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154 5 Da Criação à Nova Criação – Uma Unidade Fundamental Introdução Na perspectiva da teologia, a natureza é entendida como “criação” 390 . Em consonância com o pensamento ecológico, cujas principais características apresentamos no capítulo terceiro, o ser humano está unido a todas as outras criaturas com quem tem uma origem comum, isto é, na ação criadora de Deus. Vindo do pó da terra, húmus, símbolo das partículas primitivas que deram início à formação do cosmos, o ser humano e as demais criaturas são companheiros de igual aventura, participando de uma mesma jornada rumo à comunhão definitiva com o Criador. O curioso é que a doutrina cristã da criação, como vimos, foi acusada de favorecer o rompimento dessa relação harmoniosa (natureza-ser humano) ao promover a dessacralização do mundo e colocar o ser humano numa posição destacada e acima da natureza. Por outro lado, a ideia de uma história linear, na qual a ação salvífica divina não se situa em íntima relação com o projeto criador, traz sérios obstáculos para conciliar a fé na criação com a sensibilidade ecológica 391 . Temos aqui, portanto, duas dificuldades com que se depara a teologia da criação frente à problemática ambiental: 1) a fé cristã na criação, fundamentada pelas Escrituras, pode ser responsabilizada pelo domínio espoliativo do ser humano sobre a natureza? 2) uma consideração unilateral da soteriologia, desvinculada da atuação criadora de Deus, não levaria a uma ideia redutora da salvação cristã como se esta nada tivesse a ver com o mundo não humano? Neste capítulo, tentaremos mostrar como a doutrina da criação tem respondido a estes questionamentos. Como pano de fundo, veremos que o 390 MOLTMANN, J. Deus na criação, op. cit., p. 65-67. 391 Segundo J.R. de la Peña, a teologia cristã da criação é acusada de apresentar quatro ideias determinantes para a crise ambiental: 1) ideia de Deus: onipotente cujo domínio despótico pode ser transferido do plano teológico ao político; 2) ideia de homem: “imagem de Deus” que legitima um antropocentrismo e o consequente domínio sobre a natureza; 3) ideia de natureza: dessacralizada e desvalorizada; 4) ideia de história: linear, inicia-se no contexto da história da salvação até culminar, mais tarde, no secular progresso científico. Cf. DE LA PEÑA, J. R. Crisis y Apología de la Fe, op. cit., p. 249.

5 Da Criação à Nova Criação – Uma Unidade Fundamental · Na perspectiva da teologia, a natureza é entendida como “criação ... uma unidade fundamental, que não admite

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Da Criação à Nova Criação – Uma Unidade Fundamental

Introdução

Na perspectiva da teologia, a natureza é entendida como “criação”390. Em

consonância com o pensamento ecológico, cujas principais características

apresentamos no capítulo terceiro, o ser humano está unido a todas as outras

criaturas com quem tem uma origem comum, isto é, na ação criadora de Deus.

Vindo do pó da terra, húmus, símbolo das partículas primitivas que deram início à

formação do cosmos, o ser humano e as demais criaturas são companheiros de

igual aventura, participando de uma mesma jornada rumo à comunhão definitiva

com o Criador.

O curioso é que a doutrina cristã da criação, como vimos, foi acusada de

favorecer o rompimento dessa relação harmoniosa (natureza-ser humano) ao

promover a dessacralização do mundo e colocar o ser humano numa posição

destacada e acima da natureza. Por outro lado, a ideia de uma história linear, na

qual a ação salvífica divina não se situa em íntima relação com o projeto criador,

traz sérios obstáculos para conciliar a fé na criação com a sensibilidade

ecológica391. Temos aqui, portanto, duas dificuldades com que se depara a

teologia da criação frente à problemática ambiental: 1) a fé cristã na criação,

fundamentada pelas Escrituras, pode ser responsabilizada pelo domínio

espoliativo do ser humano sobre a natureza? 2) uma consideração unilateral da

soteriologia, desvinculada da atuação criadora de Deus, não levaria a uma ideia

redutora da salvação cristã como se esta nada tivesse a ver com o mundo não

humano?

Neste capítulo, tentaremos mostrar como a doutrina da criação tem

respondido a estes questionamentos. Como pano de fundo, veremos que o

390 MOLTMANN, J. Deus na criação, op. cit., p. 65-67. 391 Segundo J.R. de la Peña, a teologia cristã da criação é acusada de apresentar quatro ideias determinantes para a crise ambiental: 1) ideia de Deus: onipotente cujo domínio despótico pode ser transferido do plano teológico ao político; 2) ideia de homem: “imagem de Deus” que legitima um antropocentrismo e o consequente domínio sobre a natureza; 3) ideia de natureza: dessacralizada e desvalorizada; 4) ideia de história: linear, inicia-se no contexto da história da salvação até culminar, mais tarde, no secular progresso científico. Cf. DE LA PEÑA, J. R. Crisis y Apología de

la Fe, op. cit., p. 249.

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conceito de criação, tal como se revelou na fé bíblico-cristã, é atravessado por

uma unidade fundamental, que não admite justaposições dicotômicas do tipo

criação-salvação, protologia-escatologia. Abordaremos, depois, tópicos mais

específicos como a Trindade, a mediação cristológica na criação-redenção,

incluindo a função salvífica de Cristo numa criação marcada pela realidade do

mal. Seguindo a perspectiva relacional e integradora aberta pelos itens anteriores,

procuramos ver em que sentido o ser humano tem um lugar diferenciado e uma

função específica em meio às criaturas. Concluiremos o capítulo ressaltando o

valor do Sábado como o ponto culminante da criação e o sentido que nos oferece

na salvaguarda do mundo criado.

5.1

Duas tradições hermenêuticas

Sendo a natureza compreendida como “criação”, isto é, como finitude e

contingência392, todas as criaturas são radicalmente distintas do Criador. Só Deus

é Deus. Embora sendo a única espécie criada à semelhança divina, o ser humano

também é chamado a aceitar os seus limites. Essa comum dependência em relação

ao Deus Criador é fundamental para entendermos a relação do ser humano com as

outras criaturas. Assim como é distinto de Deus, o ser humano também é diferente

das outras criaturas e de toda a natureza. Essa distinção não impede, porém, que o

ser humano esteja aberto a relacionamentos fraternos com os seus semelhantes e

com o mundo natural. Pelo contrário, “a aceitação da diferença e do próprio limite

é imprescindível para o estabelecimento de relações fecundas e não

dominadoras”393. Destacado da natureza por sua singularidade dentro da criação, o

ser humano está vitalmente relacionado com ela. Esses dois aspectos devem estar

articulados de tal modo que, no conjunto da criação, o ser humano

“... deve-se reconhecer criatura, vivendo uma experiência de comunhão profunda com os outros seres criados e, ao mesmo tempo, deve assumir que, como imagem de Deus, é diferente das outras criaturas, sendo chamado a assumir o cuidado

392 SUSIN, L. C. A criação de Deus, op. cit., p. 15. 393 RUBIO, A.G. Crise Ambiental e Projeto Bíblico de Humanização Integral. In: VV.AA. Reflexão Cristã Sobre o Meio Ambiente, São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 13.

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responsável por elas. Em certo sentido, é tão criatura quanto qualquer outra. Em outro sentido, é diferente de todas elas”394.

No caso da doutrina da criação, criticada por favorecer um desmedido

antropocentrismo, especialmente com o mandato genesíaco de dominar a terra

(Gn 1, 28), é importante ter presente essa articulação, de modo a evitar desvios e

mal entendidos que justifiquem, em nome do criador, uma relação arrogante e

dominadora sobre a natureza. Para tanto, importa notar – como já vimos

anteriormente no item sobre os textos bíblicos da criação - que, no conjunto do

Antigo Testamento, há duas tradições interpretativas as quais, por serem distintas

no modo de acentuar a participação do ser humano no mundo criado, precisam ser

integradas, articuladas e corrigidas mutuamente mediante uma dinâmica de

integração-inclusão395.

Segundo A. G. Rubio, apoiado nos estudos de J. Buchanan, a tradição

hermenêutica “proclamativa” é identificada como aquela que coloca a história da

salvação como o centro do Antigo Testamento, isto é, a criação vem em segundo

plano, ela está subordinada e incorporada à história salvífica. Privilegiando a

palavra – palavra de tradição e palavra profética – esta linha de interpretação, que

coloca o ser humano numa posição toda especial na natureza, vê a criação como

parte de uma fé cuja meta é a salvação. Como diz J. Buchanan, “a ênfase na

palavra, a visão linear como uma história de eventos e a visão superior do homem

– tudo isso faz com que o centro da narrativa se desloque dum interesse pelo

cosmos sagrado para um interesse pela salvação da humanidade”396. Considerando

o contexto teocêntrico da criação, que apresenta tanto o ser humano quanto a

natureza como criaturas, não se pode tirar da linha hermenêutica proclamativa

uma autorização para que o ser humano exerça um domínio abusivo e destruidor

sobre a natureza. Contudo, fora do contexto, a tradição proclamativa pode ser

facilmente deturpada e entendida como justificativa para um arrogante

antropocentrismo, tal como o que está na base da moderna civilização industrial

com seus efeitos desastrosos para o meio ambiente397.

394 Ibid., p. 15. 395 Ibid., p. 14; Ibid. Unidade na Pluralidade, p. 546-547. 396 BUCHANAN, J. Criação e Cosmos: a simbólica da proclamação e da participação. Concilium, 186 (1983), p. 55. 397 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, p. 546.

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A segunda linha hermenêutica, chamada de tradição manifestativa, ao

contrário da anterior, coloca em primeiro plano o interesse pelo cosmos e a

participação do ser humano no mundo da natureza. A salvação humana não está

desvinculada da renovação do cosmos, pois “a salvação do homem é a salvação

do cosmos inteiro e, por conseguinte, do homem como participante desse

cosmos”398. A humanidade está intimamente unida ao mundo natural. Textos que

refletem essa linha hermenêutica podem ser encontrados na literatura Sapiencial,

conforme vimos anteriormente, e também na Apocalíptica. Vale salientar que, por

causa da influência destes dois tipos de literatura nos escritos do Novo

Testamento, o cosmos ocupa aí um lugar mais destacado do que nos escritos

veterotestamentários, de modo que fica evidente a inclusão do mundo natural no

processo histórico-salvífico do ser humano, tal como ensina o conhecido texto

Paulino (Rm 8, 19-23)399.

A presença da linha hermenêutica manifestativa, com sua ênfase

cosmocêntrica, ajuda a manter o equilíbrio da relação ser humano-natureza, que

pode ser quebrado pelo acentuado antropocentrismo da tradição proclamativa.

Como bem observa A. G. Rubio, “na articulação, não sem tensões, destas duas

tradições é que o ser humano vai encontrando seu lugar no conjunto da criação:

nem antropocentrismo arrogante nem cosmocentrismo negador do

especificamente humano”400.

5.1.1

Superando a falsa dicotomia: da criação à Nova Criação

Relacionada com a questão anterior está a dificuldade que surge ao se fazer

a separação entre a teologia da criação e a teologia da redenção, resultando no

esquecimento do valor intrínseco da natureza, como se a presença atuante do Deus

da vida se restringisse apenas aos seres humanos. Muito contribuiu para essa

dicotomia a distinção que a teologia escolástica fez entre o “Deus uno”, a quem

era devido a criação, e o “Deus trino”, que realiza a obra salvífica, de modo que a

398 BUCHANAN, J. Ibid., p. 58. 399 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, p. 547. 400 RUBIO, A. G. Crise Ambiental e Projeto Bíblico, op. cit., p. 15

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missão redentora de Cristo estava ligada à salvação do pecado e não com a

criação401. A acentuada ênfase na salvação humana, desvinculada ou sem dar o

devido peso ao significado do restante da criação, recebeu maior impulso com os

estudos exegéticos de Von Rad sobre o Antigo Testamento402 e com a tese de Karl

Barth de que a aliança histórica é “fundamento interior da criação”403.

Ora, essa consideração unilateral da dimensão salvífica é indevida e

redutora. Ela não corresponde nem contempla toda a riqueza da teologia

veterotestamentária cuja soteriologia já apresenta uma forte unidade entre a

dimensão antropológica e a cosmológica. Já vimos que no Antigo Testamento há

duas tradições hermenêuticas – a “proclamativa” e a “manifestativa” - que se

completam e se corrigem mutuamente; trabalhos exegéticos mais recentes e

sensíveis à problemática ecológica mostram uma fundamental continuidade entre

a ação divina na criação e a perspectiva cósmica dos feitos histórico-salvíficos404.

A criação é o lugar da salvação, não apenas um pano de fundo ou um cenário para

esta405. Portanto, a relação Deus-ser humano-cosmo, que se desenvolve ao longo

da história do povo de Israel, revela uma unidade fundamental entre criação e

salvação. Como observa França Miranda,

“A ação criadora de Deus vem expressa pelo verbo bara, reservado exclusivamente a Deus, e que se aplica tanto a realizações cósmicas (Is 42,5), como a feitos histórico-salvíficos (Is 43,1)... A criação tem uma clara dimensão salvífica (Is 45,8). A ação criadora de Deus se estende da protologia à escatologia”406.

Autores como J. Moltmann chamam atenção para a linha de continuidade

entre protologia e escatologia, já presente na compreensão veterotestamentária da

criação e que, na perspectiva cristã, recebe uma amplitude ainda maior com o

evento Cristo e a dimensão escatológica do Reino407. A ação criadora de Deus – a

Criação – é um processo interligado entre si que abrange não só a criação no

princípio, como também a criação que vai acontecendo no desenrolar da história.

Esta se orienta e se desenvolve até a criação perfeita ou escatológica – a Nova

401 JUNGES, J.R. Ecologia e Criação, op. cit., p. 35-36. 402 SUSIN, A Criação de Deus, op. cit., p. 33. 403 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 92. 404 Sobre a continuidade da dimensão cósmica na criação e no Êxodo, cf. FRETHEIM, T. E. Exodus: Interpretation. A Bible Commentary for Teaching and Preaching. Louisville, Ky.: John Knox Press, 1991, p. 12-14. 405 McFAGUE, Sallie. The Body of God. Minneapolis: Ausburg Fortpress Press, 1993, p. 180-182. 406 FRANÇA MIRANDA, M. “Para uma teologia do imperativo ecológico”. Atualidade Teológica, 16 (2004), p. 50. 407 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 90-93.

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Criação - que dá o sentido último e para a qual converge o processo criativo. Nas

palavras de Karl Rahner: “Devemos pensar a criação e a encarnação como dois

momentos ou duas fases de um único evento – ainda que intrinsecamente

diferenciado - da autoalienação e automanifestação de Deus”408.

Todo o processo criativo é puro dom, graça e fruto do amor gratuito e

abundante do Criador. A criação original, que dá início ao processo criativo e abre

o horizonte da história, já indica o rumo de significação e de destinação para todas

as criaturas desde a sua origem. O processo criacional segue seu percurso nas

estradas da história onde as criaturas humanas são chamadas a ser companheiras

de Deus no trabalho criador. Tem-se aqui a dimensão ética da criação: o ser

humano é chamado à responsabilidade, a agir de maneira sensata e a trabalhar

para que o projeto da criação siga o seu rumo, tenha continuidade como uma

“criação aberta” onde o ser humano encontra espaço para um protagonismo

dinâmico e ativo, tornando-se cocriador. Nessa abertura para o horizonte último, a

história segue em frente, impulsionada e iluminada, já no tempo presente, pela

glória da Nova Criação realizada no acontecimento pascal de Cristo. Nas palavras

de Susin, “o segredo da origem está no fim último... A intenção de toda a criação

se manifestará plenamente no final, mas está atuante desde o início”409.

Essa linha de continuidade entre protologia e escatologia é fundamental para

uma adequada teologia cristã da criação. A criação escatológica é o ponto

decisivo, é a causa principal do ato originário da criação e do seu acontecimento

como história. A perspectiva escatológica da Nova Criação faz surgir uma

esperançosa confiança no Criador que é fiel ao cumprimento de suas promessas e

na realização de um futuro definitivo. É na ressurreição de Cristo que a fé cristã

vê, de forma antecipada, a futura completude não somente da espécie humana,

mas de todo o universo. Segundo Wolfhart Pannemberg, somente na perspectiva

da criação escatológica podemos olhar a criação como um todo e compreendê-la

como participação na glória do seu Criador. Assim como o povo israelita se

compreendeu dentro da unidade criação-salvação, através da presença atuante de

Deus em sua história, a fé cristã também concebe essa unidade a partir do evento

408 RAHNER, K. Curso Fundamental da Fé. Introdução ao Conceito de Cristianismo. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989, p. 237. 409 SUSIN, L. C. A Criação de Deus, op. cit., p. 35.

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Cristo. Com a encarnação do Verbo, o fim da história já pode ser vislumbrado e a

perfeição da nova criação já se tornou uma realidade410.

A perspectiva da Nova Criação, portanto, nos move em direção ao futuro e,

ao mesmo tempo, nos convida a olhar para a realidade presente onde a vida

humana e toda a comunidade da criação merecem ser cuidadas e preservadas.

Dotado de estruturas de capacidade, recebidas na sua origem, o mundo criado está

se fazendo e, enquanto não chega ao completo desabrochamento, vamos atuando

para ampliar as capacidades recebidas. É uma perspectiva de otimismo, assumida

na convicção de fé de que a obra inicial do Criador (criação original) continua em

nossos dias (criação histórica) e será levada à completa realização no futuro

(criação escatológica). É uma perspectiva de compromisso com o cuidado com a

natureza, com o aperfeiçoamento do mundo criado e, sobretudo, compromisso de

colaboração generosa com o Criador que continua criando “os céus e terra”. O

olhar escatológico para a Nova Criação é, desse modo, para a teologia cristã que

se depara com a crise ecológica, uma fonte de esperança411.

É importante frisar que, no horizonte escatológico da Nova Criação, o

mundo novo que se configura com o evento Cristo abrange não somente o ser

humano, mas também todas as criaturas e o universo inteiro, uma vez que a

ressurreição de Cristo tem um alcance universal e cósmico. Isso fica evidente na

teologia da criação de Paulo, quando ele proclama a nova criação que desponta da

cruz de Cristo (Gl 6,14s). Nas palavras de França Miranda,

“A expressão nova criação, anterior a Paulo e por ele assumida, afirma uma viva esperança na ação de Deus, histórica, mas sobretudo escatológica, criadora de uma nova realidade (Is 43,18s e Is 65,17-18-a). No texto, a cruz de Cristo aparece como um evento escatológico e cósmico, que suprime o mundo existente dos circuncisos e incircuncisos e dá lugar a uma nova criação, de cunho cosmológico, realidade já presente. Aqui aparece o ser humano estreitamente vinculado com o mundo”412.

A ação redentora de Deus, através de Jesus Cristo, o Verbo encarnado na

criação, não se restringiu aos seres humanos, mas está dirigida a todo o mundo

criado. O Cristo se torna a forma acabada da criação. A sua Páscoa libertadora

410 PANNEMBERG, W. Toward a Theology of Nature, Louisville, Westminster: John Knox Press, 1993, p. 86. A visão escatológica de Pannemberg e sua interpretação da ressurreição como a revelação na história do “poder do futuro” apresenta uma base bastante segura para uma teologia ecológica onde o projeto de Deus se revela na história e na natureza. Cf. Ibid. p. 50-122. 411 HAUGHT, J. F. Ecology and Eschatology. In: CHRISTIANSEN, D. and GRAZER, E. (eds), And God Saw That It was Good: Catholic Theology and The Environment. Washington, D. C.: United States Catholic Conference, 1996, p. 53. 412 FRANÇA MIRANDA, M., ibid., 51.

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tem, portanto, uma clara dimensão ecológica. É o que expressa com muita firmeza

o Papa João Paulo II:

“A Ressurreição de Jesus Cristo é o sim definitivo de Deus ao seu Filho, o sim definitivo de Deus a toda criação. Através da transfiguração do corpo ressuscitado de Cristo começa a transfiguração de toda criatura, a “nova criação” na qual toda a criação será transformada. Sim à vida, sim à esperança e ao futuro. Sim à humanidade, sim à criação e a toda natureza... Toda a natureza em nosso entorno é criação como nós, junto a nós, partilhando conosco o mesmo destino, isto é, encontrar em Deus o definitivo destino e plenitude, como o novo céu e a nova terra. Esta certeza, baseada em nossa fé, é para nós um grande estímulo para uma consciente responsabilidade, para uma verdadeira atitude de reverência à criação: à natureza inanimada, as plantas e aos animais e, acima de tudo, aos nossos companheiros homens e mulheres. Vivam conscientes dessa nova criação que tem seu começo na ressurreição de Cristo. Na solidariedade com todas as pessoas e criaturas vivam a vocação de todo o mundo criado à participação eterna na ressurreição e glória de Cristo”413.

A relação entre criação e ressurreição volta à reflexão de João Paulo II em

sua mensagem de Ano Novo de 1990, intitulada “A Paz com Deus criador, a paz

com toda a criação”414. O Papa acentua a imperiosa necessidade de se reconhecer

a natureza como criação de Deus, sendo ela, portanto, merecedora de respeito e

admiração. A atual devastação da natureza é um desrespeito e uma violação da

harmonia estabelecida pelo Criador. O documento pontifício ressalta que o

mistério pascal não aconteceu apenas em benefício da humanidade, mas para

restaurar “todas as coisas” seja no céu ou na terra415. É muito significativo o modo

como o Papa retoma a unidade entre as duas doutrinas centrais da tradição cristã –

a criação e a redenção – para, em torno dela, desenvolver a sua abordagem sobre a

crise ambiental.

Deus, que livremente cria e salva, o faz porque fundamentalmente é amor, é

um Deus “pessoal”. A Criação é uma autocomunicação de um Deus “que só pode

ser o Deus trinitário da revelação”416. Este dado teológico é de primordial

importância na compreensão cristã e ecológica da criação.

413 JOÃO PAULO II. Discurso aos jovens da Diocese de Osnabrück, Alemanha, em 31 de março de 1989. Cf. PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, From Stockholm to

Johannesburg: An Historical, Overview of the Concern of the Holy See for the Environment, 1972-2002. Vatican Press: 2002, p. 36. A tradução é nossa. 414 JOÃO PAULO II. “Peace with God the Creator, Peace with all of Creation”. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 114-123. 415 Ibid., O destaque nas palavras é do Papa. 416 J. Vives, citado por JUNGES, J. R. Ecologia e Criação,op. cit., p. 35.

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5.2

A Trindade na criação

A comunicação de Deus “para fora” de si na criação é possibilitada pela

autocomunicação divina que já acontece no interior da própria Trindade. A

criação é um dom pessoal e livre de Deus para participar de sua comunhão

trinitária, isto é, participação na comunhão de vida do Filho com o Pai através do

Espírito417. A Trindade é uma comunidade de Pessoas distintas, amorosamente

inter-relacionadas, em comunhão de ser, de bem e de vida, de modo que o

universo inteiro e cada criatura têm sua origem fontal nessa amorosa comunhão

trinitária. Como observa Catherine LaCugna, “toda a realidade, já que procede de

Deus, é pessoal e relacional”418. Toda a criação, portanto, uma vez que emana do

fecundo e inesgotável amor trinitário, é também intrínseca e vitalmente relacional.

Conceber a Trindade como Pessoas dinamicamente inter-relacionadas e em

amorosa comunhão significa estar em proximidade e em sintonia com o

pensamento ecológico que, priorizando a dimensão sistêmica ou relacional, vê

todos os seres como membros de uma comunidade biótica, interligados por uma

cadeia de conexões vitais419. Dentre os autores que têm se debruçado sobre esse

tema, merece menção o teólogo Denis Edwards cuja reflexão ecológica sobre a

Trindade, inspirada principalmente na categoria bíblica da Sabedoria, reúne

contribuições clássicas como a de São Boaventura e de estudiosos

contemporâneos como W. Pannemberg420.

Através da Sabedoria de Deus, Sophia, todas as coisas foram feitas e o

universo inteiro se mantém. Estando junto do Criador, ela participa do processo

criativo e da conservação do mundo. É o encanto do próprio Deus, maravilhando-

417 Ibid., p. 36. 418 LACUGNA, C. M. God for Us: The Trinity and Christian Life. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1991, 248. 419 Com muita lucidez observa Walter Kasper: “The development of the doctrine of the Trinity means a breaking out of an understanding of reality that is characterized by the primacy of subject and nature, and into an understanding of reality in which person and relation have priority. Here the ultimate reality is not the independent substance but the person, who is fully conceivable only in relationality of giving and receiving”. Cf. KASPER, W. The God of Jesus Christ, p. 310. Citado por EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom of God: An Ecological Theology. New York: Orbis Books, 1995, p.115. 420 Cf. EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom of God: An Ecological Theology. New York: Orbis Books, 1995, p. 90-130; Id., “The Ecological Significance of God Language” in Theological

Studies, n. 4 (1999), p. 708-722; Id, Ecology at the Heart of Faith: The change of Heart That

Leads a New Way of Living on Earth, New York: Orbis Books, 2006.

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se com o mundo criado e sentindo alegria pelas criaturas humanas (Pr 8,22-31).

Ela alcança o universo de um extremo ao outro e governa retamente todas as

coisas (Sab 8,1). Na plenitude dos tempos, fez morada entre nós (Pr 9,1; Jo 1,14).

Em Jesus de Nazaré, a Sabedoria que está no coração do universo se revela na

história e nos mostra a face do Deus Criador a quem invoca como seu Pai e,

através desse relacionamento filial, dá completo sentido à sua existência. Jesus

Cristo é a Sabedoria divina por quem todas as coisas foram criadas (Cl 1,16; Heb

1,2 Jo, 1,3). Ressuscitado, torna-se a promessa e o início da Nova Criação. Nele

todas as coisas são redimidas, reconciliadas e transformadas (Rm 8,21; Cl 1,20; Ef

1,20). Cada criatura, em Jesus Cristo, participa da finalidade criacional e salvífica

do Criador. A figura bíblica da Sabedoria, portanto, é central para uma teologia

cristã da criação e para uma compreensão ecológica da Trindade. Jesus, “por

quem tudo existe e por quem nós somos” (1Cor 8,5), é a Sabedoria divina da qual

surge a oikos, a morada de todas as criaturas421.

Ora, esse Jesus – Sabedoria encarnada – também é o Verbo, o Filho eterno,

distinto do Pai. Em Jesus de Nazaré, cuja existência humana revela uma relação

peculiar com Deus, encontra-se uma perfeita convergência de um duplo

movimento, isto é, o relacionamento do homem Jesus diante de Deus reflete o

relacionamento do Filho eterno no interior da comunhão Trinitária. Isto significa

que o ser humano Jesus de Nazaré, sendo distinto do Pai, revela que a eterna

relação entre a primeira e a segunda pessoa da Trindade pode sair do seio

trinitário e, através do Verbo que conserva a condição divina, passar à existência

humana como criatura. A criação, assim, teria um “espaço” na própria Trindade,

isto é, no Filho, pois “a criação como o ‘totalmente outro’ de Deus pode ter seu

‘lugar’ somente no Filho” 422.

A criação, portanto, do ser humano e de todas as demais criaturas – criadas

em total liberdade por Deus – tem sua possibilidade nesta autodiferenciação entre

o Pai o Filho cujo ponto culminante é a Encarnação423. A multiforme pluralidade

do mundo e a alteridade de cada ser vivo se fundamentam, assim, a partir da

autocomunicação amorosa de Deus que tem o seu Outro eterno, ou seja, as

421 Ibid., Jesus, The Wisdom of God, op. cit., p. 33 e 119-120. 422 GRESHAKE, Gilbert. Citado por NOEMI, Juan. Mysterium Creationis: Sobre a Possibilidade de uma Aproximação à Realidade como Criação de Deus. In: SUSIN, L. C. (org.) Mysterium

Creation: um olhar interdisciplinar sobre o universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 224. 423 EDWARDS, D. Ecological Significance of God-language, op. cit., p. 720-721.

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pessoas da Trindade424. Dito de outro modo, a criação em sua diversidade plural é

dada pela distinção do Verbo na Trindade - o Filho eterno que, pela ação do

Espírito, se abre à existência humana em Jesus de Nazaré. Por ser criada em

Cristo e em vista de Cristo, a criação recebe a diversidade de suas formas.

A distinção do Filho na Trindade nos leva a pensar que a criação foi feita

sobre o modelo do Verbo e, sendo assim, ela se torna como que a morada do

Verbo. Numa perspectiva ecológica, aqui nos deparamos com um ponto de

especial interesse. Por ser a morada do Logos divino, encontramos assim, como

acertadamente propõe A. Gesché, uma motivação propriamente teologal para

cuidar e preservar – “salvaguardar” – a terra em que habitamos425.

Quatro indicativos, segundo A. Gesché, levam-nos a ver o nosso mundo

perpassado pelo Logos, tornando-se a morada do Verbo antes mesmo da criação:

a) desde antes da fundação do mundo (Sl 77,12), o Logos (a Sabedoria de Deus) já

se achava “na superfície da terra” (Pr 8, 30-31); b) durante a criação: o mundo foi

feito pela palavra criadora divina, e o Pai criou o mundo segundo o Exemplar que

o Verbo era para ele; c) na Encarnação “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”

(Jo 1, 14); e d) a terra é morada do Verbo a título de Parusia. A terra é até o fim

lugar de Deus, morada onde o seu Logos vai julgar o mundo (1Cor 15,24) e para

onde “ele virá em sua glória”426 .

Sendo, pois, morada do Logos, nossa terra é portadora de “estruturas de

capacidade” que nela foram colocadas pelo princípio criador de Deus. A terra não

é um mecanismo rigidamente determinado, desencantado e sem vida. Pelo

contrário, ela está cheia de criatividade, de virtualidades; é viva e fonte de vida,

pois o Logos que a pervade, não é apenas Sabedoria e Luz, mas também Vida (Jo

1,4). Por causa da força do Logos que o habita, o nosso mundo tem uma

destinação de eternidade, uma capacidade de transfiguração a partir das novas

possibilidades cuja origem se encontra na palavra criadora divina e cujo

delineamento último se manifestará quando o Logos da Parusia vier em sua

glória427.

Como toda a criação, o nosso mundo é transpassado pelo Logos do criador.

Ele é um “kosmos logikos”, criado com uma racionalidade, um sentido, dotado de

424 Ibid. 425 GESCHÉ, A., O Cosmo, op. cit., p. 76-106. 426 Ibid., p. 77-78. 427 Ibid., p. 94-95.

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capacidades, em estado de capacidade428. Por conseguinte podemos dizer que ele

tem a sua logicidade própria, pois ele existe por Deus, por sua palavra criadora. E,

em relação a nós, seres humanos, ele tem uma anterioridade, “não precisa de nós

para existir” – lembra A. Gesché, advertindo-nos contra um arrogante

antropocentrismo que vê no cosmo um simples alicerce antrópico.

“Embora o homem, o único criado à imagem e semelhança do Verbo, seja um logikon infinitamente superior ao cosmo, ele não é uma exceção absoluta nesse reino do Logos. O cosmo tem o seu logos, que lhe é próprio: talvez logos

kosmikos... Pelo fato de ter sido criado in principio (em todos os sentidos do termo), foi-lhe dado ser desde sempre fundado e permanecer, para além da queda, na grandeza de suas inaugurações”429.

É daí que surge a motivação propriamente teologal – ainda que as outras

razões sejam perfeitamente justificadas e legítimas – para o cuidado ecológico da

terra, pois ela é a morada do Logos. O ser humano – portador da imagem do

Verbo e, por isso, único em sua capacidade dialógica – é o ser responsável que

pode responder positivamente ao apelo de Deus, assumir o cuidado da terra e,

assim, garantir, respeitar e completar essa morada do Verbo de Deus. Enfim, por

ser morada do Logos, essa nossa terra deve ser preservada como terra de

destinação – mais do que uma destinação ecológica ou moral – uma terra de

salvação que foi doada ao ser humano. Nas palavras de A. Gesché:

[A Igreja] também deve estar no mundo por diferença. E tal diferença é, principalmente, anunciar esta terra como uma terra de destinação teologal, como obra de salvação divina, como uma promessa de eternidade. Ordenando esta terra certamente como morada do homem, mas também como oikoumene do Logos”430.

Nessa visão trinitária da criação, também é importante observar que o

relacionamento de Jesus com o Pai, ao revelar o amor do Pai para com o Filho,

mostra também que o motivo da criação é a participação na comunhão divina,

pois todas as criaturas nos céus e na terra são reunidas em Cristo, através do

Espírito, para participar da vida divina (Ef 1,10). O Verbo não só é o princípio da

distinção e alteridade para todas as criaturas, mas também o elo que liga toda a

criação entre si e com o Criador431. É no amor para com o Filho que o Pai revela o

seu amor por todas as demais criaturas. O sentido da criação e a identidade de

428 Ibid., p. 155. 429 Ibid., p. 156. 430 Ibid., p. 106. 431 EDWARDS, D. Ecological Significance of God-language, op. cit., p. 721.

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toda a criatura, portanto, se manifestam na humanidade de Jesus, isto é,

“reconhecer Deus como Deus, honrá-lo como Pai e Criador”432.

Toda a existência de Jesus aponta para a nascente inesgotável de amor, a

Origem sem origem, a fonte de toda plenitude – fontalis plenitudo – de onde

provêm a Vida e a Bondade 433. Essa fonte é o Deus Criador a quem Jesus se

dirigiu como Abba, Pai. O Deus dos pobres, dos pecadores e marginalizados. O

Deus que ama com amor de mãe, a Mãe de todas as criaturas434 que, agindo livre e

amorosamente, derrama a sua bondade sobre todas as coisas que brotam do

trabalho de suas mãos435. A fecunda e amorosa vida do Pai, comunicada

eternamente ao Verbo, na força do Espírito, “explode” na pluralidade maravilhosa

do mundo criado, na exuberância de suas criaturas436.

Criada por Cristo e em vista de Cristo, a criação recebe vida e dinamismo

pela ação do Espírito. É o Espírito de Deus – “o vivificador” - que sustenta todas

as coisas e renova a face da terra (Sl 104,30). O sopro do Espírito na criação

conecta todas as coisas criadas em Deus, constituindo um centro vital cujo

dinamismo dá unidade e coesão à multiforme comunidade das criaturas437. Dito de

outro modo, “o Espírito é o ambiente divino em que todas as criaturas comungam

umas com as outras, é elo e laço, união da biodiversidade do universo”438.

Toda a criação é perpassada pelo Espírito e é uma realidade cunhada pelo

Espírito. Do ponto de vista ecológico essa afirmação tem grande relevância. Para

J. Moltmann é necessário reafirmar a presença do Espírito que permeia e vivifica

o mundo – o Espírito cósmico - que foi suprimida pela cosmovisão mecanicista

dos tempos modernos.439 Surge, em decorrência dessa cosmovisão, o símbolo da

432 FRANÇA MIRANDA, M., Ibid., p.55. 433 EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom of God, op. cit., p. 120. 434 Cf. Jó 38, 29: “De que seio saiu o gelo? Quem deu à luz a geada do céu?”. 435 Santo Irineu, aproveitando-se de uma metáfora rabínica, usa a metáfora das duas mãos para o ato criador: desde antes da criação, estão o Filho e o Espírito como duas mãos do Pai no trabalho da criação. Cf. SUSIN, L.C. A Criação de Deus, op. cit., p. 38. 436 EDWARDS, D. Ecological Significance of God-language, op. cit., p. 721. Cf. S. Tomás: … A distinção entre as coisas, assim como a sua multiplicidade, provém da intenção do agente primeiro, que é Deus. Com efeito, Deus produziu as coisas no ser para comunicar sua bondade às criaturas, bondade que elas devem representar. Como uma única criatura não seria capaz de representá-la suficientemente, Ele produziu criaturas múltiplas e diversas, a fim de que o que falta a uma para representar a bondade divina seja suprido por outra. Assim, a bondade que está em Deus de modo absoluto e uniforme está nas criaturas de forma múltipla e distinta. Consequentemente, o universo inteiro participa da bondade divina e a representa mais perfeitamente que uma criatura, qualquer que seja ela”. Suma Teológica II, q. 47, a.1. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 78. 437 EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom of God, op. cit., p. 119. 438 SUSIN, L. C. A criação de Deus, op., cit., .p. 38 439 MOLTMANN, J., Deus na Criação, op. cit., p. 150-157.

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máquina-mundo que substituiu o símbolo mais antigo do mundo como

organismo”. Ora, esse tipo de concepção favoreceu o controle e a dominação da

natureza pelo homem que pensa que age à semelhança do criador, do seu Deus

que “não rege tudo como a alma do mundo, mas como um senhor sobre o

universo”440. Assim, quando se acentua a transcendência de Deus como senhor e

dominador, diminuindo ou mesmo esquecendo a sua imanência como Espírito no

mundo, então o que surge é uma concepção de natureza a-espiritual e ateísta, uma

imagem de mundo desencantado, sem alma e sem vida. Tem razão, pois,

Moltmann ao sublinhar reiteradamente a importância do Espírito numa doutrina

ecológica da criação: “Sem uma doutrina pneumatológica da criação não existe

uma doutrina cristã da criação; sem levar em conta a existência do Espírito criador

no mundo não pode haver uma comunhão pacífica entre o ser humano e

natureza”441.

Vimos anteriormente que o mundo criado – Deus quis uma verdadeira

novidade - tem uma capacidade interna de invenção, um movimento que conduz a

novas possibilidades. Para J. Moltmann, isso se deve ao dinamismo de

autotranscendência que preenche toda a comunidade da criação graças à ação do

Espírito cósmico ao agir continuamente na natureza através das seguintes

formas442: a) como princípio da criatividade: possibilita o surgimento de novos

organismos materiais e vivos; é o princípio da evolução; b) como princípio

holístico: cria inter-relações, vida em cooperação e comunhão. Ao perpassar todo

o mundo, possibilita que cada unidade seja uma parte de um todo e cada parte

limitada como uma representação do ilimitado. É o Espírito que une a

individualização das criaturas na comunhão de toda a criação; c) como princípio

da individualização: dá a identidade de cada indivíduo, de modo que neles

autoafirmação e integração, autopreservação e autotranscendência não são dados

opostos e excludentes, mas são os dois lados do processo de evolução da vida, que

se completam mutuamente; d) como princípio da intencionalidade: atuando em

todos os sistemas da matéria e da vida, o Espírito suscita criaturas abertas,

orientadas pelas suas possibilidades, cada uma a seu modo, em direção a um

futuro comum. Assim, para J. Moltmann, “a comunidade da criação”, onde todas

440 Afirmação de Isaac Newton, citado por MOLTMANN, J.; Ibid., p. 150. 441 Ibid., p. 151. 442 Ibid., p. 152-153.

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as coisas coexistem, é também a “comunidade do Espírito”443, uma vez que todas

as criaturas são partes da mesma comunhão da criação, criação perpassada pelo

Espírito e entendida como uma tessitura dinâmica de eventos relacionados.

Uma vez mais é sublinhada a conexão entre a imanência de Deus no mundo

com a sua transcendência do mundo, através da presença do Espírito criador que

faz morada no universo. É o Espírito que ao mesmo tempo diferencia e interliga,

conduzindo as criaturas para além de sua comunhão, pois, se o Espírito cósmico

habita todo o mundo, “tudo deve ser entendido como um sistema aberto, para

Deus e o seu futuro”444.

Aqui faz-se necessário uma observação que diz respeito ao risco de

panteísmo em que essa compreensão do Espírito – que habita toda a criação –

poderia incorrer. É sabido que uma visão panteísta da natureza tem sido um

argumento usado por muitos na luta contra a destruição ambiental. Não estaria

essa compreensão trinitária da criação no Espírito se confundindo com alguma

forma de panteísmo? Sem receios, tendo a exposição de J. Moltmann como

apoio445, podemos responder negativamente a essa objeção. Não há aqui uma

confusão e identificação das criaturas com o criador (tudo é Deus), e sim uma

afirmação de que Deus está presente em suas criaturas (Deus está em tudo) e todas

as coisas estão voltadas para Ele pelo dinamismo do Espírito que habita o mundo.

Em vez de panteísmo, podemos falar corretamente em um panenteísmo. Mais

ainda. Ao se compreender o mundo como um sistema de autotranscendência – na

força criadora do Espírito – tudo deve ser entendido como um sistema aberto para

Deus (Deus é a origem de novas possibilidades) e Deus como um ser aberto para o

mundo (envolve o mundo com as possibilidades do seu ser). Outra vez, reitera-se

a relação entre imanência de Deus e a sua absoluta transcendência do mundo.

É oportuno, agora, relacionar essa forma pneumatológica de ver a natureza

com o que foi visto anteriormente sobre a novidade do mundo criado. A partir das

reflexões de A. Gesché, vimos que Deus quis algo distinto, novo e diferente; um

mundo portador de autonomia e de invenção, baseadas na mesma vontade do

criador. Ora, essa compreensão também poderia ser acusada de insinuar uma

443 “The community of creation, in which all created things exist with one another, for one another and in one another, is also the fellowship of the Holy Spirit”, citado por. EDWARDS, D., Jesus the

Wisdom of God, op. cit., p.119. 444 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 157. 445 Ibid., p. 155-156; 305-306.

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forma autônoma e independente de surgimento do mundo (um mundo causa sui)

ou de expressar uma criação panteísta pela qual a matéria que se auto-organiza

também se torna autocriadora (a natureza que vira natureza, segundo a visão de

Spinoza). No entanto, a compreensão bíblico-cristã é muito clara sobre o princípio

exclusivo e absoluto – Deus – do qual procede o mundo. O mundo não é

autocriador nem é uma emanação divina. A narração do Gn 1 inicia a criação do

céu e da terra por Deus indicando que “o Espírito do Senhor soprava sobre as

águas”. O “ruah”, o Espírito Divino, pronuncia o primeiro Fiat e surge a luz, que

vai iluminar todo o resto da criação. Como nos lembra J. Moltmann, “O Espírito é

a força criadora e a presença de Deus na sua criação. Toda a criação é uma

realidade cunhada pelo Espírito”446 . O Deus que continua presente e atuante na

natureza e em cada parte dela é o mesmo Espírito criador, o Deus com suas

energias não criadas e criadoras. Criado por Deus e existindo em Deus, todo o

cosmo se movimenta e se desenvolve nas energias e nas forças do Espírito divino.

É essa a compreensão de mundo – a maneira pneumatológica de ver a natureza –

que emerge da doutrina trinitária da criação447.

A tradição do antigo Oriente guardou as seguintes palavras que,

poeticamente, expressam a onipresença do Espírito em toda criação: “O Espírito

dorme na pedra, sonha na flor, acorda no animal e sabe que está acordado no ser

humano”448. É o Espírito, enfim, que direciona todas as coisas para o seu futuro

comum, a força da nova criação já atuando no mundo presente, fazendo com que

todas as criaturas sejam transformadas em Cristo e participem da própria vida de

Deus. O texto de Paulo (Rm 8, 19-23) quer mostrar essa presença atuante do

Espírito nas criaturas, pois,

“a criação geme e espera com impaciência porque o dinamismo do Espírito atua também nela. Este dinamismo não sendo respeitado pelo ser humano, devido ao pecado, tornou-a também escrava da corrupção. Não haveria corrupção se não houvesse o dinamismo do Espírito. Como contexto vital do ser humano, obediente ao Espírito, seguidor de Cristo e sintonizado com o desígnio do Pai, ela também poderá participar da ‘glória dos filhos de Deus’”449.

Deste modo o universo inteiro é compreendido como obra da Trindade. A

Fonte de Plenitude é a Origem sem origem, de onde emana o Ser de todas as

446 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 151. 447 Ibid., p. 305. 448 Cf. BOFF, L. Ecologia: grito da terra, op. cit., p. 230. 449 FRANÇA MIRANDA, M. Ibid., p. 58.

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criaturas. Jesus é a Sabedoria divina, o Filho eternamente amado pelo Pai em vista

de quem todas as coisas são criadas e por quem toda a criação assume uma relação

filial com o Criador. O Espírito é a presença divina - “compenetrando e

vivificando o mundo por dentro”450, renovando todas as coisas no continuado

processo da criação –, é o Amor que une todas as criaturas levando-as a

desabrochar e amadurecer na plenitude da Nova Criação451. Numa palavra, o Deus

trino da criação é “o Deus-Comunhão-relação, totalmente Outro (transcendência)

e totalmente próximo (imanência), numa relação de mútua inclusão-integração, de

tal maneira que o senhorio de Deus não exclui, antes inclui, a íntima comunhão

com as criaturas e vice-versa”452.

5.3

A criação em Cristo

Pelo que vimos no item anterior, fica evidente na doutrina cristã da criação

uma perspectiva claramente trinitária. A ação criadora-salvadora de Deus,

revelada nos escritos veterotestamentários, assume uma nova e mais profunda

dimensão quando é reinterpretada à luz da cristologia e da pneumatologia.

Num ser humano concreto, Jesus de Nazaré, a palavra criadora que “no

princípio fez surgir todas as coisas”, se revelou definitivamente como o Verbo

encarnado de Deus. Se no Antigo Testamento o criador se revela como o salvador

de um povo, agora o mesmo Deus se faz homem, em Jesus de Nazaré,

expressando o seu amor para com toda a humanidade através de uma ação

salvadora cujo significado adquirirá uma dimensão cósmico-criadora. Esta é a

grande e absoluta novidade do Novo Testamento: o evento Cristo - o ponto

culminante de uma única história, compreendida como uma unidade, na qual a

ação criadora e a ação salvadora de Deus são conversíveis e inseparáveis453.

Dada a centralidade de Jesus Cristo, sobressai na mensagem

neotestamentária uma perspectiva fortemente soteriológica na qual se evidencia a

450 JOÃO PAULO II, Dominum et Vivificantem, n. 54. São Paulo, Edições Paulinas, 1986. 451 EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom, op. cit. p. 122. 452 RUBIO, A.G. Unidade na Pluralidade, op. cit. p. 559. 453 DE LA PEÑA, J. L. R., Teologia da Criação, op. cit., p. 48.

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admirável atuação histórico-salvífica de nosso Deus. De modo que, à primeira

vista, pode parecer que o Novo Testamento não oferece uma contribuição própria

para a compreensão do mundo como criação. Com efeito, a fé na criação e no

Deus criador aparece pressuposta nos escritos neotestamentários, indicando que

Jesus a tinha como algo óbvio, uma verdade já adquirida e confessada. “A criação

– nos diz S. Verges – está, sobretudo, pressuposta na pregação de Jesus. Cristo

fala do senhorio absoluto do Pai. Pois bem, a última expressão do senhorio de

Deus é a sua obra criadora”454. Daí porque, como nos lembra J. Moltmann, para

alguns fica a impressão de que questões relevantes sobre o relacionamento do ser

humano com a natureza – o mandato de dominar a terra, por exemplo – não

receberam uma maior atenção nos escritos do Novo Testamento455.

Ora, essa impressão se dilui quando se tem presente que o testemunho

neotestamentário da criação aparece em toda a sua riqueza à luz do querigma da

ressurreição, ou melhor, do evento Cristo: sua vida, morte e ressurreição. É esse

acontecimento – a grande novidade, a boa notícia do Novo Testamento – que nos

dá o princípio interpretativo da fé em Deus criador já revelada na experiência de

fé do povo da primeira aliança. É com essa chave de leitura que podemos ter

acesso à riqueza da mensagem dos textos do Novo Testamento que nos falam da

função mediadora de Jesus Cristo tanto na salvação quanto na criação. Convém

aqui, uma vez mais, reiterar essa relação de mútua integração-inclusão, pois, como

afirma A. G. Rubio, “mediação na salvação e mediação na criação são os dois

aspectos da função mediadora universal de Jesus Cristo”456.

5.3.1

A mediação de Cristo: princípio e fim da criação

A afirmação de R. Schnackenburg de que “a ressurreição de Jesus Cristo,

ou melhor, sua ressurreição por Deus, foi o início histórico da fé em Cristo”457

454 VERGES, S., El Hombre creado en Cristo. Trinidad y Creacion, Barcelona: Ediciones S. Trinitario, 1975, p. 95. 455 MOLTMANN, J., Deus na Criação, op. cit., p. 105. 456 RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 182. 457 SCHNACKENBURG, R., A Cristologia do Novo Testamento, in Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática Histórico-salvífica, Petrópolis: Vozes, vol. III/2, 1973, p. 8.

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mostra o quanto esse fato foi significativo para a Igreja nascente e para a posterior

reflexão teológica. O reconhecimento da atuação salvadora de Cristo pela

comunidade de fé levou também à percepção de sua função mediadora na criação.

Esse duplo reconhecimento foi possível a partir da ressurreição na qual se revela o

significado profundo tanto da ação salvífica de Cristo quanto de sua função como

mediador da criação. Sob a ótica do evento pascal – morte e ressurreição

inseparavelmente unidas na salvação realizada pelo Verbo encarnado – Cristo é

confessado como o fundamento de toda a criação, da humanidade e da natureza458.

Vale ressaltar também que toda a existência de Jesus tem um significado salvífico,

de modo que há uma unidade entre a sua vida – cuja sintonia com a vontade do

Pai o levará à morte – e a ressurreição que ilumina o sentido da sua vida459.

Está longe do nosso alcance e foge do propósito do nosso trabalho fazer

aqui um exame aprofundado dos textos neotestamentários referentes à criação460.

Queremos, contudo, brevemente, voltar a nossa atenção para alguns deles que, de

modo significativo, a partir da experiência da ressurreição, contêm as afirmações

reveladoras sobre o Cristo como mediador e senhor da criação.

a) Para Paulo, em sua primeira carta dirigida aos Coríntios, tudo está sujeito

ao senhorio de Cristo: “Para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo

procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo

existe e por quem nós somos” (1Cor 8,6). São usadas aqui expressões linguísticas

de origem helenista, mas reinterpretadas para “descrever a atividade criadora de

Deus e a função mediadora de Cristo... A preposição dia (“pelo qual tudo”) indica

o ‘instrumento’ divino na criação (Cristo)”461. O senhorio de Cristo se estende a

toda a realidade, de modo que o efeito redentor de seu mistério pascal não se

limita aos seres humanos, mas se estende a todo mundo criado. Paulo fundamenta

essa universalidade dizendo que através de Cristo tudo foi criado. A função

mediadora atribuída ao Filho já estava preparada pela literatura judaica sapiencial

458 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 145. 459 RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 183. 460 Para um estudo dos escritos neotestamentários referentes à criação, ver SCHELKLE, K. H, Teologia do Novo Testamento, vol. 2, São Paulo: Edições Loyola, 1978; p. 21-52; VERGES, S., ibid., p. 94s; REY, B., A Nova Criação, São Paulo: Paulinas, 1974. 461 MUSNNER, F., “Criação em Cristo”, in Mysterium Salutis, Compêndio de Dogmática Histórico-salvífica, II/2, Petrópolis: Vozes, 1972, p. 51.

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- a sabedoria divina personificada. O que o Antigo Testamento diz da sabedoria de

Deus, o Novo Testamento identifica com a pessoa de Jesus Cristo462.

b) A perspectiva cristocêntrica aparece ainda mais ampliada na Carta aos

Colossenses onde Jesus Cristo é exaltado como o princípio, o centro e o fim da

criação (Cl 1, 15-20)463. Aqui aparece de modo muito expressivo a compreensão

de um mundo, todo ele perpassado pelo Cristo cósmico. Esse hino cristológico,

cuja estrutura muito cuidadosa orienta a sua interpretação, “compõe-se de duas

estrofes, respectivamente consagradas à primazia de Cristo na ordem da criação e

na ordem da redenção (15,17 e 18-20)”464, mostrando assim a fundamentação

protológica da criação através de Cristo em continuidade com a sua atuação

salvífica universal, mediador da “nova criação”.

Cristo é o reflexo, a manifestação do criador, pois “ele é a imagem do Deus

invisível, o primogênito de toda criatura” (v.15). Aqui o hino associa Jesus Cristo

à figura da Sabedoria (Sb 7,26; Pr 8,22): “aquele que veio recriar o mundo é

aquele que havia presidido a sua criação”465. O título Primogênito é central no

hino, unificando as duas estrofes e apontando tanto para as relações de Jesus com

a criação quanto com as da salvação466.

Jesus Cristo é o modelo da criação, pois nele todas as criaturas têm a sua

origem: “...porque nele foram criadas todas as coisas” (v. 16). A fórmula ternária

(nele, para ele e por ele), de origem panteísta grega, é agora usada na perspectiva

histórico-salvífica cristã: “Tudo foi criado por ele e para ele”. Cristo é o senhor e

o destino da criação, dele, “do seu criador, o mundo recebeu o rumo de um

começo para um fim”467. De novo aparece a unidade entre o aspecto soteriológico

e a função mediadora na criação, pois “criação e salvação estão estreitamente

ordenadas uma para a outra”, envolvem-se reciprocamente468. Cristo se faz

presente no final da história como salvador, porque está em seu início como

criador. Ele atua na criação toda do princípio ao fim. Nas palavras de A. G. Rubio,

“[O mistério de Jesus Cristo] está presente no caminhar do mundo, da vida e da

evolução toda, tanto no começo, quanto na continuação e na consumação... 462 SCHELKLE, K. H.; ibid., p. 30. 463 Um bom estudo exegético-teológico desse hino encontra-se em REY, B., ibid., p. 271-304. 464 REY, B., ibid., p. 272. 465 Ibid., p. 274. 466 GONZÁLEZ FAUS, J. I., La Humaniad Nueva. Ensaio de Cristologia. Santander: Sal Terrae, 1984, p. 288. 467 SCHELKLE, K. H., ibid., p. 31. 468 MUSSNER, F. ibid., p. 56.

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Polariza e atrai todos os homens e o universo inteiro para a consumação: Deus

sendo tudo em todos469”.

Devido à preexistência de Cristo, todas as coisas encontram nele a sua

consistência. “Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste” (v. 17). A realidade tem

nele a fundamentação para existir com unidade, harmonia e coesão470. Esse

versículo une a função criadora do Cristo com a sua função reconciliadora. Nos v.

18-20, a segunda parte do hino, o acento recai sobre a salvação. Por causa da

realidade do pecado que tem sua origem no ser humano, mas que atinge toda a

criação, o mundo precisa de salvação. Preso à sua condição pecadora, o ser

humano corta a sua relação vital com Deus, com o seu próximo e com todo o

mundo criado471. Contudo, a presença criadora-salvadora de Deus continua

atuante, de modo que “no único Cristo o mundo é reconduzido à sua origem e nele

torna a haver paz entre Deus e o mundo”. Assim como o pecado atinge a realidade

toda, em Cristo toda a criação é redimida.

c) O destino cristológico da criação é ressaltado no hino de ação de graças

que abre a carta aos Efésios (Ef 1,3-14)472. O texto deixa claro que o desígnio

eterno de Deus sobre a criação é Cristo, reconhecido como centro unificador do

mundo e sentido pleno da história humana. O conteúdo concreto do projeto divino

é em Cristo “levar o tempo à sua plenitude" (v. 10). De agora em diante toda

história está unificada e “encabeçada” pelo Cristo, como Senhor ressuscitado473.

Levar o tempo à sua plenitude, ou “recapitular” todas as coisas, acentua o aspecto

da unidade com a qual todos os elementos constituintes do universo encontrarão o

seu centro e laço de união em Cristo que, através do seu corpo eclesial, exercita já

agora a sua liderança cósmica474.

Importa notar essa perspectiva universalista realçada no prólogo da carta aos

Efésios. Jesus Cristo é apresentado como o recapitulador universal de todos os

seres humanos, sem divisões - como a separação entre judeus e gentios daquela

época – e, juntamente com a humanidade, também de todas as criaturas. Para W.

Kasper, essa cristologia universal implica que a realidade – vista em totalidade e

469 RUBIO, A. G., Unidade na pluralidade, op. cit., p. 191-192. 470 DE LA PEÑA, J. L. R., Teologia da Criação, op. cit., p. 63. 471 RUBIO, A. G., Unidade na pluralidade, op. cit., p. 193. 472 Cf. FABRIS, R., As Cartas de Paulo (III), São Paulo: Ed. Loyola, p. 147-152. 473 Ibid., p. 152. 474 BROW, C., “Head”, in Dictionary of New Testament Theology, v. 2. Editor Colin Brown, Michigan, 1979, p. 163.

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cada coisa concreta – recebe em Cristo um lugar e sentido definitivos, de modo

que Cristo está atuando em todas as partes e, assim, não podemos relacionar

dualisticamente criação e redenção, natureza e graça, cristianismo e mundo475. A

“realidade” natural, o mundo criado, enfim, tudo está destinado, não à destruição,

mas à plenitude a ser alcançada em Cristo, o ponto “ômega”, “o centro especial

que brilha no coração de um sistema”, o coração do mundo476. Ora, se Cristo está

atuando em toda a realidade e a sua presença se dá desde o início, este mundo

deve ser intrinsecamente bom. Essa bondade da criação, já revelada na tradição

veterotestamentária, vê-se confirmada pela mensagem do Novo Testamento: se a

criação de Deus é dávida do seu amor (cf. 1Tim 4,4), nada deve ser tido como

impuro em si (cf. Rm 14,14).

Como nota F. Mussner, nos hinos de cristologia cósmica aparece uma certa

tensão entre o anúncio cosmológico e a função soteriológica de Cristo na criação 477. É que o sentido e a meta de toda a criação se dão numa dinâmica evolutiva.

Tendo sido iniciado em germe na protocriação – em Cristo e para ele voltado – o

mundo e todas as criaturas estão submetidos ao tempo e somente no ‘eschaton’ a

criação atingirá a sua maturidade escatológica, através da ação de Cristo que

impulsiona o mundo desde o início em direção a essa consumação final. Note-se

que a recapitulação já está atuando no início da criação porque nele, em Cristo,

está a plenitude. “Em Ef 1,10 este processo é designado misteriosamente como

‘recapitulação do universo em Cristo’, resolvida por Deus desde a eternidade”478.

Enquanto esse processo não chega à sua plenitude, a realidade futura já está

acontecendo e qualificando o tempo presente e o mundo de hoje. Nele o cristão

vai vivendo, procurando se situar com liberdade frente às coisas criadas, sem

temer o mundo e nenhum dos seus poderes479, e agir responsavelmente de modo a

viver e a testemunhar, no hoje da história, os novos céus e a nova terra que terão

lugar na realização escatológica. Somente na abertura e serviço a este mundo –

adverte com razão W. Kasper – o cristão pode ser um autêntico seguidor de

475 KASPER, W. Jesus, el Cristo. Salamanca: Sigurme, 1978, p. 234. 476 CHARDIN, T., citado por KASPER, W., Ibid., p. 235. 477 MUSSNER, F., ibid., p. 56. 478 Ibid., 56-57. 479 “A criação é obra de Deus, criada em Cristo. O Deus criador é a medida e o limite de todos os poderes e grandezas do mundo. Deus sempre é mais poderoso. Por isto, nenhuma coisa criada pode forçar o crente ou até subjugá-lo”. SCHELKLE, K.H., ibid., p. 33.

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Cristo. De outro modo, o cristianismo perderia a sua característica mais

essencial480.

d) No prólogo ao IV Evangelho (Jo 1,1-18) vamos encontrar uma

articulação cristológica da doutrina veterotestamentária da criação. A criação do

mundo se realizou por Cristo – mediador da criação – a quem o Evangelho chama

Logos, o “Verbo de Deus”. Certamente de origem grega, o termo Logos está,

contudo, carregado da tradição hebraica onde aparecem os temas da Sabedoria, da

Palavra criadora de Deus e da Torá481. Um ponto em comum, proporcionando

uma íntima correspondência entre esses temas, é a presença de Deus – criador e

salvador – junto ao seu povo. Com efeito, “Deus se torna presente junto ao povo

porque a Palavra de Deus se faz presente nele através da Torá, dos Profetas,

etc”482.

Importante para a cristologia do Prólogo é a ideia de eternidade atemporal

do Logos. Essa preexistência do Verbo é central no desenvolvimento da mediação

de Cristo na criação e remonta ao tema da eterna sabedoria.

“A Sabedoria está presente na criação do mundo e participa dela (Pr 8, 27-30). Ela desce para a terra e procura habitação entre os homens. A maioria deles a rejeita (Eclo 24,7; Pr 1,20-32), mas é acolhida pelos piedosos, aos quais torna amigos de Deus (Sab 7,22s). O que aqui se diz da Sabedoria, o prólogo do Evangelho de S. João (1,11s) o afirma analogamente de Cristo como o Verbo eterno de Deus”483.

No conceito de Logos também aparece o tema da ação criadora divina

através da Palavra mediante a qual Deus cria o mundo e os seres humanos. A

palavra divina que cria e se revela no princípio – a palavra que vem da plenitude

interna da vida trinitária484 - é a mesma palavra que se comunica na história da

salvação e, encarnando-se em Jesus Cristo, leva a criação à plenitude. Aqui

também transparece a unidade entre criação e salvação, pois o Cristo-Logos, que

aparece no prólogo, revela a autocomunicação de Deus, iniciada em sua função

criadora e continuada ao longo da história em cujo curso Deus, em sua Palavra,

480 KASPER, W., ibid., p. 234. Para J. I. G. FAUS a missão da Igreja é ser sinal e testemunha dessa cristificação final do mundo: “Como consecuencia de esta obra recapituladora de todo en Cristo, aparece en la historia la Iglesia como la llamada a vivir y testemoniar la realidad de esta relación plenificante de Cristo respecto del mundo”, GONZÁLEZ FAUS, J. I., ibid., p. 306. 481 SCHELKLE, K. H., ibid., 41-43. 482 GONZÁLEZ FAUS, J.I., ibid., p. 320. 483 SCHELKLE, K. H.,ibid., p. 41. 484 Ibid., p. 43.

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continua a interpelar o ser humano à abertura ao dom do amor485. O Verbo

também é a luz e a vida do mundo (Jo 1,4.9), pondo-o em relação com o tema da

Torá – projeto e instrumento de Deus na criação - estimada como a luz e a vida do

povo israelita486.

Sabedoria, Palavra e Torá – já acolhidas na tradição veterotestamentária -

agora se manifestam na sua autêntica e definitiva verdade, revelando a face

humana de Deus, a expressão mais radical de seu desígnio de autocomunicação: o

Logos criador-salvador se fez carne e veio morar entre nós (Jo 1,14). A presença

de Deus se reveste da humanidade de Jesus de Nazaré. Num ser humano concreto

e histórico, revela-se o Deus criador, fazendo desta terra a sua morada,

compartilhando com as demais criaturas o mesmo espaço vital cuja existência se

fundamenta na Palavra pronunciada no princípio.

A presença de Deus em nosso mundo – em meio às criaturas – e a sua

encarnação em nossa história, fazendo-se humano igual nós, menos no pecado

(Hb 4,15), ratificam de modo extraordinário o valor e a dignidade deste mundo já

conferidos na protocriação (Gn 1,31). Nas palavras de A. G. Rubio, “o homem, a

história e o cosmos todo são valorizados de maneira inacreditável na encarnação

do Logos-Palavra”487. Sim, o mundo criado é bom. Apesar das contingências e

desordens – a criação toda geme e sofre as dores do parto (Rm 8,22) – esse nosso

mundo tem sentido, é razoável e bom “porque tudo está formado segundo a

palavra, que é o Filho de Deus e por isso tem o caráter dele”488. Fica

completamente descartada a existência de um segundo princípio – o mal – na

criação do ser humano e do mundo, pois “tudo foi feito por meio dele e sem ele

nada foi feito” (Jo 1,3), de modo que, mesmo passando pela experiência da

escuridão provocada pelo pecado humano, a criação toda continua repleta e

sustentada pelo Verbo, que foi e é a luz e vida do mundo (Jo 1, 4.9)489.

A grande e admirável novidade que se insere no nosso mundo – ele já do

início criado como uma verdadeira novidade – é ser pela Encarnação “uma terra

485 Para GONZÁLEZ FAUS, o caráter interpelador da Palavra é constitutivo da revelação divina, pois o amor de Deus revelado pelo Verbo feito carne em Jesus histórico, solicita a abertura do ser humano para um relacionamento generoso e fraterno com os irmãos. “Lo que me comunica la Palavra que existia desde el princípio es esa unidad insoluble que constituyen la fé en el amor de Dios como amor infalible y la entrega ao prójimo fundada em esa fé”. Ibid., p. 328. 486 SCHELKLE, K.H., ibid., p. 42. 487 RUBIO, A. G., Unidade na pluralidade, op. cit., p. 195. 488 SCHELKLE, K. H, ibid., p. 43. 489 Ibid., p. 41.

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pisada por nosso Deus”, pelo Cristo-Logos, revelador da vida e da intimidade

divinas. Já vimos anteriormente como a Palavra criadora, dirigida para fora, vem

da plenitude interna da vida trinitária490. Um Deus em si mesmo diferente

(dinamismo divino trinitário), que cria a diferença (criação), deixa no mundo

criado as marcas do dinamismo e da diferença. O mundo, por ser um ato da

palavra divina, também é, de algum modo, imagem e semelhança trinitária como

um livro aberto trazendo as características da Trindade, os vestigia Trinitatis. Nas

palavras de A. Gesché:

“O mundo é habitado pela marca trinitária e, portanto, por um dinamismo criador infinitamente mais vivo que se o fosse pelo Deus do “simples monoteísmo”. Transpassado por um ato diferenciado, e não uniforme, de Deus, ele é também portador de uma dinâmica interna. Falar do Filho é introduzir a vida de Deus (ad

intra); falar da criação pelo Filho é introduzir o princípio dessa vida na própria criação (ad extra). Esta última não é obra congelada, mas, à imagem de Deus, lugar de diferença (s), de dinamismo e de iniciativa”491.

Ao gerar o Filho, uma diferença dele mesmo, Deus quis criar uma novidade

à imagem dessa diferença. Eis porque podemos falar do espaço para a alteridade.

Isso tem uma implicação muito forte no modo como nos vemos e nos

relacionamos com o próximo e com mundo criado. Não habitamos um mundo

fechado e monolítico. O Cristo-Logos, como modelo de todas as coisas, é a

revelação cabal da criação que Deus quis: um mundo como a terra do plural e da

fecundidade, terra na qual o Verbo fez a sua morada492. A natureza, com toda sua

exuberância e biodiversidade, é uma expressão privilegiada da rica diferenciação

querida por Deus.

Não é só. O mundo tem uma marca de filiação. O Verbo – como vimos em

Cl 1,16 – é o modelo da criação. Na Encarnação do Logos, o mundo já tendo sido

criado nele e por ele, recebe finalmente uma adoção filial. Deus cria no Filho. O

destino do mundo é ser tomado inteiramente pela filiação. São Paulo não hesita

em pensar que, não somente os seres humanos, mas a criação inteira – para

alcançar o seu verdadeiro sentido - anseia pela revelação dos filhos de Deus (Rm

8,18). Cristo, como modelo da criação, indica que ela carrega em si as marcas da

presença do Filho. Com razão, embora com bastante ousadia teológica, diz A.

Gesché: “Afirmar que [a criação] tem estatuto de filiação é afirmar de novo,

490 SCHELKLE, K.H., ibid., 43. 491 GESCHÉ, A., ibid., p. 142. 492 Ibid., p. 143.

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porém com mais garantia ainda que anteriormente, o seu destino de liberdade e de

invenção”493.

Para sustentar a afirmação anterior, ele argumenta que, ao criar no Filho e

por meio dele, a criação foi confiada ao Filho. Um filho, diferentemente de um

servo ou mercenário, tem o direito de liberdade e de invenção. Cristo é o Filho em

quem “todas as promessas de Deus encontraram nele o seu sim” (2Cor 1,20).

Portanto, a criação pode, por sua vez, pronunciar esse “sim”, pois ela – pelo ato

criador e pela encarnação – se torna a própria casa do Filho. De modo que,

“De uma ponta a outra, a criação, desde o Filho (“Glória do Filho único do Pai” [Jo 1,14]) até nós (“Porque da sua plenitude todos nós recebemos” [Jo 1,16]), passando pelo cosmo (“terra visitada” [cf. Sl 65,10], onde “habitou entre nós” [Jo 1,14]); de uma ponta a outra da criação está gravada, portanto, uma marca da filiação”494.

A criação em Cristo, portanto, tem uma marca de confiança. A confiança de

Deus em seu Filho e de Deus em nós. É a presença de Deus que imprime essa

confiança e dá confiança. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Não

estamos sozinhos. O mundo é envolvido e sustentado por uma presença

iluminadora e vivificante que nunca se esgota. Aqui também há uma valorização

muito positiva do mundo criado. O mundo não está entregue ao acaso, à

arbitrariedade de forças indeterminadas. Ele tem um sentido, uma racionalidade

dada pela presença do Logos. Pode-se falar de um encantamento do mundo pela

luz e vida do Logos.

É certo que essa flecha do Logos, que atravessa toda a criação, atinge o seu

voo mais alto na criatura que receberá a liberdade como um dom constitutivo seu.

O ser humano, com a sua inteligência e liberdade, é chamado a prover este

mundo. A criação é, pois, confiada e “aban-donada” ao ser humano para que,

participando do senhorio de Cristo, seja também um cocriador. Lembremos que ao

ser humano – segundo a narrativa do Gênesis – foi dada a tarefa de dar nome, isto

é, nomear uma criação que já tinha nela a capacidade de receber um nome porque

veio à existência pela palavra divina pronunciada. Como nota A. Gesché, “nomear

é terminar de dar existência àquilo que é. O homem se integra, depois de Deus,

no processo criador”495. Aqui está o sentido verdadeiro – voltaremos a este ponto

mais adiante – do mandamento “dominai a terra”: cuidar do mundo, ampliar e

493 Ibid., p. 144. 494 Ibid. 495 Ibid., p. 71.

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conduzir as capacidades que já se encontram na natureza pela força criadora e

salvadora do Logos divino.

Ao apresentar o Cristo como o Verbo que se fez carne e habitou entre nós, o

prólogo do IV Evangelho nos assegura que a comunidade humana e o mundo

criado, apesar de todas as fragilidades, é uma criação arbitrada pela inteligência e

pelo amor, uma realidade aberta à ação divina. De modo que nessa interpelação e

acolhida ao Logos – Palavra revelada que “veio para o que era seu” (Jo 1,11) – a

humanidade e, por meio dela a natureza toda, pode realizar a sua destinação de

encantamento496.

e) Na Carta aos Hebreus (Hb 1, 1-4) Cristo também é apresentado como a

Palavra com a função mediadora da criação e de sustentação do universo497.

Usando categorias e símbolos da literatura sapiencial, ao Filho é atribuída a eterna

sabedoria de Deus, através da qual Deus criou o mundo e ainda o preserva e o

glorifica (Pr 8, 22-31). Há uma relação entre o fim – Cristo é o herdeiro e senhor

do universo – e o início – ele é o mediador da criação, tendo sido por ele que Deus

criou “os séculos”. O mediador do início continua sustentando e conservando o

universo “com o poder de sua palavra” (v. 3). Convém notar, como o faz K. H.

Schelkle, que o texto apresenta a função mediadora de Cristo em conexão com a

sua função salvífica, pois se por meio dele as coisas foram criadas (v. 2) também

ele realizou “a purificação dos pecados” (v. 3). Também aqui nota-se que criação

e redenção estão entrelaçadas498.

O breve exame desses textos nos permite concluir que a fé veterotestamentária

na criação é reinterpretada à luz da vida-morte-ressurreição de Jesus. Com essa

centralidade cristológica, o relato sacerdotal da criação (Gn 1) adquire o seu

significado mais profundo quando lido à luz do prólogo joanino (Jo 1), de modo

que, o que já aparecia no conjunto do Primeiro Testamento – a criação vista sob

uma perspectiva soteriológica - torna-se agora mais fortemente afirmado com o

evento Cristo499. A revelação neotestamentária apresenta o Filho de Deus atuando

ativamente no início, como mediador da criação, no presente, conservando e

496 Como nota J. L. R. DE LA PEÑA, “a atribuição a Cristo da causalidade final da criação, se não se encontra no prólogo, por certo está em outro lugar do corpus joanino: Ap 1,17 e 22,13 diz de Cristo que ele é ‘o primeiro e o último’, o ‘alfa e o ômega’, ‘o princípio e o fim’ de todas as coisas”. Ibid., p. 70. 497 SCHELKE, K.H., Ibid., p. 46-47. 498 Ibid., p. 46. 499 DE LA PEÑA, J.L. R., ibid., p. 71-72.

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sustentando o mundo criado, e no final quando na consumação escatológica

recapitulará todas as coisas. O senhorio de Cristo se estende a toda a realidade.

5.3.2

Uma redenção cósmica

No item anterior reiteradamente foi sublinhado que a função mediadora de

Cristo na criação está intimamente associada à sua obra redentora. Em Cristo,

aquilo que é criado é aquilo mesmo que é salvo, e o que é salvo já está carregando

a sua semente de redenção posta nele pelo Logos criador – logos spermatikos500

.

Todo o mundo criado é envolvido por esse dinamismo criador-redentor cuja

centralidade se encontra no mistério pascal de Cristo, o cume de uma vida inteira

carregada de significado salvífico.

A boa notícia que ecoa na revelação neotestamentária é que o Verbo divino,

que “se fez carne e habitou entre nós”, realizou de forma definitiva a “purificação

dos nossos pecados”. Redenção necessária devido à situação de não-salvação em

que caíra a humanidade por conta de sua resposta negativa à interpelação divina

para uma vida aberta ao relacionamento positivo com Deus, com o próximo e com

a natureza. Fechado em si mesmo, voltado contra Deus, o ser humano se perde em

relações desarmônicas e destruidoras que quebram a fraternidade entre os

humanos e agridem mortalmente o equilíbrio do mundo natural501. É nesse

horizonte de escuridão e morte que irrompe a ação iluminadora e vivificante de

Jesus Cristo, restaurando a criação inteira com vida em abundância para todos (Jo,

10,10).

Ele, “que passou a vida fazendo o bem”, viveu em profunda comunhão com

o Pai, numa atitude de doação e serviço para com todos, revelando a verdadeira

face do Deus misericordioso. Com palavras e gestos gastou a sua vida no

compromisso de amor e de serviço solidário, especialmente para com os mais

pobres e sofredores para quem priorizou as bem-aventuranças do Reino. Sua

bondade, não só para com os seres humanos, se estendeu a todas as criaturas

através de uma relação respeitosa com o mundo da natureza. Nela certamente se 500 GESCHÉ, A., ibid., p. 171. 501 RUBIO, A. G. R., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 183-188.

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inspirou e soube tirar do contato com o mundo natural ensinamentos sobre a

realidade do Reino que viveu e anunciou502. Com efeito, segundo J. Meier, Jesus

com muita probabilidade fez a experiência de plantar e colher da terra os seus

frutos. Isso ajuda a entender porque boa parte do imaginário e da linguagem

metafórica de suas parábolas vem do mundo agrícola503.

Para Jesus o mundo é de Deus: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra”

(Mt 11,25). Ele acolhe o mundo da natureza como um dom divino porque a

realidade natural é criação de Deus. Já vimos que para Jesus a fé no Deus criador

era uma certeza pressuposta e evidente. A criação tal como foi revelada na

tradição judaica era uma realidade fundamental na compreensão que Jesus tinha

da vida e do mundo. Porque o mundo é criação de Deus, ele é bom. Jesus o sabia,

pois assim ensinava o relato do Gênesis: “Deus viu que era bom”504.

Daí ser muito compreensível – como observa K. H. Schelkle - a atitude de

Jesus ao reprovar as numerosas prescrições da Lei relativas à purificação de quem

havia se contaminado pelo contato com seres (animais, alimentos, etc) ou

processos naturais (da sexualidade, por exemplo) considerados impuros.

Consciente de que toda a criação é boa, Jesus condena o farisaísmo de um culto

vazio e declara puros todos os alimentos (Mc 7, 18-19). Ademais, Jesus vê a

criação como o lugar onde se manifestam a bondade e a glória de Deus: os corvos,

os lírios e os pardais são beneficiados pela providência divina que os alimenta e os

sustenta (Lc 12, 24-27 e Mt 10,29,s). Ora, para se ter o alcance dessas palavras, é

preciso lembrar que os corvos estavam na lista dos animais impuros (Lev 11,15;

Dt 14,14) e, segundo a concepção da época, os filhotes eram abandonados pelos

próprios pais. No entanto, para Jesus são seres dignos da atenção e do cuidado do

criador505.

Contudo, Jesus também percebe o outro lado da realidade marcada pela

fragmentação, pela dor e pela angústia que pesam sobre a criação numa

intensidade que terá o seu vértice quando a história terrena chegar ao seu final:

“Naqueles dias, haverá uma angústia tal, como jamais houve desde o início da

502 Sobre o relacionamento de Jesus com o mundo natural, o seu respeito para com a natureza, e as implicações hoje para uma vivência ecologicamente correta, cf. ECHLIN, E. P., The Cosmic

Circle. Jesus & Ecology. Dublin: The Columba Press, 2004. Ver também BENZO, M., Teologia

para universitários, Madrid, 1977, p. 185ss. 503 MEIR, J., citado por ECHLIN, E. P., ibid., p. 60. 504 SCHELKLE, K. H,.ibid., p. 21-26. 505 Ibid., p. 22-23.

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criação, que Deus fez, até agora” (Mc 13,19). A história da criação é um caminho

tortuoso no qual, ao lado de glórias e grandezas, perfilam lutas e misérias,

destruição e morte. Nas palavras de K. H. Schelkle: “A criação oferece dois

aspectos totalmente opostos. Ela é o lugar da revelação da glória e da bondade de

Deus. Mas a forma do mundo também está determinada pelo pecado, pela doença

e pela morte”506.

No contato com as pessoas e na relação com o mundo da natureza, Jesus

percebe que na ordem da criação nem tudo é harmonia e paz. Ele sente a dureza

de coração e percebe a maldade dos seres humanos que estragaram a criação (Mc

10, 15). Mais do que isso. Ele encara corajosamente essa realidade fragmentada

pela dor, solidarizando-se com os sofredores deste mundo, suportando a própria

decadência da criação: “Tomou sobre si os nossos males e carregou as nossas

doenças” (Mt 8,17). Estando no mundo, não renunciou ao sofrimento do mundo.

A sua generosidade e serviço assumidos livremente, em contraste com o

fechamento destrutivo da humanidade fragmentada pelo pecado, abriram um

caminho novo que conduz à saída desse estado de perdição. Mas esse caminho

não foi aceito pelos poderes estabelecidos, que rejeitaram a oferta salvadora de

Jesus. E veio a cruz. O compromisso de Jesus vai até o fim. Ele assume a cruz em

cumprimento radical da vontade do Pai de libertar o mundo e fazer retornar a

humanidade e, com ela a criação inteira, à trilha da liberdade e da vida507.

Diferentemente do primeiro Adão, símbolo do homem velho marcado pelo

pecado, Cristo é o novo Adão, a possibilidade real de uma humanidade nova que

se constrói pela força vitoriosa do amor. Doravante, “a história se coloca sob a

órbita da Humanidade Nova... O que ainda não somos em nosso ser, é o que

Cristo já é em nós: a humanidade nova que nos falta”508.

Importa não perder de vista que a entrega fiel de Jesus na cruz está em

conexão com o modo como viveu, em conformidade com a vontade do Pai.

Completamente oposto está o comportamento de uma vida que se fecha à

interpelação divina de responder ao dom do amor, tal como se afigura no pecado

de Adão (Rm 5, 12-21). Nesse conflito de atitudes reside o drama da criação, isto

506 Ibid., p. 23. 507 Sobre o significado da cruz e a função de Jesus como o novo Adão renovando a criação inteira, cf. GISEL, P., La Creátion. Essai sur la liberté et la nécessité, l´histoire et la loi, l´homme, le mal et Dieu. Genève: Editions Labor et Fides, 1980, p. 94-99. 508 GONZÁLEZ FAUS, J. I., ibid., p. 313.

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é, receber e habitar o mundo “em Adão” ou “em Cristo”. Como observa P. Gisel,

“[esse conflito] tem uma dimensão cósmica: pois é o destino da criação inteira que

está em jogo”509. Dito de outro modo, a cruz tem uma dimensão universal, ela

corrige o curso da história, abrindo o caminho de uma existência nova marcada

pelo verdadeiro relacionamento da humanidade com Deus e com toda a criação. A

ressurreição de Cristo, sua vitória sobre a cruz, atinge todas as criaturas.

Queremos sublinhar a dimensão cósmica da redenção de Cristo uma vez que

ainda persiste no seio do cristianismo uma visão escatológica de caráter

excessivamente antropocêntrico e individual. Ora, esse tipo de escatologia deve

ser completado com uma compreensão mais coletiva e universal, que abranja a

criação inteira. O ser humano em sua totalidade está estreitamente vinculado ao

mundo natural, de modo que a sua ressurreição inclui por extensão todo o mundo

criado. Na ressurreição da carne, já lembrava com razão K. Rahner, “os mortos,

na visão beatífica, continuarão ligados ao destino do mundo”510. A criação, como

um todo, se encaminha para uma definitiva realização: “Este mundo, considerado

como um todo, tem um princípio e uma história; caminha em direção a um ponto

que não é o fim de sua existência, mas, sim, o fim do ciclo inacabado e

continuamente engendrado de sua história”511.

Sim, a criação não cessa de existir, encaminha-se para o seu

desabrochamento completo, para a realização de uma promessa já em andamento.

Atento às intuições de A. Gesché, não seria uma concessão descabida pensarmos

o cosmo como uma realidade destinada, desde toda eternidade, à comunhão

divina. Isso porque toda a criação – perpassada de ponta a ponta pelo Logos

criador e salvador – já carrega em si uma capacidade de destinação que lhe é dada

por sua estrutura ressurrecional512.

A criação - não é demais repetir que se trata da humanidade em estreita união

com as demais criaturas – chamada desde o seu ato fundacional à comunhão com

Deus, foi abalada e ferida pelo mal. A cruz libertadora de Cristo recoloca a

criação em sua trajetória original, de modo que as suas estruturas de capacidade

509 GISEL, P., ibid., p. 97. 510 RAHNER, K. “La resurreccion de la carne”, in Escritos de Teologia, tomo II, Madrid: Taurus Ediciones, 1961, p. 218. 511 Ibid. Essa percepção de Rahner é retomada por M. Petty em perspectiva ecológica: PETTY, M., A Faith that Loves the Earth: The Ecololgical Theology of Karl Rahner, Lantham: Univ. Press of America, 1999, p. 159. 512 GESCHÉ, A., O Cosmo, p. 168-173.

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podem completar o seu ciclo de desenvolvimento. Isso porque o mundo já possui

a semente de uma vida eternamente realizada, uma vida semeada em toda a

criação. Esta, danificada pelo mal, ressuscita em Cristo tal como um “corpo

semeado” que germina em vida plena513. Jesus, por sua ressurreição, devolve ao

cosmo a sua capacidade querida desde as origens. Não há como dissociar o cosmo

da salvação. Por sua ressurreição, Jesus cura na criação a capacidade primordial

que ela recebeu, isto é, de poder partilhar da vida divina514. Tem razão, pois, A.

Gesché quando diz que “o corpo desta terra tem uma estrutura ressurrecional”.

5.3.3

Uma criação que sofre à espera da redenção final

Falamos já repetidas vezes do mal, de uma criação ferida e abalada por um

impulso exterior que a afasta do seu caminho originalmente planejado. Jesus

percebeu e experimentou essa realidade. Enfrentou-a com o seu gesto solidário de

amor e serviço às vítimas da dor. E, com a ressurreição, a vitória sobre a cruz,

curou “no cosmo uma capacidade recebida nas origens”, de modo que a criação

pode continuar a seguir o seu curso até o completo desabrochamento.

Enquanto isso, até o presente, “a criação inteira geme e sofre as dores do

parto” (Rm 8,22). O que presenciamos é um mundo em que a desarmonia tem

sido o componente constante de uma história de sofrimento e de dor. A

experiência do mal faz parte do cotidiano dos protagonistas dessa história, na qual

tem ressoado a voz perplexa dos humanos – especialmente o clamor dos

empobrecidos – que se une ao grito – outrora silencioso, mas agora cada vez mais

perturbador – da nossa terra ferida de morte pela agressão antiecológica. Sim, é

inegável. O mal aí está, diante de nós, com suas múltiplas manifestações que

questionam não só a afirmação da bondade do mundo criado, da condição humana

em sua capacidade de amar, pensar e agir responsavelmente, mas, sobretudo, da

realidade de um Deus que cria e salva por amor. Como nos alerta A. Gesché:

513 Ibid., p. 169-170. 514 Ibid., p. 171.

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“Este problema não permite (não deveria permitir) nenhum engodo, nenhuma

escamoteação do pensamento”515.

Importa, pois, não escamotear o problema e afirmar essa tremenda realidade

que atravessa a criação. Problema, como se sabe, muito complexo, a começar pela

sua conceituação. O mal, para alguns, é indefinível porque se manifesta em

situações muito variadas e distintas para serem enquadradas num único

conceito516. Dentro dessa multiforme realidade, o sofrimento é o efeito comum

seja do chamado mal natural, que independe da liberdade humana, seja do mal

moral ou pecado, resultado do uso inadequado da liberdade humana517. A

tendência moderna é focalizar o mal em sua dimensão mais antropocêntrica, isto

é, algo que desvirtua o ser humano do seu caminho de humanização, tal como

pensa J. Gevaert518. Hoje, em face da questão socioambiental, essa visão é

necessariamente alargada para incluir a relação do ser humano com o seu entorno

natural, haja vista – como nota acertadamente J. A. Estrada – que a atuação

humana, ao interferir negativamente na natureza, “em vez de humanizá-la, torna-a

mais hostil”519.

Não menos complexa têm sido as tentativas de explicação de sua origem. Na

busca de uma resposta a esse grande desafio – Unde malum? De onde provém o

mal? – tem havido um esforço gigantesco de especulação que vem desde uma

perspectiva metafísica tradicional – o mal só se deixa compreender como privação

do bem520 – passando pelo racionalismo moderno – representado

paradigmaticamente pelo universo harmonioso de Leibniz521 – até as perspectivas

515 GESCHÉ, A., O mal,. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 9. 516 É opinião, por ex. de J.L.R. de la Peña; cf. Ibid., Teologia da Criação, op. cit.,p. 137-138. 517 Cf. RUBIO, A.G., Unidade na Pluralidade, op. cit,.p. 603. Sobre a clássica divisão entre mal metafísico, físico e moral, ver ESTRADA, J. A., A impossível teodiceia. A crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 9-14. 518 GEVAERT, J., “Male”, in Dizionario Teológico Interdisciplinare, vol. II, Torino: Marietti Editori, 1977, p. 434. 519 ESTRADA, J. A., ibid.,,p. 143. 520 Rejeitando o dualismo ontológico (o princípio do bem e o princípio do mal), a tradição metafísica cristã afirma a precedência e o primado do bem. Para Santo Agostinho, o mal é a privação do bem (privatio boni - Conf. III, 7, 12) ); para Santo Anselmo, “é a ausência de um bem devido” (absentia debiti boni – De Conceptu Virginali, 5) e para Santo Tomás, o mal é “privação de um bem particular” (alicuius particularis boni privation - Suma Teológica I q. 14, a. 10), ou seja, nada é mau por essência ou por sua natureza, mas por privação. Cf. LACOSTE, J-Y., “Mal”, in Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas, Loyola, 2004, p. 1075-1077. Cf. também RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, p. 603; ESTRADA, J. A., ibid., p. 118-124. 521 Cf. LACOSTE, J-Y.,ibid., p. 1077; GEVAERTE, J., ibid., p. 435-436; ESTRADA, J.A., ibid., p. 206-229.

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contemporâneas abertas pelo marxismo522, pela chave da teoria da evolução523 e

pelas variadas correntes das ciências humanas (a psicanálise, a etologia, a

sociologia)524 que oferecem novas possibilidades de resposta.

A reflexão teórica, embora tenha se mostrado insuficiente para uma

elucidação cabal do porquê da existência dessa trágica realidade, é, contudo, uma

tarefa válida e necessária quando associada ao esforço prático do combate ao

sofrimento e à dor causados pelo mal. Isso é muito importante, sobretudo, para

evitar o perigo de fatalismo ou de resignação diante do mal que algumas

explicações sobre a sua origem podem provocar525. Ademais, reduzir a reflexão à

dimensão meramente racional do problema pode levar ao caminho da

desrealização do mal com o risco de se esquecer – como adverte J-Yves Lacoste –

“que a questão é menos teórica do que prática, e que o mal não exige

prioritariamente ser compreendido, mas ser combatido”526.

No âmbito teológico, as tentativas de justificar racionalmente o mal,

mediante o postulado do Deus criador e bom – as chamadas teodiceias – têm se

mostrado insatisfatórias ou mesmo uma tarefa impossível527. Essas teorizações

acabam por cair na tentação de suprimir ou negar a própria realidade do mal, tal

como o fizeram – na opinião de A. Gesché – “a tradição platônica do mal como

simples ausência de bem ou a teoria de Leibniz sobre o melhor dos mundos

possíveis”528.

Digno de nota tem sido o esforço desenvolvido pelo teólogo A. T. Queiruga

para abordar essa problemática no atual contexto de uma cultura cada vez mais

secularizada529. A sua reflexão parte do princípio de que o mal não é um problema

religioso, antes, trata-se simplesmente de uma questão humana universal. Daí

porque inicia fazendo um estudo do mal em si mesmo (uma ponerologia) onde

522 Cf. GEVAERT, J., ibid., p. 438-439. 523 Ibid., p. 437-438. 524 Para uma boa visão de conjunto sobre o mal na perspectiva das ciências humanas, ver. RUBIO,

A.G., Unidade na Pluralidade, p. 612-614, baseado na obra de HAAG, G., El problema del mal, Barcelona, 1981. 525 GESCHÉ, A., O mal, op. cit., p. 99; RUBIO, A.G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 605 e 609. 526 LACOSTE, J-Y., ibid., p. 1078. 527 É o que mostra J. A. ESTRADA em sua obra já citada. Por sua importância na tradição cristã e filosófica, ver particularmente a análise do autor à teodiceia agostiniana (p. 115-144) e a de Leibniz (206-229). 528 GESCHÉ, A., ibid., p. 97. 529 Cf. QUEIRUGA, A. T., Recuperar la salvación. Para una interpretación liberadora de la experiência cristiana, Santander: Sal Terrae, 1995, p. 87-158; Ibid., “Repensar o mal na nova situação secular”, in Perspectiva Teológica, 33 (2001), p. 309-330.

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conclui que, estando a raiz do mal no caráter limitado e finito da realidade, é

impossível pensar um mundo sem mal530. Constatada essa impossibilidade, o

segundo passo de sua reflexão é buscar um sentido para se viver num mundo

assim, marcado inevitavelmente pela terrível presença do mal. Nesse segundo

momento – que compreende uma pisteodiceia, ou justificação da fé – entra a

dimensão propriamente religiosa que supõe a fé no Deus que “é amor”531. A

abordagem de Queiruga tem o grande mérito de articular a riqueza da tradição

cristã numa linguagem que faz sentido para a mentalidade do mundo

contemporâneo. Por outro lado, tem sido duramente criticada por secularizar a

realidade do mal, estabelecendo a finitude e contingência do mundo criado como a

condição de possibilidade do mal, que o torna uma realidade inevitável. O eixo de

interpretação do pensamento de Queiruga estaria inspirado no racionalismo

metafísico de Leibiniz. Na opinião de J. A. Estrada, [a sua formulação]

“permanece estribada em um lastro metafísico de índole inequivocamente

leibniziana, que não lhe permite superar algumas de suas limitações”532.

O mal está diante de nós. Negá-lo, como nos adverte A. Gesché, seria

enganar a si mesmo e enganar os outros. Sim, existe o mal, “e ele não está

simplesmente na casca, simples rebarba em uma evolução que inevitavelmente

forma a espuma, mas é mal que está aí e perfura a realidade”533. Mas essa

realidade perturbadora é, e permanece sendo em sua essência última, o que a

expressão paulina designa como “mistério”; mysterium iniquitatis (cf. 2Ts 2,7).

Daí que o mal será sempre inapreensível do ponto de vista racional e a reflexão

teológica não pode ser um tipo de gnose sobre a sua origem, pois, como bem

caracteriza J. A. Estrada, “o conhecimento acerca do mal é sempre fragmentário,

além do que o mal resiste à racionalização e é insuperável pela contingência

530 A conclusão geral a que chega o autor é a seguinte: “A realidade não é má pelo fato de ser limitada e finita, mas está inevitavelmente aberta ao ‘mal’. E esse mal se torna presença efetiva como ‘mal físico’ nas realidades naturais e como ‘mal moral’ no âmbito da liberdade humana. Dito com outras palavras: é realmente impossível a existência de um mundo sem mal, tanto físico

como moral, mesmo na hipótese de ‘outros mundos’ possíveis (que sempre seriam finitos e limitados). Mais ainda , é preciso afirmar de maneira explícita que se trata de uma necessidade estrutural. ‘Pensar’ um mundo sem mal equivale a ‘pensar’ um círculo quadrado, ou seja, não pensar, mas simplesmente justapor palavras, corretas talvez do ponto de vista sintático mas desprovidas de qualquer sentido semântico”, Ibid., “Repensar o mal”, p. 318. 531 Ibid., p. 318-330. 532 ESTRADA, J. A., ibid., p. 229-242; aqui p. 242. 533 GESCHÉ, A., O mal, p. 95.

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histórica”534. Esse tipo de conhecimento – a razão de uma criação atravessada pelo

mal - é de competência exclusivamente divina. Certamente por isso, o

ensinamento bíblico não pretende explicar e muito menos justificar o mal535.

Embora sem poder oferecer uma resposta cabalmente esclarecedora, a reflexão

cristã pode, isto sim, propor um sentido para a vida mesmo em meio à experiência

atormentadora do mal.

A perspectiva ressaltada por A. Gesché é muito salutar. Ele lembra que a

tradição bíblica fala do mal como um elemento surpresa na criação: não foi

querido por Deus, não estava previsto. Isso significa que o mal é desprovido

completamente de sentido, pois não pertence ao plano da criação536. Ele vem de

fora, nem é de Deus nem da criação. Ao aparecer, ele vem de um lugar

desconhecido, representado pela figura enigmática da serpente. Portanto, não pode

ser procurado no lado de Deus, pois ele surge de repente, “vindo não se sabe de

onde para um plano que não o previa e pega o homem de surpresa, como

inimigo”. Tampouco, primeiramente, deve ser buscado no ser humano, pois o mal

o precede537. Essa perspectiva também é compartilhada por J. A. Estrada em sua

crítica ao discurso racionalista da teodiceia:

“Os textos judeu-cristãos sugerem que o mal originário é anterior à própria criação de nosso mundo e não decorre exclusivamente dela. Em outros termos, os mitos e as tradições religiosas estabelecem uma dissociação entre a criação contingente e a aparição do mal. Eles fazem alusão ao caos e à desordem vigentes antes da palavra ordenadora do criador e remetem ao símbolo do tentador, à figura da serpente, como instância que impede a redução do mal ao pecado humano ou ao mundo como criação”538.

Ora, esse deslocamento do mal para fora da criação é muito alentador, pois

o mal é visto como não fazendo parte da natureza das coisas; é um absurdo total,

não tem nenhuma lógica, de modo que pode e deve ser combatido. Deus e o ser

humano estão juntos nessa luta contra o mal. Deus é o primeiro interessado, como

mostram os relatos bíblicos do Jardim do Éden ao Getsêmani539. O ser humano,

534 ESTRADA, J. A., ibid., p. 417. 535 GHESCHÉ, A., O mal, p. 96. 536 Ibid., p. 43. 537 Esse aspecto da precedência do mal e do consentimento pela liberdade humana será amplamente tratado pelo autor na questão do pecado original, numa perspectiva que ressalta menos a culpabilização e mais a graça redentora. Cf. Id., p. 93-110. Para uma visão do pecado original em perspectiva evolucionista, ver RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 649-662. 538 ESTRADA, J. A., ibid., p. 237. 539 GESCHÉ, A., O mal, op. cit., p. 29-30.

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por sua vez, percebe que Deus está com ele nessa luta, é seu aliado. A. Gesché

fala de “responsabilidade ativa” no sentido de que o ser humano, ao tomar

consciência da realidade do mal, sente que este o antecede, que vem a ele como

um adversário, que pode seduzi-lo. Pelo consentimento de sua liberdade, contudo,

o ser humano permite que o mal se realize (pecado). Há uma culpabilidade, sim.

Ela consiste – isso é importante notar! – no ato segundo (subjetivo) de consentir.

A protoculpabilidade – aquilo que origina o mal – está do lado da serpente:

“Há deuteroculpabilidade que consiste, naquele que foi surpreendido, vítima (da tentação), em ter consentido no mal, em ter aceito que essa ‘ordem’ demoníaca tome o lugar da ordem divina. O que é certamente grave (e sobretudo em seus resultados), mas que mostra que o pecado não é uma perversidade verdadeiramente imanente ao homem”540.

Essa tomada de consciência, portanto, pode ser feita sem que o ser humano

tenha que carregar o peso insuportável da culpa. Ora, percebendo que o mal se

encontra à sua frente, não dentro dele, o ser humano também se sente chamado ao

engajamento ativo contra o mal. Ele pode adentrar pelo caminho da salvação que

lhe devolve a possibilidade de se relacionar positivamente com o criador e as

criaturas, retomando a destinação última de sua vida541.

Em face do seu realismo, o mal é visto como sendo injustificável para o ser

humano e para Deus. Em decorrência dessa visão, não é aceitável um

comportamento que seja pautado pelo fatalismo, pela resignação ou mera

racionalização dessa realidade. Mas, no decorrer concreto da vida, onde buscar o

sentido e a esperança de um mundo sem mal? Consciente de que o mal é um

problema teoricamente insolúvel – estamos diante do mysterium -, o cristianismo

oferece uma possibilidade de sentido (salvação) que dinamiza uma práxis

libertadora e consistente na luta contra o mal. Permanece, sim, a perplexidade

diante de uma criação que segue ferida. O cristão, contudo, pode seguir o curso de

sua vida animado por um esperançoso compromisso que a fé lhe suscita.

Aqui retornamos ao aspecto cristológico com que iniciamos essas

considerações sobre a incidência do mal no mundo por nós habitado. A cruz-

ressurreição de Jesus é a resposta definitiva de Deus para o problema do mal. Em

Jesus de Nazaré, Deus assume solidariamente a experiência do mal e vence na

540 Ibid., p, 51. 541 Ibid., p. 51-54.

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força do seu amor. Nas palavras de J. A. Estrada: “a vida, a morte e ressurreição

de Jesus tornam-se assim a síntese da resposta cristã ao problema do mal”542.

Crer na cruz de Jesus – uma cruz assumida durante toda a sua vida através

do amor e serviço – é crer também na esperança da ressurreição, na cura definitiva

do nosso mundo ferido. Isso nos convoca a uma esperança ativa, ou seja, a

engajar-se na luta contra toda forma de crucifixão. A ressurreição de Cristo nos

assegura que a morte não tem a última palavra. Apesar do realismo do mal,

recorda A. Gesché: “a criação é e continua sendo boa; portanto, o bem terá e

deverá ter a última palavra. Se o mundo está simplesmente ferido, é porque não é

o que deveria ser e, portanto, podemos restabelecê-lo”543. Reiteramos, pois, o que

acima já foi dito: o corpo deste mundo tem uma estrutura ressurrecional! E isso já

nos indica o quanto esse mundo é valioso em si mesmo!

5.4

A dimensão simbólico sacramental da natureza

Ao compreender a natureza como criação – sem ser nem divina nem

demoníaca544 - a teologia cristã vê uma dimensão sacramental no mundo criado,

reconhecendo o seu caráter bom e santo. Santo porque é um sinal do mistério

divino, um sinal da presença do “espírito incorruptível” do criador em todas as

coisas criadas (Sab 11,22-12,1). A imanência de Deus é o tema dominante que

abre o relato da criação: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra

estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava

sobre as águas” (Gn 1, 1-2). O mesmo tema aparece no Prólogo do Evangelho de

João: “No princípio era o Verbo...Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi

feito” (Jo 1,1.3). Com razão, Elizabeth Johnson pode afirmar que a Encarnação é

a “radical afirmação de que, em Jesus Cristo, Deus está no coração da humanidade

e de toda a criação”545. A Encarnação tem uma dimensão cósmica levando todo o

mundo criado à unidade com o Deus criador:

542 ESTRADA, J. A., ibid., p. 433. 543 GESCHÉ, A., O mal, op. cit. p. 99. 544 SUSIN, L. C. A Criação de Deus, op. cit., p. 15. 545 Citado em HILL, Brennan R. Christian Faith and the Environment: Making Vital Connections, New York: Orbis Books, 1998, p. 103.

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“A Encarnação de Deus-Filho significa que foi assumida à unidade com Deus não apenas a natureza humana, mas também, nesta, em certo sentido, tudo que é ‘carne’: toda a humanidade, todo o mundo visível e material. A Encarnação, por conseguinte, tem também um significado cósmico, uma dimensão cósmica. O ‘gerado antes de toda criatura’, ao encarnar-se na humanidade individual de Cristo, une-se, de algum modo, com toda a realidade do homem, que também é carne e, nela, com toda a ‘carne’, com toda a criação”546.

A nossa terra – vimos anteriormente com A. Gesché – é a morada do Logos

divino já antes da criação, passando pelo evento da Encarnação, até o momento

definitivo da Parusia. Esse nosso mundo, a realidade inteira com todas as

criaturas, é “lugar de Deus, morada onde seu Logos age”. Aqui está a

fundamentação radical do valor intrínseco da criação: sendo Deus inteligência e

bondade, o que cria só pode ser inteligente e bom. Daí a importância de sabermos

que o mundo é criação de Deus. Essa afirmação não visa primeiramente a dar uma

explicação da origem do mundo, mas sim afirmar que o mundo criado tem um

sentido e é bom547.

Por seu caráter sacramental, a natureza é como um livro que fala do criador,

tal como assinala com grande sensibilidade João Paulo II: “A Natureza nos fala de

Deus. O ouvido e o coração devem estar livres do barulho para ouvir esta divina

voz ecoando no universo... A natureza também, em certo sentido, é o ‘livro de

Deus’”548. Ou seja, o mundo, desde o início, está habitado pela presença de

Deus549, que se encontra em todas as coisas e, ao mesmo tempo, transcende a tudo

como criador.

Por outro lado, “o universo inteiro participa da bondade divina”550. O

mundo da natureza, e com ele o ser humano, constitui uma manifestação da vida e

da bondade de Deus. Pois, “tudo o que Deus criou é bom” (Ef 4,4), escreve São

Paulo, fazendo eco ao texto do Gênesis que relata a satisfação de Deus com cada

uma de suas criaturas as quais, por sua beleza e grandeza “fazem, por analogia,

contemplar seu Autor” (Sab 13,5). A natureza, portanto, é portadora de um

546 JOÃO PAULO II, Dominum et Vivificaantem, n.50. São Paulo: Ed. Paulinas, 1986. 547 GESCHÉ, A., O Cosmo, op. cit., p. 123. 548 J. PAULO II. Audiência Geral 02/08/2000, N.3. In PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE. Op. cit., p. 74. A tradução é nossa. 549 Cf. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989, p.230. 550 S. TOMÁS DE AQUINO, op. cit.

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profundo significado. Cada criatura, ao seu modo, é reveladora da bondade e

beleza do criador551. De fato,

“no interior da criação há muitos caminhos de extraordinária beleza pelos quais o coração de quem crê pode enxergar a beleza do criador... De modo que, contemplando a beleza das criaturas, a pessoa humana pode descobrir as mãos do Artista nas suas obras maravilhosas”552.

O valor intrínseco de todas as criaturas dado pelo seu relacionamento com o

criador553 e a visão da natureza como um sinal da presença amorosa de Deus

revelam que, no interior do mundo criado, existe uma dimensão simbólico-

sacramental554, pois a natureza é “o ambiente onde Deus revelou a sua divina

vontade e propósito para todas as coisas”555. Por conseguinte, o mundo natural

tem valor próprio, a natureza - toda criatura viva e não viva, humana e não

humana - vale por si mesma, independentemente do uso que dela possa fazer o ser

humano,

“porque a natureza não é apenas exterior ao homem, mas está dentro do homem, porque todos somos parte da natureza, todos somos parte da criação, todos somos criaturas. Toda criatura tem seu próprio valor intrínseco, um papel próprio e todas existem em recíproca interdependência. A integridade e a dignidade própria de cada ser lhe vêm não de sua referência ao homem, mas de sua referência ao amor que Deus tem a cada criatura. A ‘dívida para com a natureza’ é uma dívida para com a criação, para com Deus, uma ofensa ao seu amor presente em cada criatura”556.

Segundo a ótica cristã, a natureza é compreendida como uma realidade

sacramental dentro de uma visão sintética e integrada da criação, de modo que

cada parte simboliza a totalidade e esta é sinal da criação escatológica557. Os ritos

dos sacramentos cristãos, nos quais são utilizadas substâncias extraídas da

natureza, já mostram uma atitude de reverência para com os elementos da

natureza – sinais da presença divina na criação – a qual é percebida não como

sagrada em si mesma, mas como símbolo do sagrado e, como tal, digna de 551 Não concordamos, portanto, com a opinião de Antônio Salatino para quem a tradição judaico-cristã promoveu a ruptura entre o homem e natureza, de modo que a ausência de árvores e jardins em torno de templos cristãos (nas catedrais europeias e na Basílica de Aparecida, por exemplo) se deve à influência do cristianismo que desvalorizou a natureza. Cf. SALATINO, Antônio. Nós e as plantas: ontem e hoje. Revista Brasileira de Botânica, n. 4, (2001), p. 483-490. 552 J. PAULO II, citado em PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, ibid.,, p. 62. 553 EDWARDS, D. Jesus, The Wisdom of God, op. cit., p. 154. 554 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 554. 555 CHARDIN, T. Citado por HILL, Brennan R., ibid., p. 102. 556 REGIDOR, José Ramos. Premissas para uma teologia ecossocial da Libertação. Concílium, 261 (1995), p.113. 557 De la PEÑA, J.L.R. Crisis y apologia de la fe, op. cit., p. 266.

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reverência, respeito e amor558. Portanto, a doutrina cristã da criação não

compreende a natureza como um mundo encantado, povoado por espíritos e

dominado por forças míticas; antes, contempla o mundo natural como uma

realidade que procede do criador cuja presença habita em todas as criaturas. Daí o

valor da natureza como manifestação do Amor e da Vida.

Infelizmente, a racionalidade instrumental negligenciou esse valor da

natureza, considerando as criaturas apenas como objetos manipuláveis. Segundo

esta perspectiva, o ser humano, dotado de razão e de espírito, se relaciona com o

mundo natural de uma maneira radicalmente diferente: as criaturas são objetos

que são conhecidos e instrumentalizados pelo sujeito humano. O mundo natural é

simplesmente objetivado, numa relação que segue um modelo mecanicista e

dualista. Esse tipo de relação foi descrito pelo filósofo Martin Buber como uma

atitude do tipo “Eu-Isto” (“I-It”)559. Ora, porque todas as criaturas não vivem

isoladas, mas constituem uma rede vital de interligações, a relação mais

apropriada deve ser uma atitude do tipo “Eu-Tu”, de sujeito a sujeito560. Por causa

dessa inter-relação, “não podemos ser pessoas sem as outras pessoas, como

também não podemos ser humanos isolados das outras criaturas”561. Thomas

Berry se refere a todo o universo como “uma comunhão de sujeitos” 562. Essa

maneira nova de compreender e de se relacionar com a natureza, adequada às

exigências do pensamento ecológico, está também em consonância com a teologia

cristã da criação, uma vez que,

“afirmar que o mundo natural é um ‘sujeito’, é dizer que a Criação tem um caráter dinâmico, relacional e pessoal, um valor intrínseco independentemente de qualquer valor que possa ter para os humanos. Somos seres que interferem em outros e, por nossa vez, somos influenciados pelos demais”563.

É nesse espaço, formado generosamente pelo criador e já habitado pelas

outras criaturas, que chega o ser humano - “o último a ser criado” – para juntar-se

558 Ibid. 559 ABRAHAM, K. C. A Theological Response to the Ecological Crisis. In: HALMANN, D. (ed.). Ecotheology: Voices from South and North. New York: Orbis Book, 1994, p. 69. McFAGUE, Salie. Modelos de Deus. Teologia para uma era ecológica e nuclear. São Paulo: Paulus, 1996, p. 28. 560 Alguns autores já falam de uma “subjetividade” presente em cada uma das criaturas. Cf. RUBIO, A. G. Unidade na pluralidade,op. cit., p. 555, nota 45. McFAGUE, Salie. Modelos de

Deus, op. cit., p. 28. 561 The Lutheran Church of America: This Sacred Earth: Religion, Nature and Environment. Citado por HILL, Brennan R., ibid., p. 176. 562 SWIMME, Brian and BERRY, Thomas. The Universe Story, op. cit., p. 243. 563 PROFIT, James. Ejercicios Espirituales y Ecología. Promotio Iustitiae, n. 82, (2004), p. 7.

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a todos os seres que “contam a glória de Deus e proclamam a obra de suas mãos”

(Sl 19,2). De fato, como bem observa Roger Burggraeve, “a espécie humana foi

colocada num mundo já existente em sua totalidade; é a última que chegou”564.

Criatura entre as criaturas, o ser humano entra no mundo para ser o “porta-voz da

criação”565 - mantendo uma relação dialógica com o Deus da Vida – e para iniciar

a aventura de ser o “anjo da terra”, sendo capaz de responder com consciência e

liberdade ao chamado de Deus para cultivar e guardar o “jardim” (Gn 2,15). A sua

vocação é colaborar com o criador – “um pacto de companheirismo” - em vista da

vida sobre a terra566.

5.5. O ser humano na criação

Segundo o primeiro relato bíblico da criação, terminada a separação e a

ordenação das obras do mundo, é criada a imagem de Deus na terra (Gn 1, 26-31).

O criador dirige a si mesmo a palavra e toma a decisão de criar o ser humano que,

dessa forma, nasce de uma especial determinação divina. Deus determina a si

mesmo – comenta J. Moltmann – “colocar a sua imagem e sua honra nas criaturas

terrestres e, com isso, ele próprio é trazido para dentro da história dessas

criaturas”567.

Ser criado como imago Dei pode receber – como de fato tem acontecido –

uma interpretação excessivamente antropocêntrica pela qual o ser humano, por ter

uma capacidade especial como a razão, é visto como superior ou muito acima das

outras criaturas. Sabemos que essa interpretação leva facilmente a uma imagem

distorcida que justifica o uso predatório e destruidor da natureza. A crítica que

emerge do movimento ecológico não vê com bons olhos a noção de imago Dei.

Numa perspectiva ecológica, portanto, é importante focalizar o significado

primeiro desse conceito. O que realmente qualifica o ser humano como imagem

de Deus? Para J. Moltmann a chave de interpretação está no aspecto relacional.

Ser imagem de Deus, para ele, significa em primeiro lugar:

564 BURGGRAEVE, R. Responsável por um novo céu e uma nova terra. Concilium, 236 (1991), p.16. 565 RUBIO, A. G. Crise Ambiental e Projeto Bíblico de Humanização Integral. Op. cit., p.20. 566 SUSIN, L. C. A Criação de Deus, op. cit., p. 98. 567 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit.,p. 312-346; aqui p.315.

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“A relação de Deus para com a pessoa e somente então a partir disso a relação da

pessoa para com Deus. Deus se coloca num tal relacionamento para com a pessoa que essa se torna a sua imagem e a sua honra na terra. O ser da pessoa brota dessa relação de Deus para com a pessoa e consiste nessa relação, e não nessa ou naquela qualidade que diferenciam a pessoa de outros seres viventes”568.

Vimos anteriormente o caráter pessoal e relacional da Trindade. Deus é uma

comunidade de Pessoas interrelacionadas, isto é, que vivem em comunhão de

amor mútuo. Pois bem, ser criado à imagem de Deus é precisamente ser capaz de

viver em relação. Nada mais aviltante à imagem de Deus do que um

relacionamento do ser humano com o próximo e com o mundo natural baseado no

domínio opressivo e destruidor. Antes, o relacionamento deve ser harmonioso, de

abertura, construtivo. Nas palavras de Mccarthy: “Ser criado à imagem de Deus é

possuir em si mesmo esta dinâmica que possibilita uma relação de amor com o

Outro que é Deus, mas também com toda a criação”569.

Assim, na criação, Deus encontra alguém semelhante com quem pode

estabelecer uma relação dialógica, um ser que pode responder livre e

conscientemente às interpelações divinas, como observa H. W. Wolff:

“A relação de correspondência, indicada pela expressão imagem de Deus, antes de mais nada deve ser vista no sentido que o homem corresponde à palavra da interpelação de Deus, escutando, e a seguir também obedecendo e respondendo”570.

Deus encontra um parceiro para continuar com sabedoria a obra iniciada.

Diferentemente das outras criaturas, podemos dizer que o ser humano também é

cocriador, criador de cultura, chamado a administrar e transformar

responsavelmente o mundo571. Depois da criação da imagem de Deus, a narrativa

bíblica segue com a ordem de submeter a terra e dominar sobre os animais (v. 28).

Aqui tocamos em um dos pontos mais delicados da teologia da criação. A

interpretação equivocada destes dois verbos – “um sequestro interpretativo” e um

dos erros mais desastrosos da história do Ocidente, na avaliação de L. Susin572 -

foi usada maleficamente para legitimar os desmandos da civilização instrumental

moderna no trato com a natureza. Por causa desta distorção, a fé judaico-cristã

568 Ibid., p. 318. 569 MCCARTHY, J., “Théologie et écologie”, in Nouvelle Revue Théologique 130 (2008), p. 550-572, aqui 559. 570 WOLFF, H. W., Antropologia do Antigo Testamento, op. cit.,p. 212. 571 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 171. 572 SUSIN, L. C. A Criação de Deus, op. cit., 95.

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tem sido duramente acusada de estar na origem da crise ecológica, tornando-se o

alvo número um das críticas mais contundentes:

“Conforme P. Singer, a raiz mais profunda deste antropocentrismo instrumental e em particular da coisificação do animal se encontra na visão judaica da criação. Não é só o judaísmo que adota esta visão, nem é absolutamente o primeiro. Já em 1967, L. White indicou o cristianismo ocidental como sendo a raiz do moderno trato destruidor do ambiente da natureza. Conforme C. Amery (1974), devemos a Gn 1,28 a origem fatal do mito do crescimento que se manifesta como tipicamente cristão e contém a destruição do ambiente. Este versículo - assim afirma Amery – cavou um abismo nefasto entre o homem e os outros seres, colocando o homem numa posição quase divina, que lhe permitia dispor arbitrariamente de seres não humanos. Conforme T. Lemaire, é por esta razão que ‘um voltar-se para a Terra na sua função de única e autêntica morada do homem e dos outros seres, tem que libertar-se da tradição cristã”573.

Para uma correta compreensão da tarefa do ser humano, segundo a vontade

do criador, é necessário corrigir esse erro interpretativo e ter presente o

significado original do mandato genesíaco.

5.5.1

O sentido de “submeter” e “dominar”

Tendo em vista o contexto teocêntrico da criação, nota-se, antes de tudo,

que as tarefas são dadas pelo criador e devem ser desempenhadas em nome de

Deus na perspectiva de sua dinâmica criadora. Ou seja, como o criador abençoa,

assiste e quer o bem para a sua criação, o ser humano – enquanto imagem e

semelhança de Deus - deve agir de igual maneira, promovendo a vida e, ao longo

da criação histórica, orientar-se com todas as criaturas rumo à plenitude da Nova

Criação.

É dentro desse horizonte do processo criativo que podemos encontrar o

sentido mais adequado do termo “submeter” (kabas) que, dependendo do

contexto, pode até significar uma ação violenta ou tirânica. Contudo, o seu

significado mais radical é “colocar o pé sobre um objeto ou um ser vivo”, o que,

na maioria das vezes, quer significar o gesto de tomar posse, amparar e

573 BURGGRAEVE, R. Responsável, op. cit., p. 123.

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proteger574. Ora, quando o ser humano recebe a missão de colocar o pé sobre a

terra para que domine as obras da criação (Sl 8, 7), só pode fazê-lo ao modo de

Deus que é Vida e Amor e está sempre propenso à paz. Considerando ainda a

maneira vegetariana de se alimentar (Gn 1, 29s), “submeter a terra” adquire o

significado de tirar do solo os vegetais para o alimento do ser humano e dos

animais, uma vez que “o solo da terra é dado em usufruto para que sirva à vida de

todos os seres viventes”575.

Como sugere A. Ganoczy, o sentido do verbo “dominar” (radah) deve ser

buscado no contexto pastoril do antigo oriente onde sobressai a figura do pastor,

pois o termo radah está relacionado ao “deambular do pastor com seu rebanho,

conduzindo-o para uma boa pastagem, protegendo-o e defendendo-o contra os

animais de rapina”576. Portanto, está longe da intenção do texto bíblico conceder

ao ser humano um tipo de dominação predatória e tirânica sobre as outras

criaturas. Além disso, como acrescenta J. Junges, a figura do pastor que protege

também é a mesma que promove a convivência pacífica entre os animais à

maneira de um “juiz de paz”577.

É verdade, porém, que as expressões “submeter” e “dominar” estão

associadas também à figura do rei. O ser humano, como “rei da criação”,

exerceria o poder de domínio sobre o mundo criado. Tem-se aqui uma nítida

influência de uma prática muito comum no antigo oriente onde o rei - considerado

em sua dupla condição de imagem e filiação divinas – era o representante de Deus

na terra e, em seu nome, exercia poder sobre o mundo. O que era uma distinção

exclusiva dos reis, a tradição bíblica veterotestamentária aplicou para todos os

humanos: como o rei governa Israel, o ser humano preside a criação578. Pelo

menos em teoria – sabemos que, com poucas exceções, os reis de Israel

fracassaram em sua missão -, o monarca era ungido para cumprir a vontade de

Deus em favor do seu povo, sobretudo a manutenção do direito e a prática da

justiça (Sl 72; Jr 21, 11s), distanciando-se, assim, do modelo déspota e tirânico

dos povos vizinhos. Para Israel, somente o reinado de Deus é absoluto, cabendo

574 GANOCZY, Alexandre. Perspectivas Ecológicas na Doutrina Cristã da Criação. Concilium, 236 (1991), p. 50. 575 JUNGES, J. R., Ecologia e Criação, op. cit., p. 49. 576 GANOCZY, Alexandre, op. cit., p. 51. 577 JUNGES, J. R. Ecologia e Criação, op. cit.,49. 578 PANNEMBERG, W. Antropologia en Perspectiva Teológica. Implicaciones religiosas de la teoría antropológica. Salamanca: Edições Sigueme, 1993, p. 93.

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ao rei humano administrar em nome de Deus com justiça e sabedoria. Portanto,

“reinar” sobre a criação significaria exercer um sábio governo sobre as criaturas

para que, sob a administração do ser humano, se cumpram os desígnios do

criador.

Ademais, como lembra Pannemberg, na perspectiva cristã, o destino da

humanidade se realiza na pessoa de Jesus Cristo, cuja messianidade expressa a sua

condição de imagem de Deus e de filiação divina em estreita relação com o tema

do reinado. Reinado, porém, que se manifesta e se realiza na força do amor de

Deus, provocando uma completa inversão nas relações humanas de poder:

“Aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que

quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos” (Mt 10, 43)579. Ora, o

sentido do mandato genesíaco realizou-se de maneira plena na filiação de Jesus –

realização arquetípica do ser humano como imagem e semelhança de Deus - tanto

na sua maneira de relacionar-se com o mundo como na manifestação de sua

glória, pois o Ressuscitado é a perfeita imagem de Deus na terra. Assim, os seres

humanos devem reproduzir em suas vidas a imagem de Cristo, a imagem do

segundo Adão (1Cor 15, 49), incluindo a maneira integrada e respeitosa de

relacionamento com o mundo580.

O mandato bíblico de administrar a criação, conclui Pannemberg, não

confere nenhum direito ao ser humano para dispor da natureza segundo seus

interesses, explorando-a arbitrária e ilimitadamente. Essa usurpação de poder

encontra sua origem, isto sim, na pretensão moderna de autonomia pela qual o ser

humano, ao querer se emancipar do Deus criador bíblico, estabelece para si

mesmo o fim último de suas ações. A ideia de uma liberdade individual que

desconhece um princípio heterônomo de conduta, a não ser aquele determinado

pelas exigências da vida em comum, é que tornou a natureza muito mais

vulnerável à exploração humana. A atual crise ecológica revela, portanto, uma

crise de valores, põe em cheque uma compreensão de autonomia que dá ao ser

humano a pretensão de um poder ilimitado sobre a natureza581. Em sua Encíclica

Centesimus Annus, João Paulo II também se refere a este equívoco antropológico

que se encontra no centro da problemática ambiental:

579 Ibid., p. 94. 580 Um excelente estudo relacionando a pessoa e a missão de Jesus com a ecologia encontra-se em ECHLIN, E. P. The Cosmic Circle. Jesus and Ecology. Dublin: The Columba Press, 2004. 581 PANNEMBERG, W. Antropologia en Perspectiva Teologica, op. cit., p.98.

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“Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito difundido em nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele”582.

De qualquer modo, o sentido dos verbos “dominar” e “submeter” recebe

maior clareza quando é interpretado conjuntamente com o termo “cultivar”, que

aparece na segunda narrativa da criação (Gn 2,4b-25). Já na sua origem, o ser

humano se encontra intimamente ligado à natureza, pois ele é formado da terra, é

um filho da terra. Ao elemento água, que desce do céu para irrigar, junta-se o ser

humano, que sai da terra para cultivar. Só então, na terra que permanecia vazia, o

criador faz surgir o jardim e a multiplicidade dos animais. Em vez de “rei da

criação”, criatura do sexto dia, aqui fica mais em evidência a ideia do ser humano

que está junto do criador desde o início, tal como parceiro ou companheiro de

aliança em favor da vida de todas as criaturas583.

Segundo a doutrina bíblica da criação, dois aspectos diferenciados se unem

na configuração da criatura humana: como imagem de Deus, o ser humano é

diferente das outras criaturas; enquanto “feito de argila’, pertence ao mundo

natural, visceralmente unido a ele, de tal maneira que o destino do homem e do

mundo estão inseparavelmente unidos”584. Os dois relatos em seu conjunto,

portanto, se completam e mostram com melhor nitidez em que consiste a posição

especial do ser humano na criação, a sua singularidade como imagem de Deus: a

vocação para apascentar e cultivar, a capacidade de intervir no mundo natural e

administrá-lo responsavelmente, com sabedoria e bondade, segundo os desígnios

do criador.

Temos afirmado reiteradamente neste capítulo que a criação querida por

Deus é uma verdadeira novidade no sentido de que ela possui internamente aquilo

que A. Gesché chama de estruturas de capacidade. Porque atravessado de ponta a

ponta pela palavra criadora do Logos, o mundo tem uma capacidade interna de

582 J. PAULO II, Centesimus Annus, n. 37. São Paulo: Edições Loyola,1991. 583 SUSIN, L. C. A Criação de Deus, op. cit.,p. 98. 584 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, op. cit.,p. 293.

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criatividade, de autogênese, recebida em suas origens e que segue em processo de

devir até seu desabrochamento completo. Deus quis uma criação aberta, um

mundo inacabado para que a realidade toda criada completasse, a partir das suas

capacidades recebidas, a obra divina. A criação foi ordenada por Deus pela

inteligência do Logos e pelo convite-mandamento “para que o mundo e nós

fizéssemos o restante”. Aqui também se encontra o sentido do mandamento

“dominai a terra", ou seja, uma participação respeitosa e agradecida – sem

violência ou agressão - para conduzir o mundo, para ampliar as suas capacidades

até a consumação cósmica definitiva585. Portanto, a nossa tarefa de preservar esta

terra, ou salvaguardar – para usar uma palavra muito cara a A. Gesché – as suas

estruturas de capacidade, tem uma motivação primordialmente teologal586.

“Dominai a terra” recebe, assim, o seu significado mais original, isto é, colaborar

com o criador para que este mundo seja uma terra habitável, a morada do Logos, a

morada de todas as criaturas. São Paulo já intuiu muito bem, recorda A. Gesché: o

mundo foi feito para mais e ele geme por esse mais (cf. Rm 8, 22-23)587. Numa

palavra, o mundo tem - recebeu desde a origem o Logos de eternidade - estruturas

de destinação, isto é, de salvação.

Seria um equívoco, portanto, considerar o ser humano ápice isolado ou

“coroa” da criação tal como foi pensado segundo uma visão antropocêntrica de

mundo. O ser humano é membro da comunidade da criação e, junto com todas as

criaturas, caminha para o Sábado, que é o coroamento e o cume da obra criadora.

5.6

A “celebração da Criação”

Consoante com a tradição bíblica, o criador descansa, abençoa e consagra o

dia em que concluiu o trabalho inicial de sua criação: “Deus concluiu no sétimo

dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou... Deus abençoou o sétimo dia e o

santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação” (Gn 2, 2-

3). O descanso sabático assinala o coroamento-conclusão da obra divina, é o

585 GESCHÉ, A., O Cosmo, op. cit., p. 172-173. 586 Ibid., p. 80-106; aqui 94. 587 Ibid., p. 104.

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ponto alto de toda a sua criação. No âmbito da teologia esse é um tema de grande

importância para uma correta explicitação da fé bíblica no criador e, numa

perspectiva ecológica, tem sido um elemento comum no esforço de resgatar a

integridade e o valor do mundo natural e das criaturas não-humanas588.

Tudo foi criado em vista do sábado, quando o criador descansa. Ao entrar

no repouso sabático, na contemplação de suas criaturas, faz que elas existam em

sua presença e, ao mesmo tempo, está presente na existência delas. Com efeito, “o

mundo não somente foi criado por Deus, mas ele existe ante Deus e vive com

Deus”589. É para isso que as criaturas são convidadas e por isso existem. Todo o

mundo criado está destinado à face de Deus.

No repouso do sábado, a criação é remetida à sua origem, vale dizer, ela é

respeitada como obra do criador. Numa palavra, o sábado é um sinal de

reconhecimento de que o mundo não é apenas natureza, antes, é criação590. Na

perspectiva bíblica, aí está, portanto, a fundamentação da dignidade e do valor

intrínseco da natureza que deve ser apreciada, respeitada e santificada pelos seres

humanos.

Outro aspecto importante da teologia do sábado, com consequência muito

positiva no âmbito ecológico, é a perspectiva da paz vivenciada no repouso

sabático. No tempo consagrado ao Senhor, o trabalho que interfere no ambiente dá

lugar ao descanso cuja quietude é geradora de paz em relação a Deus, aos outros

seres humanos e à natureza. Com razão observa J. Moltmann:

“No silêncio sabático, as pessoas não interferem mais através do trabalho no meio ambiente, mas deixam-no ser como criação de Deus. Elas reconhecem que a criação não pode ser danificada, pois ela é propriedade de Deus e santificam este dia através da alegria de estarem existindo como criaturas de Deus em meio a uma comunhão de criação. A paz sabática é primeiramente a paz com Deus, contudo abarca também não somente as pessoas, mas os animais, não só os seres vivos, mas também toda a criação do céu e da terra. Por isso, o sábado também abre a ‘paz com a natureza’”591.

Como essa dimensão de paz ou descanso sabático – ou de “passividade’,

segundo A. Gesché592 – é muito importante e necessária na nossa sociedade

588 Cf. MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit.,p. 394-421; JUNGES, J. R.Ecologia e Criação, op. cit.,p. 51-54; SUSIN, L, C., A Criação de Deus, op. cit.,p. 80-83; RUBIO, A.G., Unidade na

Pluralidade, op. cit., p. 167-168. 589 MOLTMANN, ibid., p. 397. 590 Ibid., p. 394. 591 Ibid., 395. 592 GESCHÉ, A., O Cosmo, op. cit., p. 164-168.

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contemporânea que valoriza demasiadamente a ação, a competitividade e o lucro

desmedido! O sábado da criação vem nos recordar que a vida não é feita

primeiramente de cálculos e de negócios, que o ser humano não é puro

pensamento ou ação e que o desenvolvimento não se reduz ao crescimento

econômico. Há lugar também para a gratuidade, o acolhimento, a admiração e a

partilha. Hoje, sob a lógica do lucro, até o mundo da natureza virou mercadoria

egoisticamente disputada sob o disfarce sutil da preservação ambiental. O sábado

vem nos dizer que a criação encontra o seu verdadeiro sentido no encontro festivo

com o criador, onde o ser humano e todas as criaturas podem experimentar a

partilha, a comunhão e a paz.

Em sua dimensão escatológica, o sábado da primeira criação aponta para a

obra redentora que já inicia e antecipa a realidade da Nova Criação593. O domingo

festivo na liturgia cristã celebra a ressurreição de Cristo, o Sábado em pessoa, em

cujo mistério pascal se cumpriu a promessa de vida plena e de completa inserção

das criaturas na trinitária comunhão do Deus criador. Mais do que o mero

cumprimento de um preceito formal, a celebração do domingo como dia do

Senhor é a festa da criação que reconhece no criador a sua origem. É a celebração

da criação que, no descanso em Deus e diante de Deus, participa de sua força

renovadora que, assistindo e conservando as criaturas, constantemente recria o

mundo até a sua final consumação. Desvincular a festa cristã da ressurreição do

descanso sabático, seria esquecer que a autocomunicação amorosa da Trindade

revela uma unidade fundamental entre criação e redenção. É muito oportuna,

portanto, a sugestão de J. Moltmann de que “na crise ecológica do mundo

moderno é necessário e urgente que o cristianismo reflita sobre o sábado da

criação”594.

Conclusão

Perpassada pelo Logos divino, a criação tem uma unidade básica, pois ela

resulta da autocomunicação de um Deus único, não fechado em si mesmo, mas

aberto numa comunidade de Pessoas distintas, amorosamente inter-relacionadas. 593 MOLTMANN, J., ibid., p. 408-411. 594 Ibid, p. 419.

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Ao proceder da Trindade, toda a criação é também intrínseca e vitalmente

relacional. Na comunhão trinitária se fundamenta a multiforme pluralidade do

mundo e a alteridade de cada ser vivo. A criação é, pois, a terra do plural e da

fecundidade. Impõe-se, assim, o respeito ao outro, bem como a acolhida e a

valorização do diferente.

Vimos também que essa unidade fundamental também se revela na

autocomunicação do Logos tanto na sua função criadora como na sua mediação

redentora. Criação e salvação estão intimamente relacionadas. A palavra criadora

é a mesma que veio a este mundo, assumiu a sua carne, garantindo a realização de

uma promessa já semeada. A criação, que ainda geme dilacerada pelo mal, tem a

esperança de uma consumação feliz graças ao mistério da vida-morte-ressureição

de Jesus de Nazaré. Falar, pois, de ressurreição, é associar o mundo à salvação.

Ou seja, aquilo que é criado é o mesmo que é salvo.

Por fim, nessa comunidade de vida, o ser humano se encontra como um ser

dialógico, que carrega em si mesmo a imagem relacional do criador. Ele pode e

deve agir responsavelmente. Por isso ele é chamado a cuidar, guardar,

salvaguardar as estruturas de capacidade da criação. Isso através de um

relacionamento harmonioso dos seres humanos entre si e com o mundo natural.

Eis a singularidade do ser humano como imagem de Deus: a capacidade de

intervir no mundo natural e administrá-lo responsavelmente, com sabedoria e

bondade. Desse modo, em vez de agredir e destruir a natureza – assim como a

poluição social agride e fere os pobres deste mundo! - o comportamento humano,

renovado por uma metanoia ecológica, pode e deve ajudar a nossa terra a cumprir

a sua vocação inicial, isto é, ser morada do Logos: habitação de Deus e nossa

também. Nessa casa comum, o descanso do Sábado vem nos recordar que,

contrariamente à lógica do consumo e da competitividade, há lugar para a

gratuidade, a contemplação, a solidariedade e a partilha. O ser humano e todas as

criaturas, na morada do Logos criador, podem experimentar a comunhão e a paz

oferecidas no encontro festivo do Sábado.

Somos chamados a habitar razoavelmente este mundo; habitar bem! A

palavra nos remete a ethos, em seu sentido original de “morada”, “habitação”,

“hábitos”. Veremos, no capítulo seguinte, algumas balizas da ética necessárias à

construção desse “espaço da coexistência”.

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