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I Graciliano Ramos e Walter Benjamin: memória e esquecimento. Thiago Tavares Reis 1 Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar o trabalho de Penélope do Esquecimento? Walter Benjamin, A imagem de Proust Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere RESUMO Nesta pesquisa pretendemos refletir sobre os significados da memória e do esquecimento dentro das narrativas de Graciliano Ramos. Além disso, o objetivo deste artigo é interpretar Graciliano Ramos, especificamente Memórias do Cárcere e Infância – à luz do método de Benjamin. PALAVRAS CHAVE: Graciliano Ramos; Walter Benjamin; Teoria da Literatura; memória e esquecimento. ABSTRACT: Graciliano Ramos; Walter Benjamin; Theory of Literature; memory and oblivion. KEYWORDS In this research we have intend to reflect about the meanings of memory and oblivion insides of the Ramos’s narratives. Moreover, the aim of this research is to interpret Graciliano Ramos, specifically Jail Memoirs and Childhood - in the light of Benjamin’s method. 1 Discente 8° período – Departamento de Ciências Sociais (UFU). Rua: Viena, 537. Bairro Tibery – Uberlândia MG. CEP 38400-086. E-mail: [email protected]. O presente trabalho teve orientação da Profª Drª Joana Luíza Muylaert Araújo, do Instituto de Letras e Lingüística (UFU). Agradeço à FAPEMIG pela concessão da bolsa de iniciação científica e a minha orientadora, pela acolhida prestimosa.

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  • I

    Graciliano Ramos e Walter Benjamin: memria e esquecimento.

    Thiago Tavares Reis1

    Sabemos que Proust no descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porm esse comentrio ainda difuso, e demasiadamente

    grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, no o que ele viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de Penlope da reminiscncia. Ou seria prefervel falar o

    trabalho de Penlope do Esquecimento?

    Walter Benjamin, A imagem de Proust

    Quem dormiu no cho deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tbuas estreitas. Escrever talvez asperezas, mas delas que a vida

    feita: intil neg-las, contorn-las, envolv-las em gaze

    Graciliano Ramos, Memrias do Crcere RESUMO Nesta pesquisa pretendemos refletir sobre os significados da memria e do

    esquecimento dentro das narrativas de Graciliano Ramos. Alm disso, o objetivo deste artigo

    interpretar Graciliano Ramos, especificamente Memrias do Crcere e Infncia luz do

    mtodo de Benjamin.

    PALAVRAS CHAVE: Graciliano Ramos; Walter Benjamin; Teoria da Literatura; memria

    e esquecimento.

    ABSTRACT: Graciliano Ramos; Walter Benjamin; Theory of Literature; memory and

    oblivion.

    KEYWORDS In this research we have intend to reflect about the meanings of memory and

    oblivion insides of the Ramoss narratives. Moreover, the aim of this research is to interpret

    Graciliano Ramos, specifically Jail Memoirs and Childhood - in the light of Benjamins

    method.

    1 Discente 8 perodo Departamento de Cincias Sociais (UFU). Rua: Viena, 537. Bairro Tibery Uberlndia MG. CEP 38400-086. E-mail: [email protected]. O presente trabalho teve orientao da Prof Dr Joana Luza Muylaert Arajo, do Instituto de Letras e Lingstica (UFU). Agradeo FAPEMIG pela concesso da bolsa de iniciao cientfica e a minha orientadora, pela acolhida prestimosa.

  • II

    I. INTRODUO

    No incio de 2008, tivemos

    nosso plano de trabalho, Experincia e

    Pobreza nas Memrias de Graciliano

    Ramos, contemplado com uma bolsa

    de iniciao cientfica FAPEMIG. O

    mencionado plano esteve vinculado ao

    projeto da Prof Dr Joana Luza

    Muylaert de Arajo, intitulado Da

    impropriedade da literatura brasileira e

    de suas histrias: os modernistas e seus

    precursores. Neste ltimo h o esforo

    de se vislumbrar nas cartas, dirios e

    memrias de autores modernistas,

    outras possibilidades de escritas da

    histria literria brasileira.

    O mote seria, pois, o de

    escarafunchar anotaes margem, no

    to benquistas at o momento pelos

    holofotes da crtica especializada;

    perscrutando nas escritas que ora so

    tratadas com vilipndio, pginas nas

    quais avultam ricas possibilidades.

    Cientes destas

    observaes, fomos s confisses do

    nosso escritor alagoano em especial,

    Memrias do Crcere e Infncia -,

    concatenadas por um ardil que

    desmonta a ingnua noo do discurso

    autobiogrfico enquanto uma grafia de

    si, imaculada e congruente, sobre as

    desventuras e acertos de um indivduo.

    Ademais, para alm de surrupiar tal

    noo, as confisses levam-nos,

    amide, fico. Portanto, enxergar na

    escrita de si uma reproduo fidedigna

    e linear da vida daquele que escreve

    seria, para Ramos, uma pilhria.

    Enquanto alguns se jactavam de usar a

    primeira pessoa, Ramos tinha ojeriza ao

    pronomezinho irritante. Testemunhar

    sobre a condio humana urgia mais do

    que trazer tona veleidades individuais.

    Portanto, tanto em Infncia quanto em

    Memrias do Crcere, pulsou mais uma

    memria coletiva do que reminiscncias

    individuais.

    Assim, mais judicioso

    ver no escritor uma fico

    autobiogrfica. Se o passado esmorece,

    apraz ao romancista-memorialista

    reviv-lo, embora saiba que no raro o

    que findou jamais voltar. A memria

    central na narrativa de Ramos. No

    posfcio do professor Wander Melo

    Miranda, presente na edio de

    Memrias do Crcere, em volume

    nico, tivemos uma pista:

    A recriao da memria no se prende, pois, a mtodos apriorsticos de investigao, dependentes da experincia vivida e que visem satisfazer expectativas previsveis de configurao textual. Recordar

  • III

    , para Graciliano, esquecer-se como sujeito-objeto da lembrana, esgueirar-se para os cantos, colocar-se margem do texto ser escrito por ele, ao invs de escrev-lo -, para que a linguagem, em processo intermitente de produo, possa cumprir seu papel efetivo de instrumento socializador da memria. (apud RAMOS, 2008, p.686). 2

    Na memria como antdoto

    contra o esquecimento atroz, o escritor

    alagoano fez o seu ofcio. Neste sentido,

    tal como antevamos no nosso plano de

    trabalho sintomtico desta anteviso

    o prprio ttulo, inspirado no pequeno

    texto do filsofo alemo Walter

    Benjamin 3-, o escritor brasileiro

    2 MIRANDA, Wander Melo, Posfcio Em: RAMOS, Graciliano. Memrias do Crcere. Rio de Janeiro: 2008, p.686. 3 Tal como Graciliano, Benjamin no se sentia confortvel ao lidar com o discurso autobiogrfico. Infncia em Berlim por volta de 1900, noutro artigo, foi comparada, por ns, com a Infncia de Graciliano. A Mo, esse Don Juan juvenil, em pouco tempo, invadira todos os cantos e recantos, deixando atrs de si camadas e pores escorrendo a virgindade que, sem protestos, de renovava (BENJAMIN, 2000, p. 89). Infncia em Berlim por volta de 1900 adquire sua virtuose no exerccio filosfico de Benjamin de captar o peso da sensibilidade de uma poca na leveza dos mistrios de sua meninice. A cidade cindida confrontada com os brinquedos, o aspecto cinzento da urbe berlinense entra em coliso com as tonalidades vibrantes das fbulas pueris e a memria evocada no como uma musa a servio da remontagem fidedigna daquilo que est morto, mas sim como uma aliada da inventividade do crtico. Benjamin - a sombra de Nietzsche dinamitou, pois, a noo da escrita de si, jogando para os ares a pretensa castidade que esconde veleidades demonacas de exibies dissimuladas e projees narcsicas da autobiografia.

    poderia ser lido luz da sensibilidade

    benjaminiana.

    Walter Benjamin apegou-se

    ao que a cultura traz de, aparentemente,

    fossilizado, anacrnico e encarquilhado

    no por acaso que ele quis salvar o

    drama barroco alemo (do sculo XVII)

    para o incio do sculo XX. Emaranhou-

    se pelos meandros da memria e do

    esquecimento, lendo e traduzindo

    Proust 4. Extasiou-se pelos contos de

    fadas, colecionou, apaixonadamente,

    brinquedos antigos a aquisio de

    antigidades tinha em vista a idia de

    rejuvenesc-las. Perscrutou a sua

    infncia em Berlim na aurora do sculo

    XX, no intuito, de buscar significados

    no jazigo do esquecido. Alm de tudo

    isso, encantou-se por Baudelaire, numa

    mistura de lamentao e regozijo com a

    queda da aurola do poeta na lama. E

    em Kafka, vislumbrou uma doena da

    tradio, cuja narrao ancorava-se,

    justamente, na dificuldade do narrar.

    No seu pequeno e

    emblemtico texto Experincia e 4 Benjamin nutria verdadeira admirao pela obra de Proust. O que o encantava era a grandeza das lembranas proustianas ao mostrar as linhas tnues entre o passado e o presente. Portanto, a grandeza no vinha do contedo daquelas lembranas a vida burguesa no to interessante, funda-se mais na tagarelice do que no frescor mas de sua forma. No por acaso que Benjamin tambm tradutor do autor francs renunciou leitura de Proust, pois, temia que ela se tornasse um sedativo, tolhendo a sua prpria produo filosfica.

  • IV

    Pobreza (1993), o filsofo registra-nos

    que as aes da experincia estavam em

    declnio numa gerao que, entre 1914 e

    1918, viveu a truculncia da Primeira

    Guerra Mundial. O frgil e minsculo

    corpo humano se viu no campo minado

    da experincia das trincheiras, no corpo

    maltrapilho torturado pela fome, nas

    esperanas frustradas em face da

    frialdade da inflao econmica e no

    pessimismo diante do cinismo dos

    governantes. Destas experincias

    indelveis, o frgil corpo humano ficou

    privado das experincias comunicveis,

    os homens que retornavam do front

    viam no silncio o virtuosismo

    porquanto a sofreguido interna era to

    profunda que o comunicar-se era intil.

    Longe se iam, por

    conseguinte, os tempos nos quais os

    loquazes provrbios ensinavam-nos

    valores duradouros. Nos tempos

    sombrios que marcaram o incio do

    sculo XX, um velho moribundo

    outrora ancio sapiente no ousaria

    comunicar aos jovens alguma

    experincia. O desenvolvimento da

    tcnica, somado com a experincia

    srdida da guerra, emudecera os

    homens.

    Todavia, o pensamento

    de Benjamin, geralmente, aferra-se s

    ambivalncias, isto , o declnio das

    experincias comunicveis trouxe um

    conceito novo e positivo da barbrie, na

    qual a honradez est na confisso de

    que estamos pobres, porm precisamos

    nos arriscar. A pobreza da experincia

    compele o brbaro a ir adiante, a

    contentar-se com pouco. Na desiluso e

    na fidelidade do brbaro ao sculo que

    se inicia, Benjamin percebe certas

    manifestaes artsticas nas quais a

    linguagem est a servio da

    transformao da realidade e no de

    sua mera descrio.

    Como se percebe, o

    filsofo tem uma sensibilidade acurada

    ao conseguir ver beleza naquilo que se

    esvai captando potencialidades nas

    runas histricas. Noutros ensaios, a

    despeito das nuanas entre eles,

    Benjamin persiste na sua faina de

    colocar a nu as contradies de certos

    fenmenos estticos da extino de

    maneiras tradicionais de narrar -, os

    quais carregam consigo outras

    tendncias. Tanto no seu ensaio sobre A

    crise no romance (1930) quanto em O

    narrador (1936, o filsofo sente-se

    extasiado (e nostlgico, embora de

    uma maneira bem peculiar) em face da

    corroso da narrativa tradicional.

    Noutro momento, trabalharemos, com

    mais vagar, estes textos.

    De Walter Benjamin,

    absorvemos a percepo da fora

    salvadora da memria. O implacvel

  • V

    trajeto da morte no consegue a tudo

    ceifar, pois, os pncaros da memria

    so, de certa forma, inalcanveis.

    Graciliano Ramos sabia disso, no

    toa que buscou testemunhar a verdade

    humana, gravada nele desde menino. O

    testemunho fia-se na memria,

    esculpido na pedra dura da realidade

    exterior. Cnscios destas consideraes,

    envolvemo-nos com um Graciliano

    Ramos que, no obstante declare no

    conservar notas, elege a confisso como

    misso de sua arte.

    II. FORTUNA CRTICA E MTODO

    A vida um emaranhado

    de encontros e desencontros, e no raro

    os desencontros trazem-nos belas

    surpresas. No comeo da minha

    graduao Cincias Sociais (UFU)

    encantei-me com o frescor espiritual de

    certo professor que iniciou o nosso

    curso com o magistral estudo de

    Marshall Berman, Tudo que Slido

    Desmancha no Ar.

    Naquele livro houve o

    meu primeiro encontro; o turbilho da

    modernidade era vislumbrado nas

    pginas de vultos artsticos dos mais

    sensveis, Fausto de Goethe, Flores do

    Mal de Baudelaire, Memrias do

    Subsolo de Dostoievski, ao lado de

    figuras tais como Nietzsche, Weber,

    Marx e Marcuse. A maneira mais

    intempestiva de se comear um curso de

    Cincias Sociais foi colocada

    disposio. Restou-me o deleite destes

    primeiros anos de graduao, pois,

    sensaborias viriam com o tempo, desde

    uma moribunda licenciatura at

    casmurros professores.

    Passado o xtase inicial,

    argi o mencionado professor acerca da

    possibilidade de juntos, trabalharmos

    possveis interfaces entre as Cincias

    Sociais e a Literatura. A acolhida foi

    altura dos meus anseios tanto que a

    parceria alou vos maiores, como o

    trabalho de concluso do curso

    embora se tenha revelado parcial, tendo

    em vista as necessrias aspiraes

    acadmicas. O encontrou tornou-se

    desencontro.

    Entretanto, um novo

    encontro estava espreita. O meu

    Professor acabou por me apresentar a

    uma Professora de Literatura. A

    acolhida foi generosa e prestimosa

    acionando o aguilho da crtica quando

    necessrio. A Professora logo notou que

    meu esprito assistemtico precisava de

    algumas lapidaes. At porque, nem

    todo apaixonado por Literatura, est

    credenciado a fazer crtica literria

    mesmo que s vezes a sensibilidade do

  • VI

    amador seja mais fina do que a do

    profissional. Da uma nova parceria se

    instalou na minha formao acadmica,

    e a Professora tornou-se minha

    orientadora, com todo o peso e leveza

    que esta transformao implica.

    Doravante, a Orientadora

    montou um grupo de estudos com os

    seus orientandos e interessados, cujas

    temticas fossem congruentes com as

    linhas de pesquisa adotadas. Neste

    grupo de estudo, tentei contornar

    minhas lacunas na teoria literria. Isto ,

    estas digresses iniciais no so

    fortuitas, se aqui esto, por algum

    motivo. A fortuna crtica e a

    metodologia adotada tm estreita

    relao com aqueles encontros.

    De propedutica,

    tivemos os romances e os relatos

    autobiogrficos de Graciliano Ramos.

    Comeamos com Caets, seu livro de

    estria por ironia, narrado em primeira

    pessoa no qual a brevidade e a

    condensao traam o perfil literrio do

    autor. As leituras vindouras se

    confundem - traar, neste momento, um

    esboo linear das nossas leituras -nos

    impossvel -, no entanto, sabemos que

    comeamos com Caets e terminamos

    com Memrias do Crcere.

    Quando a leitura de

    Angstia tornava-se asfixiante, amos

    para a truculncia digna de um Paulo

    Honrio, de So Bernardo. s vezes

    queramos uma leitura mais sutil, ento

    apelvamos para Vidas Secas. Ora ou

    outra, a leitura sistemtica, isto ,

    com vistas a pesquisar, a estudar uma

    obra at a sua aparente exausto, torna-

    se enfadonha. Nestes momentos,

    refrescvamos no humor sutil e spero

    de Graciliano Ramos, presente nas suas

    glosas para jornais, reunidas nas Linhas

    Tortas. A ttulo de curiosidade, lamos,

    igualmente, Viagem, no intuito, de

    verificarmos as impresses de

    Graciliano Ramos acerca da antiga

    URSS e da extinta Tcheco-eslovquia.

    O arrebatamento final

    veio com a leitura de Infncia e

    Memrias do Crcere. Infncia, relato

    autobiogrfico publicado em 1945,

    caracteriza-se pelo clima pavoroso da

    infncia do menino alagoano mido.

    Numa prosa cortante, avessa s

    pieguices e amenidades, os primeiros

    anos vividos no interior de Alagoas e

    Pernambuco vm baila junto com a

    seca e a truculncia dos coronis. A

    psicologia do pai vislumbrada nos

    seus ecos kafkianos, enquanto um crivo

    que a tudo abarca e submete. A

    experincia advinda dos tempos pueris

    a de que foi o medo que me orientou

    nos primeiros anos, pavor. Nas

    Memrias do Crcere, outra situao

    kafkiana salta aos olhos, Graciliano

  • VII

    preso sem motivos, tampouco

    esclarecimentos. Naquelas memrias

    avulta um dos melhores testemunhos da

    literatura brasileira, no qual a

    promiscuidade do encarceramento

    vislumbrada sem arroubos lricos.

    A propedutica findou-

    se com as leituras que, na poca,

    tnhamos de Walter Benjamin. Neste

    momento, a admirao ainda no tinha

    tanto rigor. Enfim, ramos ordinrios no

    quesito terico. Ao lidarmos com

    formas estticas, vamos apenas

    epifenmenos do social, reproduzindo

    uma sociologia da literatura trpega.

    E por fim, ao lermos Benjamin

    acabvamos por tach-lo nica e

    simplesmente de terico do

    desencantamento do mundo 5

    desconsiderando toda a sua filosofia da

    histria.

    Com vistas a incrementar

    a nossa rasa formao em teoria

    literria, passamos a ler Luiz Costa

    Lima sobretudo Teoria da Literatura

    em suas fontes, organizado por ele -,

    Antonio Candido, Maurice Blanchot,

    5 To logo percebemos que esta formulao era imprecisa, passamos a encarar o filsofo no to-somente um terico do desencantamento do mundo lembremos que a dialtica benjaminiana, mesmo que fosse estupefaciente para o rgido Adorno, evocava, igualmente, por (re) encantamentos -, este refinamento devemo-lo a Jeanne Marie Gagnebin. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e Narrao em Walter Benjamin. So Paulo: Editora Perspectiva, 2007

    Borges, Paul de Man, Derrida e

    Nietzsche. Visando aperfeioar a leitura

    de Benjamin, passamos a dialogar com

    duas filsofas e um crtico literrio,

    respectivamente: Jeanne Marie

    Gagnebin, Olgria Matos e Willi Bolle.

    Ao lidar com Graciliano

    Ramos, listamos um rol de autores

    fundamentais: Antonio Candido no

    seu clssico Fico e Confisso -,

    Wander Melo Miranda (UFMG), Rui

    Mouro, Cludio Leito, Alfredo Bosi e

    Otto Maria Carpeaux.

    Desenvolveremos, com mais preciso,

    estes autores direta e indiretamente

    noutro momento.

    Walter Benjamin

    percebera em Kafka, uma doena da

    tradio, visto que se a obra de Kafka

    corrobora o fim de uma tradio, por

    outro lado, ela no afirma a necessidade

    de reencontrar qualquer baluarte. Em

    tons prximos, Graciliano Ramos no

    esteve afeito ao conselho - a dimenso

    utilitria da sabedoria pica na viso de

    Benjamin -, no entanto, elegeu como

    ponto de partida da sua experincia

    literria o dizer sem ornamentos, pois,

    s possvel narrar o que visto e

    sentido, mesmo que seja sobre a

    dificuldade do narrar. O mestre Graa

    no nos ofereceu panacias no

    estamos diante de um escritor repleto de

    empfia, cioso de se tornar um mrtir -,

  • VIII

    mas sim um rico testemunho acerca da

    condio humana.

    A misso do escritor

    alagoano foi a de nos contar alguma

    coisa, mesmo que, em tempos sombrios,

    no haja (quase) nada a contar

    deduzimos este aparente paradoxo ao

    incorporamos no trabalho a metodologia

    benjaminiana. Mtodo do grego

    methodos, de meta e odos, caminho.

    Isto , mtodo o caminho que se

    escolhe para alcanar certo fim. Fica

    patente, pois, que o caminho que

    escolhemos foi o de Walter Benjamin,

    no fito, de vislumbramos o vigor da

    memria em Graciliano.

    III. RESULTADOS E DISCUSSES

    III. I Walter Benjamin: a

    insustentvel leveza da memria.

    No se trata de apresentar as obras literrias no contexto de seu tempo, mas

    de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e

    conhece: o nosso. Walter Benjamin, 1931.

    Walter Benjamin num

    projeto inacabado, Das Passagens-Werk 6, reuniu uma histria material do

    6 Utilizamos da magnfica edio brasileira desta obra preparada aos cuidados de dois dos maiores especialistas em Walter Benjamin no Brasil, Willi Bolle e Olgria Matos.

    sculo XIX por meio de aforismos,

    inmeras citaes, anncios de jornais e

    de meretrizes, na qual as passagens

    parisienses, o mundo em miniatura

    refgio de lojas resplandecentes nas

    quais o fetiche da mercadoria vicejava e

    seduzia os passantes revelariam o

    cristal do acontecimento total da

    modernidade. A memria das passagens

    atualizada, em pleno sculo XX, no

    intuito, de despertar a humanidade de

    certos sonhos embotados.

    No final de sua vida,

    ainda teve flego para confeccionar

    suas famosas teses Sobre o conceito de

    histria, teses nas quais a f obtusa no

    progresso to presente na social-

    democracia alem dilacerada e que a

    alegoria do anjo que sobrevoa as runas

    da histria evocada. Benjamin no

    contato sensvel com os objetos

    BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG e Imprensa Oficial, 2006. O crtico literrio brasileiro (BOLLE, 2000, p.49) d-nos um testemunho til: O texto de Benjamin publicado em 1982 com o ttulo Das Passagen-Werk (A Obra das Passagens) coloca o leitor diante de srias dificuldades para se orientar nesse projeto vasto, labirntico, difcil, fragmentrio e inacabado no qual o autor trabalhou de 1927 at 1940, ano de sua morte. Ver: BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrpole Moderna. So Paulo: Edusp, 2000, p. 49. Mas no lamentemos o carter fragmentrio da obra, tampouco a arte combinatria de Benjamin, cujas veredas nos convidam para um mosaico de citaes iluminado pela sensibilidade mpar do crtico alemo, visto que o carter inacabado da obra faz com que ela se torne arejada, obra aberta a ser continuada por ns, leitores.

  • IX

    sentia-se extasiado em face das

    transformaes modernas. Tocado pela

    brisa da modernidade, o crtico sentia-se

    comovido pelas runas histricas. A

    empresa crtica converge, assim, para a

    questo da memria e do esquecimento,

    na luta para reativar esperanas

    frustradas de outrora. Aquilo que

    sabemos que no teremos diante de ns,

    se torna imagem e, Benjamin d-nos

    uma alegoria estonteante acerca da

    fugacidade das coisas humanas: a de

    que embora possamos sonhar que no

    passado aprendemos a andar e de que

    reconheamos que o saibamos, nunca

    mais voltaremos a aprend-lo.

    Todavia, no nos

    arvoremos em interpretaes ora

    nostlgicas ora ditirmbicas do

    pensamento benjaminiano.

    Reconheamos que o filsofo mais

    formula problemas do que os resolve.

    Tal como em Graciliano Ramos, no h

    em Benjamin verdades fceis, panacias

    e idias peremptrias.

    No ensaio O Narrador

    (1936) Benjamin d-nos timas pistas.

    Se o manancial da epopia era a

    tradio oral, o do romance seria a

    solido dos indivduos, na sua

    existncia individual incomensurvel. A

    narrativa tem um senso prtico, cujo

    esforo o de aconselhar. Enquanto o

    romancista no quer aconselhar

    ningum, ele demanda por leitores

    desorientados, e no quer lhes inspirar

    valores duradouros. A extino da

    narrao est envolvida com a

    emergncia da forma romanesca e da

    informao jornalstica. Inicialmente, o

    romance difere da narrativa pelo seu

    prprio meio, o livro impresso

    impossvel pens-lo antes da existncia

    histrica da imprensa. Portanto, se na

    narrativa pica o relato era extrado da

    prpria experincia do narrador, com

    vistas a intercambiar valores com os

    seus ouvintes, no romance a tradio

    oral no alimentada, apraz ao

    romancista escrever para leitores cujas

    vidas glidas precisam ser aquecidas.

    A informao jornalstica

    que joga a derradeira p de cal na

    narrativa e deixa em prantos o prprio

    romance aspira a uma verificao

    direta, compreensvel em si e para si.

    Enquanto os relatos de antanho

    apelavam para aspectos miraculosos, a

    informao moderna apelaria para a

    plausibilidade exata, mensurada, na qual

    toda a riqueza da vida reduzida a

    dados. Ou seja, conforme o prprio

    Benjamin, recebemos notcias de todos

    os cantos do mundo, no entanto, somos

    carentes de histrias que nos tirem o

    flego.

    No entanto, o fracasso da

    arte de contar ligada a uma

  • X

    experincia espontnea oriunda de uma

    organizao social comunitria baseada

    no artesanato precisa ser

    acompanhado de novas formas de

    narratividade. O leitor do romance

    procura nos livros o que no mais

    encontra na sociedade moderna: um

    sentido explcito e reconhecido. O

    romance clssico, na direo de aquecer

    a vida glida de seus leitores deriva,

    visa concluso. Porm, aqui Benjamin

    envereda-se pelas ambivalncias, pois,

    nalguns romances contemporneos o

    no-acabamento e a obra aberta so

    caractersticas marcantes. Basta

    lembramos, tal como lembra Benjamin,

    Proust e Kafka. Mencionemos que

    Memrias do Crcere seguiu o mesmo

    caminho.

    Para Benjamin enquanto

    Proust personificava a fora salvadora

    da memria, Kafka fazia-nos entrar no

    domnio do esquecimento 7. Este ltimo

    domnio reverbera nos escritos

    kafkianos, medida que a perda da

    experincia de intercambiar

    experincias e o desaparecimento de

    7 A decifrao deste domnio em Kafka a decifrao de um mundo desfigurado pela injustia e pelo tormento, que se quer esquecido: Em Kafka, Odradek o mais estranho bastardo gerado pelo mundo pr-histrico com seu acasalamento com a culpa. [...] Odradek o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento. Elas so deformadas (BENJAMIN, 1996, p. 158).

    um sentido primordial, portanto

    colocada no primeiro plano. No h,

    pois, o que se transmitir a no ser a

    prpria dificuldade extenuante de lidar

    com o mundo as parbolas de Kafka

    so sintomticas desta dificuldade.

    Plato tinha um alto

    conceito do poder estupefaciente da

    poesia a mmesis 8 tinha uma fora de

    arrebatamento a qual toda a sua filosofia

    procurou resistir no toa que ela a

    julgava prejudicial na comunidade

    perfeita dos filsofos governantes. Para

    Benjamin a poesia e a literatura

    exprimem o que de outra forma no

    poderia ser dito. Elas nos arrebatam

    como testemunhos histricos da nossa

    condio.

    Entretanto, se na

    comunidade perfeita de Plato, a poesia

    estaria banida por devassar o corpo, no

    mundo moderno de Benjamin, ela

    entraria em crise pela dificuldade de se

    pronunciar sobre alguma coisa. H uma

    parbola de Kafka sintomtica desta

    crise, vejamo-la:

    8 H um belo texto da filsofa Jeanne Marie Gagnebin acerca do conceito de mmesis em Benjamin e Adorno no qual ela antes de diferenar o conceito em ambos os autores, traa um breve resgate da depreciao do conceito por Plato e de sua respectiva reabilitao por Aristteles. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memria e histria. Rio de Janeiro, Imago, 2005.

  • XI

    O imperador assim dizem enviou a ti, sdito solitrio e lastimvel, sombra nfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distncia, justamente a ti o imperador enviou, do leito da morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao p da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; to importante lhe parecia, que mandou repeti-la em seu prprio ouvido. Assentindo com a cabea, confirmou a exatido das palavras. E diante da turba reunida para assistir sua morte haviam derrubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em crculo, estavam os grandes do imprio diante de todos, despachou o mensageiro. De pronto, este se ps em marcha, homem vigoroso, incansvel. Estendendo ora um brao, ora outro, abre passagem em meio multido; quando encontra obstculo, aponta no peito a insgnia do sol; avana facilmente como ningum. Mas a multido enorme; suas moradas no tm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnfico de seu punho. Mas, ao contrrio, esfora-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palcio central; jamais conseguir atravess-los; e se conseguisse, de nada valeria, precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria, teria que percorrer os ptios, e depois dos ptios, o segundo palcio circundante; e novamente escada e ptios; e mais outros palcios; e assim por milnios; e quando finalmente escapasse pelo ltimo porto mas isto nunca, nunca poderia acontecer chegaria apenas capital, o

    centro do mundo, onde se acumulava a prodigiosa escria. Ningum consegue passar por a, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai 9 (apud BENJAMIN, 1996, p.19).

    Portanto, diante de um

    mundo lamacento, no qual a palavra

    tem pouco valor, nada mais catalisador

    do que a memria, na sua insustentvel

    leveza. Tal leveza inspirou o nosso

    escritor alagoano a observar que a

    retomada das cenas do passado s

    possvel a partir do momento em que se

    reconhece que o passado, tal como ele

    foi, est perdido para sempre. Tornar a

    viv-lo mergulhar na sofreguido,

    pois, o que foi no voltar mais. Porm,

    ao que poderia ter sido e no o foi,

    ainda resta uma chance as linhas

    tnues entre o presente e o passado se

    tornam risveis. Em Infncia e

    Memrias do Crcere, o passado

    formado por nuvens, espectros, rastilhos

    imprecisos e impresses esmaecidas que

    s voltaram a viver com a imaginao 9 Esta parbola volta duas vezes na obra de Kafka, como conto independente (Uma histria imperial) e dentro do conto maior Durante a Construo da Muralha da China. Benjamin capta em Kafka que no h mais nenhuma mensagem para se transmitir, exceto a de que no existe mais uma totalidade de sentidos. destas runas que nascero novas sensibilidades, outras narrativas e uma nova escritura da histria. BENJAMIN, Walter. Magia e Tcnica, Arte e Poltica (V. I). So Paulo: Brasiliense, 1996, p.19.

  • XII

    do ficcionista. Como corolrio, a leveza

    da memria diante do peso do

    esquecimento acaba por dinamitar a

    iluso autobiogrfica. Porquanto h

    no memorialista um qu de ficcionista

    insuspeito queles que acreditam,

    credulamente, na veracidade das

    autobiografias.

    III. II Graciliano Ramos: o peso do

    testemunho.

    A primeira sensao do

    leitor de Infncia de Graciliano Ramos

    a vertigem. H nesta fico

    autobiogrfica 10 lugares imprecisos,

    pontos nebulosos, estremecimentos da

    memria em face de fragmentos de

    pessoas e de coisas que, juntos,

    configuram-se no pequeno mundo

    incongruente criado pelo ficcionista-

    memorialista. O enleio de fragmentos

    sugeridos pela memria a matria-

    prima do relato, matria esta somada

    com o hbito do ficcionista de criar

    ambientes, coisas e pessoas que

    ultrapassam os limites da suposta

    veracidade. Graciliano acentua que suas

    memrias no so cabais alis, 10 Ver: LEITO, Cludio. Lquido e incerto:

    memria e exlio em Graciliano Ramos. Niteri: EdUFF, So Joo Del Rei: UFSJ, 2003. MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. So Paulo: Edusp; Belo Horizonte, UFMG, 1992.

    nenhum mortal, em s conscincia,

    pode se gabar da perfeio de suas

    lembranas -, e por conta desta

    impreciso, ele precisa recorrer a um

    mundo que incongruente. Diante das

    nuvens das lembranas, surge a letra de

    frma do ficcionista, por conseguinte.

    A memria ordinria do

    memorialista eleva-se por meio da

    criao do ficcionista, visto que existem

    coisas que s existem por derivao e

    associao. Graciliano desfaz a iluso

    autobiogrfica, pois, seleciona e filtra

    as lembranas a partir de um eu

    inquiridor. Quo pesadas seriam as

    pginas de Infncia, caso o escritor

    ratificasse a possibilidade de relatar, de

    maneira fiel e imaculada, a sua prpria

    infncia.

    Existe em Graciliano um

    grito abafado que oscila entre as

    cicatrizes da memria e o inventrio do

    ficcionista 11. O ficcionista evade-se de

    um mundo que abomina a partir de seu

    registro. H uma busca incessante pelo

    testemunho da verdade, seja qual for

    esta verdade.

    11 O oscilar entre a fico e a confisso foi um

    desdobramento necessrio na arte de Graciliano Ramos. Para maiores detalhes, consultar: CANDIDO, Antonio. Fico e confisso: ensaio sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

  • XIII

    A atmosfera acre que

    paira nas pginas dos testemunhos de

    Graciliano no est orientada, nica e

    simplesmente, por um pessimismo

    mrbido. Na verdade, o que importa o

    testemunho da condio humana, nas

    suas veleidades e mediocridades. A

    escrita est atrelada com o intenso

    desejo de testemunhar de salvaguardar

    a memria do esquecimento.

    As palavras no so

    adornos, no nasceram para o decoro,

    mas para dizer, sem floreios. No por

    acaso que Graciliano nutria uma louca

    obsesso 12pela escolha de suas palavras

    o seu processo de criao notabilizou-

    se pela lentido. Ramos resguardou

    sua escrita o trao da perfeio, pois,

    maneira das lavadeiras de Alagoas, a

    couraa suja das palavras era lavada at

    a limpidez total.

    Todavia, no estamos

    diante de um Flaubert, visto que a

    fixao estilstica no segue os mesmos

    parmetros, no caso do escritor

    brasileiro tudo pensado tendo em vista

    12 Em Memrias do Crcere freqentes so as passagens nas quais o romance Angstia denegrido, vilipendiado. Para Graciliano, Angstia estava mal escrito, gorduroso e medocre. Numa carta a Antonio Candido, Ramos alegou: Angstia um livro mal escrito. Foi isto que o desgraou. Ao reedit-lo , fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horrveis: muita repetio desnecessria, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilbrio, excessiva gordura enfim (apud CANDIDO, 2006, p. 10-11.

    a intensidade do testemunho. Em

    Infncia h uma passagem sintomtica

    da paixo firme que Ramos devotava ao

    testemunho:

    Meu av nunca aprendera nenhum ofcio. Conhecia, porm, diversos, e a carncia de mestre no lhe trouxe desvantagem. Suou na composio de urupemas. Se resolvesse desmanchar uma, estudaria facilmente a fibra, o aro, o tecido. Julgava isto um plgio. Trabalhador caprichoso e honesto procurou os seus caminhos e executou urupemas fortes, seguras. Provavelmente no gostavam delas: prefeririam v-las tradicionais e corriqueiras, enfeitadas e frgeis. O autor, insensvel crtica, perseverou nas urupemas rijas e sbrias, no porque as estimasse, mas porque eram o meio de expresso que lhe parecia mais razovel. (Ramos, 1999, p.19). 13

    O escritor cria os seus

    precursores, o menino, recriado pelo

    adulto, elege o av e sua arte atenta s

    rijas fibras das urupemas como modelo

    para o ofcio do ficcionista-

    memorialista apegado com as palavras

    sinceras. As palavras rijas como as

    urupemas devem estar esculpidas na

    experincia humana. Divagar, sem

    nenhum propsito digno, era para o

    alagoano um descalabro.

    13 RAMOS, Graciliano. Infncia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.19).

  • XIV

    Memrias do Crcere

    tem um carter experimental belssimo,

    a sintaxe oprime tal como a lei, no

    entanto, ainda h estreitos limites nos

    quais o escritor pode se mexer. Mas o

    que salta aos olhos o tipo de

    reminiscncia que ali se desdobra.

    Acerca deste desdobramento, Wander

    Melo Miranda registra-nos que:

    A possibilidade da reminiscncia descortina-se onde a histria triunfante dos homens gordos do primado espiritual procede ao cancelamento do que ficou para trs, ou seja, no detalhe, no pequeno, no insignificante, a partir deles e com eles. Se a perspectiva da morte, de fim de caminho, autoriza o autor a levar adiante suas memrias, o desejo de fazer viver o que estaria morto para sempre, mas que ainda persiste na sua demanda, o elemento deflagrador do processo da escrita. Reviver o passado, sim, porm enterrar de vez o que mantm o memorialista encarcerado e o impede de tomar posse efetiva do presente. (apud RAMOS, 2008, p.685). 14

    Graciliano esgueira-se

    nos cantos obscuros, pouco importa as

    suas mediocridades de pequeno-

    burgus, porquanto o que est em realce

    a condio de pria social, do literato

    14 MIRANDA, Wander Melo, Posfcio Em: RAMOS, Graciliano. Memrias do Crcere. Rio de Janeiro: 2008 p.685.

    vivendo como rato, encarcerado,

    diminudo, mas em contato direto com

    outros prias. Reviver estes momentos

    por meio das suas memrias, mas no

    reviv-los como, deveras, foram. O

    corpo esteve encarcerado, mas o esprito

    no. Fazer viver o que estaria morto

    para sempre: o elemento deflagrador

    do processo da escrita do nosso escritor.

    Sensvel notar que

    Graciliano Ramos no visa expor-nos,

    minuciosamente, a sua condio de

    encarcerado. As sensaes do corpo

    judiado so colocadas ao lado dos

    contornos promscuos da priso. O

    escritor se encarava como muito reles

    para se tornar um mrtir. Terminemos

    com o prprio Ramos, numas das partes

    mais sublimes de suas memrias:

    E aqui chego ltima objeo que me impus. No resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observao: num momento de aperto fui obrigado a atir-los na gua. Certamente me iro fazer falta, mas ter sido uma perda irreparvel? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consult-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol plido, em manh de bruma, a cor das folhas que tombavam das rvores, num ptio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autnticas,

  • XV

    gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem no ser verossmeis. E se esmoreceram, deix-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. (RAMOS, 2008, p.14). 15

    V. Consideraes Finais

    Walter Benjamin

    mostrou-nos a fora da memria diante

    das runas histricas. A tempestade do

    progresso para lembrarmos a famosa

    alegoria do anjo faz com que o anjo

    da histria v adiante, melanclico ante

    os detritos que se avultam abaixo dos

    seus olhos, mas confiante quanto ao

    futuro. No entanto, ora ou outra, o anjo

    precisa acordar os mortos de outrora.

    Trazer tona o passado viv-lo no

    presente, cientes de que o que foi no

    voltar mais, embora as esperanas

    soterradas de antanho possam vir luz

    no agora.

    Graciliano Ramos fiou-

    se no testemunho como premissa de sua

    arte. As angstias do presente seriam

    aliviadas no -nos possvel falar em

    cura para Ramos pelos desejos no

    ouvidos do passado. Mas, como em

    Benjamin, nada voltaria como, de fato,

    foi. O passado retorna na forma de

    nevoeiros imprecisos, iluminados

    15 RAMOS, Graciliano. Memrias do Crcere. Rio de Janeiro: 2008 p.14.

    pelo presente. A leveza da memria

    benjaminiana reforou o peso do

    testemunho gracilinico. Como

    desdobramento, os relatos

    autobiogrficos tornaram-se,

    igualmente, ficcionais. Memrias

    lineares da vida de um indivduo

    majestoso soam para Ramos uma

    torpeza a ser evitada. A soberba no

    consta no brevirio das qualidades do

    escritor. O que fulgura o esgueirar-se

    pelos cantos, haja vista que h algo mais

    interessante a ser contado. As memrias

    de Graciliano arvoram-se na experincia

    do relatar, mesmo que os tempos sejam

    dos mais pobres para as experincias

    comunicveis. assim que nosso

    escritor faz suas urupemas artsticas,

    com vistas a nos ajudar.

  • XVI

    V. BIBLIOGRAFIA

    1. Escritos de Walter Benjamin

    1.1 Tradues no Brasil

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