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Infncia, leitura, literatura: o cinema de animao

Fernando Teixeira Luiz

FAPEPE Presidente Prudente

RESUMO: Este texto tem por objetivo apresentar alguns aspectos da produo de desenhos

animados direcionados ao pblico infantil e/ou juvenil. Por meio de uma concepo dialgica

do objeto cultural, busca-se apontar alguns aspectos relevantes ao docente enquanto mediador

de leitura para que este, instrumentalizado, possa ter em mos mais uma forma de

aproximao de seus potenciais leitores em sala de aula.

PALAVRAS-CHAVE: leitura, literatura, desenho animado.

O desenho animado, a literatura e o educador: trs caminhos, um dilogo

O presente artigo pretende apontar alguns aspectos da produo de desenhos animados

que podem contribuir para que o educador, na perspectiva de uma abordagem dialgica,

aproxime os alunos de diferentes objetos culturais absorvidos por aquela arte.

Nesse sentido, sublinha-se como tradicional as sries mais antigas, veiculadas pela

Disney, pela equipe Hanna-Barbera e pela Warner Bros Entertainment. Por contemporneo,

pontuamos toda a produo lanada no final do sculo XX, desdobrando-se at os dias atuais.

Alm disso, convm destacar que, nos anos 1950, 1960 e 1970, os quadrinhos eram apontados

pela crtica textual daquele contexto como gneros marginais. Na atualidade, latente a

hiptese de que o cinema de animao que ocupa esse posto. Contraditoriamente, os

mesmos docentes que hoje priorizam o ensino de literatura a partir de narrativas exaltadas

pela crtica, respaldadas na imposio do cnone, acabaram se refestelando, na infncia e

adolescncia, com as sries animadas veiculadas pelas emissoras Globo e Band. Nesse

sentido, ainda que os educadores tenham apresentado os primeiros contatos com a literatura

em um perodo em que as escolas insistiam na circulao de textos que a Esttica da

Recepo rotularia como conformadoras10 (ZILBERMAN, 1989), eram ainda os desenhos

10 Inscrevem-se aqui ttulos como A ilha perdida (1946), de Maria Jos Dupr, O escaravelho do diabo (1955), de Lcia Machado de Almeida, e O mistrio do cinco estrelas (1981), de Marcos Rey. Obras marcadas pela previsibilidade e que eram lidas para a execuo de determinadas atividades didticas, delegadas pelo professor.

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animados que conseguiam oferecer prazer e entretenimento a uma clientela vida por uma

experincia esttica.

Os desenhos mais conservadores valem-se, em grande parte, da estrutura da mitologia

greco-latina e dos contos de fadas tradicionais. Firmando-se durante o sculo XX, lanam

mo de heris eminentemente modelares, representantes de uma coletividade. Heri esse que

se transformaria durante o tempo, reaparecendo como guerreiro, amante, imperador, redentor

ou santo (CAMPBELL, 2007). Os anos 1980 acompanharam heris modelares, tributrios das

epopeias, dos contos de fadas e das novelas de cavalaria. A primeira dcada do sculo XXI,

em contrapartida, exibe uma galeria de personagens que destoa dessa perspectiva, acentuando

a presena de crianas, mulheres, negros e homossexuais. Shrek, por exemplo, ope-se

tradio das clssicas narrativas infantis, uma vez que, na condio de protagonista, no se

conceitua como um prncipe europeu, branco, altaneiro e herdeiro de um cobiado trono. Pelo

contrrio, ele se apresenta como um ogro verde, gordo e com ntidos problemas de flatulncia.

Parodiando o cavaleiro medieval, vale-se de um burro covarde e tagarela, e no de um corcel

cheio de pompa. Sua amada, a princesa Fiona, igualmente se revela portadora de uma

aparncia disforme, em total oposio ao padro de beleza das ilustres princesas. Ademais,

compreende uma mulher forte e determinada, capaz de solucionar os prprios dilemas,

independente da interveno masculina.

Madagascar, firmando-se como uma fbula moderna, conta com quatro protagonistas

tambm excntricos: Alex um leo irreverente, que fascina multides no zoolgico nova-

iorquino; Marty, a zebra, sustenta um forte vnculo de amizade com o rei dos animais,

distanciando-se da relao predador x presa tpica das savanas; Glria, o hipoptamo,

mantm seu charme, graa e beleza mesmo diante de um corpo nada esguio; Melman, a

girafa, mostra-se a todo momento hipocondraca, padecendo com as supostas crises de sade.

A antropomorfizao das personagens confere um aspecto altamente inusitado trama,

visando ao riso para com as situaes tratadas. Alex, Marty, Glria e Melman, por exemplo,

ao chegarem a Madagascar, tornam-se a nica esperana de salvar os lmures das fossas

assassinas. No entanto, os quatro protagonistas, ainda que robustos e aparentemente

selvagens, eram incapazes de qualquer ato herico pelo simples fato de terem sido criados em

cativeiro. Ao contrrio de figuras como o Gato Guerreiro (He-Man (1985)) ou Simba (O Rei

Leo (1994)), que so conduzidos pela coragem e astcia, nossos aventureiros,

descaracterizando-se como animais africanos, temiam a imponncia da floresta e se

horrorizavam com a cadeia alimentar. E justamente nessa questo em que se instaura o

grande conflito do leo Alex: medida que a narrativa avana, ele descobre seus instintos de

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caa e vivencia um embate interno entre sua identidade como predador, manifestada no

desejo de devorar os prprios amigos, e seus escrpulos, que periodicamente o impedem de

levar adiante os impulsos naturais em nome de um preceito tico.

A excentricidade chega aos extremos com Os Simpsons, rompendo com a frmula de

representao da famlia politicamente correta exaltada nas animaes dos anos 1960.

Embora ainda apresente um pai provedor e uma me dona de casa, Os Simpsons se

diferenciam das famlias mencionadas, por insistir na crtica social de ordem filosfica11 e

moral. Matheson (2004) define este perfil da famlia Simpson como hiper-ironismo. A

comdia aqui empregada para o ataque s instituies, grupos e tipos humanos, denunciando

sua postura cruel, ridcula e conservadora. Nessa linha, o sistema poltico de Springfiel

mostra-se corrupto, o chefe da polcia preguioso, o reverendo revela-se ineficiente e a

empresa do Sr. Burns no se omite como inescrupulosa. Nesse emaranhado degradante,

Homer, o patriarca, se mantm alienado e descompromissado para com tantos impasses,

voltando sua ateno somente comida. Bart, o garoto, explicita seu egosmo inconsequente

nas mltiplas travessuras. As referncias masculinas configuram-se, ento, como ultrajantes,

uma caricatura sombria do homem moderno. A esperana est exclusivamente nas mulheres;

a me, Marge, e a filha, Lisa, cujo bom senso e capacidade de discernimento manifestam a

perplexidade e frustrao para com o prprio meio.

Na mesma proporo, o hiper-ironismo insinua-se diludo nas faanhas do

protagonista de Espanta-Tubares. A narrativa, estruturando-se como fbula moderna12,

tematiza questes como tolerncia e preconceito. Os tubares, temidos senhores dos oceanos,

assumem o posto de personagens revestidos de robustez, masculinidade e poder. O prprio

nome de um deles, Don Lino, remete o leitor, a partir de seu repertrio intertextual, ao

clssico O poderoso chefo. Paralelamente, reafirma a condio viril das citadas feras,

respeitadas pelo porte e pelo carter sanguinrio. Integrado a tal grupo, o tubaro Lenny vive

o conflito de identidade entre as cobranas sociais e seus prprios desejos: ele no

carnvoro, gosta de se fantasiar e extremamente sensvel. Encontrar a aceitao, no entanto,

apenas com o peixe Oscar, amigo que igualmente omite uma crise ntima: conquistara fama e

prestgio como os protagonistas picos, consagrando-se por abater tubares, mas, na verdade,

medroso e afoito. Oscar, portanto, foi empossado na condio de heri, mesmo sem

competncia para tanto, o que justifica suas patranhas. Tal dicotomia entre essncia e

11 A esse respeito, sugerimos a leitura do livro de A. Skoble, M. Conard e W. Irwin, intitulado Os Simpsons e a Filosofia. 12 Em posio similar a de Madagascar.

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aparncia, presente tanto em Lenny quanto em Oscar, concede narrativa uma dinmica

bastante inovadora, distanciando O Espanta-Tubares de qualquer enquadramento como

fico tradicional.

Se Shrek, Alex, Homer e Oscar so impressos como protagonistas que no se

qualificam como modelos de virtude, Pica-pau, por sua vez, dirigiria essa proposta aos

extremos, estabilizando-se como um anti-heri. Diferente das personagens at agora tratadas

bastante contemporneas Pica-pau tem suas aventuras e desventuras produzidas entre 1940

e 1972, poca em que os desenhos se preocupavam em propagar determinada mensagem

educativa. Nessa linha, enquanto os heris clssicos revelavam uma coerncia na defesa de

valores como justia, honra e lealdade, o Pica-pau construa uma coerncia particular, movida

pelos prprios interesses. Assim, o pssaro, destitudo de qualquer pudor ou tica, no

hesitaria em enganar, mentir ou roubar. Em harmonia com essas constataes, Pacheco (1985)

sublinha que as prticas do Pica-pau no esto a servio do bem coletivo, mas, ao contrrio,

ressaltam a individualidade. A sua fora se encontraria na esperteza, na malcia, na

malandragem, e no em utenslios mgicos como os respeitados cavaleiros da literatura que o

precede. Ele quase sempre vence o adversrio recorrendo a artifcios pouco lcitos e, ainda

assim, conquista a adeso, aprovao e empatia do leitor.

Diferente do Pica-pau e na mesma condio de Shrek13, Sulley, a horrenda e

gigantesca criatura de Monstros S. A., lana mo de um itinerrio de surpresas e

transformaes. Todas as noites, ocupa-se em assustar as crianas, j que os gritos destas

armazenaria uma certa quantidade de energia, vital para a sobrevivncia do universo dos

monstros. a conturbada convivncia com a pequena menina Boo que desencadear o

processo de purificao de Sulley. O amor pela doce garota, conquistado em meio a

conflitos e dissabores, far com que a fera perceba que o riso das crianas gera mais energia

que os gritos de pavor.

Finalmente, chegamos ao jovem rfo Lewis, de A famlia do futuro. A excentricidade

do garoto, materializada em suas invenes, o impede de conseguir uma famlia que o aceite e

o adote. Apenas mais tarde encontrar um grupo igualmente despojado os Robinsons que

no se mostram abalados com suas engenhocas nada convencionais. Melhor: um grupo que

celebrar os erros do menino com festas e brindes, alegando, a partir de um discurso que se

aproximaria da proposta construtivista, que o crescimento individual depende de tateios,

13 Tanto Sulley quanto Shrek encerram releituras dos seres aterradores que povoam as tradicionais histrias infantis. Embora no tenham boa aparncia e se definam como malvados, o destinatrio dos filmes no se sente acuado ou constrangido pelas duas figuras. Na verdade, deixa-se seduzir por elas, uma vez que acompanha todo o processo de humanizao dos mesmos ao longo do enredo.

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hipteses e, sobretudo, desacertos. Outro dado importante nessa animao reside no processo

de emancipao da criana. Sobre esse tpico, cumpre lembrar que A famlia do futuro o

nico desenho, no rol de ttulos analisados, que se centra exclusivamente na veiculao de

uma moderna concepo de infncia. Na verdade, poucas das sete produes examinadas

trilhavam esse caminho14. Praticamente nenhuma exibia um roteiro com tamanha proporo, e

isso pode ser visualizado na peregrinao do protagonista. Lewis, no decorrer da trama,

almeja descobrir quem sua verdadeira me, e se empenhar exaustivamente para realizar

esse sonho, mesmo diante de obstculos e reveses. Consegue, independente da interveno de

qualquer adulto, solucionar os prprios conflitos. Na cena, por exemplo, em que tem a grande

chance de regressar ao passado para, enfim, ver o rosto de sua me, opta por abandonar esse

sonho e seguir adiante sua vida, convicto de que a mulher que o deixou na porta do orfanato

no possui mais importncia alguma.

A rigor, o que uniria personagens to complexos como Lewis, Alex, Shrek, Sulley,

Oscar, Homer e Pica-pau? Difcil responder, pois, ao contrrio dos mitos, contos de fadas,

desenhos tradicionais e sagas de cavaleiros cristos, que insistem em protagonistas mais

modelares, as animaes contemporneas investem em mltiplos tipos de heris. Agora, a

heterogeneidade assume o palco, refestelando-se no preguioso, no feio, no dissimulado, no

farsante, no egosta, no vaidoso, no excntrico. Ganha espao, assim, o obeso que preconiza a

ironia ao cidado norte-americano, a imagem do peixe projetada com traos do homem

mulato, o tubaro que insinua a busca de identidade, o monstro que representa a crtica

valorizao do sujeito apenas pela aparncia, a atuao de mulheres e crianas altamente

emancipadas.

Roteiro de leitura (ou viagem?): um passeio por Madagascar

De acordo com Narder (2007), entre 2001 e 2005 intensifica-se uma expressiva

batalha cinematogrfica entre os estdios Disney e Dream Works SKG. Enquanto o primeiro

aposta em Atlantis, o reino perdido (2001), o segundo investe em Shrek (2001) um dos

maiores sucessos de bilheteria do cinema de animao. A saga do famoso ogro no dialogaria

apenas com os contos de fadas rubricados por Perrault e pelos irmos Grimm, mas, sobretudo,

com a prpria produo da Disney, parodiando a adaptao dos clssicos infantis. Shrek, em

pouco tempo, arrebataria a Palma de Ouro no festival de Cannes e, rapidamente, configurava-

14 Estamos nos referindo especificamente ao caso de Lisa Simpson.

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se como uma ameaa ao domnio Disney no que diz respeito supremacia no mercado de

animao. A resposta a Shrek foi Monstros S.A (2001), produzido em parceria com a Pixar.

Tratava-se de uma narrativa tocante, comovente , mas que ainda no se mostrava to

avassaladora quanto as peripcias do astucioso ogro da SKG. E logo a Dream Works

emplacou novos sucessos, como Shrek 2 (2004), O espanta tubares (2004) e a instigante

aventura de um leo, um hipoptamo, uma girafa e uma zebra que viviam em um zoolgico

no Central Park. Consistia no longa-metragem Madagascar (2005), cujo xito gerou franquia

e possibilitou a criao de uma das trilogias mais bem sucedidas da histria do cinema.

Os protagonistas atendiam pelos nomes de Alex, Martin, Melman e Gloria. As

dublagens foram feitas por cones de Hollywood, como Ben Stiller, Chris Rock, David

Schwimmer e Jada Pinkett Smith. No Brasil, os encarregados por tal trabalho foram

Alexandre Moreno, Felipe Grinnan, Ricardo Juarez e Helosa Peris. Moreno, inclusive, j

havia dublado as personagens de Ben Stiller de outros filmes, como Uma noite no museu

(2006) e A vida secreta de Walter Mitty (2013).

O trao de composio de cada personagem, bastante simples, explora o que

Cavalcanti (1975) designa como processo de estilizao e geometrizao das formas. Assim,

possvel detectar, nos quatro protagonistas, a presena de crculos, tringulos e quadrados que,

devidamente manipulados, produzem formas que, com efeito, se assemelham s imagens

convencionais de lees, hipoptamos, girafas e zebras. Paralelamente, no que diz respeito

tabela cromtica, faz-se uso dos signos azul, branco e preto. O azul e o branco, geralmente,

caracterizam o ambiente urbano, o cenrio norte-americano. O verde, por sua vez, reporta ao

pequeno universo artificial do zoolgico e, claro, floresta de Madagascar.

A cor, como sugere Lurker (2003), tambm pode se revestir de outros significados ao

longo do enredo especialmente em narrativas mais irnicas. o caso, por exemplo, do

amarelo, que pode reportar a ideia de bem-aventurana. a cor que representa o sol figura

emblemtica do universo, pleno de luz e harmonia. Tal cor, por sua vez, outrossim encontra-

se presente na pelagem de Alex e de Melman. A simbologia do amarelo, carregada de

vitalidade, conduz o leitor sensao de alegria e sade elementos contrariados pela

essncia das citadas personagens: o felino, ainda que feliz, atormentado por crises de

conscincia, uma vez que deseja devorar o prprio amigo Martin, ao passo que a girafa

porta-voz de um discurso hipocondraco. Acredita estar sempre doente, moribunda, e que

precisa lutar contra a morte iminente.

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A simbologia do leo mostra-se igualmente carregada do sarcasmo tpico da animao.

Para Lurker, a fora, o rugido e a juba do leo o qualificam como o rei dos animais: dos seus

olhos irradia o fogo do sol com a mesma fora animalesca (LURKER, 2003, p. 382). Est na

religio egpcia como a representao de um dos deuses, e nos mitos de Davi, Sanso e

Hrcules como figuras aterradoras a serem dominadas. Pode ainda apontar para o sagrado

com seu mpeto de justia, como sugerem as Crnicas de Narnia, especificamente na

construo de Aslan. Contudo, ao contrrio dessas mltiplas possibilidades inscritas no signo,

o leo de Madagascar mostra-se frgil e covarde, na mesma linha do leo do Mgico de Oz.

Orientado, assim, por uma vereda intertextual, ele destitudo de qualquer fora fsica, tendo

em vista que seu talento reside na dana. atormentado pelo desejo de saciar a fome com a

carne do amigo, o que tpico de sua essncia selvagem. Essncia essa que havia perdido pelo

fato de ter sido criado no cativeiro. No obstante, mostra-se vaidoso, j que trata de sua juba

com um aparato de cosmticos. Tais aspectos constituem elementos carregados de comicidade

que tornam Alex uma figura bastante histrinica.

O princpio de imponncia tambm contrariado em outros animais. O hipoptamo,

caracterizado pela robustez, ganha contornos femininos, dcil e, como o leo, aprecia a

dana.

Madagascar, em linhas gerais, uma narrativa composta por quatro animais que,

embora criados em um zoolgico, sonham viver aventuras fora das jaulas. Fugindo do Central

Park, exploram o ambiente urbano, gerando comoo geral, j que se tratavam de animais

selvagens. Capturados como ameaas, so atirados em um navio e, movidos pelo acaso,

aportam na ilha de Madagascar, em pleno continente africano. E aqui se instauram os

principais conflitos da obra: por serem oriundos do cativeiro, e no das savanas, tm

comportamentos bastante semelhantes ao dos humanos. Usam grias, temem a estrutura

labirntica da floresta e sentem falta da alimentao regrada do zoolgico. O leo Alex, em

razo da fome, tm seus instintos selvagens aflorados. Esfora-se em reprimir o desejo de

comer o companheiro Martin e, a partir de ento, trava uma incessante luta contra a prpria

natureza, uma vez que, na cadeia alimentar, os lees so predadores das zebras.

Por conta do tamanho que ostentam, so escalado pelo rei Julian e toda a sua corte

para salv-los das fossas animais de grande porte que devoravam os menores, em especial

os lmures. O impasse se d pelo fato de Alex e seus amigos terem perdido a essncia

selvagem, visto que eram animais de cativeiro, incapazes de qualquer ato violento. So,

assim, empossados como heris sem ter competncia para tanto. O modelo de heri

tradicional, altaneiro, representante de uma coletividade e pleno de virtudes (Cf.

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CAMPBELL, 2007) , aqui, desestabilizado. Alex, Glria, Martin e Melman so fracos,

cheios de medo e se tornam igualmente alvos a merc dos perigos de Madagascar.

Julian, o rei, parodia os grandes imperadores dspotas. efeminado, vaidoso,

prepotente e submete seus vassalos s pequenas maldades. No entanto, aclamado por seu

povo, que o acompanha nas grandes raves ao som de seu maior hit I Like to Move It, de Sacha

Baron Cohen. E aqui se encontra outro elemento bastante utilizado nas propostas da Dream

Works SKG: a incorporao do single danante, contrastando-se com os videoclipes da

Disney permeados de melodias mais tradicionais, como acontece, por exemplo, em Branca de

neve e os sete anes (1937), Fantasia (1940), Cinderela (1950) e A bela adormecida (1959).

A esse respeito, cumpre sublinhar que a ironia, o escrnio e o deboche se fazem constantes

em toda a animao de Madagascar. Em um dos trechos mais cmicos do enredo, Alex,

Martin, Gloria e Melman atravessam a floresta ao som de What a Wonderful World, de Louis

Armstrong. Enquanto a traduo da letra apresentada no vdeo, enaltecendo aspectos da

natureza a partir de uma perspectiva plena de poeticidade, a sequencia de cenas estabelece a

absoluta anttese da cano. A natureza, destituda de tom lrico, mostra-se perigosa,

sangrenta e impiedosa, contrapondo-se a qualquer aluso romntica. A famosa cena em que

salvam um inocente patinho das garras de um predador e testemunham como ele cruelmente

levado por outro, corrobora tal argumento.

Outro dado que merece destaque est na presena de personagens secundrios, em que

conquistam seu espao e, muitas vezes, disputam com os protagonistas a ateno do leitor.

o caso, por exemplo, do rei Julian e os demais lmures, bem como os macacos que se

comunicam por gestos e, principalmente, os astuciosos pinguins Capito, Kowalski, Recruta e

Rico. Cheios de artimanhas e atuando como um sofisticado esquadro de elite, os pinguins

planejam a fuga do zoolgico do Central Park e acabam desembarcando em Madagascar. So

espertos, geis e objetivos. A rigor, no que tange tais coadjuvantes, ganha fora a dicotomia

entre essncia e aparncia. Os pinguins, tpicas aves marinhas de regies geladas, no querem

ir para o Alaska, rejeitam lugares frios e procuram uma regio quente e paradisaca para viver.

Nesse sentido, a ilha de Madagascar parece atender a todos os seus critrios. O sucesso do

grupo rende uma srie de TV intitulada Os pinguins de Madagascar e um longa-metragem

com estreia prevista para 2015. Nessa direo, o debate sobre essncia e aparncia

igualmente empregada na composio de uma outra personagem secundria de destaque: uma

senhora de meia idade, aparentemente frgil, mas que, quando acuada, revela-se uma lutadora

implacvel de artes marciais.

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Com o xito de Madagascar, abre-se franquia e, trs anos depois, a continuao do

longa ganha as grandes telas: Madagascar escape 2 frica. Agora, presos ao continente

africano, os quatro protagonistas vivem em meio s savanas. O conflito de Alex, a partir de

ento, outro: integrar-se famlia de lees do qual foi separado ainda filhote. Para tanto,

deve se submeter a um ritual de iniciao que consistia, basicamente, na luta com um

adversrio. Alex, ao contrrio dos demais lees, um artista, um danarino fato que no era

bem visto pelo cl conservador de felinos. A luta, para aquele grupo, estava atrelada

virilidade, ao passo que a arte desestabilizaria os baluartes da tradio. No que tange a esse

aspecto, a narrativa mais uma vez inova, pois, ao contrrio de sries mais antigas centradas no

heri guerreiro (He-Man, Batman, Super-Man entre outros), Madagascar introduz um heri

que se aproximaria do que a potica da ps-modernidade definiria como ex-cntrico

(HUTCHEON, 1991), tendo em vista que confere vez e voz a segmentos sociais at ento

excludos, como negros, mulheres, ndios, orientais e homossexuais. Nessa esfera, o leo

representaria grupos minoritrios que no se enquadram em padres at ento disseminados

naquele meio trata-se do diferente, do extico, do estranho o que, via de regra, gera

intolerncia, preconceito e excluso.

importante tambm lembrar, nessa animao, a histria de amor proibido entre

Melman e Glria a girafa e o hipoptamo. Na mesma linha de fices que tematizam

paixes impossveis (como Romeu e Julieta, de Shakespeare, ou sereiazinha e o prncipe, de

H. C. Andersen), a dupla de protagonistas tem como elemento transgressor no o fato de

serem de famlias rivais ou desconhecidas, mas de serem de espcies diferentes e por

apresentarem essncias bastante heterogneas, tendo em vista que se trata de uma girafa

hipocondraca e um hipoptamo de astral elevado. Madagascar, mais uma vez, aproximar-se-

ia de uma retrica de tolerncia, de respeito diversidade e aberto a uma multiplicidade de

vozes sem adentrar nenhum discurso moralizante ou autoritrio. No h nenhuma

personagem explicando ao destinatrio o que deve ou no deve ocorrer, mas uma sequencia

de cenas, marcadas pela plurissignificao, em que o leitor ser sempre quem outorga a ltima

palavra.

Interessante tambm notar os modos de representao das tribos africanas pelo vis

norte-americano inscrito nos interstcios do filme. Na linha de Duck Tales (1990), da Disney,

os animais apresentam-se, na maioria das vezes, na condio de aborgenes, ao tempo em que

Alex e sua turma parecem pertencer condio de colonizadores. Tal aspecto j pode ser

detectado no primeiro confronto que tm com Mort, Maurice e toda corte do rei Julian, bem

como nos grupos de lees, hipoptamos, zebras e girafas.

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No terceiro e ltimo longa, de 2012, Os procurados - fechando a trilogia, a proposta

da Dream Works se mostra ainda mais envolvente. Os heris, como acontece na mitologia

greco-romana (CAMPBELL, 2007), j haviam partido para a grande jornada, se transformado

interiormente, e, agora, retornavam para a casa. No so mais os mesmos, pois carregam na

alma as experincias adquiridas e vividas entre os sorrateiros perigos da selva africana. Para o

regresso, embarcam em um circo que atravessa a Europa rumo aos Estados Unidos. Durante a

peregrinao, fazem amigos, conquistam amores e se tornam alvos de novos inimigos.

O circo, movido somente por animais, uma ntida referncia ( e homenagem) ao

Cirque du Soleil pleno de cores, luzes e movimento. quando Alex, entre mil estripulias,

encontra sua primeira grande paixo, ao passo que as relaes afetivas entre a girafa e o

hipoptamo, instauradas no filme anterior, parecem aqui praticamente apagadas.

Um dado que no pode ser obliterado est no processo de humanizao dos animais

e de animalizao dos humanos. Enquanto os quatro protagonistas e os demais coadjuvantes

se comportam como homens, com grias, movimentos e postura ereta especialmente o leo e

o hipoptamo parte dos homens reflete o comportamento inverso. o caso, por exemplo, da

Capit Chantel Dubois, que persegue Alex e almeja sua cabea. A personagem, em diversos

momentos, engatinha como um quadrpede e, com a postura similar a de um co, investe as

narinas contra o cho para farejar os rastros dos adversrios.

Enfim, resta sublinhar que a trilogia Madagascar uma aventura marcada por muitas

referncias s culturas cult e pop. Desse modo, possvel flagrar durante as cenas, diversas

citaes e aluses a Louis Armstrong, Katy Perry, Andrea Bocelli e Michel Vaucaire. Vale-se,

outrossim, do que Vasconcellos (1982) enfoca como fbula moderna, ou seja, um novo

desdobramento do gnero fbulas. Aqui, a crtica social bem mais sutil, apresentando-se

diluda no discurso, em que o apelo pedaggico no mais um vis determinante. A rigor,

fixa-se em um texto hbrido (COLEHO, 1987), intercalando realidade e fantasia na esteira do

realismo mgico.

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ZILBERMAN, R. Esttica da Recepo e Histria da Literatura. So Paulo: tica, 1989.

Atividade

1. Assista animao Madagascar; elabore uma breve apreciao, apontando se voc

conseguiu verificar, no filme, os aspectos levantados pelo autor do texto.

LEITURA COMPLEMENTAR

SILVA, S. T. A. Desenho animado e educao. In CITELLI, A. Outras linguagens na escola:

publicidade, cinema e TV, rdio, jogos, informtica. So Paulo: Cortez, 2004.