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CAZENAVE, Michel — AUGUET, Roland, Os imperadores loucos. Ensaio de mito-análise histórica, com prefácio de Claude METTRA, Lisboa, Editorial Inquérito, 1995, 216 p. Propõem-nos os autores uma nova maneira de fazer história, uma história etiológica que "se constrói sobre vários alicerces, independentemente uns dos outros, mas em constante interacção...". Esses alicerces são o político, o económico, o morfológico, "e finalmente um alicerce arquetipológico cuja existência imaginai a psicologia das profundezas de Jung nos permitiu entrever. (...) Ε sobre este último alicerce que nós desejaríamos insistir, tentando introduzir na disciplina histórica a dupla hipótese de arquétipos da sociabilidade e manifestações temporais de uma realidade psíquica objectiva que, à luz dos trabalhos de Henry Corbin, e na sequência das aplicações que deles fizeram James Hillman e Pierre Solié, nos propomos designar como as epifanias do imaginai" (p.14-15). Apesar da mencionada "realidade psíquica objectiva", não deixam os autores de ter consciência de que "este livro não procura ser um ensaio de explicação, mas de explicitação. Necessariamente parcial, e sabendo-o desde o início" (p.21). Traçados estes pressupostos, não admira a primazia dada a bibliografia onde imperam, além dos nomes já citados, Dumézil, Durand, Eliade, etc.,.e, logo, distinções subtis como arquétipo social, arquétipo da Mãe, filho-amante, oposição animuslanima, e, ainda, toda uma panólia de complexos fálicos, sexualidade duvidosa, incestos, que são repetidos nas fontes antigas a respeito de determinados imperadores, e que os nosso autores tomam como fundamentados e reais quando convém à sua análise, jamais referindo que essa invectiva política, que já vem da Grécia e da feroz luta política da Roma Republicana, se socorre de uma tipologia que transfere para a semântica política acusações de foro da vida privada, mas situando-as num campo simbólico e metafórico (neste aspecto, deveriam os autores meditar bem quando, na p.201, a propósito de Heliogábalo, recordam a "coerência de uma contrapropaganda que de tudo se serve"). Em meu entender, também não recorreram os autores a traços ideológicos tradicionalmente importantes na história de Roma, como, por exemplo, o da imitatio Alexandri por parte dos grandes generais romanos, forma de exprimir o afã de realização de uma oekoumene ou império universal: é que, se o fizessem, na galeria de imperadores loucos que encontraram, teriam de colocar, lado a lado com César e Nero, também Pompeu e Augusto. O mesmo resultado provavelmente seria alcançado se o critério de aproximação fosse a ideia de "fundar de novo" Roma (p.154) ou até, coisa jamais referida, o da celebração dos Jogos Seculares. Ε quanto à abertura ao Oriente, característica da "monarquia maternal": será que Augusto só

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CAZENAVE, Michel — AUGUET, Roland, Os imperadores loucos. Ensaio de

mito-análise histórica, com prefácio de Claude METTRA, Lisboa,

Editorial Inquérito, 1995, 216 p.

Propõem-nos os autores uma nova maneira de fazer história, uma história etiológica que "se constrói sobre vários alicerces, independentemente uns dos outros, mas em constante interacção...". Esses alicerces são o político, o económico, o morfológico, "e finalmente um alicerce arquetipológico cuja existência imaginai a psicologia das profundezas de Jung nos permitiu entrever. (...) Ε sobre este último alicerce que nós desejaríamos insistir, tentando introduzir na disciplina histórica a dupla hipótese de arquétipos da sociabilidade e manifestações temporais de uma realidade psíquica objectiva que, à luz dos trabalhos de Henry Corbin, e na sequência das aplicações que deles fizeram James Hillman e Pierre Solié, nos propomos designar como as epifanias do imaginai" (p.14-15).

Apesar da mencionada "realidade psíquica objectiva", não deixam os autores de ter consciência de que "este livro não procura ser um ensaio de explicação, mas de explicitação. Necessariamente parcial, e sabendo-o desde o início" (p.21).

Traçados estes pressupostos, não admira a primazia dada a bibliografia onde imperam, além dos nomes já citados, Dumézil, Durand, Eliade, etc.,.e, logo, distinções subtis como arquétipo social, arquétipo da Mãe, filho-amante, oposição animuslanima, e, ainda, toda uma panólia de complexos fálicos, sexualidade duvidosa, incestos, que são repetidos nas fontes antigas a respeito de determinados imperadores, e que os nosso autores tomam como fundamentados e reais quando convém à sua análise, jamais referindo que essa invectiva política, que já vem da Grécia e da feroz luta política da Roma Republicana, se socorre de uma tipologia que transfere para a semântica política acusações de foro da vida privada, mas situando-as num campo simbólico e metafórico (neste aspecto, deveriam os autores meditar bem quando, na p.201, a propósito de Heliogábalo, recordam a "coerência de uma contrapropaganda que de tudo se serve").

Em meu entender, também não recorreram os autores a traços ideológicos tradicionalmente importantes na história de Roma, como, por exemplo, o da imitatio Alexandri por parte dos grandes generais romanos, forma de exprimir o afã de realização de uma oekoumene ou império universal: é que, se o fizessem, na galeria de imperadores loucos que encontraram, teriam de colocar, lado a lado com César e Nero, também Pompeu e Augusto. O mesmo resultado provavelmente seria alcançado se o critério de aproximação fosse a ideia de "fundar de novo" Roma (p.154) ou até, coisa jamais referida, o da celebração dos Jogos Seculares. Ε quanto à abertura ao Oriente, característica da "monarquia maternal": será que Augusto só

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acolheu cultos itálicos e tradicionais? Ε não foi o mesmo Augusto suspeito de se inclinar para a deificação do imperador (cf. p.106; recordar interpretação do sidus Iulium)! Não era a sua monocracia algo a que também poderíamos chamar "um modelo político de vocação universal" (p.53)?

Ε porque hão-de o ouro (cf. p.185) e o luxo ser tomados somente como inerentes a uma monarquia mística de tipo oriental? Se nos recordarmos bem do texto de Lucrécio, por exemplo, vemos como a auaritia e a luxuria- eram vícios capitais dos magnates (é verdade que o epicurismo também lhes chama reis), da Roma Republicana.

Ε é necessário relacionar tão forçosamente o poder de sedução, ou a lubricidade de Cleópatra (cf. p.84), com incesto?

Amiúde socorrem-se os autores de dicotomias para basear a sua mito-análise: oposição entre o povo e o Senado, mesmo que, por vezes, pareçam ser insisten­temente aplicadas concepções mais apropriadas à época republicana que à época imperial; entre os cavaleiros e os senadores, não anotando, neste caso, que era diminuta a oposição de interesses e que o Senado imperial não pode ser entendido como um corpo ideologicamente monolítico (cf.p.187), onde inexistiam correntes e antagonismos; afirmação, tout court, de que Tibério era o herdeiro da tradição augustana (p.110) e que se apoiava no Senado contra o povo (p.112), sem serem explicitadas as circunstâncias da sua subida ao poder e tiradas todas as ilações do facto de, para atacar o Senado, Calígula ter feito a apologia de Tibério (p.l 18-119).

E, apesar da acusação de parcialidade lançada contra a historiografia latina em geral (cf. p.126-127; 130-131; 147), não deixam, afinal de contas, os nossos eruditos de apoiar a sua mito-análise em grande medida nos relatos desses autores. Isso não impede que os mesmos sejam vilipendiados por vezes de uma maneira extremamente sumária, como na p.128, quando se escreve a propósito de Calígula: "os historiadores latinos confundem sem cessar, mais ou menos voluntariamente, a 'caixa' privada do imperador e as finanças públicas". Mas, pergunto, essa confusão não existia realmente e até institucionalmente?

Em conclusão: aqui está um livro escrito com inteligência e argúcia, diria até com alguma paixão, com páginas interessantes para serem lidas por quem se interessa por coisas romanas, dispõe de algum juízo crítico e gosta de controvérsia. Uma tentativa de reabilitação, pela mito-análise, das figuras dos imperadores loucos, valorização que outros estudiosos têm procurado assumir de forma mais objectiva e menos parcial, como nos casos de Tibério, Cláudio e Nero; um conjunto de reflexões por vezes de interesse (e.g. p. 132-149); um meio de chamar a atenção, através do método escolhido, para a importância das influências orientais, do histrionismo do poder; de enfatizar a necessidade de utilizar métodos menos tradicionais para completar uma visão global da história da antiguidade que mostre, como acer­tadamente se escreve, que certos imperadores eram "Não tão loucos como se disse" (p. 209).

A tradução, que não se revelaria fácil em vista da argúcia da análise e até dos neologismos utilizados, enferma de alguma ligeireza sintáctica e de numerosos erros na versão de nomes antigos, incluindo de autores clássicos conhecidos. Merecia, nesse aspecto, ser revista por um classicista.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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BAUZà , Hugo Francisco, El Imaginário Clásico. Edad de Oro, Utopia y

Arcádia, Universidade de Santiago de Compostela, Servicio de

Publicacións e Intercambio Científico, 1993, 226 p.

Como escreve o Prof. Díaz y Díaz, no prólogo, Hugo Bauzà soube unir o rigor filológico com uma exposição clara e amena, muito apropriada à abundância de informação inerente a um objectivo grandioso: pesquisar, nas literaturas grega e latina, três temas de grandes implicações literárias e ideológicas.

Na I Parte, consagrada à Idade do Ouro, o autor descreve os lugares-comuns desse mito, que com frequência revela uma nostalgia do passado, salvo no caso em que é transferido para o plano político, onde se reporta ao presente e permite a Virgílio louvar Augusto (p. 23). São sucessivamente analisados temas tão impor­tantes como o mito das idades, tanto numa perspectiva de mitologia comparada como através da análise do pensamento grego e latino, desde Hesíodo (p. 32 ss.: trans­forma o tema das idades no tema das raças humanas; acrescenta a quinta idade, ou seja, a dos heróis; imagina que, ao morrer, o homem pode subtrair-se a ser confinado no Hades), a Virgílio (p. 39 ss.: difícil de interpretai por muitas vezes operar um jogo deliberado entre alusão e ilusão, e criar um sincretismo explicável por razões poéticas; saliente-se a acuidade da análise das p. 48 ss., onde se escreve que, nas Geórgicas, "asistimos a una edad de oro lograda merced ai esfuerzo tenaz dei género humano en que este, hostigado por la pobreza, debe empenarse en superar esa condición"), e a outros poetas augustanos e autores posteriores, nos quais se observa a tendência para polarizar o mito das idades em duas, a do ouro e a do ferro (p. 55).

Num segundo capítulo desta I Parte, é discutida a questão da idade do ouro perante o tempo e a história, gerando-se a oportunidade para abordar questões como as noções de tempo cíclico e de tempo linear, com implicações no conceito de progresso (p. 63 ss.), de que se ocupou em especial L. Edelstein (p. 67). O assunto permite uma passagem por variados autores gregos e latinos, assinalando-se que estes privilegiam o conceito linear de tempo (ver em esp. p. 79 ss., a propósito de Lucrécio; p. 85 ss., quanto aos historiadores).

Um terceiro capítulo é dedicado à evasão no espaço, com especial empenho no topos do locus amoenus, com frequência caracterizado pela insularidade; nos motivos dos Campos Elísios (p. 96 ss.) e das Ilhas dos Bem-Aventurados (p. 102 ss.); na análise do pensamento de autores como Hesíodo e Píndaro, Horácio e Virgílio, nestes últimos se verificando a adequação dos mitos aos marcos histórico-políticos de Roma, graças a um sincretismo de várias -doutrinas e concepções, como se escreve nas p. 119-120.

A II Parte é dedicada ao tema Utopia. Num bosquejo panorâmico, é traçada a história e evolução do género, de Platão aos Sofistas (cf. p.146 ss.: a utopia na controvérsia physis/nomos), à comédia grega (interessante o capítulo "A utopia gastronómica ou gustativa", nas p.165 ss.), à novela grega, onde sobressai a afirmação de que as Histórias Verdadeiras de Luciano "são a 'sensata' resposta de um cínico à literatura de evasão, em moda entre os novelistas gregos dos séc. I e II".

A ΙΠ Parte é consagrada à Arcádia, sendo posta em relevo a importância de Políbio como criador da ideia de pastores-músicos (p. 196), e de Virgílio, cuja

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originalidade consistiu em "ter transfigurado a Arcádia real" (p. 197), trans-formando-a "no símbolo de um espaço ideal de perfeita felicidade" (p. 204).

Em suma, um livro bem documentado, com uma base de análise interdisciplinar que permite urna sólida visão de conjunto de um tema de extrema importância para a literatura e para a história do pensamento desde os tempos mais remotos até à actualidade.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

BRUCKNER, Thomas, Die erste franzõsische Aeneis. Untersuchungen zu

Octovien de Saint-Gelais' Ubersetzung. Mit einer kritischen Edition

des VI Buches, Dusseldorf, Droste, 1987, 394 p.

Ao publicar, como contributo para a história da recepção de Virgílio, esta pri­meira tradução da Eneida em francês, da autoria de Octovien de Saint-Gelais, morto em 1502, aos 34 anos de idade, lança Th. Bruckner importantes luzes sobre os começos do Renascimento em França, na sua dialéctica com os ideários da Idade Mé;!ia.

A edição oferece-nos capítulos sucessivos sobre o estado das investigações; a história do texto; a tradução como texto francês; a tradução francesa em comparação com a edição latina; a influência desta tradução; conclusão; bibliografia; edição crítica do livro VI da tradução de Octovien de Saint-Gelais, com notas.

Como se pode observar, trata-se de um plano bem elaborado, que permite ostentar uma elevada erudição (desde questões de crítica textual a estudos de métrica, sintaxe e iconografia), fruto de muito trabalho, bem servida por uma exposição elegante, concisa e clara, e por ilustrações numerosas.

Seja permitido, pelo interesse cultural genérico para quem se dedica aos estudos sobre a época, ressaltar o capítulo Interpretationen (p. 196-213: Interpres christianus; Fata und Fortuna; Mittelalterliche Welt und Idylle), onde respigo afirmações como: "Die franzõsíchen Renaissance ubernimmt manche der mittelalterlichen Deutungsformen, nicht zuletzt die Vergil-Allegorese" (p. 198; cf. p. 265, nas conclusões; a pervivência do mundo medievo é visível em factos como a tradução de imperium por "seigneurie"); "Die Beispiele lassen die Entstehung der franzõsischen Aeneis in der christlichen Welt gut erkennen. Dennoch sind es insgesamt wenige Passagen, in den sich der interpres christianus offenbart. Octovien iibersetzt dei ais "dieux" und fata ais "volunté des dieux", ohne dass hier der Versuch einer religiõsen Angleichung erfolgte" (p. 201); e, finalmente: "Die spãteren Versioiien lassen eine ungleich grõssere Distanz zur antiken Welt erkennen ais Octovien" (p. 209).

De especial interesse reputo ainda o capítulo dedicado à Teoria da tradução no Renascimento francês (p. 222-235).

Em conclusão, é inegável o interesse desta obra, tanto para a história da recepção de Virgílio na literatura europeia, como para a história do Renascimento em geral.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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Μ. L. WEST. Ancient GreekMusic. Clarendon Press, Oxford, 1992, 410 pp.

ISBN 0-19-814897-6

O tema da música grega tem constituído uma boa fonte de inspiração para o aparecimento de estudos tão significativos como são os de J. Chailley, G. Comotti, F. Gevaert, T. Georgiades, T. Reinach, A. Riethmiiller / F. Zaminer, E. Polhman, K. Schlesinger, e mais recentemente o de M. West. Com esta obra, o autor abriu uma nova área interdisciplinar, cujo horizonte epistemológico abrange os estudos clássicos, a filosofia e as ciências musicais. Para cumprir tal objectivo adoptou a hermenêutica de fontes tão diversas como a literatura, a filosofia, a iconografia, as inscrições, os papiros musicais e a teoria musical dos autores helenísticos, que se afiguram como os meios essenciais a partir dos quais é possível inteligir a música helénica. Diante desta diversidade de materiais, torna-se indispensável estudar comparativamente as fontes, quer pelas interacções que existem entre elas, quer pela unidade concepcional relativamente aos problemas musicais, extraída da sua análise e reveladora de um pensamento music i). grego, com linhas mestras e concepções de fundo comuns entre vários autores.

A metodologia que está subjacente a esta obra, consite essencialmente em pesquisar, entre as concepções helénicas, as que melhor traduzem cada uma das diversas áreas constituintes dos estudos musicais. Ε o que acontece, por exemplo, com a classificação organológica. Neste domínio, o autor mostra por reductio ad absurdum, que não é possível aplicar a moderna classificação de Hornbostel e Sachs ao instrumentário grego, por já serem conhecidos estudos neste âmbito, de autores como, Aristóxeno, frg. 95, Ateneu, 174 c, Polux 4, 585, Aristides Quintiliano, 85.3, que organizaram os instrumentos em várias categorias. A família da lira, barbitos, kithara e phorminx; os auloi, syrinx, salpinx; os tympana e crotala. Estas duas últimas famílias não estavam associadas à "música séria". Sobre este tema, West expõe os diversos problemas que uma classificação organológica pode suscitar. Tais dificuldades são derivadas da multiplicidade de formas das caixas de ressonância, do número de cordas, caso dos cordofones, ou mesmo, resultantes de ideias gene­ralizadas, como aquela que representa a lira como modelo de toda a família dos cordofones gregos. Esta ideia, tem-se manifestado como um verdadeiro obstáculo epistemológico para o conhecimento e estudo dos cordofones gregos. No entanto resulta, em grande medida, das numerosas referências que a literatura grega faz à narrativa da invenção da lira e das múltiplas vezes que os textos gregos indicam o instrumento como representante de um,cordofone qualquer.

Seguindo Platão (Rep. 399 c-d), West divide os cordofones em duas categorias, tendo como ciitério o formato da caixa de ressonância e o número de cordas: as liras e as harpas (pp. 50 sqq.). Na primeira categoria encontram-se os instrumentos, cuja caixa de ressonância pode ser arredondada (v.g. phorminx, ou "kithara de berço"), rectangular (v.g. kithara Italiota), ou convexa (v.g. chelys-Iyra e barbitos). Na segunda categoria estão os cordofones com mais de sete cordas e de formato triangular (v. g. péktis, magadis, sambyké e klepsiambos). Neste domínio dos instrumentos, o autor dedica todo o segundo capítulo à voz, que, a solo, ou em coro representa o que há de mais essencial na música grega - a unicidade entre melodia e palavra. De facto, a voz, além de ser o instrumento mais completo, e

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também o meio por excelência de execução musical, permite interpretar a poesia e evidenciar expressivamente o ritmo que lhe está subjacente. Ε de tal forma o canto é relevante, que mesmo quando está acompanhado por um instrumento, nunca se subordina a ele (cf. Ps - Arist. Pr. 19.9), ainda que se cante em coro. A clareza vocal permanece sempre e no coro, é ouvida com tal afinação em uníssono, como se de uma só voz se tratasse. ,

Este capítulo dedicado à voz estuda também o recitativo (parakatalogé), as tessituras vocais, a textura das vozes em coro e a solo, além dos problemas de teoria musical relacionados com os intervalos e sistemas, as consonâncias e dissonâncias.

Na secção que dedica ao estudo do coro, West levanta um dos principais problemas que se colocam mais frequentemente: como eram aprendidas as obras corais, de ouvido, ou com a ajuda de partituras? As múltiplas referências ao chorodidaskalos que são feitas pelos textos literários, filosóficos e pelos teóricos musicais, conduzem à conclusão de que a formação e a execução assentava sobretudo em duas faculdades: o ouvido e a memória. O papel do coro na formação musical era determinante, uma vez que a preparação da voz era formada a partir dele, constituindo-se como uma verdadeira escola de colocação vocal, de controlo do volume, intonação, precisão da enunciação vocálica, alteração da afinação natural de cada cantor, precisão e rigor rítmicos, controlo da nasalidade e do tremolo. Ao ser trabalhada deste modo, a voz era qualificada pelos gregos como ligys ou ligyros, referindo ambos os termos uma boa afinação e colocação.

Por ser o centro da música, o canto exigia exercício e treino intenso, aos quais Platão se refere nas Leis, 665 e, como condições para um cantor a solo ou em coro se apresentar em público. Deveria mesmo existir entre os gregos uma ideia de excelência vocal, pois como mostram Dionísio de Halicarnasso (11, 6) e Aristóxeno (Eletn. Harm. I, 2) a voz natural possui potencialidades melódicas, como a eufonia dos jogos consonantico-vocálicos, o tempo próprio de emissão de cada vogal, além da elevação de uma quinta. Por isso, a voz é o modelo de todos os instrumentos e talvés a chave da compreensão dos problemas, que mais polémica têm suscitado no domínio da música antiga; referimo-nos à afinação, ao diapasão e ao temperamento. Uma das características mais marcantes desta obra de West é a conversão da métrica em notação musical convencional. Abre deste modo o horizonte do ritmo grego e da relação entre ritmo e melodia. A transposição dos símbolos métricos para a notação musical representa a forma mais explícita de ilustrar como o ritmo grego era com­plexo, não se reduzindo à relação breve-longa, mas a correspondências quantitativas semelhantes às quiálteras, e a divisões complexas que nos permitem verificar a expressividade de ritmos, como o dócmio ou o glicónico. Quando um estudo destes é elaborado por alguém como West que conhece tão bem a métrica, como a música, somos levados a concluir que se trata de um trabalho de rigor e um modelo apro­priado para orientar análises de coros, monódias e recitativos. Ε neste domínio do ritmo que a obra de West se revela essencial para o estudo das ciências musicais, uma vez que ilustra com muitos exemplos as grandes semelhanças existentes entre os ritmos da música grega e alguns ritmos usados, por exemplo na música barroca e na música contemporânea.

Na sequência do ritmo vem o problema dos "modos". Trata-se de um problema que excede a simples questão terminológica. No entanto, tem interesse referir que desde finais do século passado uma série de estudiosos preferem o termo

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"harmoniai", ao termo "modos", por este último traduzir melhor os sistemas de tetracordes medievais, enquanto o primeiro refere-se aos tetracordes gregos compostos por notas fixas e móveis e um complexo de géneros diatónico, cromático e enarmónico. Com base nestas distinções West ensaia uma análise melódica dos fragmentos musicais existentes, levantando, no entanto algumas dificuldades quanto à notação grega e sua tradução no sistema de claves convencional. Com efeito não podemos determinar com rigor o "pitch", usado pelos gregos abrindo-se neste domínio uma interrogação a que não podemos dar resposta.

A música grega conduz-nos a muitas destas perguntas, que West não deixa de colocar, mostrando as verdadeiras dificuldades deste estudo, e, ao mesmo tempo o largo campo que pode ser explorado sempre com renovado interesse.

AIRES RODEIA PEREIRA

Musici Scriptores Graeci. Aristóteles, Euclides, Nicomachus, Bacchius,

Gaudentius, Alypius et melodiarum veterum quidquid exstat.

Stutgardiae et Lipsiae in Aedibus teuneri 1995 ( I a ed 1885). Musici

Scriptores Graeci, suplementum, melodiarum reliquiae. Stutgardiae

et Lipsiae in Aedibus teuneri 1995 (laed 1885).

Após um século, a Teubner resolveu reeditar uma das suas obras mais importantes e, no que toca ao estudo da música grega, sem dúvida, a mais signi­ficativa. Está dividida em dois volumes, dos quais, o primeiro é consagrado aos textos de teoria musical e o segundo, às obras musicais com notação antiga e tradução em notação musical convencional. No primeiro volume encontramos edições críticas de Pseudo-Aristóteles, Euclides, Nicómaco, Baquio, Gaudêncio, Alípio, enquanto no segundo, constam todos os fragmentos musicais existentes quando a obra saiu pela primeira vez, exceptuando-se assim, o fragmento musical de Ifigénia em Aulide, que só recentemente foi conhecido. Mas a obra, agora disponível, serviu de base a traduções integrais destes mesmos textos, como as de A. Barker, e à edição crítica dos textos com notação musical de E. Põlhman, que inclui também análise musical.

Muitos estudiosos citam a edição de C. Jan que, apesar de ter um século, ainda se mantém válida, outros, porém, ainda citam a edição de Meibom de 1652, que reunia os mesmos textos.

C. Jan ordenou os autores e respectivos textos de acordo com um critério cronológico, seguindo Meibom e Marquard (1880) e tendo em conta os estudos sobre inscrições gregas de Franz (1833). A obra inclui uma lista de 210 códices, resultantes de uma investigação longa e rigorosa sobre muitos catálogos das mais importantes bibliotecas europeias. Assim se fixaram as lições de alguns dos mais importantes tratados musicais da antiga Grécia. Alguns editores ulteriores a C. Jan

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debruçaram-se sobre tratados que não fizeram parte da colecção de C. Jan, mas continuam a citar a sua lista de manuscritos, pois ninguém apresentou um corpo de mauscritos tão completo, contendo o essencial da teoria musical grega, nem se catalogaram os códices de uma forma tão sistemática, como o fez C. Jan.

O grande valor desta obra avalia-se pelo interesse que a teoria musical das culturas helénica e helenística têm suscitado na investigação e, até na composição de obras musicais inspiradas na linguagem composicional grega.

Autores como Boécio constituíram uma ponte entre a antiguidade e o presente na transmissão do legado da música antiga. Neste domínio, também devemos lembrar a tradição bizantina, que preservou fielmente os princípios da teoria musical da antiga Grécia, cabendo aos autores eruditos do Renascimento restabelecer a herança da civilização grega. No entanto, também os eruditos islâmicos, verteram os mesmos tratados para árabe, juntando, assim, os seus esforços à tarefa comum de estudar e divulgar os aspectos especulativos e práticos da música grega.

Após o Renascimento foram feitos os maiores esforços para recuperar a teoria musical antiga, que foi alargada e aplicada aos novos problemas musicais de cada época (v.g. à música do barroco). Mesmo na música contemporânea, a teoria musical grega encontra-se presente, por um lado, na terminologia e na lógica da teoria musical contemporânea e, por outro, o pensamento estético helénico revela-se deci­sivo para o estudo da Estética Musical.

Embora a música prática dos gregos permaneça desconhecida, a sua teoria musical tem exercido um verdadeiro fascínio, igualmente em compositores, musi-cólogos e helenistas.

AIRES RODEIA PEREIRA

CéSAR GONZáLEZ OCHOA, La Música dei Universo. México, Universidad

Nacional Autónoma de México, 1994, 133 pp. ISBN 968-36-3466-4

A obra de C. Ochoa constitui um estudo sobre a noção de harmonia em Platão. O termo αρμονία configura um complexo de conceitos que lhe estão associados, entre os quais, a ordem, a proporção e a analogia. Subjacente a todos está o conceito de natureza. A interpretação matemática da natureza, que sistematicamente foi ensaiada pelos gregos, conduziu à ideia de cosmos, ou universo ordenado, segundo uma perfeição estruturada.

Para justificar o sentido da αρμονία , o autor recorre às concepções pita-góricas, sem no entanto fazer qualquer referência às muitas dificuldades que se colocam ao investigador que pretenda conhecer o conteúdo e alcance da doutrina de Piiíigoras c so í'L:ag--:':a::i-j aicaico. Nos mais recentes estudos verifica-se, que se levantam grandes reservas quanto à datação das teorias, não se podendo sequer atribuir nenhuma a Pitágoras.

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'Αρμονία, é um termo muito utilizado pelos gregos e está próximo do verbo άρμοττεΐν, que significa juntar. Este significado é usado, quer na física, quer na música, quer nas ciências, ou ainda na literatura.

O estudo de C. Ochoa, parte do Timeu, para expor a ordem, ou harmonia do sistema planetário e sua manifestação na polis, prosseguindo na República e nas Leis, diálogos onde Platão associa harmonia à ordem do Estado e à ordem dos indivíduos que conformam a cidade. Assim, (R 43le) a temperança assemelha-se à harmonia, porque se alarga a toda a cidade conduzindo os cidadãos a cantar em unníssono, na mesma oitava. A oitava era considerada a mais perfeita συμφονια e αρμονία. No interior dos logoi, Platão questiona a possibilidade de um sistema harmónico, embora esteja longe de nos dar uma teoria musical consistente. No entanto, sempre que nos seus diálogos se analisam problemas como, a educação, a governação, ou a astronomia, encontramos a harmonia musical como modelo.

As noções de harmonia que Platão vai apresentando nos vários diálogos, não diferem do conceito que os teóricos musicais, como Aristides Quintiliano vão tratar, já num domínio próprio da música. Tal como em Platão, a harmonia surge como a forma, na qual se articulam elementos, como sejam, os sons e os intervalos. Um conceito definido deste modo, nasce necessariamente de relações entre termos opostos e estabelece a unidade entre as diversas partes que compõem o todo (sons, intervalos, tetracordes, géneros e sistemas). Ε precisamente com a intenção de mostrar que a harmonia consiste numa proporção entre extremos opostos, que Platão dá o exemplo da reunião harmoniosa dos três elementos diferentes numa proporção musical (R. 443 e-444). Neste exemplo são apresentados três termos, que repre­sentam as principais cordas de um cordofone: a mais baixa, a mais alta e a intermédia. Para as ligar a todas existe a unidade perfeita que é representada pela harmonia. Como mostra C. Ochoa as concepções de harmonia defendidas por Platão, estão neste passo muito próximas das que mais tarde Euclides, ou Nicómaco de Gerasa vão desenvolver. De acordo com este último (Arithmetica Introdução, II, 2-3) a harmonia, tanto se refere a um intervalo, como à união de vários intervalos, ou ainda às consonâncias entre eles. A determinação destas consonâncias, faz-se, de acordo com Nicómaco, algebricamente (v.g. a proporção da oitava: 2/1; da quinta: 2/3; da quarta: 3/4). Estes elementos numéricos conjugam-se de tal modo em Platão, que somos levados a concluir que o estudo da música conduz também ao conhe­cimento da sociedade humana, como se o demiurgo tivesse construído no universo a imagem do sistema musical. O Timeu tem em grande medida, como finalidade, explicar esse cosmos, no centro do qual está o homem, que é o princípio das proporções na música, na astronomia, ou na política.

C. Ochoa manifesta a convicção de que a teoria política de Platão é tão rigorosamente musical como a sua teoria do universo. A sua obra é um espelho dessa posição, nos seus seis capítulos, cujos temas constituem como que um crescendo, desde a noção de harmonia, que está no centro de tudo, à noção de proporção e, finalmente, à harmonia do cosmos.

É um bom instrumento de trabalho que aborda os problemas musicais através de uma fundamentação filosófica. Por isso destina-se a um vasto público, que abrange filólogos, filósofos e musicólogos.

AIRES RODEIA PEREIRA

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SAÚL A. TovAR, Biografia de la lengua griega. Sus 300O anos de

continuidad, Centro de Estúdios Bizantinos y Neohelénicos,

Universidad.de Chile, 1990, pp. 386)

El humanista Erasmo de Rotterdam pretendió reconstruir en el siglo XVI la pronunciación dei griego clásico; para ello propuso una serie de normas que fueron adoptadas por los filólogos de su época y que es la que hoy se utiliza en la ensenanza de esta lengua en la mayor parte de los âmbitos académicos. La versión de los erasmianos era que la lengua griega se había corrompido por el paso dei tiempo y por diversas invasiones y que era preciso volver a las fuentes.

S. Tovar, graduado en la Universidad de Atenas en lengua griega moderna, puntualiza que la adopción de la pronunciación erasmiana provoco una fractura en la lengua griega, desvinculando el griego moderno dei clásico y eclipsando, en consecuencia, la continuidad de una lengua três veces milenária.

Su planteo pretende desbaratar lo erasmiano para lo cual reúne un sinnúmero de testimonios -desde la Antigiiedad hasta nuestros dias- que parecen invalidar esa propuesta. Su tesis, que a primeira vista parece atrevida, no apunta a una simple controvérsia fonética -lo que seria una cuestión baladí y, tal vez, de insoluble resolución-, sino ai replanteo de un debatido problema histórico-político-religioso, y no solo lingiistico.

En primer lugar refiere que la pronunciación restituía o erasmiana en verdad nunca existió. sino que se trata de una creación de laboratório, a tal extremo artificial que el propio Erasmo, cuando se creó la Universidad de Lovaina, aconsejó a J. Láscaris cubrir la cátedra de griego con un griego nativo "para que los estudiantes adquieran la genuína pronunciación de la lengua griega" (página 118), es decir, no utilizando la pronunciación restituía, por consideraria "artificial", sino la nativa, que Tovar designa nacional.

En segundo lugar argumenta que la pronunciación erasmiana "no procede propriamente de un análisis científico", sino que responde a una problemática político-religiosa que se aprecia, por ejemplo, en las universidades inglesas de los siglos XVI y XVII, donde se desato una guerra entre católicos -que abogaban por la pronunciación nacional dei griego- y protestantes, que apoyaban -en cambio- la erasmiana.

El desechar la pronunciación nacional implicaba, de hecho, el abandono de lo bizantino y postbizantino "como herederos y continuadores de la Grécia clásica" (página 170).

La aparente escisión arranca fundamentalmente de la conquista de Grécia por los romanos (siglo II a.C.) y dei tralado de la capital dei Império romano de Oriente a Bizâncio -bautizada luego como Cosntantinopla-, a partir de lo cual los griegos pasaron a Uamarse romanos, conservando el apelativo helenos para sus antepasados. Esa circunstancia no significa la muerte de la lengua griega, pues esta siguió viviendo a través de una comunidad linguistica "en el exílio", la que tampoco sucumbió ante la ocupación otomana.

La mutación de lo griego durante los períodos bizantino y postbizantino no significa una quiebra o fractura con lo anterior, sino una suerte de silencio respetuoso producto de una inhibición frente a un pasado ilustre y también por la

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circunstancia fortuita de no haber tenido, durante esos siglos, un poeta, por ejemplo, de la altura de un Dante.

Tovar sugiere que para conocer el griego clásico es preciso comenzar por el moderno y luego retroceder en la historia de esa lengua, así como cuando un extranjero pretende conocer a Cervantes, empieza por el espafiol actual y a partir de allí se remonta ai de los siglos XVI y XVII.

El volumen que comentamos consta de dos secciones. En la primera el autor traza una sucinta -pêro sustanciosa- historia de la lengua griega en la que sigue la interpretación tradicional; en la segunda, en cambio, ai abordar "el enfrentamiento de ambas pronunciaciones: la nacional y la reformada", aboga encarnizadamente en pro de la pronunciación nacional y, en consecuencia, en favor dei abandono de la erasmiana, no sin dejar de presentar numerosas pruebas y testimonios sobre una disputa cuatro veces centenária.

En cuanto ai problema de la herencia de la Grécia clásica corresponde puntualizar que este legado no es privativo de la Grécia contemporânea, sino de la cultura occidental en general que se asienta, precisamente, sobre pilares helénicos. Empero, si es vedad que un heleno-parlante tiene más posibilidades que quien no lo es, de bucear en esas fuentes.

El trabajo, que destaca la importância y. significado de los estúdios bizantinos y neohelénicos, lleva prólogo dei helenista Charalambos Korakas.

HUGO F. BAUZá

MAURíCIO BEUCHOT, Tópicos de filosofia y lenguage. Universidade

autónoma do México (Cuadernos dei Instituto de Investigaciones

Filológicas, 17), 1991, 247 p.

Que os problemas da linguagem acompanharam sempre os problemas filosóficos (pp. 24-25, com a remissão para Moore) comprovava-o já no sec. IV a.C. Platão, ao definir, no Sofista, a linguagem como uma das seis espécies de Ser e condição sine qua non da filosofia. As actuais tendências da Filosofia Analítica para reduzir a essência da actividade filosófica à análise da linguagem mais não são do que a interpretação exclusiva de um vínculo a que Parménides veio, pela primeira vez, dar consistência lógica. Ε o caminho que leva a essa exclusividade - com destaque para os contributos de Aristóteles e do tomismo no âmbito da linguagem -que dá em grande parte o tom a este notável e utilíssimo conjunto de estudos de M. Beuchot.

Produzidos entre 1980 e 1991, os estudos em causa ordenam-se numa perspectiva coerentemente pedagógica, cuja intencionalidade está patente no Proemio: um primeiro momento destinado a delimitar o caminho filosófico de acesso à lingjiagem, por contraste com outras disciplinas que versam sobre ela ("Hacia una noción de Filosofia dei Lenguage", pp. 11-32); um segundo, preenchido com a reflexão teórica sobre as principais doutrinas do significado e da significação do

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nome próprio ("Teorias de la verdad y teorias dei significado", pp. 33-75 e "Puntos de vista sobre la semântica de los nomes próprios", pp. 77-94); e um terceiro, cujo intento é aplicar a Filosofia da Linguagem a problemas concretos ("Lenguage y pensamiento", pp. 95-112, "Lenguage, metáfora y poesia", pp. 147-160) e à relação da linguagem com duas disciplinas fundamentais da filosofia ("Lenguage y lógica", pp. 113-132 e "Language y metafísica, pp. 130-160.

Neste último agrupamento podemos incorporar os ensaios exclusivamente dedicados ao pensamento de duas personalidades tão diversas quanto marcantes no actual panorama dos estudos sobre a linguagem: F. de Saussure e P. Ricoeur (respectivamente: "Saussure: o el surgimiento de la actitud estructuralística y sistemática en linguística", pp. 161-211 e "Ricoeur: el giro hermenêutico de la Filosofia dei Lenguage", pp. 213-223).

Não é possível dar aqui detalhadamente conta da abundância informativa e da subtileza de nexos estabelecidos entre perspetivas antigas e recentes da linguagem, particularmente entre o tomismo e algumas tendências da Filosofia Analítica. Característico, aliás, da abordagem da maior parte das temáticas é a clarificação e o confronto de correntes de pensamento mais representativas, cujas inovações, deficiências ou excessos são emblematicamente referenciados em função da doutrina aristotélico-tomista, que tem no A. um confessado adepto (p. 19).

Nessa linha de "tomismo recente" (p. 209) se insere, por exemplo, toda a discussão semiótica em volta da relação significante/ significado (interpretando este na dualidade fregiana de "sentido" e "referência", já de algum modo contida nas noções escolásticas de significatio e supposito - pp. 33, 38 e 65) e da interdependência entre teorias do significado e teorias da verdade que.embora perspectiváveis no âmbito da psicologia e da epistemologia, entram essencialmente no domínio da ontologia: qual o status lógico das significações?

A variedade das respostas actuais, que vão do platonismo conceptual de Frege ao fisicismo assente na verificação experimental, postulada, entre outros, por Schlick, Carnap e Weismann - passando pelo frágil e ambíguo estatuto do signi­ficado como função do uso (2.° Wittgenstein, Ryle, Austin, etc.) ou da conduta (Skinner, Russell, Morris, Quine) - encontra-se já de algum modo prevista na doutrina aristotélico-tomista, e mesmo superiormente unificada na explicitação do significado como signo natural e formal, susceptível de chamar a si a referência onde a realidade exterior falha (pp. 66-73).

Especialmente interessante, neste contexto, é a evocação da simbiose medieval verbum mentis/verbum cordis (pp. 67-68), reminiscente dos pathemata psyches "afecções da alma" de Aristóteles, que a linguagem terá por função expressar (e não o pensamento tout court) - uma linha de unificação objectivo/ subjectivo e intelectivo/ afectivo que, segundo cremos, as mais recentes investi­gações neurológicas se aprestam a confirmar1. À luz da mesma simbiose se valoriza a experiência interna do discurso do eu sobre a consciência, nas sua vertentes lógica, semântica e pragmática; dela decorre, de acordo com uma postura claramente mentalista (p. 109), a definição ontológica da consciência como função da inteligência, o realce epistemológico da introspecção e o reconhecimento de "las

António Damásio, O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro (trad. port.), Lisboa, Círculo dos leitores, 1995.

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entidades mentales que habitan en la consciência" (pp. 111-112, onde há a assinalar uma das poucas gralhas do livro: repetição de linhas).

A confluência entre tomismo e Filosofia Analítica na ênfase dada à linguagem como objectivo privilegiado de reflexão filosófica e, bem ainda, a supremacia do tomismo como corrector de reducionismos utópicos são uma vez mais exem­plificados nos estudos especificamente consagrados a Russell ("Linguagem e lógica") e a Ayer ("Linguagem e metafísica") - ambos, representantes de tendências complementares da filosofia analítica. Com Ayer, numa primeira fase, assiste-se à eliminação sistemática da generalidade das disciplinas tradicionalmente atribuídas à filosofia - sobretudo a metafísica, mas também a teologia, a ética e a estética — em favor da análise lógica da linguagem (das ciências), corroborável pela verificação empírica: radicalismo que será posteriormente auto-corrigido com a aceitação da distinção, vinda de Carnap, entre "cuestiones externas y cuestiones internas a un sistema de lenguaje" (p. 145). Quanto a Russell, o fracasso, também auto-reconhecido, da utopia de uma linguagem-modelo remete para a maleabilidade das gramáticas especulativas medievais que, "ai menos en la escolástica tomista, es una idea menos pretenciosa, más natural y humana, en el sentido de más respetuosa de lo constituye la riqueza dei lenguaje, a veces indomenable por la lógica" (p. 132).

Não por acaso, a mesma contraposição é evocada a respeito de Saussure e da exaustiva leitura do Cours de linguistique générale, que preenche o oitavo ensaio do livro: a rígida concepção saussuriana de língua como sistema estratificado de relações de oposição, talvez útil ao nível de uma "linguística pura" que Saussure procurou erigir em ciência autónoma, é, do ponto de vista da filosofia da linguagem, "una idealización que exige simplificaciones en los datos para que puedan darse demonstraciones" (p. 208), idealização alheia ao próprio facto de que "la lenguavive de la creatividad de los hablantes; está en continua transformación" (p. 210).

Essa marca vitalista da língua, ou da linguagem, está bem presente na metáfora, operante sobretudo a nível semântico (pp. 149-151), e literalmente interpretável - em função dos princípios semióticos de Frege e Morris - como um "conflito de referência" (p. 152). A resolução desse conflito passa pela análise das "relaciones o evocaciones" que nos reconduzem da "realidad poética" (em que o A. situa predominantemente o discurso metafórico) "a la realidad natural" (p. 154).

Racionalmente legitimada na base da analogia entre referentes, a trans­ferência de sentidos, que Aristóteles distingue como aspecto essencial da metáfora, entra assim no campo da hermenêutica (pp. 154-155). O ensaio dedicado ao seu mais lídimo representante (P. Ricoeur) acentua, no contexto de "la relación dei lenguaje con el mundo ...", de "la relación con los demás a través dei lenguaje en la comunicación intersubjectiva.y la relación consigo mismo como sujeto" (p. 222). -que são as traves-mestras da hermenêutica ricoeuriana - , o papel indispensável das metáforas, "las cuales, ai igual que los modelos, son instrumentos heurísticos para re-describir creativãmente el mundo" (p. 221).

O último tópico mencionado é também aquele que nos suscita reservas. Na sequência de uma perspectiva tomista, não há, em rigor, uma delimitação entre metáfora e pensamento metafórico (como quando se fala em "metáfora da Caverna", p. 153), o que esbate o aspecto essencial, ontológico, em que assenta a dinâmica da metáfora: uma associação intuitiva, não mentalmente trabalhada - ao contrário da

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comparação - entre dois objectos diversos (nessa perspectiva, será de considerar a definição de "enfoque interactivo" que Max Black, citado na p. 155, propõe)2

A observação da linguagem popular, não contaminada ainda pelos padrões impostos nos mass media, não só é, a este título, elucidativa, como permite corrigir outro preconceito generalizado: o de que a metáfora pertence em exclusivo, ou quase, à linguagem poética3. Sem recusar a sugestiva interpretação que o A. dela faz como "el corazón de la poesia" (p. 7), vê-la-ia antes como uma potencialidade intrínseca ao próprioacto linguístico, espécie de "fermento" presente em maior ou menor grau nos usuários de uma língua, independentemente da intencionalidade que distingue aactividade poética.

À parte este reparo, reconhece-se sem custo a eficácia de uma confluência feliz entre tomismo e Filosofia Analítica, que o A. deliberadamente empreende (p. 32). Atestando longa familiarização nos domínios antigos e modernos da reflexão sobre a linguagem (que uma vasta bibliografia, activa e passiva, corrobora), a presente colecção de ensaios tem o interesse de procurar, com assinalável clareza e rigor, o ponto de equilíbrio adequado, quer à delimitação dos problemas versados, quer à análise das controvérsias que motivam. Por esse aspecto, como por outros (vejam-se as modelares sínteses sobre os antecedentes e o aparecimento da Filosofia Analítica e suas correntes e do Estruturalismo, respectivamente pp. 24-29 e 161-166) constitui também uma cativante introdução aos meandros da moderna problemática sobre a linguagem, que se lê com agrado e proveito.

MARIA TERESA SCHIAPPA DE AZEVEDO

PEDRO C. TAPIA ZúNIGA, Leituras Atiças L, 2 volumes: Introducción a

la filologia griega e 'Ερωτήματα και γυμνάσια (Cuestionarios y

Exercícios), México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1994, resp.

137e71pp.

Com estes dois volumes complementares pretende-se testar e, quiçá, implementar um método de ensino do Grego que dispense iniciações demasiado minuciosas e, logo, retardadoras de um contacto imediato e vivo com os textos gregos originais.

2 A prioridade da metáfora sobre a comparação, sublinhada já por Aristóteles na Retórica, ficou praticamente ignorada na tradição retórica posterior, como nota P. Ricoeur em A metáfora viva (trad. port.) Porto, 1983, p. 40. Essa prioridade ontológica é expressivamente posta em destaque por J. G. Herculano de Carvalho, "Inovação e criação na metáfora", sep. da Revista da Universidade de Coimbra, 20 (1962), esp. pp. 14-16.

' Um exemplo clássico desta linguagem popular, eivada de metáforas, é a fala dos libertos da Cena Trimalchionis de Petrónio (Satyricon, §§ 41-47).

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Não é uma proposta isenta de polémica, dada a complexidade da morfologia grega e das suas características fonéticas (tímbricas e rítmicas) como reflexos evidentes na escrita que a tradição textual nos deixou e sem domínio da qual o aluno não poderá cabalmente apreender a mensagem que lhe é transmitida. Mesmo paladinos da estrita utilização de textos originais nos primeiros estádios de iniciação, como J. Début (ΔΙΔΑΣΚΩ, Paris, Les Belles Lettres, 1973), sentem a neces­sidade de uma abordagem gradual e trabalhada (por vezes ao exagero!) das estruturas linguísticas, no sentido de garantir a solidez necessária à evolução da aprendizagem.

A complicar a perspectivação da proposta apresentada pelo Α., acresce que nos são fornecidos apenas seis dos quarenta e oito textos pensados a longo prazo para quarenta e oito lições (realizáveis numa média de três aulas de duas horas -'Ερωτήματα, ρ. 20), sem indicação precisa dos conteúdos programáticos a alcançar

ao longo delas. Supondo, no entanto, que Leituras Atiças I se referem a um primeiro semestre de Grego, .podemos adiantar algumas observações prévias:

1) O desfasamento entre o nível morfossintáctieo e lexicológico dos textos escolhidos e o nulo ou quase nulo que um aluno iniciante subentende é excessivo e gerador de frustrações: a repartição entre "gramática do texto" (a essencial à sua compreensão) e "gramática sistemática" (com a exploração metódica de conteúdos) contém desníveis mais que evidentes e está longe de favorecer uma integração na mensagem dos textos, pese embora a tradução e o vocabulário - laboriosamente agrupado em: a) palavras estruturais b) vocabulário fundamental c) outras palavras e d) vocabulário repetido - que se lhes apõem.

2) Alegar uma compreensão progressiva dos textos como natural na iniciação de uma língua (admitindo, por exemplo, que o texto 1 permite apenas a compreensão de 10% do original, que se volverão em 20% no texto 2 e assim por diante -Introducción, p. IX) não é argumentação didáctica convincente, sobretudo para o Grego, porquanto o aluno permanece incapaz de "usar" a língua de uma forma diversa da do texto quetem na frente: os exercícios de questionário em grego - um dos instrumentos mais válidos para testar e consolidar a aprendizagem da língua -convertem-se, tal como são apresentados, em mero eco de frases transcritas, com banal apelo à cópia ou à memória visual e auditiva; ausentes por completo estão os meios e os estímulos à capacidade de associação e transformação do texto que este tipo de trabalho deve em princípio incrementar.

3) Os prólogos de unre outro livro contêm reflexões metodológicas para o seu uso que são de considerar e de alguma forma justificam a opção do Α.. Ε verdade que "en esta tarea da aprendizagem da língua la repetición sistemática y constante es la clave dei êxito" (Introducción, p. IX); não repugna também, como experiência, que o trabalho "martirizante" da tradução fique seja relegado para o aluno apenas numa fase posterior (Erotemata, pp. 9-10). Mas a memória, sobretudo no adulto como é o caso das iniciações ao Grego - através das técnicas sugeridas, como questionários, cópias, ditados e mesmo gravações - , perde eficácia quando não apoiada numa racionalização linguística, que a elementaridade dos conteúdos de "gramática sistemática" e a ausência de unidade estilística, contextual e voca­bular dos passos escolhidos não permitem. O recurso negativo e até aberrante à memorização mecânica ressalta nas prescrições ao estudo do vocabulário, onde

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o aluno é incitado a gravar, por escrito e oralmente, enunciados de substan­tivos, adjectivos e verbos sem ter ainda quaisquer noções de e declinação e, evidentemente, de conjugação. (Erotemata, p. 28)! Caímos com isto numa escolástica muito mais "martirizante" e duvidosa do que as panorâmicas gramaticais da ortodoxia peda-gógica, cuja sobrecarga é, com alguma razão, posta em causa (Erotemata, p. 15).

Outros aspectos de pormenor não deixam de suscitar também perplexidades: não se percebe, por exemplo, a razão de apresentar a declinação completa do interrogativo tk e do seu correspondente indefinido antes mesmo da sinopse das declinações (Introducción, p. 78); se é a oportunidade de explicar a lei das enclíticas, não temos dúvidas de que, com o pronome TíS, resultaria mais eficaz apresentar primeiro os paradigmas dos tema em α (e/ ou o) e as suas parti­cularidades de acentuação.

Idêntica ausência de critério é verificável no tratamento da formação dos aoristas e em particular do aumento. Será que verbos como εκφέρω, Εξάγω e επιφέφω têm aumento em η por começarem por vogal? Ε o ε de εσχον representa afinal um aumento silábico ou temporal? O aluno fica decerto confundido. Para dar uma ideia genérica, mas clara, é óbvio que deveriam ter sido privilegiados outros exemplos. Ainda relativamente aos aoristas assinale-se o exercício 4 dos Erotemata (p. 46) onde são pedidos, com base no paradigma de εαχον os aoristas indicativos εγνων e έχάρψ - a nota concernente a εγνων (que devia ter sido alargada a εχάρην) não redime a falta de sensibilidade ao rigor gramatical, detectável

em outros pontos, e as reais impossibilidades de correspondência por parte dos alunos.

Por outro lado, se a análise de certas palavras estruturais (partículas, pronomes etc), bem como observações de conjunto e de pormenor a propásito dos textos se revelam funcionais, o vocabulário não deixa de suscitar discordâncias: para quê tantos nomes próprios praticamente desconhecidos e termos técnicos que o aluno está longe de encontrar nos textos mais comuns? A discrepância de épocas e de linguagens pode ainda ser responsável por uma visão errada de termos elementares, como σώμα ou πράγμα, que no texto 1, por exemplo, surgem em sentido nitidamente afastado do habitual sem que a isso seja feita menção.

Questões de outra ordem podem anotar-se a propósito das orações infinitivas (Introducción, pp. 89-92). Não vejo motivo para contestar a designação de oração infinitiva integrante, paralela à de conjuncional integrante (como de oração participial ou gerundiva, sempre que a forma nominal/ verbal tem sujeito próprio). O Grego oferece geralmente, com verbos declarativos e outros, duplicidade de realização gramatical, o que me parece significativo; mas nunca com o verbo φημί, como erradamente se indica na p. 89: a construção deste verbo é sempre com uma infinitiva integrante ou, se se preferir dizer assim, com acusativo + infinitivo (vide William W. Goodwin, A Greek Grammar, London, MacMillan Educacion Lmd., 1983, reimpr. de 1894, p. 327).

Falhas mais visíveis ocorrem na p. 103 da Introducción, onde se dá olôa como perfeito do verbo οόράω (é-o, quando muito, de um inatestadó *εϊδω), e na p. 66 dos 'Ερωτήματα cujo vocabulário atribui as formas de futuro, aoristo e perfeito de verbo λέγω ao verbo φημί: são inevitavelmente erros a corrigir numa futura edição.

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Em suma, se a proposta metodológica em análise não nos seduz nem nos convence pelas razões já expostas (a que juntamos a preferência por textos de natureza coloquial, numa iniciação) não significa que a forma material que ela reveste não contenha virtualidades: relevem-se algumas visões de conjunto, quer do ponto de vista cultural e literário quer linguístico, e algumas simplificações gramaticais possíveis (assim a apresentação conjunta das desinências temáticas e atemáticas - Introducción, pp. 128-129), sugestivas de novas experiências no campo didáctico.

MARIA TERESA SCHIAPPA DE AZEVEDO

DONATO GAGLIARDI, Petronio e il romanzo moderno. La fortuna dei

Satyricon attraverso i secoli, (La Nuova Itália, Firenze, 1993), 218 p.

Este livro aparece no seguimento de vários outros trabalhos que Gagliardi tem dedicado ao Satyricon. Trata-se de um dado importante, pois nota-se que o autor está bem informado e consciente das implicações dos problemas que aborda. O objectivo principal do livro consiste em fazer um estudo comparativo da influência de Petronio e do Satyricon ao longo de várias épocas, abrangendo um lapso temporal que se estende da Idade Média até à narrativa contemporânea, e um leque muito variado de obras e de personalidades. Ε um estudo profundo e recomendável, na medida em que mostra a vitalidade de um clássico e as diferentes apreciações que foi despertando ao longo dos séculos.

Seguindo um método que nos parece vantajoso, Gagliardi começa por alertar o leitor — de forma geralmente clara e eficaz — para os principais problemas que o próprio Satyricon levanta: personalidade de Petronio, sentido do romance, influxos literários de outras obras, novas técnicas narrativas nele desenvolvidas. Num ponto, contudo, não concordamos com Gagliardi. Ao falar do título do Satyricon, reconhece a ligação com a sátira e a presença no romance de elementos tipicamente satíricos, como o tema dos heredipetae-captatores. No entanto, conclui (p. 12): «Eppure il Satyricon resta molto lontano da questo mondo, per 1'assenza di qualsiasi propósito di predicazione morale, di indignatio, d'ogni ambizione di fornire strumenti di giudizio o soltanto una qualche ideologia positiva.» Parece-nos que este juízo é resultante de uma visão preconceituosa e, de certa forma, fragmentária e leve do romance.

A questão da moralidade do Satyricon remonta, fundamentalmente, a um artigo justamente célebre de Gilbert Highet ("Petronius the moralist", TAPhA 72, 1941, 176-194), que colocava a hipótese do epicurismo de Petronio e assinalava o facto de a existência atribulada das personagens do romance ir contra o ideal de αταραξία- Autores que também deram importantes contributos para a questão da seriedade dõ Satyricon foram Helen Bacon, William Arrowsmith, William R. Nethercut e, mais recentemente, a escola de Paolo Fedeli.

A posição contrária, dentro da qual Gagliardi se situa, deriva essencialmente de John P. SuUivan (e.g. Criticai essays on Roman literature — Satire, London, 1963, 73-92), defensor da ideia de que o Satyricon se trata de uma obra literária

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sofisticada e não de um panfleto filosófico e, sobretudo, que Petrónio é um artista que teve em mira divertir com o que escreveu, sem dotar as suas criações da profundidade ética necessária à moralização. Neste sentido se pronunciaram também Gareth Schmeling e P.G. Walsh, que dedicou expressamente um artigo a esta questão ("Was Petronius a moralist?", G&R 21, 1974, 181-190).

Ε um facto que o epicurismo de Petrónio tem limitações (convém não cair nos exageros de Oskar Raith), mas á posição ética necessária a uma sátira coerente também não precisa de assentar apenas nesse epicurismo. Cremos, ainda, que se tem cometido o erro de buscar esse suporte ético quase unicamente nas reflexões de Encólpio e em certos momentos — como na escola de retórica e na pinacoteca — em que o protagonista ou os seus interlocutores assumem um discurso abertamente moralizante. Considerados de forma isolada, tais passos prestam-se facilmente à confusão com τόποι da oratória ou com a paródia de ideias de pensadores como Séneca. O que garante pertinência a essas tiradas moralizadoras é o facto de serem corroboradas pelo universo de interesses do romance. As críticas de Encólpio à educação e as de Eumolpo à decadência das artes, são confirmadas pela vida dos intelectuais: desarticulação da realidade, falsidade de sentimentos, subserviência relativamente à superstição e à opulência dos libertos. Acusam-se os professores, e a conduta de Agamémnon e de Eumolpo (enquanto magister) justifica a acusação. Agamémnon, por sua vez, defende-se, afirmando que os maiores culpados são os pais, que sacrificam a vocação dos filhos às suas ambições. Que dizer, portanto, de Equíon e de Filomela? Mais ainda: não é consistente o' reconhecimento algo amargo da decadência do mos maiorum nos seus antigos baluartes (anciãos, casta sacerdotal e aristocracia)? Não é sincera a desorientação do homem num mundo povoado de engano, ardis, guiado pela mão caprichosa da Fortuna, que outra saída não proporciona que não seja o reconhecimento da própria αμηχανία! No Bellum Ciuile (vv. 79-81), é mesmo um dos deuses mais poderosos a reconhecer que o arbítrio das coisas humanas e divinas se encontra nas mãos dessa divindade. Não é, por conseguinte, tão difícil como pretendem certos filólogos encontrar, no Satyricon, pontos de referência ética. O importante é considerar o romance na sua totalidade, evitando isolar os episódios, algo que poderá levar a uma compreensão deficiente.

DELFIM FERREIRA LEãO

VICTOR JABOUILLE, Périplo de Hanão. Estudo e tradução, (Inquérito, 1994),

111 pp.

Este texto insere-se na colecção dos Clássicos Inquérito, que tem dado a conhecer ao grande público obras importantes, muitas vezes em edição bilingue, como acontece com este tomo. Desta forma, pode também o estudioso da Antiguidade ter acesso ao original grego, a par com uma tradução de qualidade. O Périplo de Hanão é uma curta narrativa de certa viagem realizada por um rei de Cartago, à volta da costa ocidental africana, possivelmente na primeira metade do séc. V a.C. O leitor não especializado perderia grande parte do valor desta narrativa, não fosse o cuidado que Jabouille colocou em dedicar mais de metade do livro a

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discutir os principais problemas relativos à interpretação do Périplo. Nessa introdução, bem documentada e enriquecida pela reprodução de vários mapas, dá notícia crítica das abordagens diversas e, por vezes contraditórias, que o texto tem motivado, sem esquecer um confronto com a experiência marítima portuguesa. O autor integra o Périplo num tipo de literatura de viagens bastante cultivado na Antiguidade e que remonta a Heródoto. Em boa verdade, poderia recuar um pouco mais, já que o próprio Heródoto, o pater historiae como lhe chamou Cícero, não deixa de ser herdeiro da tradição de historiógrafos como Hecateu de Mileto, cujos trabalhos, que tinham muito de registo e de enumeração, se ocupavam, pre­cisamente, de périplos, genealogias e fundações de cidades.

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