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J E E Jornal de Estudos Espíritas 4, 010301 (2016) - (9 pgs.) Volume 4 – 2016 Problemas metodológicos na pesquisa da reencarnação: o caso Ruprecht Schulz Ademir Xavier 1,a 1 Brasília, DF e-mail: a [email protected] (Recebido em 16 de Abril de 2016, publicado em 16 de Julho de 2016). Versão extendida do artigo publicado no blog A Era do Espírito, em 2 de Abril de 2016. RESUMO Neste trabalho discute-se brevemente as dificuldades inerentes da pesquisa da reencarnação diante da perspectiva espírita. Além da proposta feita pelos Espíritos em O Livro dos Espíritos, são duas as fontes fenomenológicas usadas por pesquisadores para a validação da reencarnação: relatos infantis e testemunho de adultos via regres- são hipnótica ou afirmações de vigília. Ilustramos aqui os problemas envolvidos nessa pesquisa com o famoso caso Ruprecht Schulz, que foi considerado por Ian Stevenson um exemplo “forte” de reencarnação, mas que apre- senta inúmeros problemas na interpretação das evidências apresentadas pelo sujeito. Tais problemas são causados tanto pela inexistência de um teoria da mente como por falhas na apreciação da fenomenologia mental, capazes de explicar a origem dos relatos, em particular, a gênese de percepções anômalas, a potencial confusão feita por pesquisadores entre manifestações mediúnicas e memórias de vidas anteriores. Longe de se apresentar como um exemplo que contraria detalhes do mecanismo reencarnatório como proposto pelos Espíritos, o caso na verdade expõe as limitações a que estão sujeitos os que pretendem pesquisar reencarnação sem a devida atenção a questões como mediunidade e influência dos Espíritos na vida dos encarnados. Palavras-Chave: reencarnação, memórias de vidas pregressas, pesquisa em reencarnação, regressão hipnótica, Ruprecht Schulz. I I NTRODUÇÃO Reencarnação é definida por A. Kardec e os Espíri- tos como “o retorno do Espírito à vida corporal” (ver Capítulo VII de O Livro dos Espíritos [1]). Sendo um fenômeno universal, é natural que se busquem evidências ou “traços” de sua ocorrência nas diversas fenomenolo- gias do comportamento humano. A tarefa é bastante difícil já que a reencarnação parece ser um dos mais bem guardados fenômenos da Natureza. Tanto é assim que sua existência despertou escasso interesse de grupos aca- dêmicos, onde ela ainda é considerada um “tema tabu”. Sua ocorrência não está de acordo com o consenso ge- ral sobre o ser humano e sua existência no mundo, con- forme a opinião generalizada das agremiações científicas que ainda tomam o homem como uma criatura que fatal- mente morre e desaparece. Portanto, reencarnação não é um objeto de estudo, porque seu principal elemento interagente, o Espírito, ainda não é reconhecido como existente. É natural, assim, que a imensa maioria dos acadêmicos torça o nariz para algo que identificam como não “científico” e que lhes parece uma ideia excêntrica. Uma anomalia é uma ocorrência não esperada dentro de um contexto teórico ou explicação consensual de uma comunidade. Em parte podemos dizer que a reencarna- ção está distante sequer de ser considerada uma anomalia porque o reconhecimento de sua ocorrência depende da aceitação de outros princípios como a existência do es- pírito e sua sobrevivência à morte física. Portanto, a busca ou pesquisa do tema “reencarnação” é espinhosa se considerada academicamente. Nessa busca, não será uma tarefa trivial “separar o joio do trigo”, já que, aca- demicamente, inexiste uma teoria ou arcabouço explana- tivo suficientemente estável para guiar a pesquisa. Po- dem existir casos que sejam, inclusive, prejudiciais a pró- pria tese, por se apresentarem como “anomalias dentro de anomalias”, ou seja, como instâncias aparentemente explicadas dentro da tese que se pretende provar, mas que, na verdade, correspondem a conclusões equivoca- das, fruto de encadeamento errôneo de ideias ou análise não conforme de dados. Naturalmente a existência des- sas “anomalias ainda mais estranhas” animam céticos que rapidamente “throw the baby out with the bathwater1 e invalidam toda a tese, com base em alguns casos mais que suspeitos. Em se tratando de reencarnação, suas evidências parecem surgir genericamente (independentemente da afirmação feita pelos Espíritos na Codificação Espírita) de duas fontes: Informes de crianças que se lembram de vidas an- teriores; Relatos de memórias via regressão hipnótica. Em geral, o primeiro caso é considerado “acima de qualquer suspeita”, por se tratar de relatos infantis, de 1 “Jogam o bebê fora junto com a água do banho.” Seção 03: Artigos Reproduzidos 010301 – 1 c Autor(es)

4 Volume Problemasmetodológicosnapesquisadareencarnação ... · Xavier Jr., A. II.1Problemas relacionados à origem das me-mórias de RS Além do problema das datas que deveriam

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JEEJornal de Estudos Espíritas 4, 010301 (2016) - (9 pgs.) Volume 4 – 2016

Problemas metodológicos na pesquisa da reencarnação: o casoRuprecht SchulzAdemir Xavier1,a

1Brasília, DF

e-mail: [email protected]

(Recebido em 16 de Abril de 2016, publicado em 16 de Julho de 2016).Versão extendida do artigo publicado no blog A Era do Espírito, em 2 de Abril de 2016.

RESUMO

Neste trabalho discute-se brevemente as dificuldades inerentes da pesquisa da reencarnação diante da perspectivaespírita. Além da proposta feita pelos Espíritos em O Livro dos Espíritos, são duas as fontes fenomenológicasusadas por pesquisadores para a validação da reencarnação: relatos infantis e testemunho de adultos via regres-são hipnótica ou afirmações de vigília. Ilustramos aqui os problemas envolvidos nessa pesquisa com o famosocaso Ruprecht Schulz, que foi considerado por Ian Stevenson um exemplo “forte” de reencarnação, mas que apre-senta inúmeros problemas na interpretação das evidências apresentadas pelo sujeito. Tais problemas são causadostanto pela inexistência de um teoria da mente como por falhas na apreciação da fenomenologia mental, capazesde explicar a origem dos relatos, em particular, a gênese de percepções anômalas, a potencial confusão feita porpesquisadores entre manifestações mediúnicas e memórias de vidas anteriores. Longe de se apresentar como umexemplo que contraria detalhes do mecanismo reencarnatório como proposto pelos Espíritos, o caso na verdadeexpõe as limitações a que estão sujeitos os que pretendem pesquisar reencarnação sem a devida atenção a questõescomo mediunidade e influência dos Espíritos na vida dos encarnados.

Palavras-Chave: reencarnação, memórias de vidas pregressas, pesquisa em reencarnação, regressão hipnótica,Ruprecht Schulz.

I INTRODUÇÃO

Reencarnação é definida por A. Kardec e os Espíri-tos como “o retorno do Espírito à vida corporal” (verCapítulo VII de O Livro dos Espíritos [1]). Sendo umfenômeno universal, é natural que se busquem evidênciasou “traços” de sua ocorrência nas diversas fenomenolo-gias do comportamento humano. A tarefa é bastantedifícil já que a reencarnação parece ser um dos mais bemguardados fenômenos da Natureza. Tanto é assim quesua existência despertou escasso interesse de grupos aca-dêmicos, onde ela ainda é considerada um “tema tabu”.Sua ocorrência não está de acordo com o consenso ge-ral sobre o ser humano e sua existência no mundo, con-forme a opinião generalizada das agremiações científicasque ainda tomam o homem como uma criatura que fatal-mente morre e desaparece. Portanto, reencarnação nãoé um objeto de estudo, porque seu principal elementointeragente, o Espírito, ainda não é reconhecido comoexistente. É natural, assim, que a imensa maioria dosacadêmicos torça o nariz para algo que identificam comonão “científico” e que lhes parece uma ideia excêntrica.

Uma anomalia é uma ocorrência não esperada dentrode um contexto teórico ou explicação consensual de umacomunidade. Em parte podemos dizer que a reencarna-ção está distante sequer de ser considerada uma anomaliaporque o reconhecimento de sua ocorrência depende daaceitação de outros princípios como a existência do es-

pírito e sua sobrevivência à morte física. Portanto, abusca ou pesquisa do tema “reencarnação” é espinhosase considerada academicamente. Nessa busca, não seráuma tarefa trivial “separar o joio do trigo”, já que, aca-demicamente, inexiste uma teoria ou arcabouço explana-tivo suficientemente estável para guiar a pesquisa. Po-dem existir casos que sejam, inclusive, prejudiciais a pró-pria tese, por se apresentarem como “anomalias dentrode anomalias”, ou seja, como instâncias aparentementeexplicadas dentro da tese que se pretende provar, masque, na verdade, correspondem a conclusões equivoca-das, fruto de encadeamento errôneo de ideias ou análisenão conforme de dados. Naturalmente a existência des-sas “anomalias ainda mais estranhas” animam céticos querapidamente “throw the baby out with the bathwater”1 einvalidam toda a tese, com base em alguns casos maisque suspeitos.

Em se tratando de reencarnação, suas evidênciasparecem surgir genericamente (independentemente daafirmação feita pelos Espíritos na Codificação Espírita)de duas fontes:

• Informes de crianças que se lembram de vidas an-teriores;

• Relatos de memórias via regressão hipnótica.

Em geral, o primeiro caso é considerado “acima dequalquer suspeita”, por se tratar de relatos infantis, de

1“Jogam o bebê fora junto com a água do banho.”

Seção 03: Artigos Reproduzidos 010301 – 1 c©Autor(es)

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Problemas metodológicos na pesquisa da . . .

indivíduos ainda sem senso crítico e lógica desenvolvidapara “inventar” estórias. No segundo caso, acumulam-seinúmeras dificuldades pelo carater inerentemente privadode relatos de sonhos ou eventuais memórias anterioresem estado hipnótico de adultos. Ocasionalmente, porém,aparecem relatos excepcionais de adultos que dizem se re-cordar de vidas anteriores, mesmo em estado de vigília,isto é, sem que exista desvio do estado normal.

Tais dificuldades parecem ainda mais intransponíveis- e a origem da dificuldade não é outra senão esta - di-ante da inexistência de uma “teoria da mente”, de umconsenso teórico sobre a origem, funcionamento e ma-nifestação da consciência. Assim sendo, partindo-se deuma contexto ateórico desse tipo (ou seja, sem a ori-entação de uma teoria da manifestação da consciência,inclusive da mediunidade), é provável que evidências se-jam mal interpretadas, uma vez que é fácil demonstrarque uma evidência é contaminada pela visão que se temde seu contexto2. A inexistência de uma teoria da cons-ciência suficientemente desenvolvida cria, em particular,problemas para a chamada “metodologia de pesquisa” emreencarnação [3, 4]. Entendemos tal metodologia comoum processo ou conjunto de etapas que permitem extrairuma conclusão a partir da busca, levantamento, catálogoe análise de dados. O cenário presente é muito nebulosoporque, como afirmamos aqui, falhas na consideração detodos os aspectos da rica dinâmica mental inviabiliza cla-ramente a correta ponderação das evidências colhidas dememórias de longo prazo3.

Junto a questões profundas de caráter filosófico, comoa necessidade de uma teoria da mente, que deve ser obe-decida para uma descrição consistente entre o compor-tamento ordinário e anômalo da personalidade humana,enfatizamos a vasta fenomenologia espírita. A teoria con-tida em O Livro dos Espíritos [1] e O Livro dos Mé-diuns [2] é um paradigma fenomenológico [5] propostopelos Espíritos e sistematizado por Allan Kardec paraum conjunto extenso de ocorrências e fatos que se re-lacionam com a natureza dual do ser humano. A ine-xistência de faculdades de percepção mediúnica generali-zada e em grau intenso entre a população torna difícil aapreciação e desenvolvimento de uma teoria abrangentee completa sobre muitos desses fenômenos, reencarnaçãoinclusive. Ainda vivemos numa época em que depen-demos de explicações dadas pelos Espíritos e de relatosde alguns indivíduos, considerados médiuns excepcionais.Porém, a rica fenomenologia espírita permite apreciar aexistência de inúmeros caminhos ou vias de percepçãoque não podem ser desprezados quando se pretende es-tudar um fenômeno exclusivamente. Assim, na pesquisasobre mediunidade não é possível desprezar aspectos re-encarnatórios associados a eventuais lembranças do mé-dium que pode influenciar o recebimento das mensagens.

Da mesma forma, não se poderá jamais estudar reencar-nação em adultos sob regressão hipnótica ou lembrançasexpontâneas sem se considerar potenciais interferênciaspsíquicas a que encarnados mais sensíveis estão sujeitos.Esse é um ponto fundamental associado ao que chama-mos “contexto teórico” e que deve servir para orientaruma futura metodologia de pesquisa em reencarnação.

II O CASO RUPRECHT SCHULZ (RS)Pode-se estudar reencarnação sob diversas aborda-

gens: antropológica [6,7], mística [11], psicológica [8,18],além da espírita [9, 10]. Dentre os pesquisadores maisconhecidos na “abordagem psicológica” estão I. Steven-son (1918-2007) [12–15], J. Tucker4 [16,17] e E. Haralds-son [18–22]. Entre as inúmeras evidências estudadas porStevenson, o livro Casos Europeus [12,24] descreve ocor-rências tiradas de relatos não orientais, numa tentativapor Stevenson de mostrar que a reencarnação é um fenô-meno “universal”5.

Em particular, em [24] existe um caso que exorbitados relatos quase uniformes de crianças que se lembramde vidas anteriores. Trata-se do “caso Ruprecht Schulz”(RS, ver também [26]). Por simplicidade, apresentamosaqui um resumo:

Ruprecht Schulz, nascido em Berlim, a 19/10/1887,comerciante, declarou a I. Stevenson, em entrevistafeita em agosto de 1960, ter tido memórias (verabaixo) de uma vida pregressa por volta do inícioda década de 1940 (início da II Guerra Mundial).Nessa descrição, via-se como um rico comerciante,ligado a atividades portuárias, que cometeu suicídio.A força dessas lembranças fez RS escrever a diversascidades portuárias da Alemanha, a partir de julho de1952. Uma resposta veio da cidade de Wilhelmshavenafirmando ter sido palco do suicídio de um tal HelmutKohler (HK), corretor marítimo, em 23/11/1887. Se-gundo informações colhidas por RS com parentes deHK, este teria se suicidado depois de se ver em condi-ções econômicas difíceis e de ter sido roubado por umfuncionário mais próximo que fugiu para os EstadosUnidos.

As informações tabuladas por Stevenson nas páginas272-274 de [24] são parte de um relatório construído par-cialmente com as informações que RS conseguiu de Wi-lhelmshaven, quando ele já estava com mais de 50 anos deidade. Além da descrição detalhada dada por Stevensone de sua defesa do caso, uma das “anomalias” que chamaa atenção nele é a inconsistência entre a data do suicídiode HK e o nascimento de RS (suposta reencarnação deHK), indicando uma violação grosseira da relação “causaefeito”, uma vez que a personalidade anterior ainda es-tava encarnada quando seu novo corpo já vivia em outrolugar.

2Para um cético, alguém que afirme ter uma vida anterior será interpretado como doente mental, seus sonhos como criações da fantasiaetc. Para alquém que seja excessivamente crente, qualquer evento pode ser considerado como evidência de sua crença etc.

3Isso também acontece no intervalo de uma única existência, o que dizer entre duas sucessivas...4Ver nosso post sobre ele aqui.5Uma das críticas levantadas contra a ideia de reencarnação com base em evidência de fatos é o número muito grande de casos (de

crianças) em países que aceitam tacitamente a noção como a Índia [15]. Críticos levantaram a hipótese de uma raiz “cultural” para ofenômeno [23], o que reduziria sua importância como evidência.

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II .1 Problemas relacionados à origem das me-mórias de RS

Além do problema das datas que deveriam ligar lo-gicamente as individualidades, o que também chama aatençao no caso RS são as descrições de suas “lembran-ças” de uma vida passada. Um Espírito encarnado e deposse de suas faculdades naturais desse estado, deve car-regar consigo suas lembranças, inclusive as de vidas pre-gressas. Isso significa que elas não podem depender, emespecial, do lugar onde o encarnado se encontre. Quandome lembro do que passei em minha presente vida, eu melembro disso quer eu esteja aqui ou em qualquer lugar domundo. Isso porque a característica “memória” é umapropriedade do ser, possivelmente manifesta com depe-dência a um estado mental subjacente, além da memóriapsíquica indissolúvel que trazemos como Espíritos. Comrelação à “invariância de tempo”, diversos fatores podemalterar a lembrança do encarnado, o que não significaque ele não retenha essa informação como Espírito. En-tretanto, isso não aconteceu no relato de RS.

Conforme atestam as anotações de I. Stevenson sobreas memórias de RS, em 2 de maio de 1964 (p. 266 e 267)em [24]:

“Ele nunca as tinha a não ser quando estavano escritório durante o seu turno aos domin-gos. Estava completamente acordado nessas vezes.Ele experimentou novamente as emoções da situaçãolembrada e viu as lembranças como uma imagem inte-rior, não como uma visão projetada.” (Grifos meus)

Depois de enfatizar que RS não estaria em um es-tado “alterado” de consciência, Stevenson reinterpretoua descrição ao anotar que o sujeito “via lembranças comouma imagem interior”. Esse ponto é de fundamental im-portância, pois fica claro aqui o papel das ideias precon-cebidas do pesquisador. Por que é importante afirmarque RS teve as “lembranças” em estado de vigília? Arazão é simples: Stevenson (e provavelmente RS) acredi-tava que lembranças só podem ocorrer se o sujeito nãoestiver em “estado alterado de consciência” (leia-se, “me-diunidade” ou “hipnotismo”). Para Stevenson evidênciasde reencarnação devem ocorrer sem qualquer outro tipode interferência. Mas não é assim que acontece dentroda mente. Inúmeros fatores endógenos e exógenos po-dem influir em uma narrativa psicológica. Não se podeestudar o fenômeno como se ele pudesse se manifestar deforma isolada de quaisquer outros fatores. Tomando combase que RS não tenha inventado nada, sua descriçãoaparentemente em terceira pessoa não deixa dúvidas quesuas “visões” apenas ocorriam se ele estivesse em contatocom determinado ambiente.

Nossa avaliação parece ser corroborada pela maneiracomo o próprio RS descreve suas “memórias”. Na p. 266de [24], no final de sua descrição de como teria se vestidoe se matado, afirma RS:

“Podem chamar essas imagens de clarividência,mas para mim elas são lembranças”. (grifos nossos).

Em suma, RS parece confundir suas lembranças comvisão de imagens, pois declara adicionalmente:

“O sentimento foi ficando mais forte e então - não emum transe ou estado de sono - como algo quase visí-vel aos olhos, pude me observar como eu naquelaépoca.” (grifos meus).

Conclusivamente, estamos diante de um problemametodológico que depende de algo que nos diga comose diferenciam memórias de visões desse tipo. Stevensonsimplesmente desprezou isso, que a ele pareciam questõesirrelevantes. Na verdade, elas são cruciais para determinaa “origem” das informações. E, se as informações podemter outra origem que não “lembranças”, todo o caso podeser explicado de outra forma.

Ao se ler o caso apresentado em [12], parece que o au-tor deixou de considerar a consistência cruzada de outrosrelatos de RS. Por exemplo, na p. 265, lê-se:

“As memórias começaram a surgir para mim naépoca dos ataques de bombardeios em Berlim du-rante a guerra.” (grifos meus).

Mas, ainda segundo Stevenson, RS cita a data de1942, quando ele estava com mais de 50 anos. Já na p.268 da mesma referência, há a citação de uma carta deRS ao filho de Kohler (datada de 1952), dizendo que suaslembranças começaram na infância, “desde muito novo”.Então é lícito se perguntar o que, de fato, aconteceu.

Como é típico da precariedade das lembranças em es-tado de vigília, sobre a cidade de sua alegada desencar-nação, RS afirma na carta “me pareceu mais tarde e maisclaramente, que essa cidade era Wilhelmshaven” (aindana p. 268). Porém, segundo Stevenson (conforme está nap. 263 de [24]), ele reportou inicialmente que sua supostavida anterior teria sido em “uma pequena cidade portuá-ria”, tendo escrito para várias cidades (existiam poucas“pequenas cidades portuárias” na Alemanha no final doSéculo XIX, e teria sido óbvio incluir Wilhelmshaven).

Figura 1: Wilhelmshaven, cidade da suposta vida anterior de RS.Nela, RS afirmou ter “reconhecido” prédios (de sua vida no Séc.XIX), mesmo tendo sido destruída na II Guerra Mundial. Figurareproduzida da Wikipedia [31].

Outras afirmações de RS aceitas sem contestação porStevenson é o “reconhecimento” de construções em Wi-lhemlshaven (Fig. 1) da época de sua suposta vida ante-rior:

Em outubro de 1956, Ruprecht e Emma Schulz foramaté Wilhelmshaven, onde se encontraram com LudwigKohler. A cidade tinha sido muito danificada pe-los bombardeios durante a então recente guerra. Ru-prect acreditou reconhecer a Prefeitura e um antigoarco. (Grifos meus).

JEE 010301 – 3 J. Est. Esp. 4, 010301 (2016).

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Sem que se garanta que as construções “reconhecidas”por RS tenham sido reconstruídas, é difícil acreditar quelembranças pudessem ocorrer em um cenário destruídopela guerra.

De qualquer forma, o caso RS, no quesito “memó-ria”, é muito diferente se comparado a outros estudadospor Stevenson. Com relação às memórias alegadamenteatribuídas à infância, elas podem ter sido criadas à pos-teriori, depois que RS se convenceu que era mesmo areencarnação de HK. Ainda assim, com relação ao seucomportamento “ex suicida” de infância, o caso se conta-mina pela ausência de “comprovações” (como Stevensontipicamente insiste em outros casos) por parte de tercei-ros já que, segundo o pesquisador (p. 277, [24]):

“Ruprecht permanece quase que totalmente o únicoinformante das declarações antes de elas seremconfirmadas.” (grifos nossos).

III EM DIREÇÃO A UMA EXPLICAÇÃO CON-SISTENTE DO CASO

Em ciência, uma teoria tem valor não porque ela “ex-plica tudo”. De fato, nada é mais fácil do que arranjaruma explicação para um fenômeno. Na história da fí-sica, por exemplo, podemos citar teorias contraditóriasque explicavam muito bem um determinado fenômeno6

Explicações restritas a fenômenos muitas vezes recebem adesignação de “explicações ad-hoc”7. Mas, dentre inúme-ras opções de explicação, em geral, apenas uma é consi-derada vitoriosa. Por quê? A razão é que explicações emciência também trazem uma “visão de mundo” para ascoisas e não apenas “uma explicação” para um determi-nado fenômeno. Portanto, na busca por esclarecimentosobre o caso de Ruprecht Schulz devemos estar convenci-dos que isso não acontecerá irrestritamente, com prejuízoa uma visão mais ampla dos fenômenos. Não queremos,portanto, explicar tudo, mas explicar bem aquilo que te-mos competência para explicar, guardadas e observadasas nossas limitações e a existência de outros problemasque também devem ser resolvidos.

No nosso entendimento, o problema teórico maisgrave levantado pelo caso RS é a aparente quebra decausalidade entre o corpo (efeito) e a causa (espírito) porcausa do problema da data. É assim uma explicação ad-hoc admitir que um Espírito possa reencarnar nos moldesde uma “possessão”, depois que seu outro corpo já estejaformado e vivo apenas para salvar as aparências do caso.Mas, a imaginação não para por aí, outros “caminhoslógicos” (explicações ad-hoc) podem ser aventados:

1. Acreditar em que até o momento da “possessão”, ocorpo existente tenha vida meramente material;

2. Imaginar algum cenário mais exótico (e, por isso,esdrúxulo) de “quebra de causalidade” (tipo “via-gem no tempo”). O Espírito de HK reencarnado

viajou para trás no tempo e terminou sua existên-cia com o suicídio;

3. “Divisão do Espírito” (conforme se acredita naref. [26]). Durante as cinco semanas que separam onascimento de RS e a desencarnação de HK, o Es-pírito de HK estaria ao mesmo tempo reencarnadoem dois corpos;

4. A possibilidade que um Espírito possa “ceder” ocorpo para outro Espírito;

5. Imaginar que mais de um Espírito possa usar ummesmo corpo.

A questão da unicidade da consciência é um temanão resolvido em filosofia da mente [28]. É conhecida afamosa crítica de Kant sobre a “multiplicidade de espí-ritos”, critica endereçada ao dualismo Cartesiano. Issotem um paralelo certo na hipótese ad-hoc 5 que propõemais de um espírito “habitando” um mesmo corpo. Mas,como diferenciar entre dois, 19 ou 50? Que mais de umEspírito “ocupe” um mesmo corpo pode ser sugerido porquem se entusiasme com interpretações mal feitas de ex-perimentos psicológicos de orientação materialista, comoé o caso do famoso experimento de “split-brain” [27, 29].Um caso foi vulgarizado em [30]:

Num experimento mais recente, de considerável inte-resse, Donald Wilson e seus colaboradores (Wilson etal. 1977; Gazzaniga, LeDoux e Wilson 1977) exami-naram um paciente com os cérebros separados, cha-mado ’P.S.’. Depois da operação de separação, ape-nas o hemisfério esquerdo podia falar; mas ambos po-diam entender a fala; mais tarde, o hemisfério di-reito aprendeu também a falar! Evidentemente, am-bos eram conscientes. Além disso, pareciam ser cons-cientes separadamente porque tinham gostos e desejosdiferentes. Por exemplo, o hemisfério esquerdo disseque seu desejo era ser desenhista; o direito, piloto decorridas!

Porém, não há porque confundir uma manifestação damente com a própria mente, isso é confundir causa comefeito. Só porque os dois hemisférios foram divididos eo sujeito reporta ter desejos diferentes nada prova quea causa deixe de ser uma e somente uma. Tais propos-tas expõem uma visão “behaviorista” da mente. Comoa crítica a essa visão já adiantou [28], querer explicara essência pelo comportamento é um problema porqueexige uma correspondência entre o comportamento e oestado mental, o que não acontece admitida a hipótesede fingimento. Se o indivíduo finge sentir algo, é evi-dente que seu estado mental não pode ser inferido de seucomportamento. É importante reconhecer que o Beha-viorismo parece ter certa influência em pesquisadores de

6Um exemplo interessante foi o debate imenso entre a noção de “ação à distância” e a ideia de campos em física [25].7Uma “hipótese ad-hoc” é uma explicação criada com um determinado objetivo. No caso aqui, aceitar a possibilidade de que o Espírito

possa ter um corpo em outro lugar enquanto ainda não desencarnado é uma explicação criada para “salvar as aparências” ou acomodar osdados disponíveis com a tese principal. O que supostamente dizem “os fatos”, interpretados de acordo com determinados pressupostos esob risco de falhas (erro de data, falsas memórias etc), é salvo pela adoção da hipótese.

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reencarnação, já que a chave da identificação da persona-lidade está, em princípio, ligada empiricamente ao com-portamento do indivíduo8.

Da mesma forma, com a evolução natural da perso-nalidade, o fato de eu mudar de desejos, tendências einteresses ao longo da minha vida, não se deve a vários“eus” dentro de mim. O meu “eu” é uno, integral e in-divisível, apenas mudou o seu foco de interesse ao longodo tempo, que se manifesta no nível consciente e públicocomo uma mudança de desejo. Assim, o comportamentode um indivíduo não permite a identificação indubitávelde Espíritos9.

Simplesmente não há como resolver essa questãoadmitindo-se as coisas por esse caminho, que leva a uma“floresta” de explicações divergentes para a mente emseu estado “normal”10. Seria infinitamente mais fácilpara um cético criticar abertamente a tese da reencarna-ção, que sairia como a principal prejudicada. Portanto, opreço a se pagar por aceitar o caso RS como reencarna-ção é relaxar a coerência e lógica da ideia das vidas su-cessivas, com prejuízo grande para toda a tese e reforçoconsiderável das explicações céticas. Mas, seria esse ocaso?

III .1 Uma análise espírita da tese RS-HK

O Espiritismo abre um leque grande de possibilida-des, primeiro no que diz respeito à origem das memóriasde RS. Não se pode acreditar no caráter “normal” daconsciência de RS uma vez excitada por certos detalhesdo ambiente. Ao contrário, o fato do “fenômeno” apenasocorrer quando em contato com certo objetos, cria for-temente a impressão de mudança desse estado. Depoisporque acessar as lembranças como algo “quase visívelaos olhos” permite inúmeras interpretações dentro da fe-nomenologia mediúnica. Finalmente, a exigência de “es-tado alterado” não é condição sequer necessária para amediunidade ou “obtenção de informação anômala”. EmO Livro dos Médiuns [2], II Parte, Capítulo XV, Pará-grafo 182, “Médiuns inspirados”, podemos ler:

Todo aquele que, tanto no estado normal, como node êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações es-tranhas às suas idéias preconcebidas, pode ser incluídona categoria dos médiuns inspirados. Estes, como sevê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva,com a diferença de que a intervenção de uma forçaoculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao ins-pirado, ainda é mais difícil distinguir o pensamentopróprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é oque, sobretudo, caracteriza o pensamento deste últimogênero. (grifos nossos).

Médiuns com variados graus de faculdade descrevemimagens ao contato de objetos, inclusive sensações rela-cionadas a envolvidos na “cena”. É o famoso fenômeno

da psicometria [32, 35]. Como as faculdades descritaspor Kardec com “segunda vista” não se apresentam sis-tematizadas e bem descritas, pois são elas resultados daemancipação da alma em diversos graus (ver [1], Questão447), infinitas possibilidades existem para expliar as su-postas lembranças de RS. Por exemplo, podemos aventara hipótese de que RS teve alguma dessas faculdades emestado algo desenvolvido. Por trabalhar em um ambientesemelhante ao de HK, de alguma forma se envolveu comseu passado por afinidade espiritual. Sua crença ferre-nha em reencarnação e falta de conhecimento adicionalfizeram com que ele se identificasse como a personali-dade de HK. Com a ajuda de outra fonte psíquica, nãofoi difícil a ele descrobrir mais informações.

Contra isso seria possível antepor o argumento de queRS não era médium ou não teria manifestado nenhumtipo de mediunidade em sua vida, o que depende exclu-sivamente da opinião de RS, como citado anteriormente.Dai a ênfase de Stevenson de que RS não se encontrariaem um estado modificado de consciência. Mas, este éum ponto questionável no caso: o pesquisador tenta, emgeral, raciocionar em termos de sua “hipótese de traba-lho” preferida, já que considerar todas as outras possibi-lidades de influência é como embrenhar-se sem volta emuma floresta escura. Na impossibilidade de saber maisdetalhes sobre o grau de psiquismo de RS, fica difícil de-fender a tese de que todas as suas “lembranças” (que,enfatizamos, ele descreve como “visões” a depender deuma posição no espaço) sejam memórias de fato.

Outra violação aparente à “lei de causa e efeito” éque o suposto reencarnante não teve nenhuma sequela deseu suicídio. Inicialmente, consideremos isso do pontode vista do segundo princípio de identificação usadopor Stevenson, sobre inúmeras marcas de nascença [14]provocadas por agressões físicas no corpo do individuoidentificado como reencarnante. Além da semelhançade personalidades, marcas de nascença são consideradasuma evidência física de identificação. Porém, se umaagressão compulsória pode deixar uma marca, como épossível um caso em que o suposto reencarnante tenha sematado com um tiro na cabeça e não tenha nenhumamarca, mas apenas retido lembranças que se parecemcom “visões”?

E não serão os espíritas que insistirão nesse ponto,mas os céticos. Sem um mecanismo concebível de “ma-terialização de um trauma”, como será possível defendera ideia da reencarnação? Em outras palavras: uma vezaceita a tese de identificação de RS como HK, resta evi-dente questionar todos os outros casos de Stevenson. Umcrítico que se interessou por nosso texto preliminar sobreessa questão11, cita T. Tucker sobre a transferência fí-sica de “memórias traumáticas” entre encarnações, combase em diversas evidências tanto dos “estigmatas” comoindivíduos hipnotizados [33]:

8Ou, de outra forma, desaparecido o corpo, aparentemente não tem como “reconhecer” que fulano é ele mesmo se não for a partir doque existe de mais público sobre ele: traços de seu comportamento.

9Outras evidências propostas pelo método de Stevenson é a das marcas de nascença [14].10Quer dizer, ao se levantar hipóteses “ad-hoc”, é preciso vasculhar meticulosamente por todas as consequências negativas de sua assunção,

em detrimento da explicação localizada de um fenômeno apenas.11Ver o post clicando aqui.

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Problemas metodológicos na pesquisa da . . .

A questão, aqui, é: a mente consegue promover nocorpo mudanças que, no estado atual de nossos co-nhecimentos, são impossíveis de explicar. Quandodigo “mente”, não me refiro necessariamente ao cé-rebro. Refiro-me, antes, ao mundo dos pensamentosou consciência que existe no cérebro (discutirei issomais detalhadamente ao tratar do materialismo, noCapítulo 4). Se a consciência ou mente pode subsis-tir após a morte do cérebro ? Se uma parte de nóssobrevive ao desaparecimento do corpo e penetra numfeto para renascer ?, então se segue que é capaz decausar mudanças no desenvolvimento desse feto, talqual é capaz de causá-las ao longo da vida. Assu-mindo que o período de desenvolvimento no útero éum período particularmente vulnerável para o corpo,vemos com facilidade que, se a mente ocupar um fetoenquanto estiver carregando lembranças traumáticas,as quais, segundo estudos anteriores, podem produ-zir lesões específicas na pele de certas pessoas, essaslembranças com muito mais razão produziriam mar-cas ou mesmo defeitos de nascença semelhantes aosferimentos que a mente experimentou em outra vida.Se a mente sobrevive a uma vida e passa para outra,os casos de marca de nascença envolveriam logica-mente o mesmo processo responsável pelos episódiosde hipnose acima documentados.

Longe de contradizer nosso argumento, o mecanismolembrado por Tucker reforça o problema da identificaçãoRS-HK, pois tais estigmas (causados pelo suicídio de HK)não existiam no corpo de RS, o que é uma evidência fortede que se tratavam de Espíritos diferentes12. Porém, emciência é preciso reconhecer que, da mesma forma comonão se fazem generalizações com base em um conjuntofinito de fatos, não se pode querer substituir uma teoriaou explicação convincente por evidências mal estabele-cidas, não importa o quão numerosas elas sejam13. Oproblema não percebido pelo crítico é que inexiste qual-quer mecanismo físico concebível capaz de ser invocadopela ciência para criar essas marcas seguindo a propostade Tucker.

Ao se embaralhar ideias espíritas, materialistas(científicas aceitas), espiritualistas e psicológicos comoos de Tucker, e leitores desavisados podem pensar quereferem-se todos aos mesmos conceitos e resultarão maisou menos nas mesmas conclusões. Pior ainda é quererinvalidar a tese de um contexto teórico (p. ex., do Es-piritismo) com base na proposta de outro (de Tucker).Veja a questão da palavra “mente”, objeto da citaçãode Tucker. Para o Espiritismo ela é sinônimo de “es-pírito”, que é uma entidade independente da matéria eque não se confunde com “mundo dos pensamentos”, queTucker equivale à “consciência”. Portanto, segundo Tuc-ker, a sobrevivência se dá pela subsistência do “mundodos pensamentos”. Como consequência desse racioncínio,torna-se uma questão óbvia buscar por provas que mos-trem a influência do “pensamento sobre a matéria”. Ora,alguém que conheça a fundo a Doutrina Espírita enten-

derá que isso não existe. “Pensamentos” são impressõesprivadas que ocorrem dentro da mente e são apenas porela experimentadas, ou seja, “pensamentos” são efeitos enão causas. É pela coincidência da vontade, pensamentoe efeito material que se conclui que são todos geradospor uma outra e mesma causa. E mais ainda: existealgo intermediário, mais próximo da matéria, que deveser pesquisado a fim de que se compreenda à exaustãoas condições necessárias e suficientes para que um de-terminado efeito material aconteça. No Espiritismo háo perispírito (ver [1], Questão 93), de forma que não ésimplesmente a mente a causa última das mudanças fí-sicas observadas no corpo. Em outras palavras, para oespírita, sem que se reconheça a existência do perispí-rito, suas propriedades e interação com a matéria e coma mente, será sempre precário querer, a partir dos efei-tos finais, decidir pelas causas tão fenomenologicamentedistantes como os pensamentos.

Mas toda essa discussão apenas torna parcialmenteexplícito a complexidade do assunto e os inúmeros desdo-bramentos que ele pode ter na visão espírita. Por exem-plo, admitamos que se encontre uma evidência de alguémque tenha desencarnado como suicida e que, em existên-cia subsequente, não tenha experimentado nenhuma se-quela. Isso é prova de que é possível suicidar-se sem con-sequência alguma? Seria necessário mostrar que sequelasnão existiriam em todas as outras existências do Espí-rito14, o que é provavelmente impossível empiricamente.As provas materiais a que o Espírito está sujeito - e quese manifestam na reencarnação em um corpo, tempo eum lugar no espaço - não dependem apenas e tão so-mente dos atos pregressos, constituição do perispírito edo corpo (genética etc). Obedecem eles a uma espéciede programação em que fazem parte a constituição deum ambiente material propício para a expiação ou prova.Tudo isso inexiste na cabeça de Stevenson ou de Tuc-ker, ou de quem pesquise reencarnação fora do contextoteórico da Doutrina Espírita e, cremos, exerce influênciagrande no fenômeno reencarnatório. Fora desse contexto,restarão sempre casos “inexplicáveis”, anomalias de ano-malias como produtos do desconhecimento de todos osfatores responsávies pelos efeitos.

III .2 Alguns princípios orientadores

É necessário considerar alguns princípios orientado-res [36], sem os quais tanto a pesquisa será abandonadacomo infactível como a própria tese da reencarnação seráfacilmente refutada. Esse é um assunto complexo e aqui,por falta de espaço, nos limitamos a discutir brevementealguns desses fundamentos. De acordo com [1], algunsdesses princípios são:

1. Existe conservação da “individualidade”, isto é, apersonalidade humana sobrevive à morte física econserva sua consciência, que é produto de uma

12Nosso crítico estava interessado em provar o contrário: que mesmo na ausência das sequelas, tratava-se de um caso de reencarnação.Para salvar as aparências, ele recorreu a explicações ad-hoc a partir de interpretações de influência do “pensamento sobre a matéria”.

13Que remonta à estorinha de B. Russel do “peru indutivista” [34].14De novo o “peru indutivista” de B. Russell [34].

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unidade não material (ou incorpórea) chamada“Espírito” (Questões 92 e 150);

2. Para cada Espírito está associado um único corpodurante uma encarnação (Questão 137);

3. O Espírito não pode ser “destruído” (não existeuma “segunda morte”)(Questão 83);

4. Da existência de um interavalo de tempo fixo entreas datas que separam as existências de um mesmoEspírito (é o que se chama de “tempo de erratici-dade”) (Questão 224);

5. A duração da vida humana é limitada pelo corpo(Questão 68). Não existe um limite para a existên-cia do Espírito (conforme o princípio 3);

6. Uma vez dado início a reencarnação, não pode ha-ver substituição de Espíritos (Questão 345);

Do ponto de vista espírita, o princípio 2 enunciadoacima está relacionado com a questão do livre-arbítrioe tem como corolário o princípio 4. Não obstante a re-lação unívoca entre Espírito e corpo, é possível a vidaorgânica em corpos sem um Espírito associado (Ques-tão 356), da mesma forma que a vida espiritual não de-pende da existência de um corpo (Questão 226). Nãoé difícil ver que esses fundamentos demandam a buscapor provas e evidências definitivas que sugerem violaçãode datas, troca de Espíritos etc, muitas vezes devidas àimprecisão ou falhas de registros de datas, além de er-ros de memória. Finalmente, tais leis dão consistênciaà pesquisa, que não fica a mercê de interpretações equi-vacadas de dados espúrios, conseguidos por um ou outropesquisador. Em parelelo com uma sólida investigaçãosobre a natureza das memórias, lembranças ou quaisquereventos anômalos associados a um caso que sugere “reen-carnação”, tais fundamentos parecem ser essenciais paraa correta identificação dessas anomalias.

IV CONCLUSÕES

É uma das conclusões deste trabalho que, tão só combase nos relatos levantados por I. Stevenson, não é pos-sível afirmar a identificação de HK como a reencarnaçãoanterior de RS. Que essa conclusão era compartilhadapor Stevenson pode-se inferir pelo qualificativo “suges-tivo” que dava a seus casos. Do lado do pesquisador, éprovável também que o caso RS tenha sido interpretadoforçadamente por I. Stevenson como um caso genuíno, adespeito da marcante diferença na maneira como as “evi-dências” foram obtidas, na inconsistência nas datas e dotipo de relato feito por RS.

No caso específico RS, temos a nítida impressão deque algo está faltando, principalmente relacionado àsafirmações de lembranças ou memórias de RS, de suaorigem (quando elas surgiram pela primeira vez, se nainfância ou quando RS já estava com mais de 50 anos) esobre sua alegada dependência com o lugar e horário de

manifestação. RS descreve essas lembranças como “vi-sões”, o que sugere a influência de outro agente psíquico.Essas causas podem ter sido responsáveis pelas visõese associadas a suas lembranças posteriormente. Com aconfirmação dessas visões, RS conseguiu levantar umapersonalidade equivalente em sua busca obsessiva (quiçaimpulsionada por esses agentes), que deu origem a todasas outras “evidências” que Stevenson discute na referên-cia [12];

O maior problema do caso RS é que a data de nasci-mento do suposto reencarnante é anterior à desencarna-ção da personalidade pregressa, o que está em contradi-ção com a lei de causa e efeito. Do ponto de vista lógico,a existência material tem duas causas: a existência deum “espírito” e de vida material em um “corpo”. A acei-tação inconteste do caso RS leva a ideias extravagantesquando generalizada para outros fenômenos mentais.

Da perspectiva cética, o caso RS é facilmente refutadocomo uma clara prova da inexistência da reencarnação.Os que defendem de qualquer jeito a reencarnação es-tão expostos à diversas críticas, quando modificam a teseprincipal com o objetivo de acomodá-la a evidências dotipo do caso RS. A “força” desse caso é maior para crentesque colocam fatos mal interpretados acima da importân-cia da teoria e sua consistência interna. Certamente, aafirmação de Erasto [37] de que é “preferível rejeitar dezverdades a aceitar uma única mentira” é recomendadatambém na pesquisa de evidências da reencarnação. Ocaso RS ressalta a importância de uma teoria que integretanto informações de fatos históricos associados a exis-tências anteriores como memórias em diversos estados daconsciência. Portanto, a pesquisa futura da reencarnaçãonão terá êxito se desacompanhada de considerações so-bre a fenomenologia psíquica, que representa outra fontepara a aquisição “anômala” de informação. Tais conside-rações não têm sido consideradas entre aqueles [3] que sepropuseram a desenvolver uma metodologia para a reen-carnação.

V AGRADECIMENTOS

Agradeço a um crítico anônimo do post RuprechtSchulz: estranho caso de uma suposta reencarnação(acesso em maio de 2016) que me forneceu várias refe-rências deste trabalho.

REFERÊNCIAS

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[24] No Brasil, há uma edição traduzida da referência [12] com otítulo “Casos Europeus de Reencarnação”. Ed. Vida e Consci-ência. 1a Edição, 2010. No que é citado neste artigo, seguimosa versão em Português.

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[31] Wilhelmshaven. Site do Wikipedia https://en.wikipedia.org/wiki/Wilhelmshaven, Acessado em16 de abril de 2016.

[32] Bozzano, E (1920). Gli Enigmi della Psicometria. Casa Edi-trice Luce e Ombra. Roma. No Brasil, há uma tradução emPortuguês conhecida como “Os enigmas da psicometria”. Ed.Federação Espírita Brasileira.

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Title and Abstract in EnglishMethodological issues in reincarnation research: the Ruprecht Schulz case

Abstract: In this work, we briefly discuss some difficulties in reincarnation research taking into account the Spiritist perspective.Besides the proposal put forward by the Spirits in The Spirit’s Book, there are essentially two phenomenological data sourcesfeeding reincarnation research: child reports and hypnotic regressions in adults. We illustrate the issues indicated by thisanalysis with the famous Ruprecht Schulz (RS) case, which was regarded by I. Stevenson as of a “strong” reincarnation type,but which seems to exhibit interpretation problems centered around RS alleged memories. We sustain that such issues arerelated to both lack of a theory of the mind and flaws in the correct appreciation of mental phenomena that are capable ofexplaining RS claims and, in particular, the origin of anomalous perceptions, source of several researchers misunderstandingsbetween psychic manifestations and past life memories. Far from representing a counter example to the Spirit’s proposedreincarnation mechanism, RS case exposes researchers limitations when they do not pay sufficient attention to a variety ofpotential psychic influences upon incarnated minds or disregard the rich Spiritist phenomenology.Keywords: reincarnation, past life memories, reincarnation research, hypnotic regression, Ruprech Schulz.

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