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5. CORES E NOMES
5.1. Movimento e Ação: Misturas, Miscigenação e Mestiçagem
O processo de miscigenação ou mestiçagem ocorrido no Brasil é um tema
delicado. Até hoje, as análises sobre o assunto se mostraram insatisfatórias, sendo
alvo fácil das críticas. As tentativas de dar um único sentido a esse complexo
processo acabaram por emprestar ao tema um tom quase maniqueísta. Desse
modo, a miscigenação já foi explicada em função do caráter aberto e aventureiro
do português, que encontrou no Novo Mundo o palco para dar vazão a esse
espírito. Posteriormente, culpou-se o português e, em geral, o europeu por serem
responsáveis por um “estupro coletivo”. Por outro lado, as avaliações do resultado
desse processo de miscigenação também atingiram os seus extremos. Chegamos a
ser condenados por nossa condição de mestiços retrógrados fadados à não
evolução. Depois, a absolvição foi gloriosa: a nossa singularidade de mestiços
transformar-nos-ia nos seres mais criativos da terra.
Portanto, essa questão tem um alcance extremamente abrangente, não
apenas pelo que envolve, mas pelo que significou e ainda significa. A
miscigenação ou mestiçagem, além de ser uma questão fundamental que perpassa
em vários momentos a discussão sobre a história do Brasil, foi responsável por
imprimir uma certa imagem do próprio país, marcada pela sensualidade e
sexualidade latentes.1 Para além de avaliações que determinem o seu caráter
positivo ou negativo, foi um processo complexo, multifacetado, que envolveu
pessoas e marcou seus destinos, tendo implicações na estruturação do tecido
social, na economia e na cultura do país.
1 - Alguns clássicos da nossa historiografia assimilaram essa questão de forma pouco crítica, repassando para o século XX os preconceitos forjados no século XVI. Caio Prado Jr. destacou a “mestiçagem profunda” como o caráter mais saliente da formação étnica brasileira. Para esse autor, as “três raças” poderiam ser estudadas e analisadas separadamente, mas deveriam figurar juntas: “juntas e mesclando-se sem limite, em uma orgia de sexualismo desenfreado que faria a população brasileira um dos mais variegados conjuntos étnicos que a humanidade jamais conheceu”. Cf. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1996. Essa idéia, que traduz a mestiçagem como uma orgia, aparece em outros autores nessa mesma época, como Paulo Prado e Gilberto Freire.
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O processo de miscigenação iniciado pela “descoberta” do Novo Mundo
tem sido entendido como uma marca característica do movimento de conquista da
América portuguesa no século XVI, promovendo uma ocidentalização de índios e
negros, por parte da Europa Ocidental. A conquista não teria sido só dos
territórios, mas também das almas e dos corpos. A miscigenação não representou
uma especificidade brasileira; ela foi uma constante em quase todos os teatros
coloniais do mundo, estando inscrita em uma fase de expansão da Europa e no
contexto da colonização. Vista sob este prisma, a miscigenação configurar-se-ia
como um produto de ação unilateral, uma ação tipicamente de caráter europeu,
transformando os agentes dessa cena em um ator principal e o outro, em mero
coadjuvante. O resultado desse processo, fruto da conquista, beneficiaria o
conquistador. Esse ponto de vista acabaria por reduzir a questão quase que a uma
alegoria ou a um processo de laboratório, seqüencial e previsível.
Se pensarmos a miscigenação pelo seu aspecto meramente biológico, é
claro que houve um processo forçado por parte do europeu, produzindo uma
relação de extrema violência. Além de violento, foi um processo singular e
desigual, em que predominou a relação pai-europeu/mãe-índia ou negra. Se
pensarmos em termos de trocas culturais, podemos também acreditar que
prevaleceu uma ocidentalização, visível nas principais instituições, na língua, na
escrita, no sistema numérico, entre outros.
É certo que os portugueses, talvez mais que os espanhóis, recorreram à
prática da miscigenação como uma forma auxiliar no processo de conquista das
novas terras, como um movimento de aceleração do povoamento de seu imenso
território. A miscigenação - já disseram - teria permitido uma adaptação à vida
nos trópicos, de um modo geral, ou a própria sobrevivência do português em um
ambiente hostil. Inúmeros foram os fatores que possibilitaram um contato mais
estreito, não como um ato de conquista, mas uma relação de dependência por
parte do português: a alimentação, a mobilidade e o desembaraço na locomoção
pelos caminhos mais difíceis guiados pelos índios, que ensinaram como era a vida
nos trópicos. Os casamentos entre portugueses e índias significaram, ainda,
alianças militares entre europeus e índios, que através dessa política puderam
garantir a defesa do território. Mas a miscigenação não ficou restrita ao par índios
e portugueses.
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Antes de tudo, é preciso deixar claro que não se pretende produzir uma
interpretação sobre esse processo. O que se propõe é repensar essa questão e seus
diferentes aspectos, procurando situá-la como um amplo processo que repercute
em termos da própria estrutura e da própria imagem do país. E as imagens
surgidas desse processo não foram criadas a posteriori, mas ao longo de sua
evolução. As preocupações das autoridades coloniais com os agentes sociais
envolvidos nesse processo demonstram as contradições da dinâmica colonial. Para
os colonizadores, as relações sociais desorganizaram-se na colônia;
amancebamentos, concubinatos e mestiços configurariam elementos fora da
ordem legal do reino.
Logo, se houve incentivo ao referido processo, houve também críticas.
Comecemos pelo lado mais simples e básico dessa discussão. A origem das
palavras fornece sempre um solo, um ponto de partida para a compreensão de
qualquer assunto. Normalmente, utiliza-se indiscriminadamente os termos
mestiçagem e miscigenação para se referir à mistura de povos e de culturas.
Porém, ao recuperarmos a etimologia dessas palavras - que comportam
significados sinônimos, ambas significando a mistura de raças ou espécies e
provenientes do mesmo radical misc(i)2 -, encontramos suas origens datadas no
século XIX e XX. Segundo o Dicionário Houaiss, mestiçagem remonta ao ano de
1899 e miscigenação a 1927; na língua inglesa, a palavra miscegenation aparece
datada de 1864. Portanto, são duas palavras cunhadas posteriormente ao processo
que estamos acompanhando no Brasil. Além disso, de acordo com as suas
datações, essas palavras provavelmente estão correlacionadas às teorias raciais do
século XIX, o que sobrecarrega o seu significado.
Para nos aproximarmos mais do nosso período e do nosso objeto, convém,
portanto, verificar os termos em circulação naquele momento. Isto é, as palavras
mistura e mestiço, que originam suas congêneres mestiçagem e miscigenação. A
palavra mestiço está datada do século XIV, referindo-se a uma pessoa ou um
animal proveniente de cruzamento de raças ou espécies diferentes. Misturar e
mistura, por princípio, significam juntar coisas ou pessoas diferentes, juntar
desordenadamente, tornar heterogêneo, confundir, perturbar. O antepositivo
2 - Miscigenação - do latim miscere (misturar + gen + ação) = cruzamento racial, mestiçamento, mestiçagem; Mestiçagem = cruzamento de espécies diferentes, miscigenação, conjunto de mestiços. Cf. Dicionário Aurélio.
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misc(i) é a fonte para palavras com misc, mist, mex, mescl, mest, mix, misturar,
mesclar, miscelânea etc. Misc é ainda o elemento que compõe palavras como
promíscuo - constituído de elementos heterogêneos juntados desordenadamente;
misturado com elementos de conduta reprovável ou suspeita - e promiscuidade -
mistura confusa e desordenada, também associado a um relacionamento social não
monogâmico.
Enfim, o que temos a partir da etimologia de mistura, mestiço e suas
derivações - mestiçagem e miscigenação - são significados pouco precisos, porém
que assumem conotações pejorativas. O peso dessas palavras, de seus significados
primeiros, traduz bem o preconceito interno que carregam. Serge Gruzinski
alertou que, por ser percebida como uma passagem do homogêneo ao
heterogêneo, do singular ao plural, da ordem à desordem, a idéia de mistura
carrega conotações e a priori, merecendo, portanto, ser tratada com desconfiança.
As ressonâncias desta idéia atingem igualmente a noção de mestiçagem. 3
Ao comparar o processo de miscigenação e seus desdobramentos ocorridos
no Brasil e em Angola, Luiz Felipe de Alencastro encontrou diferenças
significativas, que nos ajudam a definir melhor essa questão dos significados de
miscigenação e mestiçagem. Embora a presença portuguesa em Angola tenha
deixado marcas indeléveis, a miscigenação representou um processo circunscrito a
um contexto específico, o qual teria se diluído, sem se desdobrar em mestiçagem.
Os filhos mestiços de brancos e negros em Angola tinham, na maioria das vezes,
um destino certo; não precisaram inventar um próprio caminho em meio a duas
culturas. Em geral, as mães criavam seus filhos em seus povoados nativos, nos
quais eram integrados e criados na cultura materna, interrompendo assim a
dinâmica da mestiçagem. Ou ainda, nas palavras do autor, núcleos etnogênicos
“absorviam os mulatos transformando-os em negros”.4
No Brasil, ao contrário, esse processo encontrou, no contexto econômico e
social da colônia, possibilidades de desdobramentos e continuidade. Isto é, houve
um processo específico que transformou a miscigenação - resultado demográfico
de uma relação de dominação e exploração - na mestiçagem, processo social
3 - GRUZINSKI, Serge. “Incertitudes et ambigüités du langage”. In: La Pensée Métisse. Paris, Fayard, 1999. p. 36-37. 4 - “A invenção do mulato”. In: O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Cia da Letras, 2000. p. 351.
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complexo, “estratificando uma camada de mulatos”. Contudo, Alencastro alertou
sobre a direção tomada por esse movimento: “o fato deste processo ter se
estratificado e, eventualmente, ter se ideologizado, e até sensualizado, não se
resolve na ocultação de sua violência intrínseca, parte consubstancial da sociedade
brasileira”.5
Alencastro, por conseguinte, relaciona a miscigenação ao intercurso sexual
entre pessoas de etnias distintas e mestiçagem a um processo ativo de
desdobramentos que se refletiria nos contextos social e cultural. Essa distinção
imprime um movimento essencial a essa questão. Sem anular os efeitos, o
processo recobra o seu sentido, que tende a transformações de acordo com
determinado contexto. De certa forma, as próprias interpretações feitas sobre esse
processo, não deixam de fazer parte de seu sentido, que não é outro além de uma
sociedade em movimento, em transformação.
Em Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda forneceu uma
belíssima análise da vida material das terras e das gentes do planalto paulista a
partir do entrelaçamento das culturas de índios e portugueses. Índios e mamelucos
ensinaram todo um “alfabeto rústico”, que foi sendo transmitido ao resto da
população da colônia. O tema central destacado pelo autor - a diluição e a
recuperação do legado europeu - ganha sentido com as vivências cotidianas e
cadência com o tempo da Colônia. Para desenvolver esse tema, o autor valeu-se
de dois aspectos, anunciados no próprio título do livro: caminhos e fronteiras. O
caminho “convida ao movimento, apontando para a mobilidade característica das
populações do planalto paulista em contraste com a tradição da colonização
portuguesa fixa presa e imobilizada na costa”.6
A idéia de mobilidade conduz ao segundo aspecto privilegiado pelo autor,
isto é, condiciona a situação implicada na fronteira. Esse aspecto nos interessa
particularmente, pois permite pensarmos a questão da mestiçagem por um outro
ângulo. Buarque de Holanda procura deixar claro que este conceito será utilizado
de forma abrangente, ou seja, a fronteira entre “paisagens, hábitos, instituições,
técnicas, até idiomas heterogêneos que se defrontam, ora a esbater-se para deixar
lugar à formação de produtos mistos ou simbólicos, ora a afirmar-se, ao menos
5 - Idem. p. 353. 6 - Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Cia das Letras, 1994. p. 12.
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enquanto não superasse a vitória final dos elementos que tivessem revelado mais
ativos, mais robustos ou melhor equipados”.7 A idéia de fronteira abriu uma
perspectiva interessante, permitindo pensar a colônia como um espaço
intermediário entre culturas em processo de transformação, de onde surgiriam
novas formas de pensar e agir. A cultura mestiça seria o resultado de uma síntese
entre civilidade e barbárie, e outros aspectos aparentemente contraditórios teriam
sido reunidos dando origem a um produto híbrido.
Seria possível estender essa idéia de fronteira ao próprio mestiço, isto é,
pensá-lo como um ser fronteiriço, mediador de culturas. Mas pode ser um risco.
Cabe lembrar que não estamos falando de um mestiço, mas sim de vários
mestiços, dos primeiros mestiços da terra, que viveram em um mundo de
fronteiras porosas, passando por um processo de corrosão de identidades. Pessoas
divididas entre culturas não apenas distintas como também opostas. De qualquer
forma, por meio desses mestiços, podemos observar como o movimento entre
culturas vai se realizando através de negociações e conflitos, aceitação e rejeição,
adaptações e confusões, enfim desenhando uma trajetória singular.8
Este capítulo se propõe a verificar como esses mestiços vão surgindo,
inventando seu próprio espaço nessa sociedade que se organiza, e vão sendo
desenhados pelo olhar da época. Ponto de encontro de mundos distintos,
interseção, o mestiço acaba por criar um mundo próprio ou, ainda, alterar a
estrutura social dos próprios conquistadores.
Falar de mestiços no Brasil é falar de uma gama variada de cores e nomes
nem sempre tão precisos, que muitas vezes guardam suas especificidades
regionais e temporais. A nomenclatura alusiva à miscigenação das gentes é feita
de nuances, por vezes nada sutis, podendo até ser bem grosseira. Para além dos
mestiços mais conhecidos - mameluco ou mamaluco, também chamado de
caboclo (índio e branco), e do mulato (negro e branco) -, foram registrados vários
termos referentes aos filhos de pais com origens diferentes. Para citar os mais
conhecidos: o cariboca ou curiboca (muitas vezes se refere ao próprio índio) pode
ser sinônimo de cafuzo (negro e índio); o cabra (negro e mulato ou simplesmente
só o mulato), depois cabrocha. O termo pardo podia designar qualquer mestiço,
7 - Idem, ibidem. 8 - Convém lembrar que não estamos entendendo esses mestiços (no plural) como uma síntese das duas culturas.
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independente de sua origem ou cor, e abranger pessoas ditas de “sangue impuro”,
isto é, mouros, judeus e cristãos-novos. Muitos termos caíram em desuso por não
pegarem ou por serem específicos de uma determinada região, tais como: fulas,
pardavascos, carijós, entre outros.
Falar de mestiços não é só falar de indefinição étnica; é falar, sobretudo,
de indefinição social no contexto interno da colônia. A onipresença do sistema
escravista na estrutura colonial fez perdurar por muito tempo a imagem de uma
sociedade percebida apenas pelos seus extremos, ou seja, polarizada entre
senhores e escravos. A nitidez das funções de cada uma dessas categorias acabava
por ofuscar o resto da sociedade, que por sua vez se caracterizava por uma
indefinição de seus papéis ou de suas funções sociais.
Caio Prado Jr.9 criticou essa imagem superficial de uma sociedade dividida
em duas camadas, chamando a atenção para o crescimento contínuo e ininterrupto
de uma camada intermediária, que não se encaixava nas classificações
hierárquicas vigentes do Estado português. A estes “desclassificados” restaria um
espaço muito reduzido nas engrenagens do sistema escravista. Inicialmente
indefinida, mas não insignificante, essa terceira categoria ou essa subcategoria
abrangia uma larga parcela da população, composta “por indivíduos de ocupações
mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma”, homens livres e
pobres que viviam à margem deste sistema, à margem da ordem estamental.
Embora essa população livre contasse com toda a sorte de pessoas - índios,
brancos e negros -, verificava-se uma predominância mestiça. Não foi difícil aos
observadores perceberem essa parcela da população, literalmente fora da ordem
estamental, como vadios, inúteis, preguiçosos, desordeiros, elementos perigosos e
potenciais criminosos.
A análise de Caio Prado Jr. possibilitou uma enorme abertura para o
entendimento da estrutura social no Brasil, incentivando uma série de novos
estudos. Quarenta anos depois da publicação de Formação do Brasil
Contemporâneo, Laura Mello e Souza empreendeu sua análise da sociedade
mineira do século XVIII sob a ótica dessa subcategoria cunhada por Prado Jr.,
apresentando os Desclassificados do Ouro. Mello e Souza demonstrou como a
estrutura econômica da colônia favoreceu a proliferação de desclassificados. Se a
9 - Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1996.
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lógica inicial da colonização já dificultava a inserção daquela camada livre e
pobre da população na economia colonial, o que dizer das alternativas de vida em
uma economia tão conturbada como aquela criada em torno das minas?
Mello e Souza fez uma análise cuidadosa da documentação
contemporânea, expondo uma sociedade estabelecida sob o signo da pobreza e da
conturbação social, em função do enorme afluxo de gente atraída pela febre do
ouro. A concentração populacional nas Minas Gerais criou um espaço privilegiado
dos desclassificados sociais. Ao contrário do que esperavam da mineração, as
pessoas que migraram para aquela região encontraram poucas oportunidades de
trabalho em um sistema de exploração restritivo, devido ao enorme peso do
fiscalismo e de uma política normalizadora, que procurou enquadrar os
desclassificados, naquela altura, responsáveis e responsabilizados pelas desordens,
confusões e turbulências sociais.
A palavra mistura implicava, em suas origens, uma idéia de desordem e
confusão, mas foi na colônia que ela parece ter encontrado palco para a sua
materialização. Assim, ao longo dos três séculos de domínio colonial, as relações
entre mestiços e Estado serão apresentadas como um contínuo e complicado
problema. Stuart Schwartz, analisando a documentação do Tribunal da Relação,
notou que os índios juntamente com os mulatos e negros, eram “considerados
como desordeiros e causadores de problemas donde necessitavam atenção
especial”.10
Portanto, é preciso procurar entender esse processo de mestiçagem não
como um simples ato de mistura de elementos, que tem como resultado um
produto acabado - o que se reduziria a uma ação semelhante à de um laboratório,
onde se experimentam combinações de matérias estáticas. Trata-se de um
processo que implicou em uma ação continuada, que não se esgotou na mistura
dos seres, mas que encontrou um prolongamento no seu resultado: um elemento
vivo e, logo, propenso a variações. Ao ampliarmos o seu campo de ação, não
podemos pretender um entendimento desse processo em sua totalidade, nem o
restringir ao movimento da conquista das Américas, uma vez que o seu resultado
é um ser atuante no tempo e no espaço. Resultado que foge muitas vezes do
controle da dominação. Podemos falar que é imprevisível, porque como esse
10 - Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. p.197.
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produto encontra um mundo dividido em lugares previamente estabelecidos, e ele
não se encaixa em nenhum dos dois, a sua reação vai oscilar ora em direção a um,
ora a outro e, por vezes, a nenhum desses.
5.2. Os Primeiros Mestiços: Europeus Selvagens
Capistrano de Abreu assim resumiu os primórdios da colonização
portuguesa: “Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços condensam a obra das
primeiras décadas”.11 Não há duvida de que se tratava dos mamelucos os
mestiços a quem o nosso historiador se referia. A lista que conformava a “obra”
dos primeiros tempos da colonização, pode-se dizer, conteria os “objetos” do
mundo português ou, pelo menos, de seu interesse. Os mestiços estariam sob o
controle dos portugueses, tal como os escravos.
Muito já se escreveu sobre o papel do mestiço de índio e branco na
adaptação da vida do português nos trópicos. Além de ensinar os segredos da terra
e de seus familiares - o que comer, por onde andar, como se tratar e curar com as
plantas nativas e servir também como escravo -, esse mestiço engrossou a
população da colônia, ajudando na defesa do território. Assim, o português teria
estabelecido desde cedo íntimas e estudadas ligações, dando origem ao futuro
caldeirão de cores e de culturas que se tornaria o Brasil. Posteriormente, seriam
reconhecidas a contribuição do negro na formação étnica e a sua colaboração em
termos culturais. O predomínio de instituições à moda européia deixa transparecer
que, nesta mistura, no fundo, a base é branca. Não deixa de ser, com certeza. Mas
o problema não é ser. O problema é pensar que esta base aceitou e quase que
escolheu as contribuições; como se fosse possível fazer uma seleção de elementos
interessantes que resultaram na dada mistura.
Deste modo, costuma-se pensar essa mistura e suas contribuições de uma
maneira delicada, correndo o risco de reduções, tais como aquele exemplo sempre
utilizado que determina que o negro trouxe, com sua música, “uma nota alegre”. É
claro e inegável que a qualidade da música negra é especial e excepcional. Mas a
sua participação na nossa formação é infinitamente maior do que na música. E,
principalmente, o seu talento não está restrito à área musical. Um outro exemplo
freqüentemente citado é o lado taciturno dos índios. Pode até ser. Mas uma
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simples olhada pela documentação contemporânea revela um índio alegre,
fazendo festas o tempo todo (o que, aliás, é apontado como um defeito) e
adorando música.12
Esse tipo de raciocínio faz parecer impossível que um europeu possa
incorporar uma outra cultura de forma quase que integral, uma vez que a dele é
mais elaborada ou tecnicamente superior. Quando muito, aceitam-se as
contribuições ligadas à vida material ou à área musical.
No entanto, se falar em mestiçagem ou mestiços é falar de misturas, a
primeira combinação realizada nestes termos é a que diz respeito à cultura.
Ninguém desconhece a história dos primeiros povoadores, pelo menos os mais
famosos, que se estabeleceram na terra antes de qualquer iniciativa oficial da
Coroa portuguesa. Esses primeiros habitantes europeus, seja lá quem for, aqueles
deixados por Cabral, algum náufrago13 ou qualquer outro, precisaram fazer
contatos que iam além dos meramente físicos para sobreviver. Sem conhecer
código algum desta terra ignota, foi preciso, no mínimo, um certo esforço para ser
aceito pelos brasis14. Enfim, o convívio diário forçava uma adaptação a um modo
de vida completamente distinto, o que significava a adoção dos costumes da terra
e, porque não dizer, até mesmo uma indianização.
Essa perspectiva nos permite pensar esses portugueses ou algum outro
europeu como os primeiros mestiços do Brasil, frutos de um mestiçamento
cultural. Há uma rendição nessa história: antes de uma suposta europeização,
brancos sucumbiram aos selvagens do Novo Mundo justamente por um aspecto
bem caro, pela cultura. Essa questão poderia se restringir ao seu caráter
excepcional, por representar uma situação inevitável: sucumbia ou morria.
Contudo, essa questão não se esgota nesses primeiros circunstanciais habitantes.
Os inúmeros exemplos de europeus vivendo à moda indígena - posteriores à
introdução do Governo-Geral, à fundação de vilas - configuraram um processo
11 - Op. Cit. p. 32. 12 - Os jesuítas souberam perceber esse fascínio pela música para tirar proveito em suas catequeses. 13 - Há registros de náufragos de várias nacionalidades que passaram a viver entre os índios. 14 - A história do disparo acidental da arma de Caramuru e sua imediata aceitação pela comunidade indígena é tão interessante quanto tendenciosa. Sempre o branco dominando os selvagens incultos e ignorantes. De qualquer forma, ele sabia que em alguma hora sua munição acabaria e seria preciso estabelecer uma relação social para além da intimidação. Em resumo, foi
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radical de mestiçamento, muito pouco explorado pela historiografia. Na maioria
dos casos, houve uma aculturação voluntária, não forçada.
Como essa relação foi observada e entendida pela documentação
coetânea? Se a vida dos indígenas já conformava um sério problema para os
padres, o que dizer dos portugueses que se adaptavam a esses costumes? Mas a
percepção e a aceitação desses fatos e dessas relações naquela época não é feita de
modo natural. Nos relatos e cartas jesuítas, várias passagens traduzem o espanto
dos observadores, principalmente dos padres, quanto ao encontro de mestiços e do
modo de vida adotado por aqueles filhos de cristãos. Nóbrega demonstrou sua
admiração comentando que “o sertão está cheio de filhos de Cristãos, grandes e
pequenos, machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos costumes do
Gentio”.15
A admiração não era apenas com a existência de mestiços, mas sim com a
adaptação inesperada dos cristãos. Passagens como essas do padre Manuel da
Nóbrega são recorrentes nas cartas e relatos quinhentistas. Os pais cristãos por
vezes deixavam literalmente seus filhos abandonados para viverem na cultura
indígena. E quando os próprios pais adotavam os mesmos costumes?
A constatação inicial, já comentada, é de que quase todos os moradores da
Colônia viviam em pecado, seja por amancebamentos, o que por si já era adotar os
costumes da terra, seja por qualquer outro motivo. As primeiras notícias de
cristãos vivendo entre os índios não conformam inicialmente uma idéia bem
acabada da situação. O padre Leonardo Nunes, em carta de 1550, dizia ter notícias
de gente cristã vivendo entre os índios, gente que passa o ano sem ouvir missa e
sem se confessar, levando uma vida selvagem. O jesuíta foi até o local e tentou
convencê-los a voltar às vilas, para que vivessem entre os outros cristãos. No
entanto, a solução encontrada foi mandar que eles se reunissem, fizessem uma
ermida e buscassem um padre que lhes desse missa e confissão. Nunes prossegue
relatando que, em uma outra localidade distante algumas léguas desta primeira,
encontrou outros homens brancos vivendo entre os índios, sobre os quais dizia ter
conseguido que retornassem ao convívio com os cristãos.
preciso conviver diariamente com os índios e seus costumes, em uma vida normal da aldeia, sem qualquer outra alternativa. 15 - NÓBREGA, Manoel da. Op. Cit. p.124.
179
O mesmo jesuíta Leonardo Nunes registrou, em carta posterior, datada de
1551, enviada de São Vicente, um relato de uma outra ocorrência sobre cristãos
entre índios, sendo que, desta vez, os fatos apareciam de forma mais dramática:
“Este mês de Maio passado, fui entre os Índios a buscar um homem branco que andava entre eles e duas filhas que tinha nascidas lá: a maior será de oito anos, ambas estavam por batizar e a mãe; as filhas batizei, a mãe ainda não, porque a faço ensinar e tenho agora aqui pai, mãe e filhas. A ele não tenho confessado, porque de todo tinha já estragado o juízo, em tanto que as primeiras práticas que lhe fazia, tenho para mim que as não entendia e ainda agora pouco entende. Assim que é necessário criá-lo outra vez nas cousas da Fé como fazemos, até que Nosso senhor lhe abra o entendimento e lhe dê notícia de seu erro, porque não somente consente que os Irmãos lhe falem de Nosso Senhor, e não entra na igreja senão por força, nem podíamos acabar com ele que se pusesse de joelhos diante do Santíssimo Sacramento. Isto escrevo, Irmãos, para que vejais a mudança que pode fazer um ânimo em esta terra e há necessidade que há de trabalhadores.”16
A passagem acima suscita diversas interpretações. Se tal sujeito perdeu ou
não realmente o seu juízo, não temos como saber. De qualquer forma, essa
história não era um caso isolado. Histórias semelhantes a essa aparecem em
relatos e notícias com uma freqüência regular. É provável que o sujeito fosse
apenas mais um dos que escolheram viver à moda dos índios ou, na falta de outra
opção, tenha sido essa a única alternativa de sobrevivência.
O que essa história tem de incomum em comparação com as de mesmo
enredo é o fato de esse sujeito se deixar resgatar pelo jesuíta. Não queremos dizer
que fosse uma história única. Esse mesmo padre relatou que estava cuidando de
outro português que se encontrava nas mesmas condições que o primeiro, mas
naquele momento estava “melhor da alma”. O padre Leonardo ressaltou que
narrava essa história de modo a ilustrar as mudanças que a terra podia fazer, isto é,
produzir alterações na própria estrutura mental de cristãos civilizados. A terra, em
si, propiciava desordens tanto coletivas quanto individuais, a ponto de alterar o
estado físico e psíquico de seus colonos.
Outro jesuíta, Pero Correia, parece referir-se à mesma história ao relatar
que foi, acompanhando o padre Leonardo Nunes e outros seis Irmãos, procurar
um cristão que durante uns oito ou nove anos estava vivendo entre os índios e “se
fizera índio”. A idéia da metamorfose de um cristão em um bárbaro ou selvagem
não era apenas espantosa, mas bastante perturbadora e quase inadmissível. O
16 - Cartas Jesuíticas 2 / Cartas Avulsas. Azpilcueta Navarro e Outros. p. 93. (Grifo nosso).
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repúdio a esse modo de vida era capaz de movimentar um grupo de jesuítas a
caminharem por quinze dias, passando fome e outras dificuldades. Sem contar que
a maior parte da viagem era feita por um rio e, uma vez que não cabiam todos na
barca, parte do grupo seguiu “a pé, parte nadando e outros embarcados”.17
Seria possível que a idéia de um cristão transformado em índio, por mais
horror que causasse, valesse o movimento empreendido, em uma terra onde
viviam declarando que não faltavam pecados cometidos? Talvez. Contudo, esse
movimento que mobilizava um grupo de jesuítas a entrar mato adentro para um
improvável resgate de apenas um cristão permite várias interpretações. É claro
que não esquecemos que a missão poderia ser elaborada tendo também por
objetivo a catequese de algumas tribos pelo caminho. Porém, essa mesma missão
já nascia com um princípio, com o objetivo de resgatar algum cristão perdido
como está registrado nas cartas.
O resgate dessa alma perdida poderia encobrir algum medo dos jesuítas
ou, até mesmo, camuflar alguma outra estratégia. A tão propalada falta de ordem,
que carecia de um rei que comandasse e centralizasse o poder entre os índios,
poderia ser um dos seus medos. Deixar um indivíduo que conhecia os poderes de
um rei entre uma tribo de índios, convivendo em harmonia com seus costumes,
poderia representar um risco. Quem garantiria que este mesmo português,
metamorfoseado em índio, não assumisse uma liderança perigosa? A partir da
notícia de algum cristão perdido, os jesuítas organizavam-se para não permitir que
sua ovelha desgarrada pudesse partilhar da vivência daqueles costumes.
É conhecida a resistência de Nóbrega ao saber da vida que João Ramalho
levava em São Vicente:
“Nesta terra está um João Ramalho, o mais antigo dela, e toda sua vida e dos filhos é conforme a dos índios e uma petra sacandali para nós, porque sua vida é um principal estorvo para nós, para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito aparentado com os índios. (...) Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas, tanto o pai como os filhos”.18
Gostando ou não do estilo de vida de Ramalho, Nóbrega mudou sua
postura em relação ao mesmo, ao perceber que era preferível uma aliança com o
ilustre representante dos índios do que um embate direto com um principal da
17 - Idem. p. 120. 18 - Op. Cit.
181
terra. Especialmente porque, logo que aqui chegaram, os jesuítas pouco sabiam
dos costumes, das línguas dos indígenas, e estes serviriam de pontes entre as duas
culturas. Por essa razão, o jesuíta já havia tratado com Diogo Alvares, o
Caramuru, recorrendo aos seus conhecimentos da terra.
A possibilidade de os jesuítas ocuparem-se em resgatar cristãos perdidos
em meio aos pagãos impulsionados por medo de algum levante ou de uma
tentativa de estabelecimento de uma autoridade paralela não eliminava o mero
sentimento de repúdio que tal ato podia encontrar entre os religiosos. Para uma
vivência calcada em juízos de valor, a idéia de um cristão indianizado causava até
mesmo mais horror que as próprias práticas gentílicas dos nativos. Esse trabalho
de reconversão de cristãos perdidos acabava por valorizar ainda mais a proposta
inicial missionária da Companhia. Esse repúdio e horror ao europeu indianizado
não ficou restrito aos momentos iniciais do trabalho missionário no Brasil
quinhentista.
Ao ultrapassar as fronteiras da ordem, em sua direção contrária, esses
homens criavam espaços ilimitados e inesperados que fugiam dos parâmetros
definidos como civilidade. O mundo dividido entre a civilidade e a gentilidade
perdia o seu sentido, eram desfeitas as fronteiras com a transposição voluntária de
cristãos que resolviam adotar os costumes da terra. O horror não se definia pelas
relações amorosas empreendidas por esses cristãos. O que parecia
incompreensível era a escolha por um mundo diferente.
A própria notícia de um filho de cristão, porém mestiço, vivendo entre os
selvagens costumes também causa uma certa comoção junto aos jesuítas. A opção
pela selvajaria ou pela barbárie aparecia como algo fora da ordem natural das
coisas, como uma doença. Além disso, cristão adotando costumes gentílicos era
um péssimo exemplo e um desserviço ao trabalho de catequese. Em uma de suas
carta, Nóbrega contava horrorizado sobre os moradores de São Vicente:
“(...) sempre dão carne humana a comer não somente a outros índios, mas a seus próprios escravos. Louvam e aprovam ao gentio de comerem-se uns aos outros, e já se achou cristão a mastigar carne humana, para darem com isso bom exemplo ao gentio”.19
Para desespero dos jesuítas, muitas vezes o processo se invertia. Europeus
aprendiam e adotavam os costumes da terra, uma catequese às avessas. Mas não
182
eram só os jesuítas que se espantavam com essa inversão, nem foram só os
portugueses os que se indianizaram. Jean de Léry, ao descrever os rituais
indígenas em torno dos prisioneiros de guerra até a realização de seus banquetes
de carne humana, contava que “esses bárbaros não só se deleitam no extermínio
de seus inimigos, mas ainda exultam vendo os seus aliados europeus fazerem o
mesmo”. O autor de Viagem à Terra do Brasil acreditava que os índios
tupinambás convidavam os franceses para compartilhar dos seus banquetes como
uma forma de testá-los: “duvidavam de nossa lealdade se o recusávamos”. Léry
faz questão de afirmar que sempre rejeitou os convites, “graças a Deus”, e jamais
esqueceu a sua crença. Contudo, faz uma ressalva: essa não era a regra geral entre
os franceses, o que lastimava profundamente, como podemos observar nessa
passagem:
“Com pesar sou, porém, forçado a reconhecer aqui que alguns intérpretes normandos, residentes há vários anos no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens que, vivendo como ateus, não só se poluíam em toda espécie de impudicícias com as mulheres selvagens mas ainda excediam os nativos em desumanidade, vangloriando-se mesmo de haver morto e comido prisioneiros. E conheci um rapazote de treze anos que já copulava com mulheres”.20
Protestantes e católicos apresentavam, portanto, o mesmo repúdio ante a
opção de alguns europeus por adotarem os costumes dos gentios, regressando a
uma vida pagã.
Em 1591, a Primeira Visitação do Santo Ofício às terras do Brasil
encontrou problemas bem diferentes dos casos comuns ao Tribunal, tais como o
judaísmo secreto de cristãos-novos e a heresia luterana. Uma das confissões
arroladas de um dos autos pertence a um francês chamado Simão Luís, que
admitiu ter saído de sua terra em um navio de luteranos. Filho de mãe católica e
pai luterano, o francês declarou ter fugido da doutrina materna, preferindo seguir
os ensinamentos paternos. Ao desembarcar nas novas terras, dirigiu-se à região do
rio S. Francisco em busca de pau-brasil, onde novamente fugiu e se internou “com
os negros gentios deste Brasil”. Durante dois anos, esteve no sertão com os ditos
gentios. Simão não chegou a contar detalhes de sua vida de índio, limitando-se
19 - Cartas do Brasil. Op. Cit. p.96. 20 - Op. Cit. p. 201.
183
apenas a informar que usou de “todas as gentilidades”,21 o que subentende
participar de seus ritos e cerimônias, inclusive antropofágicos. Depois de
experimentar a vida selvagem, fugiu mais uma vez, vindo a ter com os padres da
Companhia de Jesus em seu Colégio em Vila Velha, onde o doutrinaram.
Entretanto, confessava não se sentir à vontade na religião católica para rezar aos
santos e santas, nem honrá-los, nem lhes rogar nada.
A história de Simão Luís não representou um caso isolado. Como ele,
muitos ultrapassaram as fronteiras da civilidade, optando por uma vida em tudo
diferente. Alguns retornaram aos seus antigos costumes, outros não. O mundo já
era diferente e as certezas não mais existiam. Nesse sentido, o caso de Simão tem
muito a nos oferecer. Simão já havia nascido mestiço na sua terra, um mestiço
cultural, dividido entre as duas religiões de seus pais. Escolheu ser protestante,
depois gentio, para ainda adotar um catolicismo sem muita convicção. Simão não
sabia bem ao certo em que acreditar ou que caminho optar. Mas, no Novo Mundo,
descobriu que podia experimentar22, mesmo vivendo em um mundo onde, por
princípio, os espaços deveriam ser estritamente definidos.
O processo que misturou diferentes culturas, hoje denominado
mestiçagem, incomodava primeiramente pelo seu aspecto de transposição de
fronteiras, por uma certa rejeição ao próprio modelo estabelecido. Rejeitava-se
uma origem e, de certa forma, chegava-se a despreza-la. Houve uma simplificação
das causas que podiam levar a essa atitude: a cobiça e, principalmente, a luxúria.
As relações ilegais, pecaminosas, eram o modo mais fácil de explicar tal
comportamento. Assim, o mestiçamento de europeus tornava-se sinônimo de
devassidão, indisciplina e do viver desregrado; tornava-se uma desordem moral e
social.
5.3. Mamelucos
A colonização portuguesa foi um projeto exclusivamente masculino.
Raríssimos colonos trouxeram mulheres e filhos. Desta forma, praticamente em
quase todas as relações mistas, prevaleceu o par homem branco e mulher índia e,
21 - VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia. São Paulo, Cia das Letras, 1997. p. 304-305.
184
posteriormente, homem branco e mulher negra. Em sua História da Família no
Brasil Colonial, Maria Beatriz Nizza da Silva23, ao tratar do desequilíbrio
demográfico e da miscigenação no século XVI, recuperou a memória dos poucos
portugueses que cá aportaram com suas esposas, procurando mapear o reduzido
contingente de mulheres brancas que circulavam pela terra. De acordo com os
registros de época, solteiros ou casados desacompanhados de suas mulheres, os
portugueses não tiveram problemas de solidão nos trópicos. Logo estavam
vivendo com as índias, formando novas famílias e um contingente significativo de
mamelucos.
A importância dos mamelucos para o povoamento do Brasil, bem como
para o avanço da colonização portuguesa, é fato incontestável. A sua participação
nas bandeiras portuguesas foi essencial para a expansão das fronteiras, alargando
os limites da linha de Tordesilhas.
Mas é possível caracterizar esse mestiço? Normalmente, a imagem do
mameluco é vista a partir de dois movimentos: ora esquadrinhando os sertões em
busca de metais e gemas e caçando índios ao lado de homens brancos, ora se
associando aos índios, voltando aos seus selvagens costumes. É bom esclarecer
que não se pretende fornecer um retrato do mameluco. O que interessa é analisar o
retrato das fontes contemporâneas, isto é, repensá-lo sem as normais implicações
que o calor da hora e dos fatos emprestavam à sua imagem.
A origem da palavra mameluco, muitas vezes grafada mamaluco, foi fruto
de discussões. Chegou-se a pensar que o termo seria derivado do tupi maloca.
Contudo, sua etimologia foi definida a partir do árabe mamluk: inicialmente,
escravos e depois membros de uma milícia turco-egípcia, que conquistou grande
poder no Egito, formada por escravos caucasianos convertidos ao islamismo.24 A
palavra teria sido adotada em Portugal do medievo para designar os mestiços de
portugueses e mouros. No século XVI, mameluco designava os filhos nascidos
das uniões entre brancos e índios. Ronaldo Vainfas, em seu Dicionário do Brasil
22 - A Simão foi mandado que continuasse freqüentando o Colégio de Jesus, uma hora pelas manhãs, para se instruir nas coisas da fé cristã, e fizesse, ao final, uma confissão geral de sua vida. 23 - Cf. “A família nos dois primeiros séculos de colonização”. In: História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 24 - Essa milícia ocupou o sultanato entre os séculos XII e XVI, sendo derrotada por Napoleão em 1798; foi exterminada e dispersa em1811 por Mehemet-Ali. Cf. Dicionário Houaiss e Novo Dicionário Aurélio.
185
Colonial, sugere que o termo teria sido adotado para os mestiços luso-indígenas
por conta da analogia estabelecida com o “aguerrimento e ferocidade” dos
mamelucos turco-egípicios, lembrando o costumeiro e significativo emprego da
palavra pelos jesuítas.
Assim, é costume associar o mameluco ao filho do português com índio,
nascido desde os primeiros contatos. Mas a criação de filhos mestiços de brancos
e índios não foi exclusividade dos portugueses. Como acabamos de ver, as visitas
e permanências de outros europeus na colônia portuguesa criaram oportunidades
para que se estreitassem laços, além das alianças comerciais.
Na sua Viagem à Terra do Brasil, Jean de Léry fez referência a alguns
normandos que já estavam na terra muito antes da chegada de Villegagnon, os
quais teriam sobrevivido a um naufrágio e haviam ficado entre os selvagens,
“vivendo amasiados sem temor a Deus, alguns com filhos já de quatro a cinco
anos de idade”.25 As normas francesas seguiam os mesmos princípios que as
portuguesas, pelo menos na teoria. Segundo Léry, o Almirante Villegagnon
proibiu que os cristãos se juntassem às mulheres dos selvagens - sob a pena de
morte. As uniões só seriam permitidas se as mulheres fossem “instruídas na
religião e batizadas”.
Em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Souza
chamou a atenção para a existência de muitos mamelucos descendentes de
franceses vivendo entre os tupinambás. O autor desculpou-se por tratar de tal
assunto, explicando sua razão: “Ainda que pareça fora de propósito o que se
contém neste capítulo, pareceu decente escrever aqui o que nele se contém para
melhor se entender a natureza e condição dos tupinambás, com os quais os
franceses alguns anos antes que se povoasse a Bahia, tinham comércio”. Os
franceses teriam usado o mesmo expediente que os portugueses: deixavam alguns
mancebos para aprenderem a língua e servirem na terra como intérpretes. Segundo
Soares de Souza, muitos destes franceses não quiseram voltar para sua terra,
preferindo levar uma vida “como gentios com muitas mulheres”. O resultado não
poderia ter sido outro:
25 - Op. Cit. p.96.
186
“(...) se inçou a terra de mamelucos, que nasceram, viveram e morreram como gentios; dos quais muitos dos seus descendentes, que são louros, alvos e sardos, e havidos por índios tupinambás, e são mais bárbaros que eles”.26
O mameluco de origem francesa parecia seguir as mesmas características
de seu congênere português: adotava com regularidade os costumes gentios. Por
essa razão, os mamelucos acabavam sendo tachados de mais bárbaros que os
próprios índios. Para além dos conhecidos europeus que passaram pela colônia,
como franceses, holandeses e ingleses, outros viajantes que assentaram morada no
Brasil também deixaram descendência mestiça. É o caso de Maria Grega, que
aparece em uma das confissões do Santo Ofício, por ocasião da visitação do
licenciado Heitor de Mendonça Furtado, entre os anos de 1591 e 1592, na Bahia.
Em sua confissão, Maria disse ser natural de Itaparica, filha de João Grego,
carpinteiro de naus, “grego de nação”, e de sua mulher Constança Grega, ‘índia
deste Brasil”. Maria era casada com Pero Domingues, natural da cidade grega de
Smirna, que, como tantos outros, sem ofício, andava pelo sertão da Bahia.27
É óbvio que o número de mamelucos de origem portuguesa suplantou o de
qualquer outra nacionalidade. De qualquer forma, proporcionalmente, não deve
ter sido insignificante o número de mestiços filhos de índias com outros europeus,
que tornaram a se indianizar pelos sertões adentro, diluindo suas origens.
Algumas capitanias ficaram marcadas pelo alto índice de mamelucos em
sua população, como foi o caso de Pernambuco e, sobretudo, de São Vicente. Em
São Paulo, as crianças aprendiam primeiro o tupi e depois iam para a escola
aprender o português. Paulistas e mamelucos tornaram-se palavras quase
sinônimas. Desnecessário lembrar o mito do eficiente povoador daquela capitania,
João Ramalho, o grande patriarca, e sua incontável descendência.
Os descendentes de João Ramalho foram assim descritos por Nóbrega:
“Vão para a guerra com os índios, suas festas são índias, e vivem como eles tão
nus quanto os próprios índios”. É certo que Nóbrega não nutria grandes simpatias
por Ramalho, justamente por causa de sua adoção aos costumes indígenas e por
conta de suas maledicências a respeito dos jesuítas. Mas a breve descrição do
26 - Op. Cit. Cap. CLXXVII. p.331. 27 - As confissões de Maria e Domingos foram colhidas e registradas separadamente. Segundo o depoimento de Maria, Domingos não tinha ofício e este, em sua confissão, apresentou-se como “um alfaiate que já não usa” (não exerce mais o ofício), sendo que por aquele período andava pelo sertão. Cf. Op. Cit. p. 278-270; 315-316.
187
jesuíta não fugia à regra de outros cronistas de seu tempo, que se limitavam, na
maioria das vezes, a igualá-los aos índios.
São raras as descrições do tipo físico de um mameluco no século XVI. O
padre Leonardo Nunes ofereceu um outro exemplo de uma limitada descrição de
um filho de cristão e de uma índia. O jovem mameluco tinha em torno de uns
vinte anos de idade quando apareceu no colégio dos jesuítas em São Vicente, no
ano de 1551, “nu como um índio” e era “mui alto de corpo e mui alegre’. Segundo
o padre Nunes, o rapaz não sabia português e muito menos tinha “notícia de seu
Criador”, sua vida resumia-se a caçar e pescar. Como ele, dizia ainda o jesuíta,
“são muitos os que andam pela terra dentro, assim homens como mulheres, que se
perdem por falta de socorro”.28 Não há dúvidas de que a idéia de perdição estava
associada a uma vida sem religião. Podemos citar uma das muitas passagens
semelhantes de Nóbrega que recorre à mesma expressão: “Andam muitos filhos
de cristãos pelo sertão perdidos entre os Gentios, e sendo Cristãos vivem em seus
bestiais costumes”. Os padres repetiram essa história de cristãos perdidos quase
como um bordão em suas cartas. Entretanto, é quase impossível não deixar de
pensar em um indivíduo tentando se localizar entre dois mundos.
Mais para índio do que para branco, o mameluco era principalmente um
sujeito que andava terra adentro, ignorando os preceitos da fé cristã. A escassez de
descrições mais detalhadas dos mamelucos contrasta com a variedade de
descrições dos índios. Gravava-se um tipo exclusivo do índio, como diferente e
exótico, que poderia ser integrado ao gabinete de curiosidades. Era como se o
mestiço perdesse seus encantos por não ser o modelo original. Assim, as
referências aos mamelucos detiveram-se no seu caráter, sempre apontado como
duvidoso, especialmente para os jesuítas.
O bispo de Pernambuco apresentou uma descrição pouco simpática do
conhecido bandeirante Domingos Jorge Velho, mostrando-se igualmente chocado
com o seu modo de vida:
“Este homem é um dos maiores selvagens com quem tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se
28 - Cartas Avulsas. p. 93.
188
diferença do mais bárbaro tapuia mais que em dizer que é cristão, e não obstante o haver-se casado há pouco, lhe assistem sete índias concubinas”.29
Anos mais tarde, em 1610, o padre Jácome Monteiro dava conta dos
habitantes de Piratininga: “Os moradores são pela maior parte mamelucos e raros
os portugueses; e mulheres há só uma, a que chamam Maria Castanha”. Para que
ficasse bem claro quem eram os mamelucos, o padre jesuíta oferecia uma
sintética, mas precisa, descrição: “São estes de terrível condição, o trajo seu fora
da povoação é andarem como encartados, com gualteiras de rebuço, pés
descalços, arcos e flechas, que são suas armas ordinárias”.30 A figura que
sobressai da descrição não poderia ser mais mestiça: trajo europeu, mas com pés
descalços e armas de índios. No entanto, o perfil completo não era nada sutil. A
figura desenhada estava colorida de preconceito, desde o adjetivo empregado
“encartados”31 (alguém sujeito a um processo), ao acessório da vestimenta - uma
“gualteira” (carapuça normalmente de pele de anta) “de rebuço” (abas que
encobriam o rosto). O fato de andar disfarçado, escondendo o rosto, não
estampava apenas uma pessoa dissimulada. O Livro V das Ordenações Filipinas,
título 79, “Dos que são achados depois do sino de recolher sem armas e dos que
andam embuçados”, determinava em seu terceiro item:
“E a pessoa que for achada com gualteira de rebuço, posto que seja caminho, vá degradado um ano para a África e pague dez cruzados (...). E sendo pessoa de qualidade, pagará vinte cruzados”.
Mais que um dissimulado, o mameluco era um criminoso potencial aos
olhos dos jesuítas e da legislação contemporânea portuguesa. Nas raras descrições
sobre os mamelucos entre os séculos XVI e XVII32, encontramos figuras nuas
assemelhadas aos índios e, quando vestidos à européia, portando peças de
bandidos.
29 - Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. SP, Cia das Letras, 1994. 30 - Relação da Província do Brasil, 1610. Apud LEITE, Serafim. Op. Cit. Tomo VIII - Apêndice. p. 395. 31 - Termo que tem origem em Las Encartaciones de Vizcaya 32 - Já no século XIX, os viajantes Spix e Martius deixaram um retrato menos preconceituoso: “os mamelucos, conforme o grau de mescla, têm a pele quase cor de café ou quase branca. Traem a mistura indiana antes de tudo, a cara larga, com maçãs salientes, os olhos pretos e não grandes e certa incerteza do olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo larga, feições fortes, sentimento de liberdade e desassombro, olhos brunos ou raramente azuis cheios de fogo e afoiteza, cabelo cheio preto e liso, musculatura reforçada, decisão e rapidez nos movimentos, são aliás, os principais característicos na fisionomia dos paulistas”.
189
A melhor descrição de uma figura mameluca não se encontra nas crônicas
coevas, mas na documentação relativa à visitação do Santo Ofício ao nordeste do
Brasil. A confissão de um certo mameluco é o mais perfeito exemplo de uma vida
entre dois mundos. Comecemos pelo seu nome. O mameluco tinha dois: o de
batismo, Domingos Fernandes Nobre, e outro, seu nome indígena, Tomacaúna.
Dos dezoito aos trinta e seis anos, Tomacaúna viveu “como homem gentio” nos
sertões da Bahia, não deixando de se confessar “pelas Quaresmas, para cumprir a
obrigação”. No tempo da confissão ao Santo Ofício, Domingos tinha quarenta e
seis anos, estava casado com uma mulher “branca” e continuava a fazer suas
incursões pelo sertão. Mesmo assim, contou das várias mulheres que teve a cada
entrada pelo interior.
Inicialmente, havia partido em busca de ouro, quando em convívio com os
índios do sertão passou a adotar seus costumes, andando nu, tingindo-se com
tinturas de urucum e jenipapo, colocando penas na cabeça, tangendo instrumentos
como atabaque e pandeiro (cabaças com pedras dentro), bailando e cantando as
cantigas indígenas.
A adoção desses costumes não foi suficiente para o mestiço se sentir
participante da cultura de sua mãe. Tomacaúna quis provar que poderia ser um
igual, tão valente quanto qualquer índio e “que não os temia”. Para isso, além de
guerrear, tatuou o corpo ao modo gentílico: com um dente de paca, rasgou a carne,
imprimindo para sempre a sua bravura. Depois de um certo tempo, Domingos
passou a trabalhar para o governador Luís de Brito, fazendo descer índios do
sertão. Mas não esqueceu o outro lado. Continuou a fornecer armas aos gentios e a
adotar aqueles costumes a cada entrada.
Domingos-Tomacaúna parece não se ter intimidado com o visitador do
Santo Ofício, como demonstra a riqueza dos detalhes confessados. Como se não
bastasse, “muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão, pois nele
tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos e fazia mais que queria sem
ninguém tomar conta”.33
Fruto de uma relação nem sempre fácil, mestiço de índio e branco, o
mameluco começou a aparecer nos relatos sobre o país como um problema. Como
vimos, antes de tudo, os mestiços eram filhos de uma relação irregular, dos
33 - Op. Cit. p. 356.
190
inúmeros casos de amancebamentos ou concubinatos entre cristãos e pagãos,
portanto, filhos do pecado. Em 1663, Simão de Vasconcelos, que escreveu a
primeira história da Companhia de Jesus no Brasil, sintetizava a visão dos jesuítas
a respeito dos mamelucos: “Mamelucos ilegítimos e desalmados, com arcos e
flechas e gritarias (...) desinquietando a vila contra os padres, espalhando de
alguns deles crimes péssimos”.
Para além de sua origem ilegítima, os mestiços, aos olhos dos jesuítas, na
maior parte das vezes, apareciam como um empecilho, isto é, elemento contrário
ao trabalho de cristianização, conforme podemos observar nessa passagem de
Anchieta:
“(...) uns certos Cristãos, nascidos de pai português e de mãe brasílica, que estão distantes de nós nove milhas em uma povoação de Portugueses, não cessam, juntamente com seu pai de empregar contínuos esforços para derrubar a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, trabalhamos por edificar, persuadindo aos próprios catecúmenos com assíduos e nefandos conselhos para que se apartem de nós e só a eles, que também usam de arco e flechas como eles, creiam, e não dêem o menos crédito a nós, que para aqui fomos mandados por causa da nossa perversidade”.34
Ainda na mesma carta, Anchieta relatou que estes mestiços, além de
induzirem os recém-conversos a não acreditarem nas palavras dos padres,
incitavam-nos a voltarem aos seus antigos costumes, para que estes vivessem
“mais livremente”. É interessante notar que o termo ‘liberdade’ empregado pelo
jesuíta não tinha alcançado o peso e sua positividade que o século XVIII iria lhe
emprestar. No entanto, o seu emprego naquele momento transmitia com precisão
o sentimento que pautava a vida na colônia, a oposição entre escravidão e
liberdade. O próprio ideal da colonização não condizia com liberdade, mas sim
com um controle de corpos e mentes.
A perspectiva de viver uma vida regrada, pautada pelo tempo jesuíta, com
hora para rezar, hora para plantar, tudo feito sob um rígido controle, certamente
deveria parecer igualmente um absurdo. Não será à toa que as fugas para o sertão
se apresentavam como uma solução para muitas tribos.
Naquela mesma carta em que reclamava do retorno de índios catequizados
aos antigos costumes, desvirtuados por mestiços, o padre Anchieta lastima o
acontecido, lembrando que significava a perda de um ano do trabalho
34 - Op. Cit. p. 56.
191
empreendido por irmãos da Companhia. Anchieta alerta sobre o perigo de
contágio de algo tão pernicioso e, caso não se extinguisse a ação conjunta de
colonos e mamelucos, a missão estaria fadada ao fracasso. O jesuíta, desanimado,
declara que a conversão dos infiéis “não progredirá, como enfraquecerá, e de dia
em dia, necessariamente desfalecerá”.35
Em uma outra carta, ao narrar os andamentos do trabalho de catequese,
Anchieta contava sobre alguns órfãos, mestiços da terra, que os jesuítas haviam
recolhido para amparar e ensinar os preceitos da fé cristã. Como de costume, o
jesuíta emitia o seu conceito sobre os mesmos: “é a gente mais perdida desta terra,
e alguns piores que os mesmos índios”.36
O desprezo dos jesuítas pelos mamelucos era latente. Além de todas as
dificuldades envolvidas no trabalho de catequese dos índios, os inacianos
precisavam, ainda, disputá-los com os mamelucos. Contudo, os padres também
recorreram aos seus préstimos. Ao descrever a casa da Companhia de Jesus em
Salvador, em 1555, o padre Ambrósio Pires contava que seus habitantes somavam
44 pessoas, entre as quais dois sacerdotes (ele e Antônio Pires), três irmãos (João
Gonçalves, Antônio Blasques e Pero de Góis) e os restantes mestiços:
“Os outros são mamelucos, filhos de cristãos com índias, os quais conservamos e muito nos servem para nos ajudar no trato com os índios, cuja língua falam. Temos mais oito, dos quais sete já são cristãos e quatro escravos”.37
Se tirarmos os cinco membros oficias da Companhia - padres e irmãos - do
total dos habitantes arrolados pelo padre Ambrósio, temos um número
significativo de mamelucos colaborando com os inacianos. Por mais que se
queixassem, os jesuítas não podiam prescindir da ajuda dos mamelucos. A sua
colaboração era essencial no trabalho de difusão da fé, pois serviam não só como
intérpretes da língua, mas sobretudo como mediadores no trato com os índios.
Provavelmente, era esse trato, e não a bela retórica dos padres, que atraía os
silvícolas para a catequese, da mesma forma que os colonos conseguiam muitas
vezes fazer os seus descimentos sem precisar recorrer à violência.
Anos mais tarde, Frei Vicente do Salvador, ao contar as primeiras
providências tomadas pelo quarto governador do Brasil, Luís de Brito Almeida,
35 - Idem, ibidem. 36 - Idem. p. 77.
192
expôs a opinião dos moradores da Bahia sobre a melhor forma de descer os índios
do sertão sem precisar recorrer à força física. Segundo Frei Vicente, o novo
governante começou logo a tratar dos assuntos de guerra; vinha com ordens do rei
para povoar o rio Real. Para isso, era preciso cativar os gentios do lugar. A
expedição ao referido rio foi um fiasco, pois não havia mais índios no local.
Haviam todos fugido com as guerras de seu antecessor. Assim, o governador foi
alertado pelos moradores de que guerras aos gentios só serviam para afugentá-los
para longe da costa, tornando mais difíceis os trabalhos de resgates. Os moradores
achavam melhor trazê-los por paz e persuasão dos mamelucos, “por saberem a sua
língua e pelo parentesco que tinham com eles, que por armas”.38 E assim foi feito;
o governador autorizou as entradas dos mamelucos aos sertões da Bahia.
O que o recém-chegado reinol Luís de Brito Almeida ainda não sabia, mas
os moradores da colônia já haviam percebido, era que a afinidade entre
mamelucos e indígenas representava mais que qualquer contingente de soldados
brancos. Os mamelucos apresentavam-se como uma sólida ponte entre as duas
culturas, conheciam os principais interesses e pontos fracos dos dois lados.
Certamente, a colaboração dos mamelucos com os jesuítas foi bem maior do que
gostariam e do que admitiram. Apesar da intensa campanha empreendida contra
os mestiços, em relação ao trato dos indígenas, os jesuítas sabiam da importância
do seu trabalho. Mas é claro que os jesuítas não alardeavam essa informação aos
quatro ventos. Afinal, os mamelucos não ofereciam seus préstimos só para os
jesuítas, ao contrário, trabalhavam muito mais para os seus concorrentes. Além
disso, divulgar a valiosa ajuda dos mestiços era diminuir a própria força do
trabalho edificante da catequese.
Ainda sobre essa capacidade de persuasão dos mamelucos, retornemos ao
Frei Vicente, que nos ajuda a elucidar essa questão. A opinião dos moradores da
Bahia sobre os mestiços, contada pela pena do frade franciscano na primeira
História do Brasil, não ficou isenta da apreciação do próprio autor. Os
mamelucos, conta Frei Vicente não sem uma certa ironia, “não iam tão confiados
na eloqüência que não levassem muitos soldados brancos e índios confederados e
amigos com sua frechas e armas, com as quais, quando não queriam por paz e por
37 - Op. Cit. p. 169. 38 - Op. Cit. p. 217.
193
vontade, os traziam por guerra e por força”. Contudo, reconhecia o franciscano,
ordinariamente bastava a língua do parente mameluco, “que lhes representava a
fartura do peixe e mariscos do mar de que lá careciam, a liberdade que haviam de
gozar, a qual não teriam se os trouxessem por guerras”.39
Em suma, o que sobressai dessa narrativa é um caráter dúbio e falso dos
mamelucos, que se aproveitavam da confiança para enganar os seus afins. Frei
Vicente ainda prosseguia, procurando deixar claro como eram os procedimentos
destes mestiços:
“Com estes enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais (chefes indígenas) e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista do mar, apartavam filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do marido, levando uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetravam a licença (...) e todos se serviam deles em suas fazendas e alguns os vendiam”.40
O sentido dessa passagem não difere muito das usuais reclamações dos
jesuítas. Os mamelucos serviam aos propósitos dos colonos portugueses, trazendo
os índios para o cativeiro; o que não significava trazê-los para a cultura
portuguesa e, sobretudo, cristã, porque continuavam incentivando os costumes
bárbaros, como comer carne humana - quando não adotavam os mesmos hábitos.
Ou seja, o mameluco interagia com as duas culturas mais ou menos na mesma
altura. E para os jesuítas isso não era só pernicioso como também perigosíssimo.
Ronaldo Vainfas41, ao estudar o fenômeno religioso freqüente entre os
tupis, denominado pelos jesuítas de “santidades”42, demonstrou o quanto os
mamelucos poderiam ser perigosos para as autoridades coloniais, incentivando as
desordens dos índios. Tratava-se, grosso modo, de uma crença milenarista ligada a
um lugar mítico e comandada por um pajé, que conduziria os seus adeptos à “terra
sem mal” - onde a felicidade seria eterna. Esta crença era composta de um ritual
próprio, com danças, cantos e transes em meio ao fumo de uma erva inebriante, o
tabaco.
39 - Idem ibidem. 40 - Idem. p. 218. 41 - Cf. “Ambivalências e adesões”. In: A Heresia dos Índios. Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo, Cia das Letras, 1995. 42 - Vários cronistas descreveram as cerimônias desta crença: Nóbrega, Anchieta, André de Thevet, Jean de Léry, Hans Staden. O nome de santidade foi dado por Nóbrega.
194
Vainfas centrou sua análise no caso ocorrido em Jaguaribe, região ao sul
do Recôncavo Baiano, entre os anos de 1580 a 1585. Este caso começou com
índios que já haviam tido uma certa instrução com os jesuítas. O líder - um índio
batizado de Antônio pelos jesuítas - misturou noções do catolicismo a elementos
da cultura indígena, formando uma seita singular. Esse líder se dizia a encarnação
de Tamandaré (herói da mitologia tupi) e, ao mesmo tempo, denominava-se o
papa da seita; sua principal esposa era a Santa Maria Mãe de Deus.
Não cabe aqui uma análise da seita em si. Importa destacar que, em um
certo momento, parte de seus crentes já se deslocara para o engenho de Jaguaribe
atraídos pelo seu senhor, Fernão Cabral de Taíde, levados por um mameluco. Na
fazenda deste nobre fidalgo, os índios construíram uma igreja, adotaram um ídolo
de pedra, dando prosseguimento às suas cerimônias. Atraídos pela seita, índios
escravizados de fazendas das redondezas fugiram para o engenho de Taíde,
gerando insatisfação de outros senhores e muitas revoltas.
Para Vainfas, o papel dos mamelucos na história da santidade de Jaguaribe
ilustra tópicos essenciais da vida da colônia: “o hibridismo cultural, as traduções
do catolicismo para o tupi e vice-versa; os múltiplos sentidos da colonização; a
extraordinária complexidade de aculturação no Brasil quinhentista - aculturação
errática e multiforme”.43
Ponto de interseção entre duas culturas, o mestiço permanecia uma
incógnita. Um movimento pendular definia a apreciação desse sujeito face a suas
ações. O fato de ser portador de dupla herança permitia-lhe o “benefício” da
dúvida. Porém, o que prevalecia era um juízo negativo, recaindo sobre ele todo o
(pre)juízo da uma só parte do legado. Em resumo, a imagem que se foi
construindo era a de alguém que inspirava pouca confiança, um ser ambíguo, uma
vez que havia sempre a possibilidade de vir à tona o seu lado selvagem.
A disputa pelos índios entre jesuítas e colonos portugueses movimentou
durante quase três séculos a vida na colônia. Frei Vicente de Salvador emitiu uma
frase que dava o tom desta disputa: “Quebravam os pregadores os púlpitos sobre
isso, mas era como se pregassem no deserto”. Em meio às disputas, os mamelucos
trilhavam seu próprio caminho, bem mais tortuoso que as veredas dos sertões, mas
com total desenvoltura.
43 - Op. Cit. p. 150.
195
5.4. Mulatos
De forma diferente dos mamelucos, mas com igual importância, os
mulatos desempenharam um papel decisivo na colonização portuguesa,
conformando uma ampla parcela da população. Escravos por nascimento,
ajudaram, juntamente com os negros, a movimentar a economia da colônia,
impulsionando suas atividades produtivas. A ascendência africana acabaria
reduzida a simples determinação da origem negra e da condição escrava. Hoje,
estudos procuram recuperar não só as diferentes etnias trazidas para o Brasil,
como também um pouco das características de cada um daqueles povos que aqui
se tornaram mão-de-obra cativa ou “as mãos e os pés dos senhores de engenho”,
como diria um jesuíta do século XVIII. Mão-de-obra qualificada, diga-se de
passagem, formada por agricultores, artífices, criadores de gado e especialistas em
mineração.44
Os africanos que fizeram a travessia forçada do Atlântico certamente
perceberam, já durante a viagem, que as condições de vida que teriam nas novas
terras não seriam diferentes daquelas oferecidas a bordo dos navios em que
vinham transportados. Mal alimentados, maltratados, os africanos recém-chegados
eram uniformemente chamados de “escravos da Guiné” ou “negros da Guiné”
para serem distintos dos “negros da terra” ou, também, “escravos da terra”. Guiné
era uma simplificação adotada pelos portugueses para a região norte da África
ocidental, que compreendia desde a Guiné Bissau, a Costa da Mina (que abrangia
uma parte do Reino do Sudão, atualmente Benim e Nigéria) até a Guiné
Equatorial. O nome genérico atribuído aos negros de distintas origens e etnias
indicava a perda de identidade, passando a designar apenas uma força de trabalho.
Individualidade zerada, homens e mulheres de diferentes nações eram
reduzidos a um conjunto homogêneo para depois se tornarem números, unidades
computadas nas fazendas e engenhos; os negros de um senhor, submetidos à sua
vontade e, na maioria das vezes, à sua maldade. No final do século XVI, forjava-
se uma nova forma de identificação, que indicaria a nação de origem na África,
44 - Em estudo recente, Eduardo França Paiva recupera a qualidade e a técnica do trabalho de mineração dos negros denominados minas. Cf. PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla M. J. O Trabalho Mestiço. Maneiras de Pensar e Viver. São Paulo, Annablume: UFMG, 2002.
196
mas que, na verdade, relacionava-se apenas ao porto de embarque de um referido
escravo. Nos engenhos, uma nova nomenclatura definia-se, distinguindo os
“ladinos” e os “boçais”, isto é, quem dominava ou não a língua local. Assim, no
novo continente, nomes genéricos eram criados para tentar organizar a população
em novas camadas, de forma a absorver o impacto de um enorme contingente
formado por grupos distintos.
Se, para essas pessoas, havia esperança de uma vida melhor, como
qualquer ser humano costuma ter, ela ia ficando cada vez mais distante; nem
projetos para os filhos era possível fazer. Em total desalento, um incontável
número de pessoas optou pelo suicídio, da mesma forma que inúmeras mulheres
preferiram interromper sua gravidez a ver seus filhos com a mesma sorte. E quem
tinha filhos não os tinha de fato; a posse da criança era por direito do senhor. Os
filhos nasciam marcados: de pai negro, era “crioulo”45, de pai branco, “mulato”.46
A associação do mulato com um animal utilizado para transporte de carga
parece não ter sido gratuita. Um padre jesuíta do início do século XVIII, Jorge
Benci, ao procurar fundamentar a lógica da escravidão a partir dos cânones
sagrados, apresentou uma analogia entre o escravo e o jumento, que pode estar
ligada à origem do termo mulato ou, pelo menos, formulada a partir dessa
etimologia. Para Benci, o homem distinguir-se-ia de outros animais por uma
operação que é capaz de realizar: o entendimento. Contudo, o cativeiro privaria o
homem do uso da razão, tornando-o “parecido e semelhante ao mais bruto dos
brutos”; segundo o jesuíta, todos deveriam saber que se tratava do jumento. Essa
comparação, tirada do Eclesiástico, valeria para todos os escravos só por serem
escravos.47 Ou seja, a carga de trabalho destinada ao escravo acabaria por
embrutecê-lo. Se essa analogia guarda relação com a origem do termo, não temos
como comprová-la. Mas a sua concepção veicula o menosprezo, com o qual os
escravos eram obrigados a conviver.
45 - Apesar de hoje o termo crioulo designar qualquer pessoa negra, no século XVII designava os negros nascidos já no Brasil. 46 - A palavra mulato traz igualmente embutida em sua origem castelhana um sentido altamente pejorativo, que traduziria a sua herança de mestiço: macho jovem por comparação com a geração híbrida do mulato com o mulo. A partir de 1526, a palavra já começava a aparecer (Afonso de Albuquerque) como sinônimo do filho de pai branco e mãe negra ou vice-versa. 47 - BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. São Paulo, Grijalbo, 1977. p. 217.
197
As justificativas buscadas no Antigo Testamento deixam bem claro que
esse padre italiano não pretendia fazer de A Economia Cristã dos Senhores no
Governo dos Escravos um libelo contra a escravidão. A proposta era que seu livro
servisse de “regra, norma e modelo”48 para orientar os senhores no trato com seus
cativos. Se os escravos mereciam o desprezo por sua condição, o que acontecia
aos do Brasil, “por serem pretos”, era o que indagava Benci. Os abusos praticados
pelos senhores já eram de conhecimento público naquela altura49, e isso não
condizia com uma postura cristã, daí a preocupação do jesuíta em tentar
regulamentar a relação. Em suma, os senhores deveriam cumprir seus deveres
para com os escravos, que se resumiam em pão, disciplina e trabalho.
A depreciação embutida no termo mulato não ficou restrita à sua forma
substantiva. Nascido escravo, o mulato carregará por toda sua vida, como os
demais negros, o peso desta condição. Mesmo livre, era estigmatizado pela cor de
sua pele e pelo nome, sofrendo toda sorte de preconceitos. A criança mestiça
herdava o estatuto jurídico e social da mãe escrava.
No entanto, o mulato não foi o único termo utilizado no Brasil para
designar mestiços de ascendência negra. Sem contar com a denominação pardo,
também sinônimo de mulato, mas igualmente empregada para mouros e judeus,
muitos outros nomes foram registrados ao longo do tempo e do território.
Denominações como fulas, pardavascos, cabras, entre outras50, encontravam seu
sentido de acordo com a região.
É preciso destacar que a denominação de “cabra” foi além de sua
referência à cor de pele ou à origem étnica de um único indivíduo. De acordo com
Manuel Diegues Júnior51, na região do açúcar, essa palavra comportava na
linguagem popular uma significação social por associação ao tipo de trabalho:
cabra de engenho, cabra de bagaceira, cabra de eito, cabra de usina. Mas, se o
termo composto designava o tipo de trabalho, o seu emprego no singular passou
48 - Idem. p.49. 49 - Stuart Schwartz conta que, em 1700, os juizes (do Tribunal da Relação) receberam ordens reais para investigar se os senhores no Brasil estavam chicoteando cruelmente, mutilando e deixando seus escravos morrerem de fome, como havia sido reportado. Cf. Burocracia e Sociedade. p.198 50 - Não estamos citando alguns substantivos que foram cunhados posteriormente empregados para denominar mestiços, tais como: cafuz ou cafuzo (mestiço de negro e índio), cabrocha (sinônimo de mulato), uma vez que pertencem ao século XIX. 51 - Etnias e Culturas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. p.116.
198
também a caracterizar o desordeiro, o capanga, o valentão. De certa forma, essa
perspectiva que o termo cabra alcançava não era muito diferente daquela atingida
pelo mulato.
No Brasil, as origens do mulato são precisas; estão localizadas na região
litorânea do Nordeste e, principalmente, ligadas à cultura da cana-de-açúcar, aos
engenhos, a partir da paulatina introdução da mão-de-obra africana ainda no
século XVI. Não por acaso, chamava-se a Bahia de “mulata velha”, antiga
designação popular para um dos primeiros locais a receber escravos da África.
Gradativamente, o mulato ganhava outros espaços, tais como o Rio de
Janeiro e, no século XVIII, a região das minas de ouro e diamantes. No entanto,
não se pode dizer que a miscigenação afro-branca acompanhou a ocupação
territorial. Em alguns lugares, como no interior do Nordeste e na região Norte, era
rara a presença do mulato. O que se pode dizer é que o mulato acompanhou as
áreas de atividade econômica mais intensa ou ainda áreas economicamente mais
ricas, como aquelas ligadas à cana-de-açúcar, ao ouro e, posteriormente, ao café.
Ou seja, regiões de maior circulação monetária que podiam importar escravos
africanos para o trabalho.
A ligação do mulato com o engenho ficou especialmente marcada com o
retrato produzido pelo padre italiano João Antônio Andreoni no seu livro Cultura
e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Obra-chave para o entendimento
da economia e sociedade colonial, na qual podemos observar todo o preconceito
dirigido aos negros e mestiços, partilhado inclusive pela própria Igreja, que
condenava o ócio, apesar de reconhecer que era, sobretudo, o trabalho escravo que
movimentava a economia colonial.
Na primeira parte de Cultura e Opulência, o padre Andreoni tratou
minuciosamente do universo em torno da cultura do açúcar. Antonil, pseudônimo
adotado por esse jesuíta, incluiu os mulatos como uma mão-de-obra sempre
presente nos engenhos, lado a lado com os escravos negros. Logo no primeiro
capítulo, intitulado “Do cabedal que há de ter o senhor de um engenho real”,
relatou os inúmeros serviços necessários para um bom funcionamento da indústria
do açúcar, além dos usuais escravos das fazendas e moendas, negros e negras de
casa, também mulatos e mulatas.
Em um outro capítulo, Antonil destacou a importância do trabalho escravo
para o fabrico do açúcar com uma frase hoje clássica: “Os escravos são as mãos e
199
os pés do senhor de engenho”. Depois de explicar a procedência dos escravos e
criar características de acordo com as origens - mais robustos, mais fracos, os que
melhor se adaptam, etc. -, apontou como melhores os que nasciam no Brasil ou se
criavam desde pequenos em casa de brancos. Mas, para esse padre, ninguém era
mais esperto para o trabalho que os mulatos, como podemos observar em suas
próprias palavras: “Melhores ainda são para qualquer ofício os mulatos”.
Apesar do reconhecimento das múltiplas habilidades, no retrato que
aparece pintado em Cultura e Opulência, o que sobressai é um perfil negativo dos
mulatos. Para o padre Andreoni, os mulatos eram soberbos e viciosos, posavam-se
de valentes e estavam “aparelhados para qualquer desaforo”. Contudo, o jesuíta
acreditava que os mulatos levavam a melhor sorte pela porção de sangue branco
que traziam em suas veias, muitas vezes originadas do próprio senhor de engenho,
complacente com aquele comportamento. Pais remissos, os senhores de engenho
perdoavam tudo de seus abusados filhos; em vez de repreendê-los, cobriam-nos de
mimos, deixando-se governar por eles.
A complicada relação pai-filho ou senhor-escravo passava por esse
reconhecimento parcial da paternidade. Desnecessário dizer que raras vezes os
senhores reconheciam seus filhos ilegítimos; quando muito, em seus testamentos,
no leito de morte. Para além da condição inferior que as mulheres negras e
mulatas legavam aos seus filhos, a qualidade de bastardo acrescentava um quesito
a mais ao histórico da criança. A ascendência escrava e bastarda já era suficiente
para incentivar um processo de degradação dos mulatos.
Contudo, Antonil acreditava que a complacência paterna e a metade de
sangue branco tornavam a vida dos mulatos muito boa, o que explicaria o ditado
popular: “O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso
dos mulatos e mulatas”.52 A sutileza do ditado de situar o branco entre negros e
mulatos, pagando seus pecados na colônia, não foi a mesma empregada pelo
Marquês do Lavradio para contar sobre sua estada no Brasil. Em carta datada de
1769, o rabugento Marquês escrevia para sua esposa, reclamando da Bahia: “(...)
52 - Luiz F. Alencastro lembra que o título do livro de D. Francisco Manuel de Melo, Paraíso de mulatos, purgatório dos brancos e inferno dos negros, antecede o ditado veiculado por Antonil em cinqüenta anos. Cf. Op. Cit. p.347. Interessante notar que esse ditado ignorava índios e mamelucos. O que se deduz é que, por essa altura, princípios do século XVIII, o ditado estivesse focado principalmente na população do litoral, pois a maior parte da população indígena já havia se internado pelos sertões adentro e uma grande parcela exterminada.
200
vendo-me entregue a negros, macacos e mais sevandijarias53, que são as que
continuamente tenho que lidar neste novo mundo, (...) estou certo que se V. Ex.
soubesse da vida que aqui passo, eu havia lhe de merecer muitas vezes a sua
compaixão”.54
Mas Antonil ainda não estava satisfeito com o perfil do mulato e incluiu
um novo alerta sobre o seu caráter instável e de desordeiro. Em casos de
desconfiança ou ciúmes, ocorria uma transformação: o amor transformava-se em
ódio e o mulato saía “armado de todo o gênero de crueldade e rigor”. De acordo
com a psicologia do padre jesuíta, o bom era valer-se de suas habilidades, saber
tirar proveito delas e não lhes dar tanto a mão para que não lhes pegassem o
braço; caso contrário, os escravos se fariam senhores.
Essas descrições de Antonil aparecem no capítulo intitulado “Como se há
de haver o senhor de engenho com seus escravos”. Mesmo gozando de pequenos
privilégios decorrentes da própria ascendência paterna, os mulatos não deixavam
de ser tratados como força de trabalho cativa. E, de acordo com Antonil, libertá-
los, especialmente as mulatas, não era um bom negócio:
“Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta; porque o dinheiro, que dão para se livrarem, raras vezes saí de outras minas, que de seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e depois de forras continuarão a ser a ruína de muitos.”55
Habilidosos, abusados, traiçoeiros e oportunistas, os mulatos deveriam
permanecer na sua condição de escravos, sob o julgo de seus senhores, para não
causarem problemas e desordens. No entanto, forras ou escravas, as mulatas
acabavam sendo acusadas de, no mínimo, serem desinquietas e de levarem os
homens à perdição.
O fascínio sexual do português pelas mulatas tornava-se um mito, que
longe de qualificar, colaborava para degradar ainda mais a condição das mesmas.
De certa forma, a posição da mulher (já falamos a respeito das índias) era
extremamente desvalorizada, fruto da forte misoginia característica deste período,
não só no Brasil como na Europa. Contudo, aqui, criou-se em torno da mulher não
53 - Segundo o Dicionário Aurélio, sevandija significa designação comum aos vermes imundos; parasitas; pessoa vergonhosamente servil. 54 - Cartas da Bahia. 1768-1769. Rio de Janeiro, Min. da Justiça/ Arquivo Nacional, 1972. p.188. 55 - Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Rio de Janeiro, IBGE/Conselho Nacional de Geografia, 1963. p. 20.
201
branca - a índia, a negra e a mulata - uma áurea de luxúria, ligada a um
sentimento que misturava atração e repulsa. Outro ditado popular de cunho
altamente pejorativo definia os papéis das mulheres conforme sua cor: “branca
para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”.56 A mulata tornava-se quase
sinônimo de prostituta, o que diminuía ainda mais suas chances de alcançar um
casamento legítimo que melhorasse sua condição.
É certo que a prostituição fez parte do contexto escravista. Muitas vezes,
era a única forma de garantir o sustento para as mulheres libertas e sem recursos,
que viviam em situação de extrema pobreza, as quais ajudavam a conformar parte
daquela camada da população denominada por Prado Jr. de “desclassificados”. E,
ainda, a prostituição não representou um modo de sustento para somente as
mulheres pobres; muitos senhores valeram-se de suas escravas para completar ou
garantir seus rendimentos.
Estudos recentes têm procurado analisar os meios de vida e as alternativas
destas mulheres na colônia. Luciano Figueiredo, em O Avesso da Memória,
demonstrou como a prostituição atingiu elevados índices nas Minas Gerais do
século XVIII. A carência de mulheres brancas era inversamente proporcional ao
enorme contingente de homens que imigraram para aquela região em busca de
ouro. Esse desequilíbrio emprestava à sociedade mineira uma característica
específica, ainda que se mantivesse dentro dos padrões da colonização portuguesa
no Brasil, como já foi dito, um projeto exclusivamente masculino.
Deste modo, formou-se, na região das minas, uma população com uma
predominância de mulatos e negros. A rigidez dos estatutos sociais e de sangue
apresentava-se como um impedimento para que ligações mistas entre brancos e
mulheres negras ou mulatas pudessem ser oficializadas; ou seja, os casamentos
legais na Igreja tornavam-se praticamente inacessíveis para a maioria da
população. Figueiredo lembrou que algumas irmandades chegavam a expulsar de
seus quadros aqueles irmãos que contraíssem matrimônio com mulheres de
condição inferior.
O Estado português, ao procurar impedir o casamento entre pessoas de
condições diferentes, promovia a política de desqualificação do outro e a
manutenção da cultura do mesmo, do igual. Negros e mulatos deveriam casar com
56 - Cf. FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Tomo I, p.13.
202
seus pares. O infeliz ditado, veiculado na colônia, que determinava que, para
casar, só servia a mulher branca, exemplificava bem a lógica social daquela época.
No entanto, o projeto de colonização criava as suas próprias contradições,
determinando legal somente o casamento entre iguais, apesar de contar com um
número mínimo de mulheres brancas.
Paradoxalmente, as regras e as normas do Estado português acabaram por
consagrar a condenada prática do concubinato como a forma de união viável para
a maioria dos moradores da colônia. Estudos como o de Luciano Figueiredo, que
acabamos de citar, de Mary del Priori57 e muitos outros têm demonstrado, apesar
dessas rígidas normas de conduta, uma diversidade de relações, uniões e
organizações familiares que se acomodaram ao cotidiano colonial.
O mais famoso poeta da colônia portuguesa na América, Gregório de
Matos, incorporou, em seus versos, este sentimento dúbio em relação às mulatas,
veiculando ainda uma crítica à estrutura da sociedade colonial baiana. A falsa
exaltação à mulata resume-se a um só aspecto, o sexual. A mulata de Matos é a
mesma daquele ditado, anteriormente citado, que atribuía as funções das mulheres
conforme sua cor: a mulata para a cama.
O preconceito direcionado a negras e mulatas na sua poesia dita burlesca
foi recentemente dissecado pela fina análise de Alfredo Bosi em Dialética da
Colonização. Não são necessárias maiores análises para perceber nos versos
cáusticos de Gregório de Matos um preconceito latente contra os mulatos, que,
naquela altura, faziam-se bem presentes em sua cidade. Na “triste Bahia” de
Matos, reinava o caos e a desordem; quase todos furtavam, havia “muitos mulatos
desavergonhados” e seu povo era uma “canalha infernal”.
Mas o preconceito de Gregório de Matos não diz respeito apenas à questão
da cor. Alfredo Bosi chamou a atenção para um preconceito decorrente da própria
visão de mundo do poeta baiano, oriundo de uma concepção de sociedade
estamental própria do Antigo Regime, a qual nos trópicos parecia perder o seu
sentido. Já falamos sobre esta concepção, que entedia a sociedade dividida em
ordens ou estamentos, rigidamente hierarquizados e organizados de acordo com
57 - Além do já citado O Avesso da Memória, outro importante estudo de Luciano Figueiredo é Barrocas Famílias. São Paulo, Hucitec, 1997. Mary del Priori é referência nos estudos sobre a mulher: A Mulher na História do Brasil. São Paulo, Contexto, 1989; Ao Sul do Corpo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993; História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 1997.
203
suas funções: nobreza, igreja, tribunais, armas. Grosso modo, nesse tipo de
formação histórica, vigorava os direitos de sangue e do nome, importava a honra e
gozava-se de privilégios.
A vida na colônia parecia dissolver essa organização, misturando as
camadas que deveriam compor a estrutura social. E para Gregório de Matos isso
era o fim. As suas críticas não se cansam de aludir à desorganização social e à
elasticidade dos estatutos de nome e sangue. Para Matos, no Brasil, os fidalgos da
terra não partilhavam do ideal de pureza de sangue, pois eram mestiços58 de
índios, netos de Caramuru. Vários versos demonstraram a insatisfação com a
estrutura local:
Não sei para que é nascer neste Brasil empestado um homem branco e honrado sem outra raça.
Terra tão grosseira e crassa que a ninguém se tem respeito salvo quem mostre algum jeito de ser mulato.
Aqui o cão arranha o gato não por ser mais valentão mas porque sempre a um cão outros acodem.
Para Bosi, a forma como o negro e o mulato aparecem inseridos na poética
de Gregório de Matos constitui uma questão delicada. O preconceito “dobra-se e
complica-se porque desce ao subterrâneo de uma prática erótica onde geram,
íntima e simultaneamente, a atração física, a repulsa e o sadismo”. Ao comparar
os versos dedicados às mulheres brancas com aqueles referentes às mulheres
negras e mulatas, destacou a presença de figuras contrárias e extremas. No
primeiro caso, as donas Angela, Teresa, Vitória e Maria povoam uma lírica
amorosa que contrasta com os versos obscenos e de linguagem chula daqueles
dedicados às Babus e demais codinomes de negras e mulatas. Para essas, foram
dedicados versos em que não se consegue ver os rostos de mulher, mas tão só
exibições escatológicas das partes genitais e anais.
58 - No poema em que se despede da cidade da Bahia, quando foi degredado para Angola: “No Brasil, a Fidalguia / no bom sangue nunca está; / nem no bom procedimento: / pois logo em quê pode estar?”.
204
A conclusão de Bosi não deixa espaço para qualquer ilusão de uma
suposta exaltação da mulata: “Há, portanto, uma desclassificação objetiva da
mulher que nunca se tomaria por esposa, situação que a cor negra potencia, e a
qual corresponde a uma violência ímpar de tom, de léxico, em suma, de estilo”. 59
A vida na colônia ao longo dos anos cristalizou, portanto, uma imagem
negativa de mulatas e mulatos. A mulata como fonte de perdição de homens puros
(sem mistura) e bons (de condição superior); o mulato como uma pessoa de
qualidades ambíguas, pronta a trocar de lado, traiçoeiro e desordeiro. Por ocasião
da conquista holandesa de Pernambuco, solidificou-se a idéia de que os mestiços
eram potenciais traidores. O Frei Manoel Calado, ao narrar a invasão, contou que
os holandeses não encontraram resistência quando desembarcaram na praia de Pau
Amarelo. Tal investida teria sido facilitada pela ajuda de dois mulatos, enviados
por certos cristãos-novos, que lhes serviram de guia. A conjunção dos dois
elementos de sangue dito impuro ou de raça “infecta” emprestavam à situação um
peso ainda maior.60 Mas todos sabemos que foi nessa história que surgiu o mais
famoso traidor da colônia portuguesa, o mulato Domingos Fernandes Calabar. No
entanto, nas crônicas do Frei Calado, Calabar aparecia descrito como um
mameluco:
“Neste tempo se meteu com os Flamengos um mancebo mameluco, mui esforçado e atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre eles, aprendeu a língua flamenga, e travou grande amizade com Sigsmundo Vandscope, Governador de Guerra, ao qual tomou por compadre de um filho que lhe nasceu de uma mameluca, chamada Bárbara”.61
Seria Calabar um mameluco ou teria sido engano ou ato falho de Calado,
que colocava em um mesmo balaio mulatos e mamelucos, ambos mestiços? O que
dizem outros relatos? Em 1657, Francisco Brito Freire publicava a História da
Guerra Brasílica, em que incluía sua versão da invasão holandesa. Na pena de
Brito Freire, Calabar já aparecia como um mulato causador de grandes danos,
descrito como “manhoso, atrevido e tão prático dos lugares da terra e dos portos
59 - Op. Cit. p.109. 60 - Inúmeros estudos demonstraram como os judeus serviram de bode expiatório em situações críticas. No Brasil, a variedade de elementos para exercer o mesmo papel acabava por promover conjunções iguais à de Frei Manoel Calado. 61 - CALADO, Manuel. O Valeroso Lucidemo. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987. Vol.1. p.54.
205
do mar”.62 Um século mais tarde, em 1757, o frade franciscano Domingos Loreto
Couto concluía Desagravos do Brasil e Glória de Pernambuco, procurando
preservar a história de sua capitania e dos feitos de seus conterrâneos. Ao tratar da
reconquista pelos portugueses, Calabar foi assim descrito:
“Entre tantos milhares de naturais de Pernambuco, que fiéis, leais, constantes e valorosos concluíram a grande empresa da gloriosa restauração de sua Pátria; ouve um/ não o negamos/ que, com deliberação violenta e atrevida rebeldia, seguiu o partido inimigo, e foi vil instrumento de muitas praças. Chamava-se Domingos Fernandes Calabar, mulato manhoso, atrevido e prático dos lugares da terra e portos do mar. Com boa opinião e algumas feridas, havia dois anos servido nesta guerra, e pouco satisfeito da sua fortuna, buscou ambicioso e soberbo entre os holandeses no prêmio da traição, o aumento que impedia entre os nossos a vileza do nascimento, para com os danos públicos abrir caminhos para os seus interesses particulares”.63
Os adjetivos empregados por Loreto Couto para qualificar Calabar são
praticamente iguais aos de Brito Freire: manhoso, atrevido, soberbo -
características freqüentes que os cronistas utilizavam para caracterizar os mulatos.
Mas, afinal, qual a origem de Calabar? Evaldo Cabral de Mello já havia notado
que os cronistas tratavam o mestiço ora como mulato, ora como mameluco. Teria
sido Loreto Couto o responsável pela fixação de Calabar como mulato.
Esse capítulo da história pernambucana embaraça origens e seleciona
personagens de forma bastante curiosa. O livro do Frei Manuel Calado ajudou a
divulgar os feitos de uma outra figura desta mesma história, “o valeroso
lucideno”, João Fernandes Vieira. Hoje, sabe-se que Vieira era mulato, o que não
consta do livro de Calado. Sabe-se também que O Valeroso Lucideno teria sido
uma encomenda do próprio João Fernandes ao referido Frei. Nascido na Ilha da
Madeira, esse mulato de origem humilde construiu carreira e fortuna.64
Os processos de embranquecimento eram um recurso bastante utilizado
por pessoas de origem humilde que se firmavam em uma condição melhor. João
Fernandes era normalmente apresentado como um reinol, o que abre uma outra
62 - FREIRE, Francisco Brito. História da Guerra Brasílica. p.155 63 - COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife, Fund. Cultura da Cidade de Recife, 1981. Livro segundo, cap. 13. p. 134. 64 - Vieira é um personagem contravertido. Veio para o Brasil nos primeiros anos do século XVII. Na época da invasão holandesa, teria enriquecido em função da colaboração com os inimigos, tornando-se um grande proprietário de terras e engenhos (quando morreu, possuía dezesseis engenhos e vários currais de gado). Foi governador da Paraíba e depois de Angola. Para maiores detalhes sobre sua vida, conferir MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.
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possibilidade para explicar o Calabar mameluco de Calado. Em Pernambuco,
todos sabiam quem era quem, mas fixar o estatuto em texto era outra história65.
Isto é, era preferível alterar uma origem e não mencionar a outra. A traição do
mulato Calabar diminuiria os feitos do outro mulato? De qualquer forma, o tempo
se encarregaria de alterar os fatos.
Evaldo Cabral de Mello tem ajudado a desembaraçar essa história,
desfazendo alguns mitos em torno de nomes, sangues e origens. Ao analisar o
processo de sacralização de uma tetrarquia66 de heróis das guerras holandesas e de
chefes militares da restauração pernambucana pelo imaginário nativista, Cabral de
Mello percebeu que, a respeito de Vieira, não se soube ou não se quis entronizar
um herói mestiço no panteão restaurador. Esse historiador lembrou ainda que um
herói negro - como Henrique Dias - ou índio - como Felipe Camarão - davam a
consciência aos grupos que etnicamente pertenciam. Esses dois heróis
reproduziriam a estrutura da sociedade escravocrata e suas relações de classe. Um
herói mestiço, um desclassificado, seria algo bem distinto, capaz de servir de
símbolo a estratos sociais demograficamente ponderáveis, com a desvantagem de
viverem à margem da ordem escravista, podendo até agir como uma força
desagregadora.67
A temática da traição teria contribuído para a fixação da origem de
Calabar. Se houvesse sido leal ao rei, mereceria recompensas, como diriam as
crônicas, que utilizavam o exemplo de Henrique Dias - o qual embranquecera pela
dedicação à boa causa -, recorrendo ao jogo retórico de contrastar o escuro de sua
tez com a alvura de suas ações. Calabar, ao contrário, “enegrecera-se pela
deslealdade”.68 Quem nunca ouviu esse tipo de comentário ou algum outro
similar, como “o negro de alma branca”?
65 - Os processos de fraude genealógica foram freqüentes na Colônia. Em O Nome e o Sangue, Evaldo Cabral analisou um desses casos ocorridos em Pernambuco, onde o senhor de engenho Filipe Pais Barreto procurou mascarar suas origens de cristão-novo para receber o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Recentemente, Júnia Furtado analisou outro processo de habilitação à Ordem de Cristo, que envolvia Simão Pires Sardinha, filho mais velho de Chica da Silva. Nesse caso, o obstáculo era quase intransponível. Simão reunia todos os “defeitos” passíveis de dispensa: tinha ascendência escrava, era filho ilegítimo e mulato. Cf. Chica da Silva e o Contratador de Diamantes. O Outro Lado do Mito. São Paulo, Cia. das Letras, 2003. 66 - As quatro pessoas escolhidas para figurarem como os heróis foram: o reinol João Fernandes Vieira, o mazombo André Vidal Negreiros, o índio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias. Cf. Rubro Veio. (Em especial o capítulo 5). 67 - Idem. p.224. 68 - Idem. p.225.
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Quanto à traição de Calabar, não é mais novidade que os holandeses
puderam contar com a colaboração de muita gente além dele; inclusive gente
graúda da terra, como senhores de engenho. Mas foi a traição do nosso mulato que
ficou famosa, divulgada durante muitos anos como a responsável pela vitória
holandesa. Em Olinda Restaurada, Evaldo Cabral de Mello diluiu esse mito do
grande estrategista causador da derrota portuguesa. Os índios potiguares, aliados
aos holandeses, foram imprescindíveis para a entrada dos estrangeiros no
território. Já a colaboração de Calabar teria sido muito mais destacada pelas fontes
portuguesas que valorizada pelos próprios holandeses, para quem teria sido apenas
um bom guia na terra. Para Cabral de Mello, o julgamento mais equilibrado a
respeito da traição de Calabar é aquele que o entende apenas como um mestiço
pobre que, vivendo em uma sociedade escravocrata, vislumbrou uma
possibilidade de “melhorar de fortuna”.69
Segundo Evaldo Cabral, cristãos-novos, negros, escravos, índios tapuias
ou mestiços que viviam à sombra dos engenhos e das fazendas foram acusados,
em algum momento, de colaboracionistas.70 Essa desconfiança permanente
marcava a vida da colônia e, principalmente, daquelas pessoas, alvos de todas as
recriminações.
Em suas pesquisas nas documentações oficiais da administração colonial,
Russel-Wood percebeu que os mulatos forros eram qualificados a partir de uma
“litania de expressões derrogatórias”, vistos com freqüência como “inimigos
internos” e “símbolos de desaforo”. Segundo Wood, essas caracterizações se
referiam, sobretudo, à “suposta anarquia das pessoas de cor”.71
Embora o mulato tenha sofrido toda espécie de discriminação e
preconceito, a historiografia tem sido unânime em apontar as possibilidades de
ascensão do mulato na escala social, o que caracterizaria uma certa mobilidade e
um amolecimento das estruturas. É certo que os mulatos tiveram chances bem
maiores que os negros, mesmo porque muitos devem ter ganhado suas alforrias
69 - Op. Cit. p.402. 70 - MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1975. p. 180; e Rubro Veio. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997. p. 269. 71 - Cf. “Autoridades Ambivalentes: o Estado do Brasil e a contribuição africana para a boa ordem na república”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil. Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. p.107.
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diretamente dos pais, fruto daquela condescendência paterna tão repreendida pelo
padre Andreoni, o Antonil.
Stuart Schwartz, em seu conhecido trabalho sobre engenhos e escravos na
Bahia, chamou a atenção para a preferência por mulatos e, em menor grau,
crioulos, para os serviços domésticos, artesanais ou especializados na produção de
açúcar. Para esse autor, o favoritismo baseava-se em uma combinação de fatores,
entre os quais as ligações pessoais e viés cultural. Ao analisar dados referentes às
alforrias naquela capitania, Schwartz destacou o elevado índice em favor dos
mulatos, que receberam 45% das cartas de alforrias concedidas entre 1648 e 1745,
embora constituíssem menos de 10% dos escravos na Bahia.72
De fato, não é raro encontrar, na documentação contemporânea,
referências a mulatos em posições por princípio negadas pelos próprios estatutos
jurídicos e sociais daquele momento, que recusavam pessoas de “condição
inferior”.
Russel-Wood dedicou um ensaiou à comprovação de que, apesar de todas
as normas e estatutos contrários à participação de pessoas de origem africana em
cargos civis e eclesiásticos, um número significativo de mulatos exerceu funções
de interesse público e de manutenção da ordem. Os casos estudados ocorreram em
Minas Gerais e São Paulo no século XVIII. Homens de origem africana ocuparam
cargos de juízes ordinários e de vintena, apesar das leis e das reclamações. Para
Wood, estas nomeações deveriam acontecer com uma freqüência regular, uma vez
que eram realizadas em localidades distantes da sede do governo da Coroa e até
mesmo da Câmara mais próxima.73
As nomeações de negros forros e mulatos para o cargo de juiz de vintena
decididas pelo Senado da Câmara de Vila Rica, destacadas por Wood, são
especialmente representativas. A seleção para o cargo era rigorosa, precedida de
dois exames de qualificação. Em vários casos, os vereadores decidiram a favor
das nomeações, afirmando a convicção coletiva de que a aplicação da lei dependia
de uma capacidade provada e não de um acaso de nascimento. Tal decisão
contestava noções estruturais do próprio estado português e era, sobretudo,
contrária às leis do reino. O historiador inglês salientou a ação deliberada e
72 - Segredos Internos. São Paulo, Cia. das Letras, 1995. p. 274-275. 73 - Para as paróquias distantes mais de uma légua dos Senados das Câmaras, devia ser nomeado um juiz da vintena, escolhido entre “os homens bons”.
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consciente daqueles vereadores ao nomear mulatos e negros para os referidos
cargos, em desobediência às ordens régias.
O desajuste entre lei e realidade criava uma série de oportunidades para
uma desobediência civil, para a desordem. Casamentos interditados a pessoas de
condições desiguais, proibições de nomeações de indivíduos por causa de cor de
pele eram normas complicadas de serem mantidas em uma população
predominantemente mestiça.
Nesse mesmo texto, Wood explora ainda a participação de mulatos e
negros no posto de capitães-do-mato, responsáveis pela vigilância regional, e
como membros das Companhias de Milícias74, desempenhando um importante
papel na aplicação da lei e na manutenção da ordem na colônia. A existência de
negros e mulatos ocupando postos que, por princípio, não poderiam alcançar,
demonstra uma certa mobilidade social e mesmo financeira. Contudo, de acordo
com Wood, percepções e atitudes estereotipadas em relação aos indivíduos de
origem africana não desapareceram. Esses fatos demonstram um reconhecimento
por parte das autoridades metropolitanas e coloniais da indispensável contribuição
da gente de cor para a defesa da Colônia contra os inimigos externos e para a
preservação da “boa ordem na República”.75
74 - A milícias ocupavam-se de uma série de atividade militares: escolta do ouro, patrulha nas estradas, proteção dos coletores de ouro, supressão das revoltas no sertão, entre outras, sem contar a participação na defesa do território por agentes estrangeiros. Desde a invasão Holandesa, a participação de negros e mulatos já havia dado provas de sua lealdade e eficiência, contribuindo decisivamente na batalha de Guararapes. 75 - Convém lembrar que Russel-Wood emprega a expressão “boa ordem” com ironia, uma vez que a referência foi utilizada pelo Conde de Assumar, em 1719, ao alegar os motivos que o levou a suspender as concessões de cartas de alforria aos escravos de Minas Gerais: “o maior inconveniente de todos que é povoar este país de negros forros que como brutos não conservam a boa ordem na república”. Cf. Op. Cit. p. 107.