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Sociologias, Porto Alegre, ano 16, n o 36, mai/ago 2014, p. 264-277 http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003631 RESENHA A Mobilidade Ambígua GHERARDI, Laura. La Mobilité Ambigue – Espace, temps et pouvoir aux sommets de la société contemporaine. Paris: Éditions universitaires européenes, 2009. FERNANDO MARCIAL RICCI ARAUJO * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) Resumo Ainda sem tradução no Brasil, o livro A mobilidade ambígua – Espaço, tempo e poder no cume da sociedade contemporânea, de autoria da socióloga italiana Laura Gherardi, é o resultado de um esforço teórico-metodológico no estudo dos sentidos da mobilidade na sociedade contemporânea. Com um universo de mais de 50 entrevistas com executivos, professores globais e artistas de renome interna- cional, realizadas nas cidades de Paris, Londres e Milão, o livro propõe uma análise da mobilidade nos termos de uma nova ética social do chamado “capitalismo avan- çado”. Com o intuito de superar a antinomia dos esquemas clássicos oriundos da tradição marxista ou weberiana, Gherardi explora as possibilidades de uma análise das diferenciações sociais no seio da atual configuração do capitalismo, a partir da análise da relação entre poder e ritmo. O argumento central da autora aponta no sentido de uma ressignificação da noção de “mobilidade”: antes colocada como repertório crítico pelos movimentos de contestação do capitalismo, a mobilidade se torna um elemento central na cosmologia de valores do capitalismo avançado e “por projetos”. Assim, cooptada pelas forças as quais visava destruir, a mobilidade disciplinada, organizada e controlada passa a constituir uma ética social do chama- do “novo espírito do capitalismo”, repercutindo de forma ambígua no dia-dia dos indivíduos que vivenciam essa experiência de forma dúbia, ora como um recurso, ora como um imperativo, no contexto de um mundo conexionista. Palavras-chave: Mobilidade. Capitalismo avançado. Sociologia pragmática. Laura Gherardi.

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    http://dx.doi.org/10.1590/15174522-016003631

    RESENHA

    A Mobilidade Ambgua GHERARDI, Laura. La Mobilit Ambigue Espace, temps et pouvoir aux sommets de la socit contemporaine. Paris: ditions universitaires europenes, 2009.

    FERNANDO MARCIAL RICCI ARAUJO*

    * Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

    Resumo

    Ainda sem traduo no Brasil, o livro A mobilidade ambgua Espao, tempo e poder no cume da sociedade contempornea, de autoria da sociloga italiana Laura Gherardi, o resultado de um esforo terico-metodolgico no estudo dos sentidos da mobilidade na sociedade contempornea. Com um universo de mais de 50 entrevistas com executivos, professores globais e artistas de renome interna-cional, realizadas nas cidades de Paris, Londres e Milo, o livro prope uma anlise da mobilidade nos termos de uma nova tica social do chamado capitalismo avan-ado. Com o intuito de superar a antinomia dos esquemas clssicos oriundos da tradio marxista ou weberiana, Gherardi explora as possibilidades de uma anlise das diferenciaes sociais no seio da atual configurao do capitalismo, a partir da anlise da relao entre poder e ritmo. O argumento central da autora aponta no sentido de uma ressignificao da noo de mobilidade: antes colocada como repertrio crtico pelos movimentos de contestao do capitalismo, a mobilidade se torna um elemento central na cosmologia de valores do capitalismo avanado e por projetos. Assim, cooptada pelas foras as quais visava destruir, a mobilidade disciplinada, organizada e controlada passa a constituir uma tica social do chama-do novo esprito do capitalismo, repercutindo de forma ambgua no dia-dia dos indivduos que vivenciam essa experincia de forma dbia, ora como um recurso, ora como um imperativo, no contexto de um mundo conexionista.

    Palavras-chave: Mobilidade. Capitalismo avanado. Sociologia pragmtica. Laura Gherardi.

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    The ambiguous mobility

    Abstract

    Not yet translated in Brazil, the book The ambiguous mobility - Space, time and power on the top of contemporary society, by the Italian sociologist Laura Gherardi, is the result of a theoretical and methodological effort towards understanding the meanings of mobility in contemporary society. Based on over 50 interviews with executives, global professors and world-renowned artists, held in the cities of Paris, London and Milan, the book proposes an analysis of mobility in terms of a new social ethic in the so-called late capitalism. In order to over-come the antinomy of classical analyzes derived from Marxist or Weberian tradi-tion, Gherardi explores the possibilities of studying social differentiations within the current configuration of capitalism, based on the analysis of the relationship between power and pace. The central argument of the author points towards a redefinition of the concept of mobility: initially set as a critical repertoire by anti-capitalist movements, mobility becomes a central element in the cosmology of values of late capitalism and per project capitalism. Thus co-opted by the forces which it once sought to destroy, the disciplined, organized and controlled mobility becomes integrated to a social ethic of the new spirit of capitalism and ambiguously affects the daily lives of individuals who live this experience in a du-bious way, sometimes as a resource, sometimes as an imperative in the context of a connections driven world.

    Keywords: Mobility. Advanced capitalism. Pragmatic sociology. Laura Gherardi.

    A tese sociolgica que deu origem obra aqui analisada foi defen-dida na Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais de Paris (EHESS), nos quadros do grupo de Sociologia Poltica e Moral, no ano de 2009. Desde ento, ela vem contribuindo para o debate acerca das possibilidades de uma sociologia da mobilidade, luz das mltiplas estratgias levadas a cabo pelos indivduos com o objetivo de fazer face s exigncias de gran-deza impostas pelo novo esprito do capitalismo, no que concerne mobilidade geogrfica e temporal. A tese problematiza, do ponto de vista

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    cultural, o processo pelo qual a mobilidade vem descontextualizando-se do seu quadro original para tomar os contornos de uma tica afeita s recentes transformaes do mundo do trabalho, tornando-se, assim, parte constitutiva dos valores que animam o discurso atual do capitalismo dito avanado, caracterstico do momento ps-fordista. No que concer-ne ao ponto de vista dos indivduos, a autora analisa as diversas formas segundo as quais esses vivenciam a mobilidade. Por um lado, ela tida como um recurso social passvel de angariar mltiplos ganhos em termos de conexes e de insero em redes e projetos. Por outro, um imperativo que constrange os indivduos a uma rgida disciplina espao-temporal, carregada de custos humanos, apontando no sentido de uma crescente individualizao das relaes de trabalho, consequncia da internaciona-lizao das carreiras e das novas formas de organizao do trabalho no contexto da sociedade em rede (Castells, 2008).

    A tese enquadra-se nos esforos de construo de uma teoria da mobilidade, amparada no arcabouo terico da sociologia pragmtica inspirada por Luc Boltanski, ve Chiappelo, Laurent Thvenot, entre ou-tros. Ao marcar uma ruptura com a sociologia crtica, dominante nos anos 1970, essa nova sociologia francesa tem por objetivo a construo de um quadro terico orientado s questes de justia, rejeitando as premissas de uma sociologia do desvelamento, de epistemologia bachelardiana1. A sociologia pragmtica, portanto, apontando rigidez da tradio da sociologia crtica no que concerne supervalorizao dos efeitos de do-minao e da previsibilidade necessria do comportamento dos indiv-duos dado pelo efeito de incorporao de sistemas de disposies, passa a analisar no o sistema, nem a estrutura, mas as aes e as prticas, no

    1 Blondeau, C.; Sevin, JC. Entretien avec Luc Boltanski, une sociologie mise toujours lpreuve. Ethnographiques.org. Revue en ligne des sciences humaines et sociales. n.5, abr. 2004.

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    os atores nem os agentes, mas a situao; no os homens e as mulheres, mas seus momentos (Blondeau; Sevin, 2004). Nesses termos, os autores almejam a construo de uma teoria social orientada para as questes de justia, na qual os momentos crticos das pessoas comuns, no curso de situaes ordinrias, tornam-se o universo emprico por excelncia na busca pelos princpios de justia, sob os quais os indivduos buscam justificar ou criticar os preceitos gerais da ao corriqueira.

    Assim, na esteira dos avanos da sociologia inaugurada por Luc Bol-tanski na ruptura com Pierre Bourdieu, Laura Gherardi lana mo do m-todo pragmtico, analisando os momentos crticos, e as justificaes dos indivduos lhe servem de objeto emprico. Nesse contexto, a autora eviden-cia as mltiplas estratgias (e os respectivos custos pessoais que as acompa-nham) que esses membros das classes superiores mobilizam no intuito de satisfazerem as novas provas de grandeza impostas pelo novo esprito do capitalismo, sobretudo no que diz respeito s exigncias de mobilidade. A partir da sua adeso a uma disciplina espao-temporal coerente com o novo discurso do capitalismo flexvel e por projetos, Gherardi traz luz evidncias empricas que permitem inferir o carter normativo adquirido pela tica da mobilidade, que, cristalizada positivamente pelos manuais de gesto como um vetor de liberao, vivenciada, na prtica, pelos indiv-duos, como um imperativo coercitivo repleto de tenses e custos humanos.

    Segundo o argumento da autora, e recuperando um tema caro sociologia pragmtica a antinomia entre a crtica artstica e as prticas de gesto calcadas nos valores da burguesia mercantil (Chiappelo, 1998) , a literatura romntica europeia do sculo XIX responsvel pela crista-lizao, no campo das representaes coletivas, sobretudo na Europa, da ideia da mobilidade como um fator de liberao e expresso da autono-mia individual e da superao dos limites impostos pela racionalidade e disciplina, ambas caractersticas do mundo burgus do fim do sculo XIX

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    e incio do sculo XX. Assim, no por acaso, a viso idlica da mobilidade presente no projeto literrio do romantismo francs compe o quadro das reivindicaes da crtica esttica de maio de 68, denunciando a racionali-dade, o clculo e o utilitarismo constitutivos da cosmologia de valores do modelo fordista em nome da mobilidade, da criatividade, da autonomia e da autenticidade.

    Nesses termos, Gherardi tambm se esfora para dar voz aos indiv-duos, sobretudo queles que, a partir de seus momentos crticos e de suas justificaes, denunciam a mobilidade geogrfica exigida pela produo, sobretudo no plano transnacional, para, assim, relanar uma crtica ca-paz de trazer correes ao modelo vigente. Assim, as contribuies da autora podem ser importantes, sobretudo no que concerne construo de um novo marco terico-metodolgico capaz de ler os diferenciais de mobilidade nos termos de recursos sociais que favorecem a explorao dos pequenos (rgidos e locais) pelos grandes (mveis e globais), que possuem como caracterstica fundamental o diferencial de mobilidade e, consequentemente, a capacidade de tomar partido em novos projetos e mobilizar o capital social tributrio das relaes que da advm. Dessa forma, uma teoria da explorao no contexto de um mundo reticular precisaria superar a simples noo de excluso e levar em considera-o a relao de explorao que ocorre quando existem diferenas no que concerne s possibilidades de mobilidade dos diferentes indivduos. Assim, para contribuir renovao da crtica social no contexto do capi-talismo avanado, preciso compreender a relao entre os diferenciais de mobilidade e, especificamente, a relao entre a mobilidade de alguns e a imobilidade de outros.

    Se, por um lado, Boltanski e Chiappelo j apontavam as princi-pais caractersticas dessa dinmica em O novo esprito do capitalismo (2009), Gherardi coloca para si a tarefa de compreender precisamente a

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    maneira pela qual os pequenos (e, portanto, imveis) contribuem para a formao de uma mais-valia para os grandes (mveis e flexveis) ao permitirem a esses ltimos, como veremos adiante, a acumulao de um capital social, disponvel na explorao das redes e no consequente es-tabelecimento de novas conexes. No intuito de dar contedo emprico para essa relao de explorao no contexto de um universo reticular, que se articula em redes e por projetos, a autora escolhe trs categorias profissionais que possuem um padro de carreiras cosmopolitas, so elas: i) os executivos de empresas multinacionais; ii) os artistas de renome in-ternacional; e, iii) os professores-tericos globais.

    A autora permite ao leitor a aproximao da realidade cotidiana dos indivduos dessas trs categorias profissionais, intercalando, ao longo do texto, longas passagens nas quais so privilegiadas a polifonia das vozes dos entrevistados e, consequentemente, seus momentos crticos e suas justificaes. Nota-se que os sacrifcios realizados pelos indivduos para atender s mltiplas exigncias de uma mobilidade, que deve acompa-nhar o ritmo acelerado da produo, revestem essa tica do nomadismo de uma forte ambiguidade, sugerindo a existncia de um lado obscuro do imperativo da leveza exigida ao homem-camaleo, figura arquetpica da chamada cidade por projetos (Boltanski; Chiappelo, 1999), que tem no executivo, conexionista e mediador por excelncia, a personificao da sua representao heroica.

    Alm de evidenciar esse carter ambguo da tica da mobilidade, a autora tambm contribui para o avano de uma teoria da dominao fora dos quadros de uma sociologia da dominao clssica, calcada no arca-bouo terico marxista ou weberiano quando se vale do conceito de ubiquidade para explicar a contribuio especfica da imobilidade dos pequenos mobilidade dos grandes. Em outros termos, o estado de ubiquidade que remonta ideia de estar presente, ao mesmo tempo, em

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    diversos cenrios permitido a alguns justamente custa da mobilidade de outros. No caso dos executivos, por exemplo, esses possuem sua mobili-dade multiplicada pela imobilidade dos membros que compem sua equi-pe. Ou seja, quando aquele precisa se deslocar para atender exigncia da sua presena em reunies com acionistas ou demais financiadores, ele possui sua disposio diversos membros de sua equipe que permanecem na sede local da empresa, assegurando, assim, a sua reputao. Alm disso, ele ainda possui sob a sua subordinao outros colaboradores que podem aumentar ainda mais sua mobilidade, sendo enviados para encontros me-nores, ou obrigaes de protocolo em outras cidades centrais fora da sede para conservar o capital social e manter conexes j consolidadas.

    Nesses encontros, aos quais o manager envia subordinados e se faz representar por esses, o uso de diversas tcnicas de controle vem tona, evidenciando mais um dos aspectos ambguos de uma mobilidade con-trolada e supervisionada distncia. Como argumenta Gherardi, o obje-tivo desse controle estrito que os enviados no faam uma utilizao pessoal do capital social que lhes confiado, pois, em ltima anlise, desse capital social (e tambm informacional) que depende a posio do grande como o indivduo que vai capitalizar as conexes e as informa-es que so mobilizadas por outros em seu nome.

    Dessa forma, nota-se que a ubiquidade dos executivos o resulta-do, por um lado, da imobilidade de seus colaboradores que permanecem na sede assegurando a sua reputao, e, por outro lado, da propriedade sobre o ritmo e o tempo de outros colaboradores que so enviados pelos executivos para que esses possam ser novamente representados - nos quadros de encontros cujo nico objetivo o de manter conexes e vn-culos j estabelecidos (Gherardi, 2009, p.31). Eis, portanto, o surgimento de um homem no apenas leve, camaleo, mas que tambm se faz oni-presente atravs do poder de controlar a mobilidade de outros indivduos.

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    Assim, a noo de ubiquidade contribui na compreenso das diver-sas relaes de poder que perpassam as relaes de trabalho no contexto do capitalismo flexvel. A propriedade sobre o tempo e sobre a mobili-dade dos colaboradores gera considerveis diferenciais de mobilidade, condenando alguns imobilidade, outros ao papel de meros representan-tes e, ainda, outros ubiquidade. No entanto, interessante notar que mesmo aqueles que enviam pessoas (nesse caso os altos executivos chefes de projeto), em alguma medida, tambm no escapam dessa lgica dbia de representao de um outrem, j que mesmo esses indivduos que se situam no topo da hierarquia profissional das grandes multinacionais so, em alguma medida, representantes dos acionistas que precisam contar com a mobilidade de seus executivos para que esses se desloquem at onde esto as informaes, as conexes e os outros acionrios permitin-do, dessa forma, a disperso geogrfica de um capitalismo em rede que opera em consonncia com o ritmo acelerado dos fluxos transnacionais de investimentos (Gherardi, 2009, p. 59).

    A mobilidade, portanto, transformada em norma social, se distancia da ideia de liberao e de afirmao de si, tributria do ideal romntico e da crtica artstica de 1968, em nome da qual serviu para denunciar a rigidez do modelo fordista. Assim, tendo sido cooptada pela atual cos-mologia de valores do capitalismo, ela se torna um forte componente de sofrimento psquico. Entrando na lgica de uma performance continua-da, a mobilidade, tida como fonte de excitao, agora reconvertida em norma social, se torna, segundo Ehrenberg (1999), fonte de depresso e desencantamento. Nesses termos, em consonncia com alguns dos argu-mentos de Ehrenberg em La fatigue dtre soi, para muitos dos executivos entrevistados, Gherardi nota que a esfera do trabalho tende a ocupar todos os espaos da vida dos sujeitos. A subordinao aos ritmos acele-rados de uma vida nmade conduz o indivduo a um isolamento social

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    e, consequentemente, a esfera profissional tende a monopolizar todas as relaes pessoais, tornando difcil o autorreconhecimento fora do contex-to do trabalho. Em outros termos, a esfera profissional passa a se tornar o seu nico mundo significante, a nica comunidade que define aquilo que se (Gherardi, 2009, p. 77).

    Essa disciplina espao-temporal, exigida aos chefes de projeto, mas tambm, como veremos em seguida, aos artistas e aos professores globais, possui, portanto, custos substanciais no que concerne vida pessoal dos indivduos. Nesse sentido, a abundncia dos relatos trazidos pela autora constitui, nos parece, um dos achados empricos da pesquisa. A mobilidade exigida pela globalizao, pelo aumento da concorrncia, pela presso dos parceiros comerciais e tambm dos clientes, se traduz, no plano pessoal, em ausncias prolongadas, inquietao em relao aos filhos, que, assim como os cnjuges, permanecem em casa, etc. H tambm, por outro lado, o carter angustiante de estar em diversos lugares em espaos de tempo curtos sem propriamente poder desfrutar do que cada lugar possui de novo.

    Assim, a mobilidade desses indivduos, longe daquela que marca o cosmopolitismo das elites constitudas pelos herdeiros e acionistas, mar-cada por hotis funcionais prximos aos aeroportos, restaurantes execu-tivos, smartphones sempre conectados e a preocupao, constantemente presente, com minimizar todas as atividades que no so relacionadas ao trabalho propriamente dito. Nesse sentido, o trabalho dos executivos parece inserir-se naquilo que Heinich (1990), ao estudar os escritores, chama de temporalidade total, ao evidenciar que, mesmo quando no esto escrevendo, esto em permanente contato com suas obras, seja avaliando-as, reformulando-as, formulando novos desfechos, etc. Em ou-tros termos, trata-se de um investimento total que produz uma difi-culdade em separar o tempo consagrado ao trabalho e o tempo fora do trabalho e, consequentemente, a esfera do trabalho passa a se sobrepor a todas as demais dimenses da existncia.

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    Por outro lado, a mobilidade daqueles que no esto submetidos disciplina espao-temporal do capitalismo avanado, como o caso, por exemplo, dos herdeiros, dos acionistas e dos demais membros das elites econmicas, marcada pela liberdade que os mesmos possuem em de-terminar o emprego do seu prprio tempo e dos seus deslocamentos. Para esses, os locais frequentados quando dos deslocamentos so os crculos privados dos outros acionistas, castelos e sedes da diplomacia, em outros termos, os locais onde transitam os membros da aristocracia do dinheiro. na esteira desse diferencial de propriedade sobre a sua prpria discipli-na espao-temporal que Gherardi argumenta que o capitalismo tambm passa a ser uma questo de ritmo (Gherardi, 2009, p. 90).

    Nesse sentido, o poder que um indivduo detm est calcado na oposio autonomia versus sujeio ao se determinar a durao e o des-tino dos seus deslocamentos geogrficos, ou em outros termos, da natu-reza do seu dispositivo de mobilidade. Torna-se pertinente, portanto, a comparao que a autora traz luz das diferentes disciplinas espao-tem-porais dos indivduos que pertencem a diferentes profisses no topo das respectivas profisses analisadas. No cume da pirmide da subordinao ao ritmo da produo figuram os executivos, que, mesmo possuindo um alto nvel de poder sobre a determinao da mobilidade dos seus colabo-radores, eles mesmos so constrangidos a um ritmo frentico de mobili-dade onde o imperativo do homem leve, desenraizado, vivenciado, na maioria das vezes, com angstia e sofrimento. Nesses termos, so esses indivduos que sofrem em maior profundidade os efeitos do processo de individualizao do trabalho, perdendo referncias existenciais para fora do ambiente profissional e agravando a problemtica dos vnculos, da confiana, e da busca de sentido (Ehrenberg, 2001). Poder-se-ia dizer, acompanhando o argumento da autora, que os executivos pagam com a prpria subordinao ao ritmo da produo, o preo de poder determi-

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    nar, em alguma medida, o ritmo de seus colaboradores e demais mem-bros da equipe (Gherardi, 2009).

    J no caso dos artistas, que se situam logo abaixo dos executivos na pirmide de subordinao ao ritmo da produo, a mobilidade geogrfica parece possuir contornos mais sutis, ainda que a circulao do renome de suas obras seja um fator determinante no que concerne ao seu reconhe-cimento artstico. Isso significa dizer que, para um artista ser reconhecido no mundo da arte, necessariamente, ele precisa que suas obras (e ele prprio) circulem nos espaos que possuem o monoplio da consagrao artstica. Assim, o acesso ao reconhecimento nessa esfera passa, obriga-toriamente, por um itinerrio obrigatrio, atendendo a convites e mani-festaes do mundo da arte, que, por definio, transnacional. Como mostra um dos entrevistados da autora, h uma relao de dupla-troca entre mercadores e artistas, que dividem os ganhos financeiros e os ga-nhos em termos de renome, emprestando um ao outro a notoriedade e o reconhecimento obtidos em uma parceria.

    Nesse sentido, a exposio em diferentes cenrios constitui-se um ca-minho sem-volta, sobretudo no contexto atual, no qual expor , sobretudo, a ocasio de estabelecer conexes e entrar (ou permanecer) nas redes que detm o poder de multiplicar o reconhecimento e a notoriedade artstica. De forma anloga aos executivos, aqueles artistas que ocupam as posies mais altas na pirmide do reconhecimento do mundo artstico tambm so aqueles que se locomovem mais, em durao, no tempo e no espao, aten-dendo ao itinerrio obrigatrio da notoriedade artstica, difundindo suas obras e estabelecendo (e mantendo) conexes nas mltiplas redes.

    O caso que mais se diferencia desse padro de subordinao a uma disciplina espao-temporal altamente controlada e de ritmo intenso pa-rece ser o dos professores-tericos globais. Conforme a autora, para es-ses, a mobilidade vivenciada mais em termos de acmulo de posies

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    institucionais. J que os professores possuem um nvel de liberdade rela-tivamente maior sobre os seus prprios ritmos de deslocamento, eles aca-bam investindo no exerccio de funes paralelas ao espao acadmico ou cientfico. Nesse sentido, exercendo diversos papis fora do ambien-te acadmico, como, por exemplo, o de consultores, jornalistas ou na direo de instituies de financiamento, os professores so mveis no espao de posies institucionais que lhes possibilitam uma visibilidade social estendida, se comparada queles que exercem apenas a funo de professor. Assim, dispor de tempo para investir em uma ou vrias ativida-des paralelas uma condio da capilaridade do poder acadmico, e essa mobilidade institucional, caracterstica dos tericos globais, desenvolve de maneira exponencial a superfcie social do indivduo que tem acesso a mltiplas cenas, conexes e informaes privilegiadas.

    No caso dos professores, nota-se que a mobilidade geogrfica no tem o peso que tem nas outras categorias profissionais analisadas, j que o renome dos intelectuais est mais relacionado com a mobilidade inter-nacional das teorias. Essa, por sua vez, alimentada por uma forte mobi-lidade de entrada (Gherardi, 2009, p. 108), ou seja, pelo deslocamento geogrfico de alunos ou colegas estrangeiros que se locomovem, entram em contato com suas obras e passam a difundi-las nos respectivos pases de origem. No entanto, mesmo no caso dos tericos, notamos que a disciplina espao-temporal mais rgida recai novamente sobre aqueles que ocupam os altos escales, ou seja, que acumulam mais de uma posio institucional, tornando-se diretores de instituies importantes, consultores ou atuando como porta-vozes de instituies de financiamento, grandes empresas, etc.

    A partir da comparao das diferentes disciplinas espao-temporais dos executivos, dos artistas e dos professores, emerge aquela que talvez seja a maior contribuio da tese, qual seja: a de ler a atual morfologia social do chamado capitalismo avanado atravs de dois eixos que opem, de

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    um lado, a liberdade ou a subordinao ao ritmo imposto pela produo capitalista e, de outro, o poder ou a impotncia na determinao do ritmo dos outros. A ambiguidade da mobilidade convertida em imperativo do novo esprito do capitalismo no reside apenas nos custos humanos que ela comporta queles que a vivenciam no seu cotidiano, mas tambm, e, sobretudo, no fato de que ela se torna uma moeda com a qual se paga o poder de determinar a mobilidade dos outros, conforme argumenta a autora. O caso ilustrativo dessa relao entre poder e subordinao, o dos executivos que, somente custa de uma alta mobilidade que lhes imposta, se tornam capazes de definir o carter dos deslocamentos de seus subordinados. A mesma situao de impotncia ante ao ritmo ditado pela produo vivenciada pelos artistas que, compelidos manuteno do seu renome e do seu reconhecimento, gozam de pouca liberdade no que concerne determinao do ritmo de seus deslocamentos.

    Alm de elucidar essa morfologia social que faz da mobilidade uma espcie de capital, como argumentaria Kaufmann (2009), a autora tam-bm aponta para a importncia da origem social medida pela herana em forma de fortunas, mveis ou imveis na possibilidade de conjugar tanto uma liberdade em relao aos seus deslocamentos como um alto poder na determinao do ritmo de outros indivduos. Assim, os herdeiros constituem os nicos indivduos capazes de agirem com autonomia nos dois eixos, sendo, portanto, capazes de determinar, por um lado, a sua prpria disciplina espao-temporal e, por outro, a de outros indivduos.

    Se a tese bem sucedida em oferecer ao leitor uma interpretao genuna sobre o papel dos dispositivos de mobilidade na atual morfologia social do capitalismo avanado, ela tambm tem sucesso no que diz respei-to denncia dos custos humanos envolvidos no imperativo de leveza que se torna parte da subjetividade do homem camaleo, representado pelo manager, chefe de projetos e, por excelncia, a figura de apoio da cidade

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    por projetos (Boltanski; Chiappelo, 1999). Alm disso, o estudo pode ser altamente relevante para as cincias sociais em geral, na medida em que prope uma nova abordagem, fora dos esquemas clssicos marxistas e we-berianos, para se pensar as relaes de poder e as estratificaes sociais no atual contexto da sociedade em rede e do capitalismo por projetos.

    Fernando Marcial Ricci Arajo - Mestrando em sociologia pelo Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

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    Referncias

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    Recebido em: 18/06/2013Aceite final: 01/08/2013