
valor moral: este depende da determinação interna de nossas ações pelo princípio
formal da razão prática.
No primeiro capítulo, assim, analisamos a relação intrínseca entre moral e
razão em Kant, e no segundo capítulo a relação entre razão e valor moral da ação.
No capítulo seguinte, analisaremos o último elemento da “tríade”, por assim dizer,
pela qual estamos descrevendo a estruturas das éticas de Kant e de Aristóteles: a
noção de virtude.
3.3
Virtude, razão e valor moral
Uma das aplicações mais conhecidas do termo “virtude” (Tugend), em
Kant, está na sua distinção entre “deveres de justiça” e “deveres de virtude”.
Conforme já comentamos, o conceito de dever implica, como diz o próprio autor,
em “um constrangimento (coação) da livre escolha através da lei”;548 é preciso, no
entanto, diferenciar dois tipos de constrangimento, o externo e o interno (auto-
constrangimento). O primeiro caso se referiria à doutrina do direito, do qual não
nos ocuparemos, por não afetar, diretamente, nossa tese. O segundo caso se refere
à doutrina da virtude (Tugendlehre) (como veremos mais adiante, esta
denominação se deve ao fato de que a “virtude” está diretamente ligada,
547 Christine M. Korsgaard, “From Duty and For the Sake of the Noble”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 216-217, tradução nossa. 548 KANT, MC 6:379. Willkür, aqui chamada de “livre escolha”, também é muitas vezes traduzida como “arbítrio”, “livre arbítrio”.
175
justamente, ao auto-constrangimento). Esta doutrina diz respeito, assim, à
determinação interna da vontade pelo dever:
Quando o conceito de dever toca à determinação interna de sua vontade (o estímulo), o constrangimento que o conceito de dever encerra só pode ser auto-constrangimento (através da representação da lei exclusivamente), pois somente assim pode aquela coação (mesmo se for externa) ser unida à liberdade de sua escolha. Conseqüentemente, neste caso, o conceito de dever será um conceito ético. 549
Para Kant, portanto, a ética (Ethik) se confunde com a doutrina da
virtude.550 Isto confirma o internalismo que, como já havíamos comentado,
caracteriza sua concepção: o valor moral da ação deriva da determinação interna
da vontade pela lei moral, ou seja, da Boa Vontade. Isso significa dizer que, para
que haja este valor, é preciso não somente realizar um ato determinado (“ajudar
esta pessoa”, “dizer a verdade” etc), mas fazê-lo pelo motivo certo, e, portanto, a
partir da disposição (intenção) correta.551 Conforme já apontamos, este aspecto
também pode ser aplicado à ética aristotélica.
Dizer que os deveres éticos ou de virtude dizem respeito à determinação
interna da vontade pela lei moral, implica em dizer que os fins visados pelas ações
realizadas a partir destes deveres também são fixados pela razão prática – pois,
como vimos, na ação moral os fins são objetivos, colocados pela razão e não pelo
549 KANT, MC 6:379-380. 550 KANT, MC 6:381. 551 Como comenta Onora O’Neill: “Quando um dever de justiça é cumprido como um dever ético, o fim do agente é realizar seu dever. Ele age por um motivo puro e não empírico. Essas ações baseadas em princípios não estão somente de acordo com o dever mas também são ditas serem feitos a partir do dever ou pelo dever; não têm somente legalidade, mas também moralidade, valor moral” (O’NEILL, 1975, p. 50, tradução nossa). Cf. J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 325, tradução nossa: “no domínio da lei não importa por que eu faço o que faço, desde que eu me abstenha de violar o direito dos outros. Porque o motivo não importa em questões legais, se eu não agir como devo, posso ser devidamente coagido a fazê-lo. (...) No domínio da virtude, em contraste, não há nada a que eu possa ser coagido, pois o que é requerido é que eu tenha certos fins, e fins precisam ser livremente escolhidos”. Citando agora Rawls: “Uma maneira de perceber a diferença entre esses princípios é que no princípio de justiça, a oração do tipo ‘com o intuito de’ na máxima do agente é simplesmente ‘com o intuito de promover meus interesses’. Esta oração não desempenha um papel importante, e o princípio regula as ações (externas) quaisquer que sejam nossos fins ou interesses. Os deveres de justiça se concentram naquilo que fazemos: em nossos feitos, não em nosso fins. No entanto, no princípio de virtude, a oração ‘com o intuito de’ é essencial. (...) os deveres éticos não nos podem ser externamente impostos; cumpre que os imponhamos a nós mesmos (através de uma legislação interna, por assim dizer). São deveres de buscar certos fins através de certos planos e de conferir a esses fins um certo peso em nossas deliberações e conduta. São, pois, deveres de agir segundo um certo motivo” (RAWLS, 2005, p. 214-215).
176
desejo:552
Mas se estou obrigado a tornar meu fim alguma coisa que reside em conceitos da razão prática, e ter assim, além do fundamento formal determinante da escolha (tal como o direito encerra), também um material, um fim que poderia ser estabelecido contra o fim oriundo dos impulsos sensíveis, este seria o conceito de um fim que é em si mesmo um dever. Mas a teoria deste fim não pertence à doutrina do direito, mas à ética, uma vez que o auto-constrangimento de acordo com leis (morais) pertence exclusivamente ao conceito da ética. Por esta razão a ética também pode ser definida como o sistema dos fins da pura razão prática.553
Desta forma, os fins estabelecidos pelos deveres morais são eles próprios
deveres, fins em si mesmos. Kant considera que há dois destes fins-deveres, a
promoção da própria perfeição e a da felicidade dos outros.554 Outro aspecto
interessante é que estes deveres são considerados “latos”, se opondo, assim, aos
“estritos”. Esta distinção se baseia, justamente, no fato de que os primeiros
prescrevem fins – portanto máximas -, e não ações específicas, como ocorre nos
deveres de justiça:
Essa proposição se segue da precedente, pois se a lei somente pode prescrever a máxima das ações e não as próprias ações, isto constitui um indício de que deixa uma folga (latitudo) para a livre escolha no seguir (conformar-se com) a lei, isto é, que a lei não pode especificar precisamente de qual maneira alguém deve agir e quanto alguém precisa fazer através da ação para um fim que é também um
552 “A doutrina do direito se ocupou apenas da condição formal da liberdade exterior (a coerência da liberdade exterior consigo mesma se sua máxima fosse transformada em lei universal), isto é, com o direito. A ética, porém, vai além disso e produz uma matéria (um objeto da livre escolha), uma finalidade da razão pura que ela representa como uma finalidade que é também objetivamente necessária, isto é, uma finalidade que, no que concerne aos seres humanos, é um dever possuir, pois uma vez que as inclinações sensíveis dos seres humanos os tentam para fins (a matéria da escolha) que podem contrariar o dever, a razão legisladora pode, por sua vez, deter sua influência somente mediante um fim moral instaurado contra os fins da inclinação, um fim que precisa, portanto, ser dado a priori, independentemente das inclinações” (KANT, MC 6:380). 553 KANT, MC 6:381. 554 Kant chama de “perfeição”, aqui, por um lado o cultivo das faculdades naturais que contribuem para a realização de fins anunciados pela razão (KANT, MC 6:391), como o entendimento (enquanto faculdade dos conceitos, incluindo os do dever (ibidem, 6:386), e, por outro lado, o cultivo da vontade, ou seja, da moralidade em nós, enquanto capacidade de realizarmos o dever a partir do dever (ibidem, 6:392)). O filósofo alemão considera que o dever de cultivar a própria perfeição faz parte do esforço do homem em se erguer acima de sua animalidade, rumo à humanidade (ibidem, 6:387). De forma similar, a felicidade dos outros também é entendida, por Kant, como bem estar natural e moral (ibidem, 6:393-394) Wood se serve deste aspecto para explicar a diferença entre deveres éticos e de direito, relacionando-os, por sua vez, ao valor intrínseco da natureza racional: “o direito é um sistema de normas morais racionais (sittliche) cuja função é garantir o tratamento da humanidade como um fim em si mesma protegendo a liberdade externa das pessoas de acordo com leis universais. (...) Em contraste, os deveres pertencentes à ética têm a função de tratar a humanidade, em nossa própria pessoa assim como na dos outros, como um fim em si mesma de maneiras que vão além da mera proteção da liberdade externa. Elas realizam esta função por um auto-constrangimento racional que aperfeiçoa a natureza humana e promove bem-estar e felicidade” (WOOD, 2008, p. 162, tradução nossa).
177
dever.555
Essas questões concernentes aos deveres de virtude, no entanto, não nos
interessam diretamente, mas sim a própria noção de virtude: como dissemos
acima, ela está ligada, para Kant, ao auto-constrangimento, ou seja, ao fato da
vontade dos seres humanos não ser necessariamente determinada pela razão – não
é uma vontade santa -, o que faz, como vimos, que as leis morais sejam entendidas
como obrigações.556 Isso significa que, para agirmos de acordo com as prescrições
da razão prática, precisamos muitas vezes resistir a nossos incentivos empíricos,
ou seja, a nossas inclinações.
Impulsos da natureza, conseqüentemente, envolvem obstáculos na alma do ser humano ao seu cumprimento do dever e forças (por vezes poderosas) que a ele se opõem, ao que ele precisa avaliar que é capaz de resistir e subjugar pela razão, não em alguma ocasião no futuro, mas imediatamente (no momento em que pensa no dever): ele tem que considerar que pode fazer o que a lei lhe diz incondicionalmente que ele deve fazer. Ora, a faculdade e a intenção deliberada de resistir a um oponente rigoroso, mas injusto, é a coragem (fortitudo) e, no que tange ao que se opõe à disposição moral em nós, a virtude (virtus, fortitudo moralis).557
A virtude, portanto, é entendida por Kant como uma força da vontade, que
permite ao agente superar os obstáculos internos ao cumprimento do dever (as
inclinações), levando-o, assim, a de fato fazer aquilo que deve. Em outros trechos
da Metafísica dos Costumes, vemos a virtude ser chamada de “força de resolução
de cada um”,558 “força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu
555 KANT, MC 6:390. Como diz Rawls, “os deveres básicos de virtude são de exigência ampla: por exemplo, o dever de cultivar nossa perfeição moral e natural. Não há regras específicas para realizá-lo; requer planos gerais cuja efetivação é uma questão de juízo e bom senso” (RAWLS, 1995, p. 216). Os deveres latos e estritos também são chamados, respectivamente, de imperfeitos e perfeitos (KANT, MC 6:390). É preciso considerar que esta classificação pode ser mais complexa do que parece, como comenta, por exemplo, O’Neill, para quem não existe uma ligação necessária entre deveres de justiça e deveres estritos, por um lado, e deveres latos e deveres de virtude, por outro: “Kant não enxerga todos os atos especificamente requeridos por deveres estritos ou perfeitos como sendo de justiça. Alguns deveres de virtude também têm requerimentos estritos (limitados), como evitar zombarias, insultos ou outras formas de ferir o respeito próprio dos outros” (O’NEILL, 1995, p. 88 (nota), tradução nossa). Não vamos adentrar neste tipo de discussão, pois trata-se de um ponto que não afeta diretamente nossa tese. 556 Kant deixa claro, justamente, que a noção de virtude não está necessariamente vinculada aos deveres de virtude: “mas o que é virtuoso fazer não é necessariamente um dever de virtude a rigor. O que é virtuoso fazer pode tocar somente ao que é formal nas máximas, enquanto um dever de virtude tem a ver com sua matéria, isto é, com um fim que é concebido como também um dever” (KANT, MC 6:394). 557 KANT, MC 6:380. 558 KANT, MC 6:390.
178
dever”,559 “conformidade da vontade a todo dever, baseada em uma firme
disposição”,560 “força moral da vontade de um ser humano no cumprir seu
dever”,561 “faculdade moral de constranger a si mesmo”,562 e (disposição virtuosa)
“fundamento subjetivo determinante para o cumprimento do próprio dever”.563 O
mesmo tipo de definição é encontrada em outras obras, como em A Religião nos
Limites da Simples Razão - “intenção solidamente fundada em cumprir
exatamente seu dever”,564 “intento firme, feito prontidão, no seguimento do
dever” -, e na Crítica da Razão Prática - “disposição moral na luta”,565
“disposição – Gesinnung – conforme à lei por respeito pela lei”.
Esta caracterização da virtude parece sugerir que esta noção está
estreitamente ligada ao fenômeno da fraqueza da vontade, a acrasia. Isso significa
que a virtude não se confunde com a Boa Vontade. Esta última, de fato, se refere,
como vimos, à pureza da intenção de realizar a ação a partir do respeito pela lei
moral. Mas esta pureza de intenções não garante que a ação vá de fato ser
realizada, devido, justamente, ao tradicional fenômeno da fraqueza da vontade –
como diz Wood, “pode haver Boa Vontade acompanhada não pela virtude, mas
pela fraqueza moral, caso em que a ação correta com freqüência não será
realizada”.566 Para entender a noção de virtude, assim, cabe-nos fazer uma rápida
análise sobre a concepção kantiana de acrasia. Esta última, no entanto, não chega
a receber, da parte do filósofo alemão, um tratamento tão sistemático quanto o de
Aristóteles. Por conta disso, para analisar este tema, nos basearemos em dois
artigos de Thomas E. Hill, além de algumas passagens do próprio Kant.
Em “Kant on Weakness of Will”, Thomas E. Hill começa por diferenciar a
acrasia de vícios como a perversão ou corrupção (Verderbtheit, Verkehrtheit) e a
559 KANT, MC 6:394. 560 KANT, MC 6:395. 561 KANT, MC 6:405. 562 KANT, MC 6:394. 563 KANT, MC 6:410. 564 KANT, Rel. 6:23 (nota do autor). 565 KANT, CRPr 5:84. 566 WOOD, 2008, p. 152. Cf. Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 32, tradução nossa:. “Kant trata virtude como um tipo de força da vontade para fazer o que é certo. Virtude é mais do que ter boas intenções (...)”. Cf, ibidem, p. 40, tradução nossa: “uma boa vontade é a característica essencial de uma pessoa moralmente boa, mas virtude é mais do que uma boa vontade. Na Metafísica dos Costumes Kant fornece uma visão da virtude como força moral de vontade, algo que requer tempo para desenvolver. Uma boa vontade é um comprometimento fundamental para fazer o que é certo, apesar dos obstáculos, mas uma boa vontade pode ser fraca. Uma pessoa virtuosa tem uma vontade que é tanto forte quanto boa”.
179
impureza (Unlauterkeit).567 A primeira consiste na subordinação sistemática da
moralidade ao amor-próprio,568 e a segunda na presença de elementos instáveis e
conflituosos na máxima do agente.569 Ambas implicam na ausência da Boa
Vontade, ao passo que a acrasia, ao contrário, a pressupõe:
Uma pessoa moralmente fraca, em contraste, tem uma vontade fundamentalmente boa, mas é desprovida de virtude. Ou seja, estas pessoas incorporam a lei moral na máxima que governa suas vidas, conferindo-lhe em princípio prioridade em relação ao amor próprio, mas desviam da lei moral em ocasiões particulares porque não desenvolveram uma vontade suficientemente forte para fazer o que é certo. (...) A fraqueza moral é especialmente importante para compreender como virtude é mais do que boa vontade.570
Hill começa descartando duas possíveis interpretações da acrasia, que
seriam, segundo ele, falsas. A primeira é que esta estaria ligada a alguma
inabilidade ou incapacidade do agente: o autor argumenta que o
comprometimento deste último em seguir o princípio formal de volição (a lei
moral) ou o material (amor próprio) é feito, como vimos na parte 1, pela faculdade
de escolha. Neste sentido, tanto o virtuoso quanto o acrático teriam o mesmo
comprometimento, o de seguir a lei moral. Isso significa que o acrático é
responsável por sua fraqueza, pois suas ações são fruto de uma livre escolha.571 A
fraqueza de vontade, assim, não pode ser vista como uma incapacidade física ou
mental que isentaria o agente de sua responsabilidade moral.
Tampouco, para Hill, pode ser descrita como um embate entre razão e
inclinações, na qual estas últimas seriam mais fortes. Já vimos, de fato, que os
obstáculos que se opõem à “força” da vontade são, basicamente, as inclinações do 567 Kant considera que a acrasia não é propriamente um vício (Laster), mas uma debilidade moral (moralische Schwäche), ou seja, a ausência negativa de virtude (negative Untugend). Ela se oporia logicamente à virtude, enquanto o vício é seu oposto real (KANT, MC 6:384). 568 Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 222. 569 Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 222. Um exemplo de máxima “impura”, segundo o autor, seria “eu farei o que é certo se isto também for do meu interesse”, ou “eu cumprirei o meu dever desde que o preço não seja muito alto”. 570 Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 44. 571 “Quando falham, fazendo algo errado devido à fraqueza, são moralmente responsáveis. Portanto, pela teoria de Kant, escolhem (pela Willkür) agir em ocasiões particulares contrariamente a suas máximas governantes básicas em relação a amor próprio e moralidade” (Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 46, tradução nossa). Isto significa, justamente, que o fenômeno da acrasia – portanto a virtude - deve estar relacionado à vontade legisladora (Wille), e não à faculdade de escolha (Willkür). Na Metafísica dos Costumes, de fato, Kant comenta que “a virtude não pode ser definida como uma habilidade para ações livres em conformidade com a lei, a menos que se acrescesse ‘para se determinar a agir através da idéia da lei’, e então esta habilidade não é uma propriedade da escolha, mas da vontade [nicht der Willkür, sondern des Willens], que é uma faculdade do desejo que ao adotar uma regra também a outorga como uma lei universal. Somente uma tal habilidade pode ser tida como virtude” (KANT, MC 6:407).
180
próprio agente.572 Para Kant, no entanto, o exercício da agência racional não pode
ser explicado a partir de termos empíricos ou metafísicos, que só são usados
metaforicamente – assim, não é possível afirmar que incentivos mais justificados
racionalmente seriam “causalmente mais eficazes” do que os imediatos e
impulsivos:
Assim, força e fraqueza de vontade, como são concebidos no discurso moral, precisam ser tratados como idéias metafóricas (ou “numênicas”) necessárias e válidas somente para propósitos práticos. Portanto não podemos esperar que referências à força e fraqueza da vontade moral forneçam uma explicação causal do tipo “cabo de guerra”.573
Hill propõe então sua interpretação positiva: a acrasia seria resultado do
conflito entre duas máximas, uma de comprometimento geral com a moralidade, e
outra de curto termo (mais imediata) expressando uma intenção em ceder ao amor
próprio naquela situação particular (a responsabilidade é preservada, assim, pelo
fato de ambas as máximas serem livremente escolhidas).574 A questão que se
coloca, então, é qual a origem deste conflito interno. Podemos considerar ele se
deve ao fato do agente, de certa forma, “querer fracamente” em relação à máxima
geral de comprometimento com a moralidade. Mas como interpretar este “querer
fracamente”, já que não podemos atribuí-lo, como vimos, a uma deficiência de
capacidade, nem a um embate de “forças” que debilitaria nosso
comprometimento? Hill considera que Kant não chega a responder a esta
questão,575 mas procura reconstruir seu pensamento através de uma analogia entre
as máximas do agente e políticas governamentais: ambas, de fato, instituem leis
572 “Força de qualquer tipo pode ser reconhecida somente pelos obstáculos que pode superar, e, no caso da virtude, esses obstáculos são inclinações naturais que podem entrar em conflito com a resolução moral do ser humano” (KANT, MC 6:394). 573 Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 46, tradução nossa. Segundo Hill, Kant estaria, aqui, fazendo uma crítica a autores como Hobbes e Hume, que acreditavam que nosso comportamento é fruto de “forças causais”, como apetite etc. Kant, no entanto, não pode enxergar a fraqueza de vontade de forma análoga à fraqueza física, pois para ele todos somos agentes racionais que escolhem livremente suas ações (Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 229). Cf. ibidem, p. 227, tradução nossa: “as tentações, na visão de Kant, não são marcas de uma capacidade diminuída. Elas não nos superam literalmente em poder. Nós escolhemos livremente ceder a elas ou não. Nós não cedemos porque as forças da razão são derrotadas na batalha pelas forças da inclinação. Nós escolhemos agir nas máximas para satisfazer inclinações quando poderíamos ter agido de outra forma”. 574 Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 47. 575 “Como isso pode ser? Kant não o explica, e tentativas de dar sentido a esta idéia precisam respeitar pontos centrais da teoria da ação de Kant, especialmente que nós agimos a partir de máximas, e que razão e inclinações não são literalmente duas forças opostas (fenomênica e numenal)” (Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 49, tradução nossa). Cf. idem, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 221.
181
que legitimam e estabelecem limites para certos fins ou atividades, e estas
prescrições podem ser fracas ou fortes, dependendo de seu conteúdo: uma lei
“fraca” seria aquela com um conteúdo vago e indeterminado acerca do que é
permitido ou proibido, e sobre seus meios de implementação. Elas acabam, assim,
sujeitas a discordâncias de interpretação, e tendem a ser ineficazes na sua
aplicação a casos particulares. De forma similar, a acrasia kantiana estaria ligada
ao fato do comprometimento do agente com a lei moral se dar a partir de máximas
que possuem uma forma vaga e indeterminada, sem especificações sobre como
serem executadas diante de obstáculos, abrindo uma “brecha”, por assim dizer,
para que o agente siga máximas de amor próprio em algumas situações.576 Esta
falta de rigor na elaboração da máxima estaria ligada ao fato de nós a “queremos
fracamente” - vimos, de fato, que nos seres finitos a lei moral sempre aparece
como uma obrigação: o que ocorreria na fraqueza de vontade, é que esta
obrigação seria aceita com pesar e hesitações, o que se reflete na maneira pela
qual a máxima é elaborada.577
O que ocorreria nos agentes virtuosos, assim, é que suas máximas de
comprometimento com a moralidade não teriam este tipo de deficiência. Elas
seriam mais explícitas e bem definidas, e específicas quanto a meios de
implementação.578 Mantendo a analogia com ações governamentais, as máximas
576 “Consideremos o conteúdo de nosso comprometimento com a moralidade. Como leis num Estado, princípios e resoluções podem ser claras e definidas, ou vagas e de alguma forma não explícitas em relação a implicações específicas. Algumas podem conter “buracos “explícitos que permitem-nos escapar de suas orientações originais. Muitos de nós agem erradamente porque nosso comprometimento com a moralidade é vago e até qualificado” (Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 221, tradução nossa). 577 “We will it weakly: that is, resolve half-heartedly, waveringly, off and on, without willing specifically, in anticipation, the necessary and available means” (Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 221). Hill dá como exemplo alguém que mente sobre um erro que cometeu, em um contexto onde os ouvintes claramente têm o direito de saber a verdade (por exemplo, um político mentindo sobre um erro na vida pública). Supõe que a pessoa em questão tem um comprometimento moral em dizer a verdade, e em geral o faz, mas naquela situação específica sua reputação está em grande risco. Ele se sente culpado e envergonhado pelo que fez no passado, mas, ao ser diretamente questionado, sente uma súbita resistência em confessá-lo publicamente. Ele quer muito manter sua posição e prestigio, diz a si mesmo “não posso deixá-los saber que eu fiz isso”, e então se dá conta de que pode evitá-lo, se quiser. Ele conta a mentira, “não somente devido aos obstáculos psicológicos que enfrentou, mas porque seu comprometimento (ou vontade) em agir corretamente sempre foi vago (...), sem o comprometimento explícito de sustentar uma vontade moral diante de obstáculos” (ibidem, p. 228, tradução nossa). 578 Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 49-50. Hill não dá exemplos de máximas mal ou bem elaboradas, mas, baseando-nos em sua interpretação, podemos supor que uma máxima “vaga” de comprometimento moral seria algo como “devo falar a verdade”, enquanto uma mais rigorosa seria “devo sempre falar a verdade mesmo que isso tenha
182
dos agentes virtuosos seriam como “políticas de tolerância zero”, que não aceitam
exceções às prescrições da razão. A fraqueza da vontade não se deveria, assim, a
uma deficiência da própria faculdade de escolha Willkür, mas do rigor na
elaboração das máximas (que poderíamos talvez enxergar como um mau uso desta
faculdade), que refletiria uma fraqueza de nosso comprometimento com o
princípio por trás delas. A nosso ver, esta linha de interpretação faz sentido, pois a
máxima, enquanto princípio subjetivo, expressa a intenção do agente, e, portanto,
sua força de vontade também se deve se expressar na maneira pela qual as
máximas são elaboradas. A tese de Hill nos parece relevante, assim, para
compreendermos o fenômeno da acrasia em Kant, e, conseqüentemente, a noção
de virtude.579
A relação desta noção com a fraqueza de vontade parece sugerir que a
virtude kantiana difere de seu equivalente aristotélico. De fato, no final da parte 1,
quando falamos rapidamente da acrasia em Aristóteles, vimos que a continência
ou firmeza de caráter, embora louvável, não é uma virtude (assim como a
incontinência não é um vício, mas apenas uma disposição a ser evitada). A virtude
é compreendida, pelo filósofo grego, a partir da harmonização de nossos desejos e
afetos com a razão, e neste sentido a continência, enquanto capacidade do agente
em resistir a seus impulsos “maus”, implica na ausência de virtude.580
Uma análise mais detalhada, no entanto, mostra que a concepção kantiana
não difere tanto assim da de Aristóteles: em primeiro lugar, é preciso considerar,
como já dissemos anteriormente, que o homem continente é capaz de não agir de
um alto custo pessoal”. Esta última, assim, já leva em conta os possíveis obstáculos que podem se opor à sua execução. 579 A nosso ver, é possível associar esta interpretação da acrasia ao fato dos deveres de virtude serem latos ou imperfeitos: de fato, o dever de realizar determinado fim pode ser entendido como uma “política geral” que deixa em aberto, até certo ponto, as ações específicas que serão realizadas para atingi-lo, o que facilita, em situações particulares, a adoção de máximas que contradizem esta política geral. 580 Podemos confirmar esta hipótese a partir da incompatibilidade que haveria, segundo Aristóteles, entre a temperança e a continência: “Acresce que, se a continência implica ter apetites fortes e maus, o homem temperante não será continente, nem este será temperante, visto que uma pessoa temperante não terá apetites excessivos nem maus” (ARISTÓTELES, EN VII-2 [1146a9]). Como o homem virtuoso no sentido próprio – dotado de sabedoria prática – possui todas as virtudes, inclusive, portanto, a temperança, então podemos considerar que este homem não será nunca acrático. Um pouco antes, justamente, o filósofo grego fez um comentário nesta linha, acerca da possibilidade de alguém com sabedoria prática ser incontinente: “Mas esta suposição é absurda; a mesma pessoa seria ao mesmo tempo dotada de sabedoria prática e incontinência, mas ninguém diria que é próprio de tal homem praticar voluntariamente as ações mais vis. Ademais, já demonstramos anteriormente que os que são dotados dessa espécie de sabedoria são homens de ação (pois se ocupam de fatos particulares) e possuem as demais virtudes” (ibidem, VII-2 [1146a5]).
183
acordo com seus impulsos maus, resistindo, assim, à tentação, mas não pode agir
independentemente de qualquer impulso, ou seja, somente através da razão (o que
iria de encontro a diversas teses importantes do estagirita, como a de que toda
ação tem um fim, e a razão não é capaz, por si só, de determinar este fim).581 Ora,
a ênfase da noção kantiana de “virtude” não está tanto na capacidade do agente
em resistir às tentações, mas sim em agir, positivamente, de acordo com as
prescrições da razão.582 Colocado desta maneira, percebe-se como a força de
vontade kantiana se assemelha mais à virtude aristotélica do que à continência.
Para o filósofo grego, de fato, o homem virtuoso é aquele que age de acordo com
a regra reta – esta definição decorre diretamente da definição das virtudes éticas, a
partir da capacidade de nossa alma irracional em ouvir a racional.
Se em Kant este conceito está mais ligado ao problema da acrasia do que em
Aristóteles, isso se deve, justamente, à ausência da noção de “vontade” neste
último. De fato, se a conformação das ações às prescrições da razão pressupõe a
harmonização de nossos afetos com a alma racional, então não faz sentido
considerar que esta conformação implicaria em algum tipo de “luta” contra estes
afetos. Em Kant, no entanto, esta adequação pressupõe, justamente, que a origem
da ação não esteja em nossas inclinações - daí a virtude ser entendida como um
“auto-constrangimento”, ligando-se, assim, ao problema da acrasia. Podemos
considerar, contudo, que esta ligação é indireta – um efeito colateral, por assim
dizer -, e não a verdadeira definição de virtude. Se formos observar a idéia que
está por trás desta definição – a capacidade do agente em agir, efetivamente, a
partir das prescrições da razão – então veremos que esta noção é compreendida de
maneira similar por Kant e por Aristóteles. Uma afirmação do próprio Kant em A
Religião nos Limites da Simples Razão pode ajudar a confirmar esta idéia:
Que para chegar a ser um homem moralmente bom não basta apenas deixar que se desenvolva sem obstáculos o germe do bem implantado na nossa espécie, mas importa também combater uma causa antagônica do mal que em nós se encontra, foi o que deram a conhecer, entre todos os moralistas antigos, sobretudo os Estóicos, por meio do seu lema virtude, palavra que (tanto em grego como em
581 A descrição inicial da continência dada por Aristóteles, no início do livro VII da Ética a Nicômaco, claramente enfatiza este aspecto negativo, de não agir: “o homem continente, sabendo que seus apetites são maus, recusa-se a segui-los em razão do princípio racional” (ARISTÓTELES, EN VII-1 [1145b13]). 582 “Kant enxerga a virtude como um tipo de força da vontade em fazer o que é certo. A virtude precisa resultar de princípios considerados, e ser virtuoso consiste, de maneira mais central, em agir a partir do dever” (Monika Betzler, “Kant’s Ethics of Virtue: an Introduction”, in BETZLER, 2008, p. 10-11, tradução nossa).
184
latim) significa denodo e valentia, e, portanto, supõe um inimigo.583
Percebe-se, assim, como o próprio filósofo alemão não considerava estar
elaborando uma noção de virtude que diferisse, fundamentalmente, da dos antigos.
Nesta passagem, no entanto, ele claramente relaciona a virtude à presença de um
“inimigo”, e podemos questionar se esta visão se aplicaria a Aristóteles, pois,
como comentamos, para este último o indivíduo virtuoso não parece ter este tipo
de conflito. Podemos considerar que Kant, ao definir a noção de virtude, parece
ora enfatizar a força no cumprimento do dever (como nas definições que citamos
anteriormente, “força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu
dever”, “conformidade da vontade a todo dever, baseada em uma firme
disposição” etc), ora os obstáculos a serem superados neste cumprimento (as
inclinações). Isso deve ao fato, evidentemente, de que para o autor os dois
aspectos estão ligados: “força de qualquer tipo pode ser reconhecida somente
pelos obstáculos que pode superar”.584 Poderíamos ver aí uma diferença
importante entre as concepções de virtude de Kant e Aristóteles? A nosso ver não,
se considerarmos que ambos relacionam esta noção à dualidade da natureza
humana, ligada à sua finitude: vimos que os dois concebem uma ética baseada nas
prescrições da razão prática, e precisam lidar com o lado irracional dos seres
humanos para determinar em que medida nossas ações podem se conformar a
estas prescrições. A virtude está, assim, ligada à relação entre estas instâncias, por
assim dizer, da natureza humana: a principal divergência entre Kant e Aristóteles
está no fato de que para o primeiro existe um conflito entre as duas dimensões, no
sentido que ou agimos a partir de nossos desejos, ou a partir das prescrições da
razão (vimos, de fato, que os princípios formal e material de volição são
excludentes), enquanto para o segundo é possível – mais do que isso, é necessário
- haver um “entendimento”, por assim dizer, entre elas. Podemos de certa forma
considerar que, para Aristóteles, o inimigo já está vencido quando atingimos a
virtude – ou então que não se trata propriamente de um inimigo, mas de um
“filho”, que pode, no entanto, se rebelar e lutar contra o pai (e até tornar-se seu
inimigo), se não for previamente educado para ser um amigo.
583 KANT, Rel. 6:57. Na seqüência deste trecho, Kant diz que o erro dos antigos foi conhecer mal o inimigo, que não está nas próprias inclinações – em si inocentes -, mas na máxima pervertida, que nos leva a não querer resistir às inclinações (ibidem, 6:57-58). 584 KANT, MC 6:394.
185
O objetivo de nosso trabalho, obviamente, não é mostrar que não existem
diferenças entre as éticas de Kant e de Aristóteles, mas sim que as principais
destas diferenças se devem à ausência da noção de “vontade” no segundo, o que
nos permitiria enxergar, assim, uma similaridade entre as duas concepções em um
nível mais profundo. Podemos considerar, mais uma vez, que este é o caso aqui: a
relação entre vontade e inclinação (desejo habitual) leva a ética kantiana a ser
mais “maniqueísta”, por assim dizer, do que a aristotélica, enfatizando o confronto
com os obstáculos que sempre temos que superar para exercer nosso dever.585 Isso
não impede, no entanto, que a idéia por trás da noção de “virtude” – a capacidade
de seres finitos em seguirem as prescrições da razão, apesar da dimensão
irracional de sua natureza – seja fundamentalmente a mesma. Como vimos na
citação acima, o próprio Kant tende a concordar com esta afirmação.586
Vários comentadores, que estamos citando no decorrer de nosso trabalho,
também consideram que é um erro aproximar a virtude kantiana da continência
aristotélica; Stephen Engstrom, por exemplo:
A definição de Kant da virtude, como um tipo de força, poderia levantar a suspeita de que sua concepção de virtude equivaleria mais àquilo que Aristóteles enxerga como mera continência do que à virtude genuína. Mas esta suspeita pode ser removida pelas seguintes considerações. Continência, de fato, é um tipo de força – como seu nome, enkrateia, implica –, mas, como foi comentado anteriormente, Aristóteles diz que o continente tem “apetites fortes e maus” (1146a9-10), e daí se segue que sua vontade (escolha) é neste sentido fraca, já que fraqueza e força são ligadas. O continente escolhe e age corretamente,587 mas
585 Rawls chega a dizer que a psicologia moral kantiana tem um “tom” maniqueísta (como se houvesse dois “eus”, um bom inteligível e um mau sensível), mas não chega a sê-lo de fato, por conta da livre faculdade de escolha, o que levaria a uma concepção mais agostiniana, onde o mau não está nas inclinações em si mesmas, mas na escolha pervertida (RAWLS, 2005, p. 348; p. 350). 586 Schneewind comenta como a noção kantiana de virtude está ligada à dualidade de nossa natureza finita: “Deus, para Kant, age necessariamente de forma moral, e por isso não pode ter virtude. Somente seres que consideram a moralidade difícil e desenvolvem persistência em lutar contra as tentações podem ser virtuosos. Nós, seres finitos, nunca chegaremos ao ponto de não precisarmos da força de resistir ao desejo. Nós não somos nem anjos nem animais. A virtude é nossa posição própria no universo” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 318, tradução nossa). 587 Conforme já comentamos, não nos parece que para Aristóteles o continente seja aquele que “age corretamente apesar de seus impulsos”, pois para isso o fim das ações teria que ser colocado unicamente pela razão, o que é negado pelo estagirita (devido à ausência, justamente, de uma concepção de vontade). O fenômeno da continência, assim, consistiria mais na capacidade de não agir mal, mesmo tendo impulsos que apontem nesta direção, do que de agir bem. O continente só pode agir bem se tiver inclinações que sugiram este curso de ação: a partir daí, podemos talvez enxergá-lo como alguém que possui impulsos bons e maus, sendo que estes últimos são mais fortes do que os primeiros; o continente consegue, mesmo assim, agir de acordo com os bons. Engstrom também se refere, no trecho citado acima, à escolha como “vontade”: mais uma vez, esta denominação não é correta, devido ao fato, justamente, de sempre escolhermos – ou não – aquilo que é “sugerido” pelas inclinações, enquanto incentivos. A ausência de uma “vontade” em Aristóteles se torna patente, assim, pelo fato de que somente as inclinações são incentivos à ação,
186
não com a facilidade daquele que tem virtude: continência é mais forte do que incontinência, mas a virtude é mais forte que todas (cf. 1146a5, 1100b12-13, 1107a6-8). Portanto, enquanto alguém que é meramente continente ainda experimentará as inclinações como obstáculos ou impedimentos e somente os superará com dificuldade, o virtuoso terá um controle de si mesmo que implica em uma vida de acordo com ‘o melhor nível da alma - perceber a parte não-racional, enquanto tal, tão pouco quanto possível’ (1249b22-3), o equivalente daquilo que Kant, ecoando os estócios, chama de ‘apatia moral’, que consiste na ausência ou influência na vontade de sentimentos sensíveis e inclinações, que resulta da força ou respeito pela lei moral. Além disso, como as inclinações são definidas por Kant como desejos que são habituais, elas surgem como resultado do que nós mesmos fazemos; portanto, se a boa vontade tem a força da virtude, ela não será impedida por ‘apetites fortes e maus’, mas será ao invés disso assistida por certas ‘inclinações livres de sensações [sense-free inclinations] para alcançar seus fins: o primeiro será excluído ou extirpado pela disciplina, e o segundo desenvolvido pelo cultivo. Dessa forma, para Kant, assim como para Aristóteles, a ação virtuosa é agradável. 588
Há vários pontos interessantes neste trecho de Engstrom. Primeiro, a referência a
passagens da Ética a Nicômaco em que Aristóteles descreve a virtude como uma
“força” - como quando comenta que o sábio não é acrático, pois “a sabedoria
prática é a mais forte de todas as disposições”,589 ou quando elogia o caráter
estável e duradouro da felicidade ligada às atividades virtuosas, que confere ao
indivíduo a dignidade diante dos infortúnios (portanto a força de suportá-los
enfrentá-los),590 ou, ainda, quando afirma que a virtude, embora seja uma
mediania em relação às paixões, é um extremo em relação ao sumo bem e ao mais
justo.591 Outro ponto interessante é a referência a passagens de Kant em que este
afirma que o cumprimento do dever – portanto o exercício da virtude – pode ser
agradável. Na Crítica da Razão Prática, de fato, o filósofo alemão comenta que,
embora a consciência do constrangimento da lei implique em um desprazer na
ação, o fato deste constrangimento ser exercido por uma legislação de nossa
ao contrário do que ocorre em Kant. A capacidade de escolha é essencial à agência racional, pois impede que ajamos diretamente a partir de nossos impulsos. Mas isto não é suficiente para chamá-la de “vontade”. 588 Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 125-126, tradução nossa. 589 ARISTÓTELES, EN VII-2 ([1146a5]). 590 Trata-se da passagem em que o filósofo grego discute se alguém deve ser considerado feliz enquanto estiver vivo, e, de forma relacionada, a questão da dignidade do homem virtuoso diante dos infortúnios: “Nenhuma função humana é dotada de tanta permanência quanto as atividades virtuosas, que são consideradas até mais duradouras que o próprio conhecimento das ciências. E as mais elevadas entre essas atividades são as mais duradouras, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; (...) o atributo em apreço, portanto, pertencerá ao homem feliz, que o será por toda a vida, pois estará sempre, ou quase sempre, empenhado na ação ou na contemplação do que é conforme à virtude, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro” (ARISTÓTELES, EN I-10 [1100b12]). 591 ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a6].
187
própria razão tem sobre o sentimento o efeito subjetivo de elevação e auto-
aprovação (Selbstbilligung).592 Em outro trecho da mesma obra, afirma:
Mas, não se possui um termo que designe, não uma fruição, como o termo de felicidade, mas indique apesar de tudo uma satisfação na sua existência, um análogo da felicidade, que deve necessariamente acompanhar a consciência da virtude? Sim! Este termo é auto-contentamento (Selbstzufriedenheit) que, no seu significado genuíno, indica sempre apenas uma satisfação negativa na sua existência, na qual se está consciente de nada precisar. A liberdade e a consciência da liberdade, enquanto consciência de um poder (Vermögen) de seguir a lei com uma disposição predominante, é a independência relativamente às inclinações, pelo menos enquanto causas motrizes determinantes (embora não como causas afectantes) do nosso desejo, e na medida em que eu tenho consciência dessa independência no seguimento das minhas máximas morais, é a única fonte de um contentamento não fundado em sentimento particular algum, invariável, que se pode chamar de intelectual.593
Podemos ainda citar a Metafísica dos Costumes, onde o autor considera
que “quando um ser humano ponderado superou incentivos ao vício e está ciente
de que cumpriu seu dever geralmente amargo, ele descobre a si mesmo num
estado que bem poderia ser chamado de felicidade, um estado de contentamento e
paz de alma no qual a virtude é sua própria recompensa”.594 Havíamos dito,
592 KANT, CRPr 5:80-81. Este sentimento seria fruto do reconhecimento de ser determinado unicamente pela lei, pela qual tomamos interesse, ao invés de agir “por” interesse, ou seja, a partir das inclinações. Cf. RAWLS, 2005, p. 208: “a doutrina de Kant (...) é perfeitamente compatível com o cumprimento alegre e jubiloso do nosso dever, com todos os afetos que agraciam a vida humana”. 593 KANT, CRPr 5:117. Percebe-se claramente o paralelo com o respeito: assim como este último, o auto-contentamento que acompanha a consciência da virtude também seria um tipo de sentimento intelectual. 594 KANT, MC 6:377. O filósofo alemão afirma, nesta passagem, que a diferença deste tipo de auto-contentamento para o que ocorre na visão do eudaimonista, é que para este último esta felicidade, decorrente da virtude, é o motivo da ação, sendo, portanto, um prazer patológico (ou seja, que precede a observância da lei), enquanto o prazer propriamente moral é apenas um efeito do cumprimento da lei. Mais uma vez, Kant parece estar fazendo uma leitura das éticas eudaimônicas pela qual estas confeririam à razão prática um papel meramente instrumental. Já discordamos desta posição diversas vezes no decorrer deste trabalho: no final da parte 1, por exemplo, argumentamos que a ética aristotélica aceita a idéia de que alguém faça o que é certo “porque é certo”, e, portanto, o motivo da ação é a conformação à regra reta. Talvez seja relevante, aqui, a diferença entre as noções de “motivo” e “fim”, que apontamos no primeiro capítulo da parte 2: vimos que os motivos introduzem razões que determinam a concepção que o agente tem de seu fim, ou seja, explicam seu interesse pelo propósito da ação (em que sentido este é considerado “bom”). Ora, na parte 1 argumentamos que o homem virtuoso aristotélico visa fins “objetivos”, que incorporaram o princípio formal da justa medida. O interesse do agente nestes fins pode ser explicado, justamente, pelo fato de conterem este princípio formal, e este último, portanto, pode ser considerado o verdadeiro motivo da ação. A chave para se compreender a critica de Kant ao eudaimonismo, a nosso ver, está na identificação que o filósofo alemão tende a fazer entre a eudaimonia dos antigos e aquilo que ele próprio chama de felicidade, a satisfação do desejo, a busca pelo agradável. O equívoco desta abordagem está, assim, no fato de que a “felicidade” dos antigos é um conceito bem mais complexo: no caso específico de Aristóteles, vimos que esta é elaborada a partir de duas noções de bem, como aquilo que desejamos e como a função específica do homem (podemos considerar que as duas são tornadas complementares pela
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anteriormente, que a fraqueza de vontade em Kant pode ser interpretada como um
comprometimento fraco com a máxima, ou seja, com pesar e hesitações, e agora
vemos que a virtude pode ser entendida como um comprometimento alegre e
jubiloso; ora, isso parece corresponder, justamente, à descrição de Aristóteles da
maneira pela qual o homem continente e o virtuoso se conformam à reta razão.
Isto deixa claro, a nosso ver, que a divergência entre as concepções de virtude dos
dois autores não está tanto no fato de que a primeira implica em dificuldade
(portanto em desprazer), e a segunda em facilidade (portanto em prazer). A
diferença está mais na cisão entre o princípio formal e o material enquanto
determinantes da vontade, postulada pelo filósofo alemão, enquanto o estagirita
procura promover um “acordo”, por assim dizer, entre a razão e as inclinações –
diferença esta, como estamos procurando argumentar, diretamente ligada à noção
de vontade.
Outro comentador que também critica a aproximação entre a virtude
kantiana e a continência aristotélica, e que parece concordar com o que acabamos
de dizer, é Allen Wood:
Poderia-se pensar que a concepção kantiana de virtude a identifica não com o que Aristóteles chamaria de “virtude” (aretè), mas sim com que ele chamaria de “continência” (enkrateia) – a capacidade de uma pessoa com desejos vis de resistir a eles e agir de acordo com a razão reta apesar deles.595 Esta idéia, no entanto, está seriamente equivocada. A continência, para Aristóteles, é um tipo de força para resistir a desejos maus, mas a virtude também o é, e a virtude é mais forte.596 Assim, a continência aristotélica seria, no máximo, uma espécie da virtude kantiana – uma espécie inferior. Uma virtude aristotélica – por exemplo, a temperança – faz o agente apreciar a abstinência do que é mau, enquanto a pessoa sem virtude que se abstém (inclusive a pessoa continente, presume-se) sofre com isso. Neste ponto, a virtude kantiana é, novamente, mais como a virtude aristotélica do que como a continência, pois Kant insiste que “a constituição estética, o temperamento, supostamente, de virtude” é “corajosa, e, portanto, alegre”.597
tese de que nossos desejos podem “ouvir” a razão). Kant parece compreender a eudaimonia somente a partir da primeira noção, equivalente, como dissemos, à sua própria concepção. Ora, a segunda noção, que introduz o elemento racionalista (e, portanto, ético), é fundamental para a “felicidade” grega: podemos imaginar, por exemplo, um indivíduo que tenha passado por diversos infortúnios, e ainda assim, por ter mantido sua honra e virtude, tenha tido uma vida que mereça ser chamada de “lograda”, (Sócrates talvez seja um exemplo), ao passo que outro, que viveu em função de prazeres víciosos, não poderia ser chamado de “feliz” no sentido eudaimônico. 595 Como já comentamos, esta posição nos parece equivocada, pois para Aristóteles não podemos agir independentemente de qualquer impulso. 596 Wood cita, aqui, a mesma passagem citada por Engstrom,1146a5. 597 WOOD, 2008, p. 150, tradução nossa. Wood está aqui citando uma passagem da Religião nos Limites da Simples Razão, 6:24 (nota do autor).
189
Wood procura justificar sua posição através de uma análise da psicologia
moral dos dois autores: comenta que para Aristóteles o individuo age
virtuosamente quando a parte irracional de sua alma “ouve” a racional, enquanto,
para Kant, a razão prática, por se identificar à vontade, produz desejos
diretamente, que podem ser bons ou maus.598
Quando a vontade escolhe de acordo com a razão, a inclinação pode (ou não) concordar de forma contingente com o desejo racional, mas não há espaço na psicologia moral kantiana para inclinações “ouvindo (ou não ouvindo) a razão” – no sentido pelo qual, na psicologia moral aristotélica, a parte não-racional da alma pode ser guiada pela razão. Segue-se daí que para Kant a concordância da inclinação com a razão não é uma condição da ação virtuosa no mesmo sentido em que, para Aristóteles, é uma condição da virtude que apetites não-racionais sejam guiados pela razão. Para Kant (...) a concordância entre desejo racional e inclinação não é essencial à virtude, que é primariamente força de caráter, não uma questão de temperamentos empíricos fortuitamente constituídos (ou cuidadosamente cultivados). Para Kant, mesmo se o desejo racional precisa superar inclinações recalcitrantes, a pessoa virtuosa, ao agir virtuosamente, estará fazendo o que verdadeiramente quer fazer e, portanto, o fará de forma alegre e contente. Para Aristóteles, no entanto, é uma característica essencial da virtude que a parte não-racional da alma seja guiada pela razão (como um filho por seu sábio pai). Se isso não ocorre, o melhor que o agente pode ser é continente, não virtuoso.599
Wood conclui, então, é um erro igualar a distinção kantiana entre desejo
racional e empírico (entre agir a partir da razão ou das inclinações) com o discurso
aristotélico sobre partes racionais e irracionais da alma. Este erro levaria a uma
distorção da noção kantiana de virtude, assim como da concepção de
Aristóteles.600
Esperamos, assim, ter apresentado indícios suficientes acerca da
proximidade entre as concepções kantiana e aristotélica de virtude. Trata-se,
obviamente, de uma proximidade estrutural – de concepção -, já que, se formos
comparar características específicas de cada uma, encontraremos diferenças
importantes, como a maior relevância da dimensão afetiva no filósofo grego etc.
598 WOOD, 2008, p. 150. Este último caso ocorreria quando há adoção livre de uma máxima que irracionalmente dá preferência à inclinação sobre a razão. Wood está aqui se referindo, obviamente, à “faculdade de desejo” que, como vimos, é chamada de vontade quando seu fundamento se encontra na razão, e de desejo quando remete ao objeto segundo o sentimento de prazer. 599 WOOD, 2008, p. 150-151, tradução nossa. 600 WOOD, 2008, p. 151. Podemos considerar que este erro se deve ao fato de que Aristóteles não possui uma noção de “desejo essencialmente racional”, ou seja, de vontade – portanto a relação entre a parte irracional e a racional da alma possui uma função diferente, na ética de Aristóteles, do que na de Kant. Mais adiante, de fato, Wood considera que nesta comparação a distorção da concepção de Aristóteles seria até maior, pois “efetivamente aboliria o papel crucial da razão reta em sua psicologia moral” (ibidem, p. 151, tradução nossa).
190
Estas diferenças estariam sobretudo ligadas, como estamos tentado argumentar, à
ausência da noção de vontade neste último.
Para finalizar nossa análise acerca da noção kantiana de virtude,
precisamos, ainda, examinar sua relação com a Boa Vontade. Esta última, de fato,
foi entendida por nós como a “pureza de intenção”, ou seja, a determinação da
vontade pela lei moral. Ora, esta definição também lembra, de certa forma, a
concepção aristotélica de virtude, resultado da harmonização de nossos desejos
com a razão. Podemos nos perguntar, assim, por que o filósofo alemão precisou
distinguir Boa Vontade e virtude, e como esta distinção afeta a comparação com
Aristóteles.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que estas duas noções são
claramente distintas: vimos acima que a pessoa de Boa Vontade pode não ser
virtuosa – trata-se, justamente, da concepção de acrasia na ética kantiana. Com diz
o filósofo alemão:
A razão diz, através do conceito de virtude, que cada um deve controlar-se. E, não obstante, esta debilidade no uso do próprio entendimento, unida à força das próprias emoções, é apenas uma falta de virtude, e, por assim dizer, algo pueril e débil, que é capaz de coexistir com a melhor vontade.601
No entanto, o fato destas duas noções serem distintas não impede que
estejam relacionadas: na Crítica da Razão Prática, por exemplo, Kant parece
associar a pureza de intenção ao “grau” de virtude,602 enquanto Hill se pergunta
“mas o que é ser uma pessoa virtuosa? Antes de mais nada isso requer ter uma
boa vontade – um esforço e comprometimento sincero em fazer o que é certo”.603
Como comenta Wood, “a virtude, enquanto força de máximas moralmente boas,
pressupõe a boa vontade, pois esta última é simplesmente volição de acordo com
bons princípios”.604 O comentador americano está aqui se referindo ao fato óbvio
de que, se a Boa Vontade é a intenção de agir de acordo com a lei moral, e a
601 KANT, MC 6:408. Cf. WOOD, 2008, p. 149, tradução nossa: “Uma disposição pura mostra virtude, mas Kant distingue explicitamente a disposição moral da virtude”. Cf. Robert N. Johnson, “Good Will and Moral Worth”, in HILL, 2009, p. 67, tradução nossa: “a falta de virtude moral, que Kant sustenta ser a falta de força moral para superar obstáculos em se cumprir o dever, é compatível, todavia, com ter uma boa vontade”. 602 KANT, CRPr 5:153. Rawls chama de “atitude de virtude” agir segundo um puro interesse prático pela lei moral (RAWLS, 2005, p. 217). Em outro trecho, descreve a Boa Vontade como “um caráter ou virtude moralmente bons” (ibidem, p. 241). 603 Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 218, tradução nossa. 604 WOOD, 2008, p. 152, tradução nossa. Cf. ibidem, tradução nossa, 149: “a virtude pressupõe um certo tipo de volição ou disposição”.
191
virtude a força da vontade em efetivamente seguir esta lei, então a segunda
pressupõe a primeira: é possível, assim, haver Boa Vontade sem virtude, mas não
o contrário.
Ambas as noções, assim, são compreendidas a partir da conformação da
ação à lei moral: a diferença estaria no fato de que a definição da Boa Vontade se
refere ao motivo pelo qual agimos – a partir do princípio formal de volição, ou
seja, a moral -, enquanto a virtude se refere à realização efetiva desta ação, que
não se segue imediatamente do motivo, devido aos obstáculos internos a esta
realização. As duas noções, portanto, são complementares, fazendo parte de um
mesmo processo, que leva o indivíduo a agir pelo dever. Herman sugere, neste
sentido, que a disposição virtuosa pode ser vista como uma “representação” da
Boa Vontade, o que faz com que a virtude seja “expressa” em ações feitas pelo
motivo do dever.605
Podemos nos perguntar, obviamente, porque a determinação de nossa
vontade pela lei moral – a Boa Vontade – já não implica que tenhamos “vencido”,
por assim dizer, a tentação das inclinações. De fato, vimos que a faculdade
Willkür sempre escolhe as ações a partir do princípio formal ou material de
volição. Neste sentido, se consideramos que a Boa Vontade já pressupõe que
tenhamos adotado nossa máxima de acordo com o princípio formal, então o
principio material já terá sido rejeitado. Por que, então, ainda precisaríamos lutar
contras as inclinações após esta escolha ter sido feita? A resposta, como vimos
anteriormente, está no fato de que o princípio formal pode ser adotado de uma
maneira forte – com rigor na elaboração da máxima e auto-contentamento em sua
execução - ou fraca – com pesar na adoção, que implica em frouxidão na
elaboração. Neste último caso, o fato da escolha já ter sido feita não impede que
haja uma dificuldade futura em mantê-la, face às futuras “tentações”.
Podemos agora nos perguntar se haveria, em Aristóteles, algo equivalente
a esta distinção entre virtude e Boa Vontade. Podemos considerar que esta última
corresponde, a concepção do estagirita, ao desejo racional (βούλησις), fruto da
boa educação e de processos ligados à deliberação e escolha – que seria, por assim
dizer, um desejo em agir de acordo com as prescrições da razão. Ora, o indivíduo
que possui este tipo de desejo é justamente o homem virtuoso, que enxerga, graças
605 HERMAN, 1996, p. 2. Já abordamos anteriormente a maneira pela qual as máximas podem ser vistas como “expressões” dos princípios em que se baseiam.
192
à βούλησις, o verdadeiro bem. Desta forma, a intenção em seguir a razão e a força
de fazê-lo não parecem se separar em Aristóteles (a não ser que pensemos no
homem continente, mas, como já argumentamos, a virtude consiste em uma força
ainda maior em seguir a regra reta do que a continência). O filósofo grego, assim,
não sentiria necessidade de fazer a distinção que vemos em Kant. A nosso ver,
isso se dá pelo fato de que na concepção aristotélica aquilo que é determinado
pela razão (ao “ouvi-la”) e aquilo que poderia se por à execução da ação moral se
confundem: são as inclinações. Desta forma, o processo pelo qual se forma a
intenção em seguir a regra reta é o mesmo pelo qual é vencido seu “inimigo”, os
apetites maus. A noção de “vontade”, em Kant, faz com que este dois momentos
sejam diferentes, pois se referem a duas instâncias diferentes: o que é determinado
pela razão é a vontade, e o que se opõe a execução da ação moral são as
inclinações – daí, portanto, a distinção entre virtude e Boa Vontade, que inexiste
em Aristóteles. É preciso considerar, no entanto, que em Kant esta separação não
deixa de ser tênue, pelo fato, justamente, das duas noções serem complementares:
como diz Hill, a pessoa virtuosa é aquela que possui uma vontade boa e forte.606 A
força quase pode ser vista, a nosso ver, como uma espécie de amadurecimento da
pureza, que passa a levar em conta não só as prescrições da razão, mas os
obstáculos que se opõe a ela. É interessante observar, neste sentido, que para Kant
a virtude, embora não tenha nada de empírico (por ser uma propriedade da
vontade),607 se desenvolve no decorrer do tempo – no que sua concepção, mais
uma vez, lembra a de Aristóteles. Na Crítica da Razão Prática, de fato, o filósofo
alemão diz que a luta da disposição moral contra as inclinações, após algumas
derrotas iniciais, gera “gradual força moral”.608 Na Metafísica dos Costumes,
temos:
É também correto dizer que o ser humano se acha em obrigação com a virtude (como força moral), pois enquanto faculdade (facultas) de superar todos os impulsos sensíveis em oposição pode e deve ser simplesmente pressuposta no homem por conta de sua liberdade, ainda assim esta faculdade como força (robur) é algo que ele precisa adquirir; e a forma e adquiri-la é ampliar o incentivo moral (o pensamento da lei), tanto contemplando a dignidade da pura lei racional em nós (contemplatione) quanto praticando a virtude (exercitio).609
606 Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 41. 607 “Ver a virtude na sua verdadeira figura não é mais do que representar a moralidade despida de elementos sensíveis” (KANT, FMC 4:426 (nota do autor)). 608 KANT, CRPr 5:147. 609 KANT, MC 6:397. Em outro trecho da mesma obra, temos: “O próprio conceito de virtude já tem como implícito que a virtude precisa ser adquirida (que não é inata)” (ibidem, 6:477).
193
Podemos considerar que este aspecto se deve ao fato de que a virtude é
definida a partir de sua relação com um elemento empírico (os obstáculos
sensíveis ao cumprimento do dever), daí a idéia de que esta se desenvolve e se
fortalece em função desta relação, portanto no decorrer do tempo. Isto, a nosso
ver, torna a ligação com a Boa Vontade ainda mais estreita, como se houvesse
uma continuidade entre as duas noções, quase como se fossem, no fundo, uma
única propriedade em estágios diferentes de seu desenvolvimento. Como diz Hill:
Virtude inclui Boa Vontade, mas virtude enquanto traço de caráter é também força de vontade desenvolvida em fazer o que é certo. Esforço, prática e tempo são necessários para levar uma vontade basicamente boa a se tornar uma vontade forte e efetiva que faz a escolha certa mesmo na presença de inclinações contrárias, tão fortes que podem influenciar uma pessoa mais fraca. Com prática, uma pessoa com virtude desenvolvida superará tais obstáculos com regularidade e relativa facilidade.610
Podemos assim considerar, a nosso ver, que a vontade “boa” se torna
virtuosa no decorrer do tempo, quando, além de se comprometer a seguir a lei
moral, aprende gradativamente a superar os obstáculos à sua realização. Esses
dois aspectos – a diferença tênue entre virtude e Boa Vontade, como se se tratasse
de uma mesma propriedade “amadurecida”, e o fato deste amadurecimento se dar
através da prática, no decorrer do tempo -, reforçam, assim, a proximidade com a
concepção de Aristóteles. Esta proximidade é confirmada pela visão kantiana,
baseada nas considerações acima, de que a virtude é um ideal a ser perseguido
durante nossas vidas.611 Para finalizar este capítulo, gostaríamos de abordar um último tema, o da
deliberação em Kant, que pode ser descrita, como procuraremos argumentar,
como o procedimento do Imperativo Categórico. A relevância deste ponto para
nossa tese está no fato de que o processo deliberativo pode ser entendido como
um mecanismo que leva a uma purificação e um fortalecimento de nossas
610 Thomas E. Hill, “Kant on Weakness of Will”, in HOFFMANN, 2008, p. 219, tradução nossa, grifos nossos. É interessante observar o comentário de Hill acerca da maior “facilidade” com que uma pessoa com virtude supera os obstáculos ao cumprimento do dever, confirmando, assim, o que dissemos anteriormente, ou seja, que esta noção se assemelha mais à virtude do que à continência aristotélica. 611 “A virtude está sempre em progresso e, apesar disso, sempre parte do início. Está sempre em progresso porque, objetivamente considerada, é um ideal inatingível, enquanto, não obstante isso, a aproximação constate dela é um dever” (KANT, MC 6:409). Rawls chama a perfeição moral de “boa vontade segura”, o que pode se interpretado, a nosso ver, de acordo com esta idéia de que a virtude nada mais é do que a boa vontade fortalecida (RAWLS, 2005, p. 225).
194
intenções, contribuindo assim, para o surgimento da Boa Vontade e da virtude.
Isto lembraria, de certa forma, a maneira pela qual a deliberação aristotélica – a
βούλευσις – também contribui de forma significativa para o processo de
racionalização do desejo, e portanto, para a formação do homem virtuoso. Por ter
uma relevância apenas incidental em nossa tese, este tema será abordado de forma
relativamente rápida, que não faz jus, portanto, à sua importância dentro da ética
do filósofo alemão.
O processo deliberativo em Kant, como dissemos, pode ser entendido a
partir do “procedimento do Imperativo Categórico”, que não deve ser confundido
com a lei moral e nem com o próprio Imperativo ou IC. Como diz Rawls,
É importante reconhecer que a lei moral, o imperativo categórico e o procedimento do IC são três coisas distintas. A lei moral é uma idéia da razão. Determina um principio que se aplica a todos os seres razoáveis e racionais (ou seres razoáveis, para abreviar) sejam ou não, como nós, seres finitos imbuídos de necessidade. (...) O imperativo categórico, sendo um imperativo, dirige-se apenas àqueles seres razoáveis que, por serem finitos e imbuídos de necessidades, experimentam a lei moral como uma restrição. (...) Para que o imperativo categórico se aplique à nossa situação, precisa adaptar-se às nossas circunstâncias na ordem da natureza. Esta adaptação é realizada pelo procedimento do IC, na medida em que leva em conta as condições normais da vida humana (...).612
Podemos considerar, assim, que a lei moral é uma lei da razão pura
(portanto representada, por seres racionais, como um princípio), o Imperativo
Categórico a maneira pela qual esta lei aparece a um ser finito (enquanto dever), e
o procedimento do IC é a aplicação deste princípio às circunstâncias particulares
da ação (levado em conta, assim, tanto o contexto em que esta se dá, quanto
elementos empíricos da natureza humana) – daí, justamente, podermos enxergar
este último como um processo deliberativo.613 Rawls descreve este procedimento
612 RAWLS, 2005, p. 192-193. 613 “Este procedimento [procedimento do IC] especifica o conteúdo da lei moral tal como se aplica a nós, enquanto pessoas razoáveis racionais no mundo natural. Dotadas de consciência e sensibilidade moral e afetadas, mas não determinadas, por nosso desejos e inclinações naturais” (RAWLS, 2005, p. 189). Cf. ibidem, p. 274: “(...) a idéia é formular uma representação procedimental, na qual todos os critérios pertinentes do raciocínio correto – moral ou matemático – sejam, tanto quanto possível, postos em evidência. (...) Na teoria kantiana do raciocínio moral, a representação procedimental é dada pelo procedimento do imperativo categórico, que incorpora as exigências que a razão prática pura impõe sobre nossas máximas racionais”. Cf. HERMAN, 1996, p. 84, tradução nossa: “o procedimento IC é um princípio de julgamento; ele representa somente um aspecto do Imperativo Categórico. O próprio Imperativo Categórico é uma fórmula que expressa a lei Moral: um princípio (ou lei) da razão prática pura que determina a vontade a priori. O procedimento IC interpreta a fórmula de uma maneira adaptada [suited] aos limites da compreensão humana e às condições do julgamento humano”. Mais adiante, Herman acrescenta que a deliberação, de uma forma geral, porta sobre a questão de um certo tipo de razão ter peso o suficiente para justificar as ações (ibidem, p. 153). Vimos que para Kant as “razões” remetem aos
195
em quatro passos: o primeiro corresponde à máxima do agente, que é, como
vimos, seu princípio subjetivo particular, sob a forma “devo fazer X nas
circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z”.614 O segundo passo consiste
na generalização da máxima, transformando-a em um preceito universal que se
aplicaria a todos, portanto em um princípio objetivo, uma lei prática valida para
todos ser racional: “todos devem fazer X nas circunstâncias C a fim de realizar Y
a menos que Z”. O terceiro passo consistiria em transformar este preceito em uma
lei da natureza, e o quarto em associar esta às leis da natureza existentes, para
examinar quais seriam os efeitos se a ordem da natureza estivesse de acordo com
o preceito universalizado.615
Voltaremos mais adiante à questão da “lei da natureza”. Por ora, o que nos
interessa salientar é que o procedimento do IC aparece como uma espécie de
“teste” que visa verificar se a máxima subjetiva do agente é universalizável,
portanto se está de acordo com os princípios objetivos da razão prática. Na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de fato, Kant descreve o Imperativo
Categórico como “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal”.616 Podemos enxergar a questão da
universalidade como uma conseqüência direta do formalismo kantiano: vimos, no
início da parte 2, que para Kant somente princípios a priori – ou seja, formais -
possuem a necessidade incondicional de uma lei. Ora, sendo formais, eles também
se oporão a elementos empíricos particulares: podemos assim considerar que a
concepção formal que Kant tem da racionalidade faz com que necessidade e
universalidade caminhem juntas: os princípios a priori da razão pura representam
leis necessárias (intrínsecas à própria racionalidade), e objetivas (válidas para
todos os seres racionais, independentemente de suas diferenças particulares
subjetivas). A relação do agente com a lei moral é, portanto, “impessoal”, pois
seus interesses pessoais (amor próprio) são irrelevantes enquanto motivos para a
ação. O “teste de universalidade” implicado no procedimento do Imperativo
Categórico, assim, é uma forma de verificar se a máxima subjetiva possui a forma
incondicional de uma lei, garantindo sua objetividade, ou seja, sua conformação à
princípios de volição, enquanto representações de leis da razão. O procedimento do IC, assim, seria um teste que nos permitiria verificar qual princípio – formal ou material – estaria na base de uma determinada máxima. 614 RAWLS, 2005, p. 193-194. 615 RAWLS, 2005, p. 194-195. 616 KANT, FMC 4:421.
196
lei moral.617
Podemos agora nos perguntar em que consiste, exatamente, este “teste”.
Kant parece colocá-lo como um teste de contradição: ao ser submetida, a máxima
não universalizável se mostraria, de alguma forma, contraditória. Isto acontece
porque a universalização implica que se conceba um mundo que funcionaria de
acordo com aquela lei: na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de fato, o
filósofo alemão comenta que a fórmula de universalização do IC, que vimos
acima, também pode ser expressa como “age como se a máxima de tua ação se
devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza”.618 Este aspecto
decorreria diretamente da relação entre universalidade e necessidade, que
mencionamos acima: como diz Kant, a realidade objetiva das coisas é
determinada por leis universais, e, assim, um mundo governado por estas leis é o
que se poderia chamar de “natureza” em um sentido lato (em relação à sua
forma):619 querer que nossa máxima se torne uma lei universal, portanto, é
equivalente a conceber um mundo governado por esta lei, ou seja, um mundo
onde todos agem de acordo com ela (conseqüência necessária de ser válida para
todos os seres racionais). A fórmula da natureza do IC, assim, permite apreciar
melhor as eventuais contradições contidas na máxima.
Estas podem ser de dois tipos: o primeiro é a contradição de concepção, ou
seja, um mundo governado por esta lei é simplesmente inconcebível. No exemplo
da falsa promessa, dado por Kant, não seria possível fazer desta uma lei universal,
pois qualquer promessa seria inviável se todos mentissem.620 Existe, no entanto,
um segundo tipo de contradição, onde o mundo correspondente é concebível, mas
é contraditório o agente querê-lo. É a “contradição de vontade”. Toda máxima, de
fato, expressa uma intenção ou volição, e aquela expressa na máxima original
(subjetiva), se tornaria incompatível, ao ser universalizada, com uma outra
máxima que o agente tem necessariamente. O exemplo de Kant é o de uma pessoa
617 “O procedimento IC mostra quando uma volição é contrária à Lei Moral” (HERMAN, 1996, p. 90, tradução nossa). É interessante observar, aqui, uma semelhança com o que vimos em Aristóteles, onde o “bem” visado pelo homem virtuoso é subjetivo (como todo bem), mas também objetivo. De forma similar, a máxima do agente aprovada no teste de universalidade será subjetiva (como toda máxima), mas também objetiva, por se conformar à lei moral. 618 KANT, FMC 4:421. 619 KANT, FMC 4:421. 620 KANT, FMC 4:422. Como diz Herman, “a idéia do argumento é que a possibilidade da falsa promessa requer uma instituição viável da promessa, que não existe se a falsa promessa for uma lei universal” (HERMAN, 1996, p. 137, tradução nossa).
197
que nunca se preocupa em ajudar os outros: não é em si contraditório conceber um
mundo onde ninguém ajude ninguém. No entanto, o próprio agente sabe que pode
vir a precisar de ajuda neste mundo, e, para Kant, é irracional alguém que precisa
de algo não querê-lo: é, portanto, uma contradição de vontade querermos viver em
um mundo onde ninguém nos ajudará se precisarmos.621
A questão da “universalidade’ permite uma interessante comparação com
Aristóteles, pois, como vimos na parte 1, uma das características mais marcantes
de sua concepção é o particularismo. Este é um dos pontos mais citados,
justamente, por aqueles que defendem que as éticas de Kant e Aristóteles são
antagônicas. Vamos tentar, mais uma vez, discordar desta posição: vimos que para
o filósofo grego as ações com valor moral resultam da virtude, entendidas como
estados disposicionais cuja diferença específica é a mediania, estabelecida pela
razão reta. O particularismo advém da tese de que a mediania depende do
indivíduo e do contexto em que se desenrola a ação:622 por exemplo, comer
determinada quantidade de comida pode ser demais para uma pessoa, mas a
medida certa para outra; reagir de forma violenta é um exagero na maioria das
621 KANT, FMC 4:423. A nosso ver, a contradição de vontade não é tão óbvia quando a de concepção, necessitando, assim, de uma análise mais apurada, que não temos espaço para fazer aqui, pois nos desviaria de nosso assunto principal. Ela parece estar relacionada à idéia de que há certas coisas que todo agente racional deve necessariamente querer. No exemplo citado, podemos considerar que precisar de ajuda e não querê-la contradiria o princípio lógico de que “quem quer o fim, quer os meios” (que é, como vimos, uma relação analítica para Kant) (Cf. J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 318, tradução nossa; “como um agente racional eu necessariamente quero os meios para cada um dos meus fins. A ajuda de outros é com freqüência um meio de que preciso para meus próprios fins. Portanto seria irracional querer excluir a ajuda de outros enquanto um meio possível quando eu precisar” (Cf. O’NEILL, 1995, p. 91)). Seguindo esta linha de interpretação, Rawls comenta que a contradição de vontade parece estar ligada ao que ele chama de “verdadeiras necessidades humanas”, que seriam condições indispensáveis para o próprio exercício da agência racional (como bebida, comida, descanso, segurança, educação e cultura) (RAWLS, 2005, p. 200-201). Cf. O’NEILL, 1975, p. 82, tradução nossa: “o teste de contradição de vontade depende em mostrar que existem certos fins que são um dever para os homens ter”. Cf. ibidem, p. 87, tradução nossa: “a contradição de vontade [no exemplo dado por Kant] é uma contradição entre uma máxima que qualquer agente humano precisa ter para ser racional, e versão universalizada da máxima proposta de negligenciar algumas coisas necessárias para ajudar qualquer um em necessidade”. Neste sentido, a contradição de concepção parece se ligar mais ao que chamamos de “deveres de justiça”, e a contradição de vontade aos “deveres de virtude” (ibidem, p. 60. Wood associa a contradição conceitual aos deveres perfeitos, e a de vontade aos imperfeitos (WOOD, 2008, p. 166, 168)). Herman tem uma forma interessante de colocar esta questão, considerando que a contradição de vontade se refere a nosso poder enquanto agente, ou seja, à nossa vulnerabilidade e mortalidade (HERMAN, 1996, p. 125-126). 622 “Por exemplo, pode-se sentir o medo, a confiança, o apetite, a cólera, a compaixão, e de uma forma geral o prazer e o sentimento, em excesso ou em grau insuficiente; e em ambos os casos, isso é um mal. Mas senti-los no momento certo, em relação aos objetos e às pessoas certas, e pelo motivo e da maneira certa, nisso consistem o meio – termo e a excelência característicos da virtude” (ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b20-25]).
198
vezes, mas pode ser uma ação corajosa (portanto de acordo com a mediania) em
uma guerra, ou em uma situação de legítima defesa.
Kant, por outro lado, não parece aceitar que a ação moral dependa de tal
forma das circunstâncias. Estas últimas, obviamente, devem ser levadas em conta
no sentido de definir qual dever é relevante naquele contexto – vimos acima, de
fato, que o procedimento do IC define a aplicação do princípio universal em
determinada situação -, mas o filósofo alemão dificilmente aceitaria que o
conteúdo do dever tenha esta dependência. Este rigor é, diga-se de passagem, uma
das principais fontes de crítica à ética kantiana. 623 Mesmo os chamados deveres
latos, embora concedam uma certa margem para se decidir o curso de ação a
seguir, são deveres enquanto fins, e estes últimos são fixos e determinados.
Podemos ver nesta rigidez uma conseqüência direta do formalismo kantiano, pelo
qual as obrigações são determinadas a priori, portanto independentemente de
qualquer elemento empírico. Podemos nos perguntar, então, se não haveria neste
ponto uma forte oposição entre as concepções de Kant e de Aristóteles, e, se
houver, como podemos explicá-la dentro do contexto de nossa tese, que procura
aproximar as duas visões.
Como já dissemos anteriormente, nosso objetivo não é negar que existam
diferenças entre as éticas dos dois autores, mas sim conseguir atribuir as principais
destas à ausência da noção de “vontade” entre os antigos. A nosso ver, este é,
mais uma vez, o caso: temos argumentado que a ética aristotélica se baseia em um
princípio formal fornecido pela razão prática, a regra reta, όρθός λόγος, que
determina a “forma” que a ação precisa ter para possuir valor moral. Ora, a
legitimidade deste princípio nos parece ser tão “universal” quanto o Imperativo
Categórico kantiano, no sentido de ser uma propriedade intrínseca da própria
racionalidade, sendo assim válido para todos os seres racionais. Aristóteles, de
fato, não abre nenhuma exceção para a tese de que o érgon dos seres humanos
está no bom exercício da razão, e que este gera a regra reta que determina a
mediania. O que parece variar de acordo com as circunstâncias, portanto, não é a
forma da ação virtuosa ou moral, mas sim o seu conteúdo: ora, isso se deve ao
fato de que este conteúdo não é diretamente determinado pelo principio formal,
mas sim pelo desejo, enquanto princípio material (para usarmos um vocabulário
623 Cf. Thomas E. Hill, “Kantian Virtue and ‘Virtue Ethics’”, in BETZLER, 2008, p. 53.
199
kantiano). A ação moral é fruto de uma harmonização entre razão e inclinações, e
estas últimas, enquanto elemento empírico, sempre terão uma forte ligação com o
contexto em que se dá a ação. Assim, mentir para ajudar ou para enganar um
amigo parecerão ações bem diferentes para o agente, e a ética aristotélica
considera que estas diferenças têm relevância moral. Em Kant, ao contrário, a
noção de vontade permite que a ação seja determinada diretamente pela razão,
sem nenhuma contribuição das inclinações, o que significa dizer que seu conteúdo
– o elemento material, o fim visado – também é estabelecido a priori. Mentir,
assim, nunca pode ser resultado da lei moral, não importam as circunstâncias.
Percebe-se, portanto, como até mesmo esta famosa divergência entre as duas
concepções pode, a nosso ver, ser explicada a partir da hipótese central de nossa
tese.
Além da fórmula da Universalidade (e sua expressão correlata como
fórmula da Natureza), o procedimento do IC possui ainda outras duas
formulações, a da Humanidade e a da Autonomia, nas quais reencontramos dois
temas que vimos anteriormente. A primeira pode ser expressa como “age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.624
Quando falamos da natureza racional como um fim em si mesmo, no capítulo
anterior, mencionamos que este valor implicava em uma determinada maneira de
tratar a humanidade – esta é a idéia que estaria contida nesta fórmula: não seria
racional proceder em relação a seres racionais de maneira manipulativa, ou seja,
tratá-los como meios. Já a fórmula da Autonomia pode ser expressa da seguinte
maneira: “age de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a
si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”.625 Reencontramos aqui o
princípio de autonomia de que falamos no final do capítulo 2.1. Como dissemos
anteriormente, não temos tempo de fazer, aqui, jus à importância destas três
formulações; podemos apenas, rapidamente, comentar a diferença entre elas: Kant
afirma que esta diferença é subjetivamente prática, tendo o propósito de
aproximar a Lei moral, enquanto idéia da razão, da intuição, e, portanto, do
sentimento.626 Rawls considera, neste sentido, que cada formulação corresponde a
624 KANT, FMC 4:429. 625 KANT, FMC 4:434. 626 KANT, FMC 4:436. Cf. RAWLS, 2005, p. 231.
200
um determinado ponto de vista: a primeira (da Universalidade) se colocaria no
ponto de vista do próprio agente enquanto sujeito a exigências morais, a segunda
(da Humanidade) no ponto de vista dos que são afetados pela ação, e a terceira (da
Autonomia) de novo do ponto de vista do agente, mas, desta vez, enquanto
legislador da lei universal.627 Wood também tem uma interessante forma de
distinguir as três formulações, considerando que a da Universalidade se refere à
forma do Imperativo Categórico, a da Humanidade à sua matéria, e a da
Autonomia uniria o dois aspectos.628
Agora que fizemos uma descrição sumária do processo deliberativo em
Kant, podemos retornar à nossa questão principal, analisando a relação deste
processo com a noção da virtude. A chave desta ligação está na questão da
contradição, que, como vimos acima, é um aspecto central da deliberação
kantiana – podemos considerar, obviamente, que este é o caso em qualquer tipo de
deliberação, pois evitar incoerências é característico da própria racionalidade, mas
em Kant este aspecto é particularmente explícito: vimos que os dois testes
relativos ao procedimento do IC se baseiam em algum tipo de contradição
envolvendo a máxima subjetiva do agente.629 Podemos considerar, seguindo
O’Neill, que na contradição de Concepção existe uma inconsistência que é interna
à máxima (aspirar algo impossível, querer e não querer ao mesmo tempo),
enquanto na contradição de Vontade a contradição se dá entre máximas (aquela
627 RAWLS, 2005, p. 211. Kant considera que as três fórmulas são equivalentes, pois cada uma incluiria as outras duas (KANT, FMC 4:436), mas Rawls discorda, por considerar que a segunda e a terceira dependem da primeira – não se trataria, assim, de maneiras alternativas de expressar o mesmo conteúdo (RAWLS, 2005, p. 211-212). 628 WOOD, 2008, p.116. Schneewind concorda com a descrição de Rawls da primeira e segunda fórmula, mas discorda da terceira, que para ele “nos instrui a olhar para o agente e para o recipiente da ação juntos em uma comunidade enquanto legislamos através de máximas” (J. B. Schneewind, “Autonomy, Obrigation and Virtue: an Overview of Kant’ Moral Philosophy”, in GUYER, 2008, p. 318, tradução nossa). Já Herman tem, mais uma vez, uma proposta original de interpretação, ao considerar que “as formulações sucessivas interpretam os argumentos do procedimento do IC em termos que revelam os aspectos da agência racional que geram contradições sob universalização. Estas interpretações fornecem a conexão necessária entre princípios formais e valor; elas mostram como conteúdo é derivado do constrangimento a forma universal do querer” (HERMAN, 1996, p. 227-228, tradução nossa). No exemplo da falsa promessa, Herman considera que a fórmula da Universalidade mostra que a máxima é impermissível, e as outras duas fórmulas mostram porque ela não pode ser considerada boa (ibidem, p. 230). 629 “Age sempre segundo aquela máxima cuja universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a qual uma vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma, e um tal imperativo é categórico” (KANT, FMC 4:437, grifo nosso).
201
específica e uma outra que o agente tem necessariamente).630 Colocado desta
forma, o procedimento do IC aparece como teste que visa verificar a consistência
das máximas, ou, em outras palavras, a consistência de nossas intenções: como diz
O’Neill, “a fórmula da Lei Universal estabelece em primeiro lugar um critério
para intenções coerentes”; “o teste de contradição de concepção (assim como o
teste de contradição da vontade) revela falhas em ter intenções coerentes”.631
Segundo O’Neill, “tal teste é primariamente útil aos agentes em guiar suas
próprias deliberações morais (...). O teste de universalidade discutido aqui é,
acima de tudo, um teste de consistência mútua de (ou de esquemas de) intenções e
intenções universalizadas ou princípios”.632 O processo deliberativo ligado ao IC,
obviamente, se refere a princípios: trata-se de averiguar em qual principio –
material ou formal – se baseiam nossas ações. Esta verificação é feita, no entanto,
a partir da consistência de nossas intenções: somente máximas que possuam esta
coerência (ou internamente ou em relação a outras máximas que são necessárias)
passam pelo teste. Isto se deve, obviamente, ao fato de que o princípio formal é
uma representação de uma lei da razão, e a incoerência pode ser vista como um
sinal de irracionalidade.
A relação entre o processo deliberativo e a questão da virtude se dá, então,
pela ligação entre a consistência das intenções, por um lado, e a pureza ou força
da vontade, por outro. De fato, a Boa Vontade possui uma “pureza” relacionada à
sua determinação pela lei Moral, e podemos agora compreender este aspecto
como uma coerência de suas intenções. Da mesma forma, vimos que a virtude
consiste na força de manter o comprometimento geral com a lei moral, evitando,
assim, máximas particulares que contradigam a principal.633
630 O’NEILL, 1995, p. 89. Como já comentamos anteriormente, em sua análise O’Neill dá muita ênfase à relação entre a máxima “principal” e as secundárias, necessárias para realização da principal. A contradição de Vontade, assim, se daria entre esta última – “projetos a longo prazo”, em geral relacionadas, como vimos, a objetivos que ao agente não pode deixar de ter – e máximas mais imediatas (ibidem, p. 91-92). 631 O’NEILL, 1975, p. 70, tradução nossa. Cf. idem, 1995, p. 83, tradução nossa: “um teste de universalidade para seres autônomos não olha para o que é querido, nem para os resultados da ação, mas simplesmente requer que certos padrões de consistência sejam observados na ação”. A autora considera que a descrição das ações através de máximas é fundamental para que esta consistência possa, justamente, ser testada: “esta descrição de agir através de uma máxima mostra, pelo menos, como ações podem ser construídas de uma maneira que torne consistência e inconsistência possíveis” (ibidem, p. 89, tradução nossa). 632 O’NEILL, 1995, p. 103, tradução nossa. 633 É possível, a nosso ver, associar esta “coerência” da vontade aquilo que costumamos chamar de “integridade”. Esta seria, talvez, uma forma interessante de compreender a noção de virtude em Kant: a força de auto-constrangimento, pela qual a virtude é definida, seria, no fundo, uma forma
202
Isto significa dizer que o processo deliberativo, em Kant, tem o efeito de
purificar e fortalecer nossa vontade. É preciso lembrar que para o filósofo alemão
os princípios morais já estão presentes em nosso senso comum, e o papel da
filosofia prática consiste apenas em ajudar a elucidá-los.634 Como diz Rawls, Kant
não quer nos ensinar o que é o certo e o errado, pois acredita que já os
conhecemos; o comentador americano considera possível, devido à formação
pietista de Kant, que este esteja procurando uma forma de reflexão moral que
possa ser utilizada para verificar a pureza de nossos motivos.635
É possível, a nosso ver, aproximar esta relação entre o procedimento do IC
e as noções de virtude e Boa Vontade, em Kant, com a maneira pela qual a
deliberação aristotélica, βούλευσις, contribui para a formação do desejo racional,
βούλησις, que analisamos na parte 1. Percebe-se, assim, como nas duas
concepções o exercício continuo da racionalidade é fundamental para que nos
tornemos indivíduos cada vez mais virtuosos.636 Isso se deve ao fato, justamente,
de que nas duas concepções a virtude é entendida como uma disposição do agente
em seguir as prescrições da razão. A análise do processo deliberativo nos dois
autores, assim, contribui para revelar que a estrutura de suas concepções –
entendida como a relação entre os princípios formais da razão, o valor moral da
ação e a noção de virtude -, é similar. E este é, justamente, a tese central de nosso
trabalho.
Se formos, agora, resumir o que vimos neste terceiro capítulo da parte 2,
começamos por um rápido comentário acerca da distinção entre deveres de justiça
e de virtude, para então analisar a caracterização da virtude como uma “força” da
vontade, ligada, portanto, ao fenômeno da acrasia. Procuramos então argumentar
que, apesar desta caracterização, esta noção deve ser aproximada da virtude
de evitar que o irracionalismo das inclinações comprometam esta integridade. Como diz Herman, “a integridade da vontade é a forma empírica de sua autonomia” (HERMAN, 1996, p. 155, tradução nossa). 634 KANT, FMC 4:404-405. Cf. RAWLS, 2005, p. 168. 635 RAWLS, 2005, p. 171. Mais adiante, acrescenta: “o Imperativo Categórico, pelo contrário, articula um modo de reflexão que pode ordenar e moderar, de maneira razoável, o exame de nossos motivos” (ibidem, p. 171-172). 636 Existem, é claro, diferenças importantes entre o tipo de deliberação que existe em Kant, que é procedimental, e aquele que encontramos em Aristóteles, que possui um caráter instrumental. Como diz Korsgaard, no primeiro caso a deliberação possui a forma de um “teste”, enquanto no segundo trata-se do modelo de “pesar” razões (KORSGAARD, 2009, p. 51). Em ambos os casos, no entanto, podemos considerar que a deliberação moral (acerca de razões morais) gira em torno do princípio formal: em Aristóteles, este principio está “embutido”, como dissemos, no bem objetivo visado pelo homem virtuoso, e a deliberação, neste caso, é a sabedoria prática.
203
aristotélica, aretè, e não da continência, enkrateia. Para reforçar esta posição,
analisamos a relação entre virtude e Boa Vontade. Finalmente, fizemos uma
rápida descrição do processo deliberativo em Kant, visando mostrar como este
contribui para a formação do indivíduo virtuoso, assim como ocorre em
Aristóteles, confirmando, assim, a tese de que a relação entre a virtude e as
prescrições da razão é similar nos dois autores.
3.4
Conclusão da parte 2
Conforme dissemos na introdução de nosso trabalho, nosso objetivo
principal, no decorrer desta analise, consiste em mostrar que as éticas de Kant e
Aristóteles possuem uma estrutura similar: ambas se baseariam na dimensão
prescritiva da razão prática, a partir da qual seria determinado o valor moral da
ação, a virtude sendo entendida como disposição do agente em seguir estas
prescrições. As principais diferenças entre as concepções dos dois filósofos,
segundo nossa tese, poderiam ser explicadas pela ausência da noção de “vontade”
em Aristóteles.
No decorrer desta parte 2, assim, procuramos, por um lado, descrever a
estrutura da ética kantiana, e, por outro, compará-la com o que vimos na parte 1
acerca de Aristóteles. Podemos considerar que a descrição desta estrutura foi
relativamente simples: não é muito difícil, de fato, perceber que para Kant há uma
relação intrínseca entre moral e razão, e que esta se expressa através de uma
dimensão prescritiva da razão prática, representada pelo agente como um
princípio formal de volição, a Lei Moral. No capítulo 2.2, então, nós analisamos a
teoria do valor do filósofo alemão, pela qual o bem “objetivo” é aquele fruto de
uma escolha racional. O valor moral da ação, assim, se dá quando esta é realizada
“por dever”, ou seja, quando é determinada pela Lei Moral, através da noção de
Boa Vontade, único bem incondicionalmente bom pra Kant. Finalmente,
analisamos a noção de virtude, mostrando como esta se liga ao valor da ação e às
prescrições da razão.
Vamos agora relembrar, rapidamente, os principais pontos da comparação
com Aristóteles: entre as semelhanças mais facilmente identificáveis, podemos
citar a dimensão formal da ação moral, que a leva a ser escolhida por seu valor
intrínseco; a noção de valor “objetivo”, compreendida a partir do princípio formal
204
da razão; o internalismo (o valor moral da ação depende da intenção do agente); a
noção de virtude (como disposição do agente em seguir as prescrições da razão,
apesar da dimensão irracional de sua natureza); e o papel da deliberação na
formação do indivíduo virtuoso. Entre as diferenças, podemos fazer uma distinção
entre aquelas que procuramos contestar, e aquelas que aceitamos, sempre
procurando explicá-las, no entanto, a partir da noção de vontade. Entre as que
contestamos, estaria a suposta oposição entre a autonomia da ética de Kant e a
heteronomia dos antigos, e, de forma relacionada, a critica kantiana ao
eudaimoinismo: tentamos argumentar que, se chamarmos de autonomia a
identidade entre o “certo” e o “racional”, então a ética de Aristóteles é tão
autônoma quanto a kantiana, pois a regra reta, na concepção do estagirita, não é
definida como “aquilo que contribui para a felicidade”, mas sim a partir do bom
funcionamento da razão (a noção de “felicidade” é que seria, assim, compreendida
a partir deste bom funcionamento). Se chamarmos de autonomia a capacidade da
razão de determinar por si só as ações, então há, sim, uma diferença entre Kant e
Aristóteles, que pode ser explicada a partir da ausência da noção de vontade neste
último. No entanto, tentamos argumentar que é preciso distinguir esta diferença
daquela, mais forte, em relação a concepções instrumentalistas, e, a partir desta
distinção, faria mais sentido, a nosso ver, chamar visões como a de Aristóteles de
“versão fraca de autonomia”, e não de heteronomia. A partir daí, procuramos
discordar da crítica kantiana ao eudaimonismo, que se basearia na identificação
equivocada deste conceito com a própria noção de felicidade do filósofo alemão
(enquanto busca pelo agradável), subestimando, assim, o papel central do
princípio formal na constituição da eudaimonia. Sugerimos que este tipo de
equívoco pode estar ligado ao fato de que os antigos tendem a relacionar o
elemento formal com o material (o logos enquanto princípio organizador do real,
que se reflete na tese aristotélica da harmonização entre desejo e razão), enquanto
Kant enfatiza a “pureza” do princípio formal, e, portanto, sua cisão com o
material.
Entre as diferenças que “aceitamos”, por assim dizer, podemos citar como
exemplo a prioridade do justo (pois em Aristóteles o argumento do érgon
corresponde a uma noção de “bem”, mas que não leva a uma concepção
instrumental da razão, pois trata-se de uma concepção diferente do “bem”
enquanto fim visado pela ação), mas argumentamos, por um lado, que isso não
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afeta diretamente nossa tese (que parte, por assim dizer, da ligação intrínseca entre
razão e moralidade nos dois autores, independentemente da argumentação que
justifica esta ligação), e, por outro, que é possível contestar esta prioridade em
Kant (como faz Barbara Herman, considerando que o interesse em agir
racionalmente pressupõe a natureza racional enquanto concepção de valor).
Podemos também citar a oposição entre o particularismo aristotélico e o
universalismo kantiano - que procuramos, mais uma vez, relacionar à ausência da
noção de “vontade” na concepção do estagirita, considerando, assim, que a
dimensão formal da ética aristotélica não deixa de ser universal, mas o conteúdo
da ação, por também depender do desejo, varia de acordo com as circunstâncias.