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70 Reportagem: A loucura dos testes no IMM Por estes dias, o Instituto de Medicina Molecular não tem mãos a medir. A avalanche de testes à Covid-19 veio alterar todas as rotinas. A VISÃO retrata como se vive e trabalha em mais uma unidade de combate ao vírus

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70 Reportagem: A loucura dos testes no IMM

Por estes dias, o Instituto de Medicina Molecular não tem mãos a medir.A avalanche de testes à Covid-19 veio alterar todas as rotinas.A VISÃO retrata como se vive e trabalha em mais uma unidadede combate ao vírus

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Na fábrica 9

de testes

REPORTAGEM

Pela primeira vez, uma equipa de jornalistas visita

as instalações do Instituto de Medicina Molecular, onde

se produz o kit de diagnóstico da Covid-19. Vimos engenho,

voluntariado e também muito "desenrascanço"

í&) SARA SA SS JOSÉ CARLOS CARVALHO

Há dois meses era um típico andar deum instituto de investigação. Gabinetes,laboratórios, pósteres de conferências,

pipetas e microscópios. Agora é umaautêntica fábrica, com constantes en-tradas 6 saldas de material, a laborarmais de 12 horas por dia, sete dias porsemana. Aqui, no terceiro andar doInstituto de Medicina Molecular (IMM)João Lobo Antunes, em Lisboa, os ope-rários são alunos de doutoramento,líderes de grupo, gestores de projeto. E

todos cumprem o seu turno em regimede voluntariado.

Ao comando desta "empresa", com115 trabalhadores, estão a bióloga Va-nessa Luís, 42 anos, e a bioquímica Ju-dite Costa, 35. Vanessa faz investigaçãoem malária e está há 12 anos no IMM;Judite tem as funções de gestora de

projeto num grupo que se dedica aodesenvolvimento de músculo artifi-cial. Na fábrica, são o cérebro, a almae a cara do negócio. Isto significa estarconstantemente a receber e a respondera mensagens dos 60 grupos de Wha-tsApp (sim, 60!) criados para mantera operação testes à Covid-19, passar12 a 14 horas naquele terceiro andare estar constantemente a adaptar os

procedimentos, de forma a dar respos-ta às crescentes solicitações, usando e

abusando do muito português verbo"desenrascar".

São nove da manhã e Vanessa parecejá estar a laborar há horas. Guia-nospelo espaço em passo acelerado, olhosvivos e atentos. Ajeita uma caixa decartão ao meio do corredor, espreita otelemóvel, agarra num toalhete hume-decido em álcool e passa-o pela mesado café. Foi o seu rosto que surgiu ime-

diatamente na mente de Maria Mota,diretora do IMM e responsável pelogrupo de malária, quando, na segundasemana de março, se apercebeu de queem Portugal o combate à Covid-19 iriaencravar numa dificuldade: a disponi-bilidade de testes de diagnóstico.

De forma resumida, esta análiseidentifica genes do vírus SARS-CoV-2numa amostra recolhida através de

uma zaragatoa. O teste recebe o nomeda técnica utilizada para se chegar aoresultado, a PCR (da sigla em inglêspara reação em cadeia da polimerase),que amplifica o material genético, demodo que seja possível detetá-10, paradepois apanhar as sequências de genescaracterísticas do vírus. Esta tecnolo-

gia é utilizada no dia a dia de grandeparte dos laboratórios de investigaçãoe, apesar de no IMM nunca ter sido

aplicada na deteção de coronavírus,foi uma questão de dias até estar tudopreparado para a tarefa.

Numa sexta-feira, 13 de março, Va-nessa reuniu com urna equipa do Hos-

pital de Santa Maria, e no sábado estavaa ver o espaço e a planear a adaptação,valendo-se do facto de o edifício, queé também a casa da licenciatura emMedicina da Universidade de Lisboa,estar fechado por causa da Covid-19. Nasemana seguinte, já os primeiros testesestavam a ser feitos, para validação peloInstituto Nacional de Saúde DoutorRicardo Jorge.

No início, o objetivo era modestoe não passaria de uma colaboraçãocom o Santa Maria, do outro lado da

rua do IMM. Mas as necessidades fo-ram-se tornando cada vez maiores, os

parceiros, que entretanto se juntaram

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à iniciativa, foram-se entusiasmando,a lista de voluntários disponíveis paradar o seu tempo e capacidades cresceue a dupla lá arranjou uma forma de de-senvolver o teste do princípio ao fim.Ou seja: desde a preparação do kit paracolheita da amostra (uma zaragatoa querecolhe o material do nariz e da gar-ganta) à comunicação dos resultadosà instituição onde foi feita a colheita.

Para manter toda esta engrenagema funcionar, existe uma equipa de 115

pessoas - que se reveza em turnos de,

pelo menos, quatro horas no instituto

-, 30 das quais estão a trabalhar emcasa. essencialmente na produção derelatórios. Neste momento, as amostrasvêm de três locais: do sistema de dri-ve-thru do Hospital da Cruz Vermelha,das carrinhas itinerantes da Cruz Ver-melha c dos lares da responsabilidadedo Ministério do Trabalho, Solidarie-dade e Segurança Social.

LINHA DE MONTAGEMCada espaço daquele terceiro andarestá transformado numa estação dalinha de montagem. A primeira sala

funciona como uma espécie de ben-galeiro, em que cada voluntário deixa

os seus pertences no início do turno,uma mesa por pessoa, devidamenteidentificada, para a eventualidade de

aparecer algum caso de infeção pelocoronavírus (o que até hoje ainda nãoaconteceu). Também há a sala de iso-lamento, com telefone, comida não

perecível e água. O bar, encerradodurante o estado de emergência, foitransformado em copa e abastecidocom refeições prontas, café, chocolates

e bolachas, graças à generosidade de

algumas empresas.Vemos a bancada onde quem traba-

lha na sala de inativação do vírus - a

parte mais sensível de todo o processo,uma vez que se manuseia o vírus aindavivo - se equipa, seguindo os passosdescritos com minúcia no cartaz co-lado à parede, e a sala do frigorífico,onde se guardam as amostras que vão

chegando ao longo do dia. vindas detodo o País, enquanto não são proces-sadas. Também há quem se dedique acortar em três as folhas de papel de se-car as mãos, embebendo- as de álcool

Inovaçãocontra aCovid-19A comunidade científicanacional mobilizou-separa atacar o novo vírus,o que está a fazer toda a

diferença. Seguem algunsexemplos:

OIçamInformação traduzidaLidar com a panóplia de novos

dados, libertada diariamentesobre o novo vírus, é um dos

maiores desafios para osmédicos. Para simplificaro trabalho dos colegas,estudantes de Medicina,internos de formação,médicos do Centro HospitalarUniversitário do Algarve, do

ABC-Algarve BiomedicalCenter e investigadoresdo BiolSl, da Faculdade de

Ciências da Universidade deLisboa, recolhem informaçãocientífica, resumem-naà mensagem principale disponibilizam-na, emportuguês, na plataformaIçam. Tudo resultado detrabalho voluntário.

OISTMapa de riscoe deteçõo de sintomasUm modelo desenvolvido peloInstituto Superior Técnicoatualiza diariamente o riscode infeção em cada regiãodo País. No Técnico tambémse está a aperfeiçoar uma

tecnologia, a e-CoVig, quepermitirá a deteção remotade sintomas.

OTech4COVIDI9Prq/issionais de saúde,comércio e solidariedadeMais de quatro mil voluntáriosde 250 empresas e de váriasáreas profissionais criaramuma aplicação com dados

técnicos para os profissionaisde saúde, uma plataforma de

apoio ao comércio online e

uma campanha de angariaçãode fundos que serviu paraadquirir material de combateà pandemia.

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em caixas usadas no laboratório, agoratransformadas cm porta toalhetes, e

espalhadas por todo o lado. "Por de-trás da máscara, somos todos iguais",sublinha Vanessa Luís. "Quando isto

acabar e pudermos andar sem máscara

é que nos vamos conhecer", graceja.De uma previsão inicial de 150 tes-

tes por dia, esta máquina bem oleada

De umaprevisãoinicial de 150testes por dia,esta máquinabem oleadapassou a darconta de 750

passou a dar conta de 750. Tudo co-

meça com a preparação dos kits paraenviar às instituições onde é feita a

colheita. Num saquinho, seguem duas

zaragatoas, uma proveta com um meiode cultura, as instruções e os toalhetes

desinfetantes (os tais adaptados de

papel de secagem das mãos). Cada kitvai ainda devidamente etiquetado comum código de barras.

O material regressa à base, depoisde feita a colheita, e o primeiro passoé a inativação do vírus, o que é feitona sala de segurança biológica de ní-vel 2, protegida por duas portas quenunca se abrem em simultâneo e onde

os voluntários tiveram de aprender a

trabalhar segundo as regras exigidas

para lidar com o vírus vivo. Foi Miguel

Prudêncio, um investigador tambémda área da malária, com experiênciaem laboratórios de segurança de nível

3, um degrau acima, quem se respon-sabilizou pela formação dada a quemse sentiu capa/ técnica c emocional-mente para a tarefa.

A fase seguinte corresponde à ex-

tração do material genético do SAR-

S-CoV-2, no caso ARN. que segueentão para PCR, onde ocorre a ampli-ficação e a identificação. Nesta reaçãomisturam-se duas moléculas que se

"colam" ao coronavírus, libertandofluorescência quando este empare-lhamento acontece. Se, no início do

processo, os cuidados são relativosà proteção das pessoas, para evitarque sejam contaminadas, no final, nafase do PCR, é essencial que não hajacontaminação da amostra, para não

se comprometer o resultado. "Nasnossas mãos, há moléculas capazes de

destruir o ARN [o que funciona comouma proteção do nosso organismo]e que podem danificar o material da

amostra, prejudicando o diagnóstico",realça Judite Costa.

Os resultados são, então, analisa-dos, são feitos o relatório e o comu-nicado à instituição. "Em geral há uma

proporcionalidade entre a intensidadeda fluorescência e a quantidade de

vírus presente na amostra", diz JuditeCosta. Nestes casos, o resultado apare-ce a vermelho no ficheiro em que são

registados todos os resultados maisde 13 mil amostras estudadas desde oinício das operações, no final de mar-ço - e é comunicado imediatamenteà instituição onde foi feita a colheita.

Uma vez, que se trata de uma pessoacom alto nível de infecciosidade, por-tanto com elevado risco de contágiode outras, é urgente que a informaçãoseja transmitida para que o doente

seja posto em isolamento c vigiado de

perto quanto à evolução dos sintomas.

De notar que, em todo este processo,não há qualquer informação relativa à

identidade das pessoas testadas. Todas

as amostras são identificadas com base

no tal código de barras.Por outro lado, quando as cargas

virais são muito baixas, entra-se nolimite de deteção da técnica. E já se

percebeu também que não é linear a

relação entre a quantidade de vírus no

organismo e a gravidade dos sintomas.

"Há casos em que a carga virai é alta e

os sintomas são ligeiros", nota Vanessa

Luís que conclui: "Ainda conhecemos

pOUCO diStO..." l'l ssoßvisao.ut

Improviso Os voluntários MartaFurtado e João Gomes, ambosestudantes de doutoramento,admitem que estão sempre a surgirnovos problemas, o que acaba porresultar na otimização do processode produção de testes

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