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f f < < < c c c ( ( c ( c c c r c c r c c c f c c c c r c c r r r r c < Capítulo l O problema da filosofia do direito ou de dizer a verdade do direito: um mergulho em questões recorrentes? Por que os filósofos se perguntam sobre o sentido de palavras tão comuns? (...) Por terem-no esquecido? (L. Wittgenstein, citado em Redpath, 1990: 82) O direito, diz o juiz com olhar de desprezo, Falando com clareza e grande severidade, O direito é o que eu já lhes disse antes, O direito é o que suponho que vocês saibam, O direito é o que vou explicar mais uma vez, O direito é O direito. (W. H. Auden, Collected Poe>ns, 1976: 208) Teremos, em nossa própria época, uma resposta à pergunta sobre o que realmen- te queremos dizer com a palavra "ser"? De modo algum. Convém, portanto, que reco- loquemos a questão do significado do Ser. Mas estaremos hoje, ao menos, perplexos diante de nossa incapacidade de compreender a palavra "Ser"? De modo algum. Em primeiro lugar, portanto, devemos redespertar o entendimento do sentido de tal per- gunta. (Heidegger, Being and Time [Ser e tempo] [1929] 1962:1) O CAMPO DE INTERESSE DA FILOSOFIA DO DIREITO OU O QUE SIGNIFICA PERGUNTAR "O QUE É O DIREITO?"1 O filósofo linguista Ludwig Wittgenstein (1889-1931) acreditava que nos inda- gamos sobre o significado das palavras para podermos nos orientar melhor nas ta- refas práticas de nossas vidas. Ele também argumentava que o estudo de nosso uso da linguagem logo nos mostrava a grande complexidade de nossa vida social. A in- certeza é quase sempre o resultado obtido quando procuramos respostas significa- 1. Um livro sobre a filosofia do direito escrito em meados da década de 1990 não pode começar de um jeito que não seja polémico. São tantas as perspectivas e as diferentes maneiras de colocar as questões que não se pode presumir que uma abertura seja o modo normal ou natural de iniciar. Na verdade, pode-se es- tabelecer uma distinção básica entre ver o objeto de análise como uma entidade - como o direito parece ser tradicionalmente visto - ou como uma atividade. No segundo exemplo, ver o direito como um objeto de aná- lise pode parecer excessivamente reducionista. Talvez seja preferível recorrer a uma terminologia diferente, como "legalismo", que passa mais facilmente a ideia de um campo variável de práticas e ideologias sociais.

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Capítulo l

O problema da filosofia do direitoou de dizer a verdade do direito:um mergulho em questões recorrentes?

Por que os filósofos se perguntam sobre o sentido de palavras tão comuns? (...)Por terem-no esquecido? (L. Wittgenstein, citado em Redpath, 1990: 82)

O direito, diz o juiz com olhar de desprezo,Falando com clareza e grande severidade,O direito é o que eu já lhes disse antes,O direito é o que suponho que vocês saibam,O direito é o que vou explicar mais uma vez,O direito é O direito.

(W. H. Auden, Collected Poe>ns, 1976: 208)

Teremos, em nossa própria época, uma resposta à pergunta sobre o que realmen-te queremos dizer com a palavra "ser"? De modo algum. Convém, portanto, que reco-loquemos a questão do significado do Ser. Mas estaremos hoje, ao menos, perplexosdiante de nossa incapacidade de compreender a palavra "Ser"? De modo algum. Emprimeiro lugar, portanto, devemos redespertar o entendimento do sentido de tal per-gunta. (Heidegger, Being and Time [Ser e tempo] [1929] 1962:1)

O CAMPO DE INTERESSE DA FILOSOFIA DO DIREITO OU O QUESIGNIFICA PERGUNTAR "O QUE É O DIREITO?"1

O filósofo linguista Ludwig Wittgenstein (1889-1931) acreditava que nos inda-gamos sobre o significado das palavras para podermos nos orientar melhor nas ta-refas práticas de nossas vidas. Ele também argumentava que o estudo de nosso usoda linguagem logo nos mostrava a grande complexidade de nossa vida social. A in-certeza é quase sempre o resultado obtido quando procuramos respostas significa-

1. Um livro sobre a filosofia do direito escrito em meados da década de 1990 não pode começar de umjeito que não seja polémico. São tantas as perspectivas e as diferentes maneiras de colocar as questões quenão se pode presumir que uma abertura seja o modo normal ou natural de iniciar. Na verdade, pode-se es-tabelecer uma distinção básica entre ver o objeto de análise como uma entidade - como o direito parece sertradicionalmente visto - ou como uma atividade. No segundo exemplo, ver o direito como um objeto de aná-lise pode parecer excessivamente reducionista. Talvez seja preferível recorrer a uma terminologia diferente,como "legalismo", que passa mais facilmente a ideia de um campo variável de práticas e ideologias sociais.

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2 Filosofia do direito . '

tivas a perguntas que na superfície parecem simples. O mesmo acontece com a filo-sofia do direito. Em seu sentido mais simples, a filosofia do direito pode ser defini-da como o corpus de respostas à pergunta "o que é o direito?" Tal definição, porém,é enganosamente simples - e haverá uma resposta com a qual todos se ponhamimediatamente de acordo? Se o assunto é assim tão simples, contudo, por que a per-gunta vem sendo feita pelo menos desde a época dos gregos clássicos, cerca de2.500 anos atrás, e ainda não se chegou a uma resposta definitiva à pergunta "o queé o direito?"

Em termos mais amplos, a fUosofia jurídica pode ser definida como a sabedo- -ria em matéria_de direito, ou como o^èntgndiínêhtoja^^ njjur^za_£_dõ^ntexto^Ho ."empreendimento jurídica"2. Essa definição muda o enfoque, que então se volta pa-'ra uma instancia em que não estamos apenas perguntando "que empreendimentoé esse?" e "como responder à pergunta sobre o que é o direito?", mas também ten-tando compreender que tipos de coisas estão em jogo quando fazemos essas per-guntas. O primeiro ponto a ressaltar pode parecer enganosamente óbvio: existemmuitas maneiras de entender o tema básico. O direito é uma entidade autónomaou é um processo, um conjunto de processos ou^alvez, um fenómeno social com-plexo? A legalidade é um modo de pensar? Ou será a capacidade de prever o re-sultado das ações judiciais? O direito é uma atitude argumentativa? Na verdade,tem sido chamado de todas essas coisas, e muito mais. Portanto, nossa concepçãomais ampla da filosofia do direito não deve ficar restrita a uma ou outra ideia sobreo direito, mas sim perguntar-se comove possível haver tanta diversidade.

A NECESSIDADE DE REFLEXIVIDADE?

Em outras palavras, procuramos nos conscientizar não apenas dos tipos dequestões que são colocadas pelas diferentes respostas à pergunta "o que é o direi-to?", ou "qual é a natureza do empreendimento jurídico?", mas tentamos entenderas condições e os estímulos que, na verdade, levam à colocação de tais perguntas eimpulsionam nossa necessidade de chegar ao significado. Esse tipo de auto-inda-gação é frequentemente chamado de reflexividade; a reflexividade é o processo me-diante o qual a ação de perguntar se volta para aquele que pergunta ou para asconvenções da tradição na qual o questionamento ocorre, em uma tentativa de tor-nar-se mais consciente de si mesmo.

2 Tomo a etimologia dejurisgraíeric^ do latim júris, direito, e prudentia, sabedoria, ciência. Portanto,entendo a filosofia do direito çomo_a busca._da ciência ou^abedona_do_direit.°' ou o entendimento prudentedo direitcTÃolmpregar a terminologia de Empreendimento jurídico" sigo Beyleveld e Brownsword (1986),que por sua vez foram buscar esse sentido no dictum de Fuller que vê o direito como "o empreendimento desubmeter a conduta humana ao domínio das regras" (Fuller, 1969: 96).

* A palavra inglesa jurisprudence significa filosofia ou ciência do direito. (N. do T.)

O problema da filosofia do direito 3

A reflexividade é, porém, problemática, uma vez que convida a um processo dequestionamento infinito. Uma vez que isso esteja claro, é óbvio que nenhuma ex-posição total ou final desses processos pode ser legitimamente oferecida - semprepoderia haver outro modo de contar a história, outro item a ser levado em conta.Todas as exposições enfatizam certas características e negligenciam outras.

Haverá! algum modo que nos permita estabelecer diretrizes claras a respeito dotipo de matérias que se possam adequadamente chamar de filosofia do direito, e dequais, dentre suas abordagens possíveis, podemos considerar relevantes ou irrele-vantes? Até bem pouco tempo, a filosofia jurídica ocidental era dominada por umafilosofia dó direito específica - pelo positivismo jurídico -, com as abordagens contras-tantes das tradições do realismo jurídico ou do direito natural. Hoje, porém, aumen-tou dramaticamente o alcance do material incluído nos cursos de filosofia do direito,ou naqueles em que os interesses são claramente afins; além do mais, o campo tor-nou-se tão litigioso e dividido que a filosofia do direito parece não ter nenhuma es-trutura estável, nem consenso algum a respeito de sua natureza ou área de estudo.O que tudo isso indica? Estaremos diante de um sinal de progresso ou de uma in-dicação de fracasso em áreas-chave? Como-podemos saber?

O mergulho na leitura de obras de filosofia do direito é uma luta pela auto-consciência, por algum grau de transparência quanto à natureza do direito e aosprojetos sociais que envolvem o uso do direito. Levados por nossa preocupação coma reflexividade, entendemos que, para julgar a qualidade de nossa consciência, pre-cisamos levar em consideração os pressupostos da análise; não apenas entender asdiferentes metodologias utilizadas na busca do conhecimento sobre o direito, mastambém refletir sobre as diferentes razões pelas quais é importante procurar res-postas à pergunta sobre o que é o direito. Deparamo-nos, também, com o problemada contextualidade: podemos fazer a pergunta "o que é o direito?" (e propor uma de-finição ou um modelo que então possam ter sua discussão aprofundada) indepen-dentemente das circunstâncias sociais e históricas específicas, ou a pergunta serásempre feita no âmbito de um ou outro contexto, e a resposta irá então dependerdesse contexto? Portanto, ao discutir as diferentes respostas e tentar adquirir conhe-cimento sobre o direito, precisamos ser solidários com a contextualidade do pró-prio empreendimento da filosofia jurídica? Quanto às metodologias, elas aperfei-.çoam as diferentes perspectivas ou servem apenas para a criação de outras? Pareceque somos convidados a vagar indefinidamente por um labirinto intelectual. Logo,porém, vemo-nos forçados a voltar à pergunta básica. O direito é um fenómenoúnico, ou existe uma variedade de fenómenos diversos vagamente agrupados sobo rótulo "direito"? E, em termos reflexivos, que fazer desses projetos que colocam'exatamente essas perguntas? Qual a metodologia adequada para se assegurar deque nossa iniciativa de abordar a jurisprudência é consciente de si mesma?

A segunda e a terceira citações com as quais este capítulo se inicia ilustram ati-tudes opostas diante dos fenómenos sociais. Na segunda, o poeta Auden apresen-ta, através da figura do profissional das leis, uma concepção do direito para a qual

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a lei simplesmente "é", o que torna sua definição relativamente fácil e evidente porsi mesma. O direito é autónomo, podemos vê-lo como auto-sustentável e, a des-peito do modo como veio a existir - por exemplo, podemos ter consciência de suacriação histórica por meio da política do poder -, a partir do momento em que exis-te tem algum tipo de forma essencial que podemos descrever. Modernamente, a fi-losofia jurídica anglo-americana tem feito grandes esforços para desenvolver umaciência do direito que tenha por base o pressuposto de que o direito tem algumascaracterísticas e formas comuns passíveis de identificação, e que isso pode ser cla-ra e objetivamente identificado; ou o direito existe numa área específica, ou nãoexiste direito cobrindo a área. Para essa concepção, que costuma ser chamada depositivismo jurídico, a pergunta "o que é o direito?" deve ser vista como uma pergun-ta que pode ser respondida por alguma definição relativamente simples que ofereçauma resposta confiável (como, por exemplo, o direito é o poder do Estado ou um con-junto de regras) que, por sua vez, nos permita criar algum processo para o reco-nhecimento do direito válido3. Depois de fazer da definição do direito uma questãorelativamente simples, as abordagens do positivismo jurídico em geral se voltampara a descrição do mecanismo para o reconhecimento do direito. Outro ponto im-portante é a questão independente, ainda que análoga, da análise do contexto dodireito (i.e., as diferentes doutrinas e conjuntos de relações jurídicas). A questão desaber o que deve ser o direito é uma outra questão?4 Antes de examinar a últimadas citações que abrem este capítulo, convém apresentar uma ideia mais clara danatureza do positivismo jurídico, uma vez que se trata da tradição dominante najurisprudência moderna.

O POSITIVISMO JURÍDICO COMO TRADIÇÃO DOMINANTENA JURISPRUDÊNCIA MODERNA

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Positivismo jurídico é um rótulo que abriga um conjunto de abordagens afinsdo direito que dominaram a jurisprudência ocidental nos últimos 150 anos. O uso de

3. O termo deve é, aqui, empregado deliberadamente. Existe um argumento "moral" em favor do positi-vismo jurídico, e a facilidade de identificação não é apenas um efeito colateral epistemológico; é também umefeito desejado. No início do clássico moderno The Concept ofLaw, de H. L. A. Hart, este autor discute a ampli-tude dos esforços que se tem consumido na tentativa de definir o que é o direito. Hart sugere não apenas quetal esforço seria mais bem utilizado para elucidar nossa compreensão das diferentes categorias do direito, mastambém que, ao mantermos a simplicidade de nosso processo de identificação do direito, estamos preservandonossas ideias críticas e morais cotidianas para poder decidir se determinadas leis são boas ou más do-ponto devista moral.Vários comentaristas se referem a isso como a "tese da cidadania crítica", ou a conveniência de man-ter a questão de identificar a existência do direito separada da questão de julgar o valor moral do direito.

4. Dois dos mais famosos entre os primeiros expoentes do positivismo jurídico, Jeremy Bentham (aquidiscutido no capítulo 8) e JohnAustin (discutido no capítulo 9) diferenciam filosofia jurídica czposiáonal àefi-losofia jurídica censória^ ou ciência do direito de ciência da legislação. _

O problema da filosofia do direito 5

tais rótulos implica sempre a inclusão de alguns projetos e respostas diferentes àpergunta "o que é o direito?", mas, em termos gerais, o positivismo jurídico temafirmado dois elementos definidores fundamentais: (i) o direito é uma criação hu-mana, é "posto" pelo homem de alguma maneira; por exemplo, pela vontade ex-pressa de governantes políticos - o soberano - através de um processo de legisla-ção; (ii) o direito pode ser estudado e bem compreendido mediante a adoção dametodologia desenvolvida pelas chamadas ciências "naturais" ou "físicas" nos sé-culos XVTII e XIX, o que se conhece como abordagem positivista; em nome da ob-jetividade, essa abordagem procurava eliminar todas as considerações subjetivasque pudessem envolver o pensamento do cientista. Após a coleta dos dados apro-priados - em geral, os conceitos com os quais o legalismo trabalhava -, uma meto-dologia puramente analítica parecia ideal para decompor os objetos de modo quelhes desse uma forma manipulável, e o cientista jurídico devia ter o cuidado de im-pedir que seus valores se introduzissem na investigação.

Nos últimos anos, o positivismo jurídico perdeu seu domínio anterior sobre afilosofia do direito, em parte porque, para concretizar-se, seus projetos de análiseconceituai dependiam de que se questionasse a integridade do empreendimentojurídico, é porque careciam de consciência social quanto à eficácia social do direito.Seus críticos também afirmaram que, em vez de ser uma abordagem do direito nãosubmetida a valores, é em si mesmo uma abordagem carregada de valores, refletin-do um determinado conjunto de pressupostos que, por sua vez, nos levam a refle -tir sobre o direito de uma maneira específica5. Os projetos contrastantes de dife-rentes autores assumem uma nova aparência quando os vemos como criações his-tóricas em vez de tratá-los como se todos se preocupassem em lidar com algumaforma essencial comum e pura, alguma entidade transistórica. Comentaristas deviés sociológico como Cotterrell (1989), por exemplo, enfatizaram que muitas daschamadas características contraditórias da filosofia do direito e dos estudos so-ciojurídicos podem ser explicadas pelo simples - porém habitualmente ignorado -fato de que diferentes autores têm se engajado em diferentes projetos e, por essemotivo, empregado metodologias desiguais com considerações distintas em men-te. O direito não é algum fenómeno estável ou essencialmente transistórico, massim fenómenos empíricos diferentemente constituídos em contextos socioistóricosvariáveis. Não se trata apenas da questão de que o fato de fazer perguntas diferentes

5. Uma crítica moderna importante foi a de Judith Shklar (1964: 3) em Legalism: "O isolamento delibe-rado do sistema jurídico - o tratamento do direito como entidade social neutra - .constitui uma requintadaideologia política, a expressão de uma preferência (...). Aqui, um sistema jurídico pode ser tratado como al-guma coisa'além'/uma entidade a ser analisada somente se a considerarmos em termos puramente formais,mesmo quando não tiver a estática atemporalidade realmente necessária a tal empreendimento (...). O forma-lismo cria esse'estar além' porque seus partidários pensam que um sistema jurídico deve esta^além,' para po-der funcionar adequadamente. Fará estar'além', deve ser auto-regulador, imune às pressões imprevisíveis depolíticos e moralistas e conduzido por um judiciário que pelo menos tente manter a famosa cegueira da jus-tiça. É por isso que é visto como uma série de regras impessoais que se harmonizam entre si."

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leva a respostas desiguais, mas de que uma variedade de perspectivas pode ser uma .consequência da diversidade e variação inerentes ao material de pesquisa básico.Assim, a variação das respostas propostas à pergunta "o que é o direito?" pode sernem tanto a prova de que alguns autores estejam certos e outros errados, mas um for- .te indício da riqueza das perguntas e perspectivas existentes quando se examina aquestão do direito e da legalidade através da riqueza da história.

De que forma esses autores que se viam como positivistas jurídicos definem atradição? No 'final da década de 1950, H. L. A. Hart (considerado pela maioria como oprincipal positivista jurídico dos tempos modernos) fez um resumo de vários prin-cípios possíveis do positivismo jurídico:

(1) o argumento de que as leis são comandos de seres humanos;

(2) o argumento de que não há ligação necessária entre direito e moral, ou entre odireito como ele é e como deveria ser;

(3) o argumento de que a análise (ou o estudo do significado) dos conceitos jurídicosé (a) uma busca válida e (b) distinta das indagações históricas sobre as causas ouorigens do direito, das indagações sociológicas sobre a relação entre o direito eoutros fenómenos sociais, e da crítica ou avaliação do direito, quer em termos demoral, objetivos sociais ou "funções", quer em outros termos quaisquer;

(4) o argumento de que um sistema jurídico é um "sistema lógico fechado" no qualas decisões jurídicas correias podem ser inferidas, por meios lógicos, a partir deregras jurídicas predeterminadas sem referência a objetivos sociais, políticas ecritérios morais; e

(5) o argumento de que os juízos morais não podem ser emitidos, ou defendidos,como o podem as afirmações de fatos, por meio de argumentação racional, evi-dência ou prova ("não-cognitivismo" em ética) (Hart, 1957-58: 601-602).

Um elemento central do positivismo jurídico é o entendimento de que o direitomoderno - o direito positivo - é algo posto por seres humanos para fins humanos.Desse modo, o direito moderno pode ser visto como um importante instrumento.Évariadamente apresentado como um instrumento de poder governamental, ou sim-plesmente como um instrumento para facilitar uma interação social básica e apre-sentar as condições para que os indivíduos possam celebrar contratos, fazer testa-mentos, transferir propriedades, recorrer a instituições públicas etc. Além disso, umprincípio fundamental do positivismo jurídico é aquele segundo o qual as leis dequalquer sociedade podem refletir opções morais e políticas, mas não há nenhumaligação necessária ou conceituai entre direito e moral. O direito não precisa ser mo-ral para ter sua validade reconhecida6. Como afirmou John Austin - amplamente

6. Essa questão é quase sempre mal compreendida. Os estudiosos que defendem as abordagens posi-tivistas reconhecem que, empiricamente, o direito é produto de processos sociais, políticos e morais, mas argu-

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reconhecido como o fundador da tradição académica do positivismo jurídico - emconferências publicadas no início da década de 1830: "a existência do direito é umacoisa, seu mérito ou demérito é outra". Essa "tese da separação" é crucial em outroelemento do positivismo; o direito deve ser identificado mediante o uso de umametodologia relativamente simples (em geral empirista). A existência do direito erauma questão factual cuja resposta dependia da observação, e não de um complexoprocesso de interpretação e avaliação moral7. Para determinar a legalidade da pro-mulgação de uma lei, por exemplo, bastava apenas proceder a um teste de origem defacto. Isso ressalta uma importante característica do positivismo jurídico: era umafilosofia jurídica profundamente interessada em reforçar o uso do direito como uminstrumento do Estado moderno. Como veremos no capítulo 4, na obra de ThomasHobbes, 'que lançou as bases sobre as quais Austin criaria a moderna abordagemdo positivismo jurídico, a essência da indagação intelectual rejeita a ideia de qual-quer outro ser transcendental - Deus — como autor supremo do ideal puro ou jus-to do direito. Em vez disso, a preocupação é transferida para a autoridade do Esta-do. A partir de Hobbes, a soberania passa a ser um conceito-chave (em Bentham eAustin, por exemplo)8, ainda que, à medida que as sociedades ocidentais modernasse transformam em estruturas sociais administradas pela burocracia, os "funcioná-rios" substituam o soberano como imagem central da autoridade (por exemplo, naobra de H. L. A. Hart, 1961, e Ronald Dworkin, 1978,1986; ver, respectivamente, ca-pítulos 13 e 15 deste livro). Contudo, ao associar o direito a seu papel institucionale instrumental de servo do Estado, o positivismo jurídico esteve sempre correndoo risco de tornar-se uma metodologia sem alma. Pois como poderia haver uma es-sência do direito se este perdesse sua ligação pré-modema com um significantetranscendental, transformando-se em nada além de um instrumento humano mu-tável? Isso não significaria que existem tantos tipos de (não-) direito quanto de for-mas de organizações humanas/sociais? O pluralismo jurídico foi sempre o "outro"do direito de Estado9.

meniam que a ideia ou o conceito de direito podem ser analisados independentemente da moralidade. O di-reito pode ser imoral ou moral; injusto ou justo; repressivo ou socialmente progressista.

7. Como afirma Joseph Raz (1979: 37): "Nos termos mais gerais da tese positivista jurídica, o que o di-reito é e o que não é não configura uma questão de fato social (isto é, a variedade de teses sociais defendidaspelos positivistas representa diferentes refinamentos e elaborações dessa formulação sumária)."

8. Outra influência intelectual importante foi o jurista francês Bodin.Ver Skinner (1978,Vol. 2: 284-301);FranMin (1963).

9. De fato, o positivista jurídico-dássico - John Austin (1832, 1873) - se deu conta disso. Sua posiçãoera consciente do pluralismo jurídico, e sua teoria era por ele especificamente chamada de "direito positivo",ou direito como técnica de dominação política. Austin reconhecia a existência de um conjunto de processosnão estatais que operavam de modo que fortalecesse o direito do Estado, mas outros não tiveram a mesma su-tileza. Em quase todos os livros didáticos de direito, a teoria de Austin é apresentada como se fosse uma teo-ria do direito, de todo o direito. Depois de fazerem tal afirmação, os críticos posteriores podem facilmentecomprometer a imagem de Austin, apresentando-a como nitidamente simplista.

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EMBORA O POSITIVISMO JURÍDICO TENHA DOMINADO ASPERSPECTIVAS MODERNAS, EXISTE ATUALMENTE UMA PLURALIDADE

DE PERSPECTIVAS PÓS-POSITIVISTAS: NA PÓS-MODERNIDADE, É ESSE OPROBLEMA DE SE FAZER A PERGUNTA SOBRE O QUE É O DIREITO

O positivismo parecia oferecer uma metodologia relativamente simples para seidentificar o direito. Por outro lado, na terceira das citações que abrem este capítuloHeidegger introduz a ideia de que qualquer fenómeno social é capaz de interpre-tações diferentes e multifacetadas10. A questão do verdadeiro ser - qual a natureza de X?- não pode ser reduzida a uma perspectiva a não ser por meio de um ato de dominaçãointelectual de parte daquela perspectiva ou metodologia em detrimento de outras. Substi-tua-se a palavra "ser" pela palavra "direito", e a segunda das citações iniciais do ca-pítulo ficará assim: . .

Teremos, em nossa própria época, uma resposta à pergunta sobre o que realmen-te queremos dizer com a palavra "direito"? De modo algum. Convém, portanto, que re-coloquemos a questão dê significado do "direito". Mas estaremos hoje, ao menos, perplexosdiante de nossa incapacidade de compreender a palavra "direito"? De modo algum.Em primeiro lugar, portanto, devemos redespertar o entendimento do sentido de talpergunta.

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E esse o paradoxo - o de que não temos um sentido estabelecido para a pala-vra "direito", mas ainda assim passamos pela vida sem a necessidade de tal senti-do estabelecido - que-serviu de inspiração para The Concept ofLaw (1961), de H. L. A.Hart. A falta desse sentido ajuda a "deixar tudo como é" (parafraseando o filósofolinguista Wittgenstein, em cuja obra Hart fundamentou sua metodologia filosófica) etoma possível aceitar a definição oficial ou burocrática do direito como a "verdade"do direito com a qual se pode contar para todos os fins práticos. Porém, qualquerpergunta sobre fenómenos sociais - aqui, o direito - é também uma pergunta so-bre a realidade social e nossa capacidade de conhecê-la.

10.0 filósofo alemão Martin Heidegger julgava necessário redespertar em nós o sentimento de admira-ção diante do fato mesmo de nossa existência. Não cogitamos da não-existênda, uma vez que damos por cer-to que existimos. Fará viver, devemos aceitar o fato de nossa existência; ainda assim, os processos de refletir ousubmeter nosso ser a uma inquirição sempre perscrutadora constituem a essência da vida humana plenamen-te desenvolvida, e indagar-se sobre seu significado é a questão central da existência cultural. Heidegger per-gunta: se vivermos sem questionar o significado de nossa vida, não estaremos simplesmente seguindo o pa-drão das criaturas instintivas que nos cercam? Em outras palavras, não será tarefe central do intelecto huma-no o perguntar-se sobre nossa própria existência, eternamente questionando sua natureza, tentando ver paraalém do comum e do familiar, em busca do essencial?

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O problema da filosofia do direito 9

Realismo jurídico

Pelo menos desde a época em que O. W. Holmes (1897) afirmou que, para "di-zer o que é, de fato, o direito", ou para encontrar sua "verdade", precisamos olharpara o "direito em ação"; ao contrário do que pressupõe a análise doutrinária do"direito nos livros", existe uma tradição do realismo jurídico que procura estabele-cer o direito como parte integrante de um mundo social inevitavelmente comple-xo. Nessa tradição, dizer a "verdade do direito" é parte integrante do dizer a "verdadeda realidade social". Porém, se os eruditos esperavam que, ao adotarem o realismojurídico, encontrariam um conjunto de respostas sobre a verdadeira natureza do di-reito, na verdade o fato de situarem o direito na sociedade serviu para complicar,em vez de simplificar, as definições antagónicas das formulações auto-referenciais ,do positivismo jurídico.

O acréscimo de perspectivas sociológicas

Já faz algum tempo que a sociologia vem destruindo aos poucos a confiança dosjuristas académicos em dizer a "verdade" da jurisprudência. O Karl Marx da maturida-de (aqui discutido no capítulo 10) via a ciência jurídica do advogado como ideologiaou retórica superficial. Enquanto os teóricos sociais de tradição marxista tentavamdenegrir a filosofia do direito como uma ideologia do sistema capitalista, eruditosmenos críticos como Roscoe Pound (1943) tentavam ir além da ciência jurídica, embusca dos "interesses sociais" do direito, e estudiosos influenciados pela obra do teó-rico social alemão Max Weber (que fez ligações entre a modernização da legalidadee a racionalização da sociedade moderna; ver discussão no capítulo 11 deste livro)diferenciaram os tipos de conhecimento oferecidos pelas diferentes disciplinas emostraram-se propensos a descrever a filosofia jurídica como o discurso dos e paraos profissionais do direito, o que permitia que a "profissão" se explicasse a si própriae a seu público. Os autores influenciados pela tradição weberiana, entre eles Corter-rell (1989), fazem distinção entre "teoria jurídica normativa" (ou ciência jurídica •segundo a concepção tradicional - i.e., como filosofia do direito -, que a consideraligada aos interesses da advocacia) e "teoria jurídica empírica" (ou de extração maissociológica). Em obra posterior (1995), Cotterrell insinua que qualquer afirmaçãoque a jurisprudência tradicional possa fazer, no sentido de conter a verdade do di-reito, é inconsequente diante das afirmações rivais de natureza sociológica.

O apelo das descrições sociológicas encontra-se naimagem de distanciamento crítico do material analisado

A vantagem das descrições sociológicas sobre- as perspectivas daquelas "afina-das" corn o processo jurídico está.nadistância. Através da sociologia é possível tan-

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to interpretar quanto associar as ideias e percepções subjetivas dos agentes jurídi-cos no âmbito das descrições contextualmente mais amplas. Em termos reflexivos,porém, todas as teses sociológicas são as narrativas de seres humanos tentando"descrever como de fato é", ao mesmo tempo que estão inevitavelmente presas aocírculo hermenêutico de seres da mesma classe e categoria que interpretam as prá-ticas e instituições criadas por outros seres humanos. Onde situar-se? Onde encon-trar uma base sólida a partir da qual se possa, legitimamente, "descrever como defato é"? É possível que a sociologia não tenha nenhuma base sólida que possa cor-rigir e (re)posicionar a jurisprudência tradicional de um modo que nos permita pro-duzir uma interpretação fiel da história do direito, oferecendo não apenas uma res-posta à pergunta "o que é o direito?", mas também a outras questões relativas àscondições nas quais fazemos essa pergunta e oferecemos a (s) resposta(s).

Como vamos lidar com a diversidade da teoria? Ou, inversamente, io que fazer do anseio por uma teoria fundamental do direito?

Uma questão imediata e premente para o estudante de direito atual é a de sa-ber como lidar com a diversidade das perspectivas teóricas do direito. À filosofia ju-.rídica se volta para o esclarecimento, tem por objetivo nos tornar mais sábios noque diz respeito ao direito e à legalidade, mas a diversidade nos põe diante daameaça de incoerência e confusão. Ou será esta a maneira errada de abordar o pro-blema? Devemos abordar o estudo do direito a partir de outra direção, estimulandoa diversidade de opiniões e perspectivas? Em qual caso poderia colocar-se a ques-tão "o que fazer do anseio por uma teoria fundamental do direito?".

Ao longo da história, os que escreveram sobre o direito mostraram-se geral-mente propensos a produzir uma descrição-mestra do direito, a oferecer um relatoautorizado da verdade do direito. Um teórico chegou ao ponto de chamar sua teo-ria de The PureTheory oflaw [ATeoria Pura do direito] (Kelsen, 1934,1970, discutidono capítulo 12 deste livro). Por que essa tendência a buscar unidade, coerência econsistência tem sido tão dominante, mesmo no caso de teóricos que se viam comocientistas claramente modernos? Alguns estudiosos (por exemplo Unger, 1976,1987)sugeriram que a resposta encontra-se no medo; no medo da responsabilidade so-cial que sobrevêm se realmente encararmos o fato de que o direito é criação nossa,e que a sociedade moderna é um artefato. Para Unger (e outros), estaremos enga-nando a nós mesmos se pensarmos que nos tornamos modernos; na verdade, nun-ca fomos verdadeiramente modernos, e temos medo de nos tomar modernos. Emvez disso, procuramos substitutos para Deus para que possamos ser eximidos daresponsabilidade de criar vínculos e relações sociais e zelar por eles. Assim, é pos-sível que a busca de alguma disciplina-mestra - que revele a auto-suficiência do di-reito ou, por outro lado, destrua a imagem de (relativa) autonomia da legalidade emnome da explicitação da verdade de sua posição social - seja a busca de uma subs-

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tituição da imagem transcendente que a modernidade conquistou quando levou areligião a passar de uma relação com "Deus" para uma mera prática social e cultu-ral. A modernidade já se livrou de muitos candidatos a substituir Deus e proclamaras diferentes maneiras de interpretar a vontade divina. A modernidade tem procura-do substituir a vontade de Deus pelo conhecimento do mundo natural (como JohnAustin afirmou explicitamente, o utilitarismo viria a fornecer um índice dos preceitosdivinos). Uma tentativa atual e muito em voga é o movimento do direito e da eco-nomia (cf. Richard Posner, The Economic Analysis oflaw, 4? ed., 1992). Mas cada can-didato tenvseus rivais. As dimensões dessa pluralidade intensificaram-se no contex-to das transformações sociais em que muitos situam o início da pós-modernidade.

CONFRONTANDO A MODERNIDADE: DE DWORKIN A BLADE RUNNER

As abordagens do positivismo jurídico afirmavam que o direito era um instru-mento crucial para se governar as sociedades modernas. Para outras, o direito é maisque um instrumento. Exprime verdades sobre o tipo de sociedade que temos e as mo-dalidades de compromisso público que fazemos. Qual interpretação é correia, ou asduas apreendem algum aspecto da legalidade? Nos termos de ambas, dizer a ver-dade do direito pressupõe, implicitamente, responder às perguntas "quem somosnós?" e "qual a natureza da época em que vivemos?".Trata-se, porém, de questõesvastas e talvez insondáveis, que podemos compreender como inseparáveis compa-nheiros de viagem durante a jornada histórica da humanidade. São perguntas quetiveram de ser feitas, e o foram, ao longo da história. Apesar de não serem frequen-temente explicitadas nos textos sobre filosofia do direito, estão sempre implícitas.

Todos os textos incorporam sonhos e esperanças, temores e análise; os textosde nossa situação contemporânea trazem consigo uma longa história. Examinare-mos a seguir dois textos da década de 1980. O primeiro é extraído da introdução auma obra fundamental de filosofia do direito escrita por Ronald Dworkin (1986) -um professor de filosofia do direito que ensina essa disciplina na Universidade deNova York, nos Estados Unidos, e em Oxford, Inglaterra. Dworkin é discutido nocapítulo 15 deste livro; nosso objetivo, aqui, é obter uma primeira impressão de suaretórica:

Vivemos no direito e segundo o direito. Ele faz de nós o que somos: cidadãos, em-pregados, médicos, cônjuges e proprietários. É espada, escudo e ameaça: lutamos por nos-so salário, recusamo-nos a pagar o aluguel, somos obrigados a pagar nossas multas oumandados para a cadeia, tudo em nome do que foi estabelecido por nosso soberano abs-trato e etéreo, o direito. E discutimos os seus decretos, mesmo quando os livros que su-postamente registram suas instruções e determinações nada dizem; agimos, então, comose o direito apenas houvesse sussurrado sua ordem, muito baixinho para ser ouvida comnitidez. Somos súditos do império do direito, vassalos de seus métodos e ideais, subjuga-dos em espírito enquanto discutimos o que devemos portanto fazer.

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Como se explica isso? Como pode o direito comandar quando os textos jurídicosemudecem, são obscuros ou ambíguos? [A] resposta [é que] (...) o raciocínio jurídico éum exercício de interpretação construtiva, que nosso direito constitui a melhor justifi-cativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e que ele é a narrativa que faz dessaspráticas as melhores possíveis. Segundo esse ponto de vista, a estrutura e as restriçõesque caracterizam, o argumento jurídico só se manifestam quando identificamos e dis-tinguimos as diversas dimensões, frequentemente conflitantes, do valor político, os dife-rentes fios entretecidos no complexo juízo segundo o qual, em termos gerais e após umexame de todos os aspectos, uma interpretação torna a história do direito a melhor detodas. (Ronald Dworkin Law's Empire [O império do direito], 1986: vii)

Para Dworkin, "nós" somos os produtos do direito, e nosso território é o impé-rio do direito. Somos os produtos de uma jornada histórica na qual a construção deuma estrutura do direito - um grandioso edifício de direitos e princípios - que sus-tenta nossas interações sociais é uma realização suprema. Nossas vidas contempo-,râneas e nossas identidades são planejadas e mantidas pela legalidade, e dela ré-*,cebem a energia de que necessitam. Para insuflar vida no império, devemos dar o;melhor sentido possível a nossa história e combinar todas as suas partes integran-tes - algumas das quais desconexas - de modo que forme um todo reconfortante eengrandecedor. Ao longo desse processo, iremos ao mesmo tempo informar e asse-gurar nossandentidade social. Apresentaremos uma justificativa para a coerção queestá por trás de nossas instituições, e também exigiremos que tal coerção seja mo-ralmente legitimada. Através de uma ciência de direito filosófica e interpretativa,podemos encontrar respostas a questões de identidade, satisfazer nossa necessidadede identificação com nossas principais instituições sociais e estimular o desenvol-vimento progressivo de nossa história jurídica sociopolítica. Podemos, então, sabero que fazer neste mundo pós-moderno".

O segundo texto é o filme Blade Runner de Ridley Scott, 1982, frequentementechamado de apogeu do cinema pós-moderno (ver, a propósito, Bruno, 1987; Har-vey, 1990: 308-14; Vattimo, 1992: 83 ss.). Blade Runner passa-se em uma Los An-geles imaginária, em 2019. Um grupo de "replicantes", seres quase humanos cria-

11. Dworkin é aqui particularmente estudado no capítulo 15; por ora, basta dizer que as citações daabertura não são auto-explicativas. A citação precisa ser interpretada: como vamos entendê-la? Afirma muitascoisas, e pressupõe muitas outras. Quem (é) somos (esse) "nós"? O que é o direito? Ou talvez a perguntadeva ser reformulada: o que são os direitos? Ou o que é particular à essência dentro dos diferentes aspectosdo direito (ou dos direitos)? O fato de que toda afirmação requer interpretação é óbvio, mas precisa ser cons-íantemente reafirmado, uma vez que é frequentemente esquecido. Na teoria literária, Stanley Fish enfatizaque o significado das palavras é sempre uma questão de contexto e de nosso entendimento; mesmo no ní- •vel do máximo senso comum, é uma questão de interpretação. Como diz Fish: "Uma frase nunca está fora decontexto. Não estamos nunca fora de uma situação (...). Uma frase que parece prescindir de interpretação jáé produto de uma interpretação" (1980: 284. Em um capítulo de seu livro Is There a Tat in This Cíass?, intitu-lado "Normal Circumstances, Literal Language, Direct Speech Acts, íhe Ordinary, the Everyday, the Obvious.

. What Góes Without Saying, and Other Special Cases").

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dos pela bioengenharia que em geral vivem fora da cidade, retornaram para de-frontar-se com seus criadores na Tyrell Corporation, uma organização de tecnolo-gia de ponta. Os replicantes não aceitam a brevidade de seus quatro anos de vidaprogramados - o máximo em termos de consumismo - e querem que lhes seja con-cedido o status humano integral. A Tyrell Corporation pode apenas dar-lhes umaresposta negativa: "Impossível. Vocês estão condenados a viver suas vidas progra-madas como simulacros de seres humanos, e seus sentimentos são todos falsos!"Deckard - o "blade runner" - é encarregado de caçar os replicantes e eliminá-los (ou"aposentá-los").

Os replicantes não são robôs, mas simulacros perfeitos que têm uma existên-cia rápida e furiosa. Como vamos determinar se aqueles dos quais Deckard descon-fia são ou não replicantes? Um deles, Rachel, produz uma foto de sua "mãe" quelhe permite ter um passado e uma história de vida verdadeiros, como se fosse hu-mana. Isso leva Deckard a ligar-se emocionalmente a ela, e depois de eliminar os ou-tros replicantes ele foge - ao menos na versão original, comercialmente distribuídado filme - com Rachel para a natureza; o filme termina com ambos a caminho deuma paisagem de florestas e montanhas. Por acaso, ela é especial e foi programadapara viver indefinidamente; o cenário de montanhas e florestas parece oferecer o po-tencial para um estilo de vida capaz de dar a ambos a possibilidade de concretizaruma existência humana "real".

Blade Runner tem por cenário um espaço urbano decadente onde edifícios ou-trora grandiosos parecem ruínas situadas em ruas abarrotadas de pessoas e shop-ping centers nas quais edifícios incrivelmente altos - moradias para os ricos - er-guem-se sobre ruas onde multidões de asiáticos circulam de bicicleta por entre ban-cas de camelos. O lixo não coletado vai se acumulando, e há uma garoa que nuncapára. Nas décadas de 1980 e 1990, Los Angeles tomou-se um motivo recorrente parao imaginário da cidade pós-modema, o lugar onde o futuro já se mostrava; contudo,se o cenário de Blade Runner é realmente Los Angeles, a cidade tomou-se agorauma megalópole poluída, superlotada e dominada por asiáticos. Cada canto é umaarena perigosa, cheia de pobres e marginais que remetem ao universo punk-oríer\-tal-heavy metal-krishna. Enquanto muitos luminosos são identificáveis ao especta-dor, alguns deles - como o de uma japonesa tomando pílulas enquanto uma vozproclama os prazeres de "férias em outro mundo" - não se deixam identificar. O queaconteceu? Essas imagens mostram os resultados de um holocausto nuclear? Ouprocuram advertir sobre uma modalidade menos identificável de autodestruição?Um testamento de uma sociedade moderna que simplesmente se desintegrou de-vido à multiplicidade de suas próprias pressões internas? Que foi feito dos valoreshumanos? Paradoxalmente, os replicantes parecem incorporar mais "virtudes hu-manas" do que os seres humanos. Sem dúvida o "progresso", no sentido do aperfei-çoamento das coisas para o corpo social, deixou de ser algo em que se acredite; oque, em tal contexto, pode oferecer salvação? Em Blade Runner, vivemos em meio

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a signos que datam de uma época em que teriam tido sua importância reconheci-da. Colunas romanas e gregas, dragões chineses e pirâmides egípcias misturam-secom gigantescos anúncios em néon de Coca-Cola, Atari, Jim Beam,Trident, Miche-lob e Pan-Am. Ainda que veículos de transporte bem iluminados pairem sobre asruas, e haja algumas cenas rápidas em que se vislumbram luxuosas dependênciasempresariais, o conjunto todo é uma colagem desconcertante.

Blade Runner talvez seja o exemplo mais facilmente identificável dentre umconjunto de filmes que anunciam o estranhamento do modo de perceber a realida-de no mundo pós-moderno. O futuro é representado como amedrontador - não éconfiável, e tampouco os homens podem confiar uns nos outros. Os replicantes deBlade Runner sintetizam as ideias de robôs, ciborgues, andróides e o avanço da bioen-genharia, que substituem os seres humanos dos quais se tornam simulacros. Comoé possível ter existência humana real num ambiente alucinatório de luminosos ele-rrônicos que anunciam sexo e ausência de sentimentos, onde clones narcisistas fal-seiam orgasmos e máquinas de realidade "virtual" oferecem (não-) experiênciasmais "reais" e estimulantes do que qualquer coisa que a verdadeira "realidade" tema oferecer? Nessa representação desapareceram o amor, a família, os empregos e areligião, restando apenas os gloriosos frutos das tecnologias de reprodução. Serápossível manter alguma esperança na utopia?

Vattimo (1992) sugere que um tipo menor de utopia está presente em BladeRunner; um sentimento "cie alívio diante do fato de já ter ocorrido o desastre ao quala modernidade parecia fadada, o que agora nos permite seguir vivendo sem o an-seio inexorável de (vir a) ser modernos, que foi o que nos levou à catástrofe. Essautopia, porém, é um afastamento da modernidade; com o mundo do "progresso"em ruínas, o final de Blade Runner condescende com uma retirada irónica e nostál-gica para uma existência mais "natural". É uma mensagem de que os elementoscentrais de nosso período moderno tinham por base equívocos e desacertos. Se oiluminismo anunciava que o objetivo da vida humana era a felicidade em liberda-de, estava errado ao acreditar que a análise científica abstrata seria capaz de nosoferecer a verdade da condição humana, ou que a tecnologia poderia erguer cida-des nas quais valesse a pena viver; em vez disso, precisamos recriar as comunida-des que agora já estão há tempos perdidas. A mensagem que nos passam os escri-tores existencialistas como Albert Camus (1956), os filósofos morais como JohnFinnis (1980) ou Alasdair Maclntyre (1981,1988), ou os comunitaristas como San-del (1982) e Taylor (1985,1990), é a de que a existência verdadeiramente humanasó é possível a partir da convivência em grupos naturais. Precisamos reinterpretaras histórias do passado e descobrir o verdadeiro "direito natural" que deveria estarregendo nossas vidas.

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É POSSÍVEL ACREDITAR NUMA FILOSOFIA DO DIREITO CAPAZ DECONTAR UMA HISTÓRIA VERDADEIRA DO IMPÉRIO DO DIREITO NAPÓS-MODERNIDADE? OU SERÁ A PÓS-MODERNIDADE UMA PERDA

DE FÉ NAS NARRATIVAS COERENTES, NO PROGRESSO E NAPOSSIBILIDADE DE JUSTIÇA?

Nos últimos anos, a partir de uma abordagem analítica, os estudiosos da filo-sofia do direito vêm tentando associar seu trabalho a relatos mais amplos do de-senvolvimento social. Alguns deles - como as feministas radicais - têm contestadoas descrições de progresso social nas quais o liberalismo tem se fundamentado im-plicitamente. O liberalismo também tem seus defensores. A teoria jurídica norma-tiva de Ronald Dworkin tenta revitalizar a legalidade liberal diante do desafio pós-moderno. Para muitos escritores ele é um romântico, um "nobre sonhador" quetece uma trama de coerência e consistência com base em princípios quando a rea-lidade que subjaz à legalidade pós-moderna é a incoerência, a inconsistência e abatalha política. Que papel poderíamos encontrar para Dworkin em Blade Runner? Ounaquela celebração do glamour contemporâneo, L. A. Law*l Em contraste comDworkin, parece fácil identificar um vasto conjunto de oponentes que ou se podeagrupar vagamente sob a bandeira do Movimento dos Estudos Jurídicos Críticos,ou são influenciados por preocupações semelhantes àquelas que motivaram essemovimento. Caracterizados pelo ceticismo e pela desconfiança para com o libera-lismo, à primeira vista parece não haver modo algum de conciliar seus respectivosprojetos com o de Dworkin ou os daqueles que defendem o positivismo jurídico.Na verdade, parece difícil apresentar uma exposição da filosofia jurídica que possaconter os dois conjuntos de posições de tal modo que se possa estabelecer qualquerdiálogo entre eles12.

O PROBLEMA DE OFERECER NARRATIVAS COERENTES NASCONDIÇÕES PLURALISTAS E MULTIFORMES DA MODERNIDADE

TARDIA OU DA PÓS-MODERNIDADE

A modernidade - o período da história social que se inicia com o Iluminismono século XVTfl - fundamenta-se em parte na crença de que será possível chegar àplena autoconsciência no que diz respeito à realidade social. A humanidade vai ana-

* O autor se refere à série de televisão Los Angeles Law, que foi ao ar nos Estados Unidos de 1986 a1994. (N. do T.)

12. Estranhamente, muitos dos proponentes não parecem desejar o diálogo. Dworkin deixa claro que nãopode dialogar com aqueles que chama de "célicos externos" (i.e., críticos que extrapolam os limites das perspec-tivas internas da legalidade e se recusam a buscar, em primeiro lugar, uma interpretação favorável e construti-va da tradição da legalidade liberal); outros autores afirmam que só se pode dialogar depois que todos tenhamadmitido a natureza ideológica de seu discurso e desconstruído todos os textos aos quais irão reportar-se.

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lisar o mundo, adquirir um conhecimento seguro e utilizá-lo para criar uma socie-dade justa. Após-modemidade pode ser definida como a percepção de que tal cren-ça não tem validade alguma. Quanto mais conhecimento adquirimos, mais difícilfica narrar uma história-mestra, apresentar uma imagem racionalmente coerenteda realidade social e das instituições fundamentais. Enunciar a verdade da realidadesocial tornou-se problemático. Definimos tal condição como o problema pós-mo-derno. Sem dúvida, o ato de identificar a natureza da realidade e de nosso próprioeu não constitui novidade: tem sido um projeto crucial desde que a humanidadecomeçou a registrar suas reflexões intelectuais. Precisamos criar grandes narrativasque ao mesmo tempo definam a natureza de nossas instituições e sancionem nos-sas identidades sociais. Como afirmou Rosen: "Uma liberdade incapaz de explicar-se a si própria não é diferente da escravidão" (1969:157).

Por que se tornou aparentemente tão difícil produzir narrativas coerentes doprogresso social e do significado de nossas instituições em nossa época? Sem dú-vida, a diferença está em nosso contexto e nossa história. Fazemos tantas pesquisasque deveríamos ter alguma certeza, mas cada nova descoberta vem desestabilizara confiança nas certezas do passado. Admitimos que: (i) o avanço do conhecimen-to científico tem um papel crucial no desenvolvimento da sociedade moderna; (ii)a aquisição de novas formas de conhecimento e novas tecnologias de comunicaçãoe representação não tornam a modernidade mais transparente, mas ao contráriogeram, com frequência cada vez maior, conflitos de perspectivas, imagens, redes decomunicação e capadtação tecnológica; (iii) essa explosão de imagens e saberescomplica todas as formas de identidade social e cria dúvidas existenciais que difi-cultam a ação coerente, trazem consigo o medo da falta de sentido das coisas e in-tensificam a exigência de infalibilidade técnica; (iv) o enfrentamento desse caosaparente é o dilema pós-moderno.

A PROBLEMÁTICA ESPECÍFICA DE SE ANALISAR ODIREITO NO CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE

Vivemos em tempos incertos; muitos críticos sentem que as promessas da mo-dernidade de criar sociedades com justiça social, onde as pessoas seriam felizes,mostraram-se falsas. Em termos políticos e sociais, as duas grandes narrativas an-tagónicas da modernidade enfrentam dificuldades: apesar de ainda fornecer mui-tos dos conceitos críticos por meio dos quais tentamos compreender as estruturassociais de nossa época, o marxismo está desacreditado como doutrina política, en-quanto o liberalismo parece ser, para muitos, uma casca vazia incapaz de ofereceruma fonte de significado social.

O destino do direito contemporâneo reflete essa história de desenvolvimentosocial. Estamos cercados pelo direito. Alguns deram a isso o nome dejuridificaçãQ dasesferas sociais (Teubner, 1987). Outros aludem à proliferação de formas de regula-mentação jurídica e quase jurídica, e se perguntam se é possível dar algum sentido

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à infinidade de seus efeitos. Segundo essa narrativa o direito perdeu sua identidade,rendeu-se a novos deuses: é visto como servp^a_ej;o_nDmiaxjla^j)olítica_e_da utilij; í,d^d^ejT^uj^to^xigimos que^eja^visto como um fenómeno jrioral. Nunca antes, 'parece, exigiu-se tanto do direito; nunca antes investiu-se tão pouca autoridade nele. jSerá isso um motivo para preocupações? Precisamos poder ter imagens institucio- \s para o direito que nos ofereçam mensagens otimistas e magnânimas, ou po-

demos nos dar por contentes em pensar o direito como instrumento de qualquer •]poder político ou ideológico que no momento detiver o controle da ordem social?13 í-Para escritores como Dworkin, as discussões na filosofia jurídica são debates sobreuma parte de nossa identidade social. O modo como pensamos o direito toma-seum reflexo de como vemos os objetivos e conteúdos de nossas instituições, bemcomo os compromissos públicos de nossas sociedades com a tomada de decisõesmorais e políticas. Tanto para Dworkin quanto para os membros do Movimento dosEstudos Jurídicos Críticos, o positivismo jurídico enfraqueceu nossa capacidade depensar acerca do direito, e. é preciso adotar novas formas de interpretação paracompreender o papel do direito na formação de nossa situação atual. Com que es-pírito se deve conduzir esse processo? Para Dworkin, é fundamental manter o oti-mismo; assim, ele afirma ser possível encontrar, na legalidade e nos documentoslegais - a Constituição dos Estados Unidos é o grande exemplo - um relato dosprincípios morais e políticos de nossas sociedades (Dworkin (1996) oferece liçõessobre "A leitura moral da Constituição [dos Estados Unidos"]). Outros exigem queenfrentemos com determinação o desencanto com o nosso mundo, e evitemos oerro de superestimar a capacidade do direito, e há os que argumentam que deve-mos ser cautelosos com todas as tentativas de construir exposições coerentes per se;devemos, em vez disso, desconstruir todas as exposições, recusando-nos a fazerqualquer relato em grande escala do direito; paradoxalmente, tal recusa equivale aengajar-se na produção e enunciação de relatos14. Não podemos fugir à necessidade

13. Alguns autores insistem ern que é essa a leitura correta, e que só podemos manter nossa integrida-de moral e política se nos tornarmos radicalmente realistas em nossa apreciação do direito. O escritor tidocomo expressão máxima do positivismo jurídico, Hans Kelsen, exigia que não apenas despojássemos nossosmétodos de interpretação do direito de qualquer impureza moral ou ideológica, mas também admitíssemosque - em si mesmo - o direito não era nada além de um veículo para a coerção (Kelsen, 1934,1970).

14. Essas vozes não parecem estar dialogando entre si. Como resolver o dilema? Uma tentação é refor-mulá-lo, vendo-o como uma questão de linguagem. Isso já foi tentado antes. O fato de que o "mergulho noslógoi (modos de dizer as coisas) - o constante diálogo da linguagem com a linguagem - pode obscurecer arealidade do ser nunca foi posto em dúvida. Uma das interpretações da desconfiança de Platão com relaçãoaos sofistas aponta para sua consciência do quanto as coisas pragmáticas da linguagem, isto é, nomes, con-ceitos e ideias, podem impor-se em detrimento daquilo que se pretendia que trouxessem à "luz". Enquantoa linguagem nos dá a oportunidade de exprimir e analisar as coisas, vendo-as de modo mais claro, podemosnos perder na tentativa de esclarecê-las - o que significa que a linguagem tanto serve para iluminar quantopara obscurecer. Os sofistas utilizavam essa potencialidade da linguagem para confundir e ofuscar, e preocu-pavam-se com a manipulação e os efeitos emocionais, não com a verdade. (Ver nossa discussão do mito da

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de interpretar e reinterpretar a natureza de nossa história social e os mecanismospelos quais nos orientamos a nós mesmos neste mundo. Esta é a tarefa da filoso-fia do direito; oferecer-nos os meios pelos quais possamos compreender os com-plexos fenómenos do direito e com eles conviver. Será que não há limites para as

'.histórias que podemos contar? A aceitação de que nossas histórias não podem re-duzir-se a uma história-mestra pode parecer algo como um fracasso àqueles queprecisam do conforto de uma resposta às perguntas da vida. Inversamente, contu-do/ aceitar que estamos destinados a oferecer interpretações e reinterpretações tam-bém implica que o ser humano tem a ver com a transformação contínua, com eventose projetos, com o diálogo e a interpretação. E com a necessidade de criar estrutu-ras de orientação; daí o direito.

Capítulo 2

Origens:ã Grécia clássica e a ideia do direito natural

I. O DIREITO E A QUESTÃO EXISTENCIAL

Agrada-me pensar o direito como uma instituição social que tem por finalidadeatender às necessidades sociais - as reivindicações, exigências e expectativas decor-rentes da existência da sociedade civilizada -, realizando o máximo possível com o mí-nimo de sacrifício na medida em que tais necessidades ou reivindicações possam seratendidas mediante a organização da conduta humana em uma sociedade politica-mente organizada. Para os fins em apreço gosto de ver, ha história jurídica, o registrode um reconhecimento e atendimento cada vez maiores das necessidades, reivindica-ções ou desejos humanos por meio do controle social; um modo mais abrangente eeficaz de assegurar os interesses sociais; uma eliminação cada vez mais completa e efi-caz do desperdício e do atrito na fruição humana dos bens da existência - em resumo,uma engenharia social cada vez mais eficiente (Roscoe Pound, Introduction to the Philo-soph\/oflaw,l95<í:í7).

Concedei-me só mais um verão, ó Poderosas*,E só mais um outono para aprimorar meu canto.Para que então, saciado do mais doce dos jogos,De bom grado possa morrer meu coração.A alma que, em vida, não alcançou seu direito divino,Não terá repouso no reino dos mortos.Mas se um dia me for dado conseguirO que tenho de sagrado no coração, o poema,Bem-vinda seja a calma do reino das sombras!Estarei feliz ainda que não tenha, ali,Minha lira por companheira.Terei vivido uma vez como os deuses,E de mais não preciso.

(Do poeta alemão Hõlderlin; trecho do poema "Nur einen Sommer", traduzido para cinglês por W. Kaufmann, em seu ensaio "Existentialism and Death", 1965: 59.)

* O poeta está se dirigindo às Parcas (o título original alemão deste fragmento é An die Parzen),a inicial maiúscula de "Poderosas", que não aparece na tradução inglesa. (N. do T.)

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