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7/30/2019 7038856 Anton Tchekhov a Enfermaria 6 e Outros Contos
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a enfermaria nº 6 e outros contos
anton tchekov
anton pavlovitch tchekov nasceu em tapanrog, nas margens do mar de
azov, na rússia, em 1860, e morreu em hadenweilcr, na alemanha, em
1904. neto de camponeses, recebeu uma formação escolar precária,
na província. para prover às necessidades económicas da família e
custear os seus estudos de medicina, em moscovo, tchekov escreve
contos humorísticos e crónicas, que publica em jornais. em 1884 é
editada a sua primeira recolha de contos. datam também dessa
altura as primeiras peças de teatro: os malefícios do tabaco
(1886), ivanov (1887, a mais importante das obras deste período),
o urso (1888), o pedido de casamento (1888) e o casamento (1889).
É com a publicação de uma novela, Â lístepc (1888), que tchekov vê
consolidada a sua posição de escritor. dos jornais humorísticos em
que colaborava, passa a escrever para revistas literárias; e o
conto, até então considerado género menor na rússia, assume nova
importância. em 1890 viaja pela ilha de sacalina, lugar de
deportação dos condenados a trabalhos forçados, e descreve-a num
livro objectivo e comovente (1893). viaja pelo estrangeiro em
1891, e compra uma propriedade nos arredores de moscovo.
preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir escolas e
estradas. os anos de 1891 a 1897 são bastante férteis para a sua
obra: desta época data a enfermaria nº 6, uma das suas novelas
mais notáveis. toda a dramaturgia tchekoviana é caracterizada por
uma aversão aos acontecimentos espectaculares ou "teatrais".
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entretanto, o encontro com a arte de stanislavski e o teatro de
arte de moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção
cénica de tchecov. a gaivota (1896) fracassa aquando da sua
estreia em moscovo, que coincide com o agravamento da tuberculose
de que tchekov padecia há anos. passa o inverno de 1897-1898 em
nice, e em 1899 compra uma propriedade em yalta, na crimeia. só
após o seu casamento com olga knipper (1898), primeira actriz do
teatro de arte, de stanislavski, têm início os seus triunfos
dramáticos. É nos últimos anos de vida que tchecov escreve as
melhores peças da sua produção: o tio vânia (l 899), as três irmãs
(1901) e o pomar das cerejeiras, a sua obra-prima (1904). ao lado
de gogol e gorki, tchekov é dos maiores contistas da literatura
russa. debruçando-se piedosamente sobre os diversos tipos sociais
da época, anton tchecov não revela nas suas obras quaisquer
tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos
escritores russos. não obstante a sua irreligiosidade, confere às
coisas mais insignificantes um conteúdo densamente filosófico e
uma tonalidade estranhamente mística.
versão portuguesa de
maria luísa anahory
e editorial verbo
composto e impresso por
gris, impressores
lisboa 1972
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livros rtp
biblioteca básica verbo nº 67
anton tchekov
a enfermaria nº 6 e outros contos
a enfermaria nÚmero seis
i
no pátio do hospital existe um pequeno pavilhão rodeado de um
autêntico matagal de cardos, urtigas e cânhamo silvestre. tem o
tecto oxidado, a chaminé meio destruída, os degraus da entrada
apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestígios. a
fachada dá para o hospital e as traseiras para o campo, e deste
separa-o uma vedação de madeira, pintada de cinzento e encimada
por pregos. estes pregos com os bicos para cima, a vedação e o
próprio pavilhão oferecem aquele aspecto característico, triste e
repulsivo, que no nosso país apenas os hospitais e as prisões
apresentam.
se não tendes receio das urtigas, caminhemos pelo estreito atalho
que conduz ao pavilhão, e lancemos um olhar ao que se passa no
interior. abrimos a primeira porta e entramos no vestíbulo. aqui,
junto à lareira, há montanhas de objectos e roupas. colchas
velhas, batas esfarrapadas, calças, camisas de riscas azuis,
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sapatos rotos e inúteis: todos estes trapos estão amontoados,
amarrotados, remexidos, meio apodrecidos, emanando um cheiro
pestilento.
permanentemente deitado sobre este lixo, com o cachimbo entre os
dentes, está o trapeiro nikita, velho soldado reformado, de galões
desbotados. tem a expressão do homem que gosta de beber;
sobrancelhas arqueadas, que lhe dão o aspecto de um mastim das
estepes e o nariz vermelho; de estatura baixa, seco e nervoso;mas
tem um físico que se impõe e possui mãos enormes. pertence àquela
classe de pessoas simples, cumpridoras do seu dever e obstinadas,
que põem a ordem acima de tudo, sinceramente convencidas de que o
emprego da força é indispensável. bate ao acaso, na cara, no
peito, nas costas, em qualquer parte, com a certeza de que de
outro modo não poderia manter a ordem.
7
entramos em seguida numa divisão grande, muito espaçosa, que ocupa
todo o pavilhão, salvo o vestíbulo. as paredes estão pintadas num
tom azulado, e o tecto está enegrecido como nessas isbás onde não
existe chaminé: vê-se que acendem a lareira no inverno e que esta
deita muito fumo. as janelas estão protegidas por dentro com
varões de ferro. o chão é cinzento, e tem tábuas lascadas. cheira
a couve azeda, a fumo da torcida da lamparina, a percevejos e a
amoníaco, dando este cheiro nauseabundo a impressão de termos
entrado numa jaula de feras.
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nesta sala estão dispostas várias camas, fixadas ao chão. sempre
sentados ou deitados, há homens envergando as fardas azuis do
hospital, e tendo na cabeça gorros como os usados noutros tempos
para dormir. são os loucos.
são cinco ao todo. apenas um é de origem nobre; os outros são
operários. o primeiro, logo à entrada, é alto e magro, com bigode
arruivado e lustroso, e olhos húmidos; está sentado, com a cabeça
apoiada nas mãos e o olhar perdido no vácuo. passa os dias e as
noites envolto em profunda tristeza, abanando a cabeça, suspirando
e sorrindo amargamente; raras vezes intervém na conversa e em
regra não responde às perguntas. come e bebe maquinalmente, quando
o servem. a avaliar pela tosse que lhe rasga o peito, pela magreza
em que se encontra e pela palidez da face, sofre de um princípio
de tuberculose pulmonar.
a seguir está um velhinho, mirrado mas muito vivo, que não pára de
se mexer, com a sua barbicha em bico, e cabelo escuro e
encarapinhado como o de um negro. passa o dia a andar de uma
janela para a outra, ou então permanece sentado no seu catre, com
as pernas cruzadas à maneira turca, assobiando como um
pintassilgo, cantando a meia-voz e rindo com um riso suave. a sua
alegria infantil e animação bate no peito e abana a porta. É o
judeu moiseika, imbecilizado desde que há vinte anos perdeu o
juízo, quando um incêndio destruiu a sua oficina de chapéus.
É o único habitante da sala número seis a quem é permitido sair do
pavilhão, e até do pátio do hospital, para a rua. É um privilégio
de que desfruta há muito, provavelmente devido ao seu tempo de
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recluso e ao facto de ser um doido tranquilo e inofensivo: é o
bobo da cidade, que todos se acostumaram a ver pelas ruas, rodeado
de garotos e cães. com a sua bata e o seu ridículo gorro, de
alpergatas ou descalço, e às vezes até sem calças, vai e vem,
parando nas portas das lojas e pedindo
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esmola. aqui, dão-lhe uma côdea de pão, ali um kopek , de modo que
volta ao pavilhão de estômago cheio e rico. mas nikita tira-lhe
tudo quanto traz. o soldado fa-lo com brutalidade, muito
meticulosamente, passando revista aos bolsos e invocando deus como
testemunha de que não voltará a deixar sair o judeu, ao mesmo
tempo que afirma não haver coisa pior do que a desordem.
moiseika gosta de fazer favores. dá água aos seus companheiros,
cobre-os quando estão a dormir, promete trazer-lhes dinheiro
quando for à rua e confecciona-lhes gorros novos. dá ainda de
comer ao seu vizinho da esquerda, que é paralítico. e faz tudo
isto, não por compaixão ou considerações de carácter humanitário,
mas para imitar gromov, o seu vizinho da direita, que o domina sem
que ele disso se aperceba.
ivan dmitrich gromov, de origem nobre, trinta e três anos, antigo
oficial de diligências do julgado e secretário provincial, sofre
de mania da perseguição. permanece deitado na cama, como um
novelo, ou anda de um lado para o outro como se desse um passeio
higiénico; é rara a vez em que fica sentado. mostra-se sempre
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excitado, inquieto, num estado de grande tensão, como se esperasse
algum acontecimento confuso e indefinido. basta o mais pequeno
ruído no vestíbulo ou um grito no pátio para que erga a cabeça e
se conserve alerta: estão a perguntar por ele? procuram-no? e
nestes instantes o seu rosto reflecte grande inquietação e medo.
agrada-me a sua cara comprida, de maçãs de rosto salientes, sempre
pálida e infeliz, espelho de uma alma atormentada pela luta e por
um sentimento de medo que nunca o abandona. tem uns tiques
estranhos e doentios, mas os finos sulcos, que um profundo e
sincero sofrimento deixou no seu semblante, denotam inteligência,
e os seus olhos deixam transparecer um brilho carinhoso e sadio.
agrada-me a sua personalidade: É cortês, prestável e
extraordinariamente delicado no trato com toda a gente, à excepção
de nikita. quando alguém perde um botão ou a colher, levanta-se da
cama no mesmo instante e entrega-lhos. dá os bons-dias aos
companheiros todas as manhãs, e ao deitar-se deseja-lhes as boas-
noites.
além da tensão permanente e dos tiques, a sua loucura tem outra
forma de manifestar-se. por vezes, ao anoitecer, embrulha-se na
sua
‘ kopek: unidade divisionária da moeda russa (n. do t.)
9
bata, e tremendo e batendo os dentes principia a andar com um
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passo rápido de um canto para o outro e por entre as camas. e como
se tivesse um forte acesso de febre. pela maneira como pára de
súbito e contempla os seus companheiros, nota-se que tem alguma
coisa muito importante para lhes dizer; mas, reflectindo melhor,
chega à conclusão de que não lhe darão ouvidos ou não o
compreenderão; sacode com impaciência a cabeça, e continua a
caminhar. mas depressa o desejo de falar se torna mais forte e dá
rédea solta à língua; fala com calor, apaixonadamente. () seu
discurso é desordenado, febril, como em delírio; nem sempre se
compreende o que diz; mas mesmo assim deixa perceber, pelas
palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade.
quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. É difícil
traduzir para o papel os seus desvarios. fala da maldade humana,
da violência que espezinha a justiça, da bela vida que com o andar
dos tempos reinará na terra, das grades e das janelas, que a cada
instante lhe recordam a obstinação e a crueldade dos opressores.
tudo é um caótico amontoado de coisas velhas mas não caducas.
10
ii
o funcionário gromov, há doze para quinze anos, vivia na cidade
com a família, em casa própria, situada na rua principal. tinha
dois filhos: serguei e ivan. serguei, quando frequentava o quarto
ano, contraiu uma tísica galopante e morreu. foi o princípio de
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uma série de calamidades que caíram subitamente sobre a família
dos gromov. uma semana depois do enterro de serguei, o velho pai
foi processado por desfalque e desvio de fundos, e não tardou em
morrer na enfermaria da prisão, vitimado por uma febre tifóide. a
casa e o seu recheio foram vendidos em almoeda; ivan dmitrich e a
sua mãe ficaram sem o mínimo recurso.
antes, enquanto o pai era vivo, ivan dmitrich vivia em s.
petersburgo, estudava na universidade, recebia todos os meses
sessenta ou setenta rublos e não sabia o que eram necessidades;
depois, tivera que mudar completamente de vida. via-se obrigado a
dar lições muito mal pagas e a fazer escrita desde manhã à noite,
mas não deixava por isso de passar fome, pois mandava à mãe tudo
quanto ganhava. ivan dmitrich não aguentou, perdeu a coragem, a
sua saúde declinou e, abandonando os estudos, foi para casa. ali,
na pequena cidade, graças a empenhos, obteve um lugar de
professor. mas não se entendeu com os seus colegas, nem lhe
agradaram os alunos, e depressa apresentou a demissão. a mãe
morreu. ivan vagueou sem trabalho durante seis meses, sem outro
alimento além de pão e água, e entrou finalmente para oficial de
diligências do tribunal, cargo que ocupou até lhe ser concedida
baixa por doença.
nunca, nem mesmo nos seus anos de estudante, deu a sensação de ser
um homem são. foi sempre pálido, magro e constipava-se facilmente.
um copo de vinho causava-lhe tonturas e ataques
histéricos. gostava de companhia, mas o seu carácter irritável e
os seus receios impediam-no de ter intimidade com alguém, e
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carecia de amigos. falava sempre com desprezo da gente das
cidades, dizendo que a sua torpe ignorância e a vida sedentária
que levavam eram qualquer coisa de degradante e repulsivo. falava
com voz de tenor, alta e apaixonada, descontente e indignada, ou
com entusiasmo e desassombro, e era sempre sincero. chegava
sistematicamente a uma conclusão, fosse qual fosse o tema: a vida
na cidade era desgostante e aborrecida; a sociedade carecia de
nível, era uma vida absurda e obscura e os únicos elementos que
contribuíam para lhe dar algum imprevisto eram a violência, a
grosseira corrupção e a hipocrisia. os facínoras estavam prósperos
e bem vestidos, enquanto os homens honrados se alimentavam de
migalhas. faziam falta escolas, um jornal local com uma orientação
honesta, um teatro, conferências públicas, coesão dos
intelectuais. nas suas apreciações sobre as pessoas empregava
grandes pinceladas de branco e negro, sem admitir nenhum outro tom
de matiz: para ele, a humanidade dividia-se em honrados e
canalhas, sem meio termo. das mulheres e do amor falava sempre
apaixonadamente, com entusiasmo, mas nem uma vez esteve enamorado.
na cidade, apesar da dureza dos seus julgamentos e do seu
nervosismo, gostavam dele, e na sua ausência davam-lhe o carinhoso
diminutivo de vânia. a sua delicadeza inata, o seu espírito
prestável, a sua dignidade e pureza moral, a sua labita coçada, o
seu aspecto doentio e as suas desgraças familiares despertavam um
sentimento bom, carinhoso e triste; além disso, era culto e tinha
lido muito; e em tudo lhe faziam fé, sendo considerado na cidade
um verdadeiro dicionário de consulta.
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lia muito. passava largas horas no clube, acariciando nervosamente
a barbicha e folheando revistas e livros; notava-se pela sua
expressão que não lia, mas que devorava, quase sem tempo de
assimilar. há que pensar que a leitura era para ele um hábito
doentio, porque se lançava com igual avidez sobre tudo o que lhe
chegava às mãos, até mesmo jornais e calendários de anos
anteriores. em casa lia sempre deitado.
iii
uma manhã de outono, com a gola do casaco subida e espezinhando a
lama, ivan dmitrich dirigia-se por vielas e pátios traseiros a
casa de um operário onde devia cumprir um mandato judicial.
listava de humor sombrio, como todas as manhãs. numa das vielas
passou por dois prisioneiros, carregados de correntes, conduzidos
por quatro soldados armados de espingardas. muitas vezes se
encontrara já com presos, e sempre despertavam nele sentimentos de
piedade e mágoa; mas desta vez produziram nele uma impressão
especial e estranha. pareceu-lhe que também o podiam carregar de
grilhetas e conduzi-lo por entre a lama à prisão. depois de
resolver o assunto com o operário, de volta a casa, encontrou ao
pé dos correios um inspector da polícia, seu conhecido, que o
cumprimentou e o acompanhou durante alguns passos. isto pareceu-
lhe suspeito. já em casa, durante todo o dia, não lhe saíam do
pensamento os presos e os soldados com as espingardas; uma
incompreensível inquietação de espírito impedia-o de se concentrar
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na leitura. ao cair da tarde não acendeu o candeeiro de petróleo
no seu quarto, e a noite passou-a de vela, pensando que podiam
prendê-lo, agrilhoá-lo e metê-lo na prisão. sabia-se inocente e
podia mesmo assegurar que nunca mataria ninguém, não queimaria nem
roubaria nada; mas seria acaso tão difícil cometer um delito sem
querer e sem intenção? não seria admissível uma calúnia, um erro
judiciário, enfim? não é em vão que a secular experiência do povo
diz que ninguém pode estar seguro contra o risco de carregar com
os alforjes do mendigo ou ir parar à cadeia. e o erro judiciário,
com o actual sistema de administração da justiça, seria muito
possível, e nem teria nada de extraordinário. aqueles que em
virtude da sua profissão estão em contacto com os sofrimentos
alheios, por exemplo, os juizes,
13
os polícias e os médicos, com o decorrer do tempo insensibilizam-
se a tal ponto, pela força do hábito, que ainda que o quisessem
não poderiam olhar os seus clientes senão com um sentimento de
indiferença; por outro lado, não se diferenciam em nada do mujique
que no curral degola carneiros e bezerros sem sequer se aperceber
do sangue. com essa atitude convencional e insensível em relação à
pessoa humana, para despojar um inocente de todos os seus direitos
e bens, e condená-lo ao presídio, o juiz apenas necessita de uma
coisa: tempo. apenas tempo para observar certas formalidades, para
o que lhe pagavam, e tudo termina. quem podia esperar justiça e
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defesa naquela uldeiazinha suja, a duzentas verstas do caminho de
ferro? e não seria ridículo pensar na justiça quando qualquer
acção violenta era acolhida pela sociedade como razoável e
aceitável, enquanto qualquer acto de piedade, por exemplo, uma
absolvição, provocava uma verdadeira explosão de sentimentos
vingativos de descontentamento?
pela manhã ivan dmitrich levantou-se apavorado, com a fronte
coberta de um suor frio e intimamente convencido de que de um
momento para o outro podiam vir prendê-lo. se os dolorosos
pensamentos da véspera tardavam tanto em abandoná-lo pensava era
porque havia neles qualquer ponta de verdade. realmente, não
podiam acudir-lhe à cabeça sem alguma razão.
um guarda municipal passou lentamente diante da janela. teria
decerto as suas razões. dois homens pararam em silêncio diante da
casa. por que motivo estavam silenciosos?
e para ivan dmitrich principiaram dias e noites de pesadelo.
imaginava que quantos passavam diante das suas janelas e entravam
no pátio eram denunciantes e esbirros. pelo meio do dia costumava
passar o chefe da polícia. na sua carruagem, puxada por dois
cavalos, vinha da sua herdade nos arredores da cidade, e dirigia-
se para a sua repartição; mas ivan dmitrich achava sempre que ele
ia demasiado depressa e com uma expressão especial: ia, sem
dúvida, anunciar que tinha aparecido na cidade um delinquente de
grande importância. ivan dmitrich estremecia sempre que batiam à
porta, e ficava angustiado quando a dona da casa recebia um
hóspede novo; quando se encontrava com polícias e guardas, sorria
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e assobiava para mostrar indiferença. passava as noites sem pregar
olho, sempre à espera de que o viessem prender; mas suspirava e
fingia ressonar para que a dona da casa imaginasse que dormia
porque não dormir seria prova de que tinha remorsos na
14
consciência. que indicação! os factos e a lógica levavam-no à
convicção de que todos estes temores eram um absurdo e uma
psicopatia, porque, na realidade, bem vistas as coisas, a detenção
e a cadeia não constituíam preocupação quando se possuía a
consciência tranquila; mas quanto mais lógicos eram os seus
raciocínios, tanto maior e mais dolorosa era a sua inquietação
espiritual, era como se um eremita quisesse abrir uma clareira na
selva virgem para nela viver: quanto mais afanosamente trabalhava
com o machado, mais espesso e vigoroso crescia o bosque. ivan
dmitrich, vendo a inutilidade dos seus intentos, acabou por
desistir, deixou de ressonar e entregou-se inteiramente ao
desespero e ao medo.
principiou a evitar as pessoas; procurava estar sòzinho. o cargo
que ocupava, que já antes lhe desagradava, tornou-se-lhe
insuportável. temia que lhe fizessem uma partida, que lhe metessem
dinheiro no bolso a fim de o acusarem de cumplicidade, ou que ele
próprio cometesse em documentos oficiais, sem querer, qualquer
erro equivalente a uma falsificação, ou perdesse uma soma que não
fosse sua. coisa estranha: nunca, em nenhuma altura, fora o seu
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pensamento tão lúcido nem a sua imaginação tão fértil como agora,
quando todos os dias descobria mil motivos diferentes para sentir
sérias apreensões pela sua liberdade e a sua honra. em
contrapartida, diminuiu sensivelmente o seu interesse pelo mundo
exterior, sobretudo pelos livros, e a memória principiou a traí-
lo.
ao chegar a primavera, quando a neve começou a derreter,
apareceram num barranco ao pé do cemitério dois cadáveres em
adiantado estado de decomposição uma mulher e um rapaz com sinais
de morte violenta. na cidade não se falava senão nestes dois
cadáveres e nos presumíveis assassinos. ivan dmitrich, para que
não se pudesse pensar que fora ele o autor do crime, caminhava
sorridente pelas ruas, e ao encontrar qualquer conhecimento
empalidecia e exaltava-se, insistindo em que não havia nada mais
revoltante que o assassinato de pessoas -fracas e indefesas. mas
não tardou a cansar-se desta hipocrisia, e depois de reflectir
chegou à conclusão de que na sua situação o melhor seria esconder-
se na cave da casa. ali permaneceu um dia, uma noite e outro dia,
até que, morto de frio, depois de escurecer, caminhando
silenciosamente como um ladrão, meteu-se no quarto, onde se deixou
ficar até de manhã sem se mexer, prestando atenção ao menor ruído.
Às primeiras horas, antes de o sol nascer, chegaram alguns
operários. ivan dmitrich bem sabia que tinham vindo chamados
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pela dona da casa, para arranjar o forno da cozinha; mas o medo
levou-o a pensar que eram polícias disfarçados. saiu
dissimuladamente do quarto, e, aterrorizado, sem gorro e sem
casaco, deitou a correr pela rua. perseguiam-no os cães a ladrar,
alguém gritou nas suas costas, o vento silvava-lhe aos ouvidos.
ivan dmitrich pensou que toda a violência do mundo se unira atrás
dele, tentando alcançá-lo.
agarraram-no, levaram-no para casa, e mandaram a senhoria à
procura do médico. o doutor andrei efimich, de quem falaremos mais
adiante, receitou-lhe compressas frias na cabeça e gotas de
loureiro e ginjas; abanou tristemente a cabeça e saiu, dizendo à
dona da casa que não voltaria, visto ser impossível fazer fosse o
que fosse quando as pessoas queriam endoidecer. como em casa não o
podiam tratar, ivan dmitrich foi pouco tempo depois levado para o
hospital e aí o instalaram na sala de doenças venéreas. não dormia
de noite, mostrava-se caprichoso e incomodava os vizinhos, e por
isso não tardaram em levá-lo, por ordem de andrei efimich, para a
enfermaria número seis.
passado um ano, na cidade tinham esquecido completamente ivan
dmitrich; e os seus livros, que a dona da casa amontoara num
trenó, sob um telheiro, foram levados pelos garotos.
16
iv
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o vizinho da esquerda de ivan dmitrich, como já dissemos, era o
judeu moiscika. o da direita era um mujiquc adiposo, obeso, de
cara inexpressiva e estúpida, um animal imóvel, glutão e sujo, que
de há muito havia perdido a capacidade de pensar e sentir. emanava
dele constantemente um cheiro fétido e asfixiante.
nikita, encarregado da limpeza, batia-lhe sem dó nem piedade;mas o
mais impressionante não era baterem-lhe, a isto ainda nos podemos
acostumar , mas o facto de aquele animal insensível não reagir de
maneira alguma aos golpes, nem por um som ou um movimento, nem
pela expressão do olhar, limitando-se a baloiçar ligeiramente como
um pesado barril.
o quinto e último habitante da enfermaria número seis era um homem
que fora em tempos empregado dos correios, onde fazia a selecção
das cartas, fora um indivíduo pequeno, magro, loiro, de expressão
caritativa, ainda que levemente maliciosa. a julgar pelo seu olhar
inteligente e tranquilo, de expressão serena e jovial, guardava no
seu íntimo um segredo muito importante e aprazível. debaixo da
almofada e do enxergão ocultava qualquer coisa que não mostrava a
ninguém, não por medo de que lho pudessem tirar ou roubar, mas por
vergonha. as vezes aproximava-se da janela, de costas para os
companheiros, colocava um objecto no peito e contemplava-o com a
cabeça inclinada; mas, se naquele momento alguém se aproximava,
perturbava-se e escondia-o. não era difícil, contudo, adivinhar o
seu segredo.
- dê-me os parabéns - dizia frequentemente a ivan dmitrich , fui
proposto para a ordem de sto. estanislau de segunda classe, com
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estrela. a segunda classe com estrela é concedida apenas aos
17
estrangeiros, mas comigo, não sei porquê, pretendem abrir uma
excepção - e sorria, encolhendo os ombros, admirado. - confesso
que não contava com isso!
- não entendo nada desses assuntos - respondia ivan dmitrich
sombriamente.
- mas mais tarde ou mais cedo hei-de consegui-lo, sabe? -
prosseguia o antigo seleccionador de cartas, piscando o olho com
astúcia. obterei sem dúvida a estrela polar sueca. É uma ordem que
vale o esforço de a conseguir. cruz branca e fita negra, e de
muito bonito efeito.
decerto, em nenhum outro local era a vida tão monótona como no
pavilhão. de manhã, os doentes, à excepção do paralítico e do
mujique gordo, lavavam-se no vestíbulo, numa banheira, e secavam-
se com as fraldas das suas batas. em seguida tomavam chá em
xícaras de folha, que nikita trazia do pavilhão principal. a cada
um correspondia uma xícara. ao meio-dia comiam sopa de couve e
papas de farinha, e ao anoitecer jantavam as papas que tinham
sobejado do almoço. nos intervalos permaneciam deitados, dormiam,
olhavam pela janela e passeavam de um lado para o outro, e assim
todos os dias. o próprio antigo seleccionador de cartas falava
sempre das mesmas condecorações.
eram muito poucas as caras novas que se viam na enfermaria número
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seis. havia tempo que o médico deixara de admitir mais loucos, e
não são muitos, neste mundo, os aficionados de manicómios. uma vez
em cada dois meses aparecia no pavilhão simião lazarich, o
barbeiro. não vamos falar de como cortava o cabelo aos loucos e da
maneira como era ajudado por nikita neste empreendimento, nem da
confusão que se gerava entre os enfermos sempre que aparecia o
barbeiro com o seu sorriso de alcoólico.
ninguém mais aparecia no pavilhão. os doentes estavam condenados,
dia após dia, a verem unicamente nikita.
mas ultimamente corria pelo hospital um rumor muito estranho:
dizia-se que o médico começara a visitar a enfermaria número seis.
18
v
estranho rumor!
o doutor andrei kfimich raguin era um homem notável no seu género.
dizia-se que havia sido muito devoto na juventude, tencionando
seguir a carreira eclesiástica;que em 1863, ao terminar os seus
estudos no liceu, se preparava para ingressar no seminário, mas
que seu pai, doutor em medicina e cirurgião, não o tomou a sério e
declarou categoricamente que não o consideraria como filho se ele
se ordenasse pope. não sei até que ponto isto é verdade, mas o
próprio andrei ffimich confessou mais de uma vez que nunca sentira
vocação pela medicina nem pelas ciências aplicadas em geral.
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fosse como fosse, ao terminar os estudos na faculdade não se fez
sacerdote. não mostrava grande devoção e no início da sua carreira
médica parecia-se tão pouco com um pope como no momento em que
principia a nossa história.
tinha o aspecto pesado, vagaroso, de um mujiquc, e pelas suas
feições, a barba, o cabelo liso, a compleição forte e grosseira,
fazia lembrar um estalajadeiro gordo, dado à bebida, e de maneiras
bruscas. o seu rosto, de expressão grave, era sulcado por finas
veias azuis, olhos pequenos e nariz vermelho. muito alto e de
ombros largos, tinha braços e pernas enormes, e parecia capaz de
matar uma pessoa de um só golpe. mas o seu andar era suave e
cauteloso, como ondulante; quando encontrava alguém no estreito
corredor, parava sempre primeiro, cedendo o lugar; e com voz que
não era de baixo, como seria de esperar, mas fina e suave como de
tenor, dizia: "perdão!" um pequeno inchaço impedia-o de usar
colarinhos duros, engomados, e por isso vestia sempre camisa de
linho ou de algodão. a sua maneira de trajar não era de médico. os
fatos duravam-lhe dez anos e a roupa nova, que
19
costumava comprar na loja de um judeu, parecia tão coçada e
enxovalhada como a anterior. com a mesma labita, recebia os
doentes, comia e fazia visitas. não o fazia por espírito de
mesquinhez, mas porque nada se importava consigo próprio.
quando andrei efimich chegou à cidade para tomar posse do seu
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era mandar os doentes para casa e encerrá-la. considerou, no
entanto, que isto não dependia apenas da sua vontade e que não
seria eficiente: se se eliminasse a imundície física e moral de um
local, aquela provavelmente transferia-se para outro. havia que
esperar que desaparecesse por si própria. além disso, se tinham
aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pessoas
necessitavam dele; os males
‘ zemstvo: organismo autónomo com determinada tendência liberal,
que, à escala provincial e distrital, mantinha hospitais e centros
de ensino. instituídos em 1864, desapareceram em 1917 (n. do t.)
20
desta vida e todas as suas vilanias são necessários, já que se
convertiam com o tempo em qualquer coisa de útil, como o estrume
em terra negra. não há no mundo bem que na sua origem não
contivesse uma acção abjecta.
uma vez tomada posse do seu cargo, andrei efimich não mostrou
ligar grande importância a todas estas anomalias. fez uma única
coisa: pediu aos servitas e enfermeiras que não dormissem nas
enfermarias. mandou também colocar duas vitrinas para os
instrumentos. quanto ao inspector, à encarregada da roupa, ao
assistente e ao material cirúrgico, continuaram nos seus antigos
lugares.
andrei efimich apreciava no mais alto grau a inteligência e a
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honestidade, mas para organizar à sua volta uma vida inteligente e
honesta faltava-lhe o carácter e a fé no direito que lhe assistia.
não sabia em absoluto mandar, proibir e insistir. era como se
tivesse feito voto de nunca levantar a voz nem empregar o
imperativo. custava-lhe dizer "dá-me" ou "traz-me" ;quando queria
comer, pigarreava indeciso e dizia à cozinheira: "se pudesse tomar
uma chávena de chá...", ou "se eu pudesse comer...".dizer ao
inspector que deixasse de roubar ou despedi-lo, ou suprimir por
completo aquele cargo inútil e parasitário, era superior às suas
forças. quando o enganavam ou adulavam, ou lhe apresentavam uma
conta que sabia ser falsa, tornava-se vermelho como um caranguejo
e sentia-se culpado; mas, apesar de tudo, assinava. quando os
doentes se queixavam de passar fome ou dos maus tratos das
enfermeiras, atrapalhava-se e balbuciava, como se fosse ele o
culpado:
está bem, está bem, vou-me ocupar disso... provavelmente trata-se
de um mal-entendido...
de princípio andrei efimich trabalhou arduamente. dava consulta
todas as manhãs até à hora da comida, operava e, inclusivamente,
assistia aos partos. as senhoras diziam que diagnosticava com
precisão as doenças, sobretudo em mulheres e crianças. mas com o
decorrer do tempo tudo isto acabou por aborrecê-lo, pela sua
monotonia e evidente inutilidade. hoje recebia trinta doentes,
amanhã eram trinta e cinco e depois de amanhã quarenta, e assim um
dia após outro, um ano atrás do outro, sem que a mortalidade
diminuísse, continuando os doentes a afluir. prestar uma
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assistência eficaz aos quarenta doentes que vinham à consulta
desde manhã até à hora do jantar' era fisicamente
‘ o jantar na rússia era servido às três horas (n. do t.).
21
impossível; redundava num logro. se durante um ano tinha examinado
doze mil doentes, segundo diziam, significava que tinha enganado
doze mil pessoas. internar os doentes graves e tratá-los segundo
as regras da ciência também não era possível porque as regras
existiam, mas não havia ciência; e se punha de parte a filosofia e
se limitava a seguir com rigor as regras, como os outros médicos,
necessitava para isso, acima de tudo, limpeza e arejamento, e não
sujidade; e uma alimentação sã, e não a sopa da repugnante couve
azeda; e bons auxiliares, e não ladrões.
além do mais, para quê impedir que as pessoas morram, se a morte é
o fim normal e lógico de cada um? que acontecia se um ricaço ou um
funcionário vivia cinco ou dez anos mais? se se considera que o
objectivo da medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta:
para quê aliviá-la? em primeiro lugar, dizem que a dor leva o
homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprende,
efectivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e
gotas, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que
até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas
também a felicidade. pushkin, na hora da sua morte, sofreu dores
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horríveis, o pobre heine esteve paralítico vários anos. então, por
que razão não havia de padecer doenças qualquer andreiefimich ou
qualquer mastriona savishna, cujas vidas não possuíam qualquer
conteúdo e seriam completamente vazias e parecidas com as de uma
ameba se não fossem os sofrimentos?
acabrunhado com estas conclusões, andrei efimich abandonou tudo e
deixou de ir diariamente ao hospital.
vi
a sua vida decorria da seguinte maneira: levantava-se geralmente
às oito, vestia-se e tomava o chá. sentava-se, em seguida, a ler
no seu escritório ou ia ao hospital. ali, num corredor estreito e
escuro, juntavam-se os doentes externos, esperando a hora de serem
recebidos. junto deles, fazendo muito barulho com as suas botas no
chão de ladrilhos, passavam os servitas e as enfermeiras
transportando os mortos e os urinóis; as crianças choravam;
soprava o vento; e caminhavam com aspecto abatido os doentes
internos, enfiados nas suas batas. andrei efimich sabia que para
os doentes com febre, os tuberculosos e os sensíveis aquilo era um
tormento, mas que podia fazer? no escritório, esperava-o serguei
sergueich, o assistente, um homem pequeno, anafado, de cara
redonda barbeada e lavada, de maneiras suaves, que, com o seu
amplo fato novo, mais parecia um senador do que um assistente.
tinha numerosa clientela na cidade, usava gravata branca, e achava
que sabia mais do que o próprio médico, que não exercia clínica
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privada. a um canto do escritório estava uma grande imagem com a
correspondente lâmpada e, a seu lado, um genuflexório forrado de
branco. nas paredes havia retratos de prelados, uma vista do
mosteiro de seviatogorsk e várias coroas secas de flores de
aciano. serguei sergueich era um homem religioso e gostava de
sumptuosidade. a imagem fora adquirida por ele. aos domingos, um
doente, obedecendo às suas ordens, lia em voz alta o livro de
orações, depois do que o próprio serguei sergueich percorria todas
as salas com o incensório, perfumando-as conscienciosamente.
os doentes são muitos e o tempo pouco, pelo que tudo se reduz a um
breve interrogatório e à receita de um remédio qualquer, um
unguento ou uma purga de óleo de rícino. andrei efimich deixa-se
ficar sentado.
23
com a cara apoiada numa das mãos, pensativo, e faz as perguntas
maquinalmente. serguei sergueich, também sentado, esfrega as mãos
e intervém de vez em quando.
- padecemos doenças e sofremos doenças - proclama - porque não
rezamos conforme é devido a deus misericordioso.
andrei efimich não pratica cirurgia; perdeu o hábito, e a vista do
sangue produz-lhe uma sensação desagradável. quando tem que mandar
abrir a boca a uma criança para lhe examinar a garganta e o
pequeno chora e se defende com as mãozinhas, o barulho causa-lhe
náuseas e enchem-se-lhe os olhos de lágrimas. apressa-se a
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escrever a receita e faz um gesto para que a mãe leve quanto antes
a criança.
com a agradável sensação de que, graças a deus, não tem doentes
privados e ninguém virá incomodá-lo, andrei efimich instala-se no
seu escritório, logo que chega a casa, e começa a ler. lê muito e
sempre com intenso prazer. gasta metade do seu ordenado em livros,
estando três divisões do andar que ocupa a abarrotar com livros e
revistas velhas. o que mais lhe agrada são as obras de história e
filosofia. de medicina assina apenas a publicação o médico, que
principia sistematicamente a ler pelas últimas páginas. a leitura
prolonga-se sempre durante várias horas, sem nenhuma interrupção,
e não o cansa. não lê com tanta rapidez e ânsia como noutros
tempos ivan dmitrich, mas devagar, e tratando de assimilar bem o
sentido, parando com frequência nos parágrafos que mais lhe
agradam ou que não entende. ao lado do livro está sempre uma
garrafa de vodka e pepinos de salmoura ou uma maçã de conserva,
tudo colocado em cima da toalha, sem pratos. de meia em meia hora,
sem desviar os olhos do livro, serve-se de um copo de vodka, bebe-
o, e a seguir, sem olhar, procura às apalpadelas o pepino e come
um bocado.
Às três horas aproxima-se silenciosamente da porta da cozinha,
pigarreia e diz:
se pudesse comer, dariushka...
depois do jantar, bastante mau e servido sem asseio, andrei
hfimich, de braços cruzados, passeia pelas divisões da sua casa e
medita. de quando em quando ouve-se ranger a porta da cozinha e
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vê-se assomar a cara corada e sonolenta de dariushka.
- andrei efimich, não serão horas de lhe servir a cerveja? -
pergunta, solícita.
- não, ainda não... - responde andrei. - prefiro esperar um
pouco... prefiro...
ao cair da tarde costuma chegar mikail averianich, o chefe dos
correios, a única pessoa, em toda a cidade, cuja companhia não o
aborrece.
mikail avcriunich fora em tempos um fazendeiro muito rico e
servira na cavalaria; mas arruinara-se e, já na velhice, a
necessidade obrigara-o a ingressar no departamento dos correios. o
seu aspecto era jovial e resplandecente de saúde, usava umas
magníficas patilhas grisalhas, as suas maneiras denotavam boa
educação e possuía uma voz forte e agradável. era bom e sensível,
mas impulsivo. se alguém vinha reclamar aos correios, não aceitava
os protestos ou começava a raciocinar por sua conta, ficava muito
corado, frenético, e gritava com voz de trovão: "calem-se!" de tal
modo que o departamento alcançara a reputação de um lugar onde as
pessoas tinham medo de ir. mikail averianich apreciava e estimava
andrei efimich pela sua cultura e nobreza de espírito; e olhava o
resto dos seus vizinhos com altivez, como se fossem seus
subordinados.
- cá estou eu! - exclama ao entrar em casa de andrei efimich -
boas tardes, meu caro. não está cansado de mim?
os dois amigos sentam-se no sofá do escritório e fumam durante
algum tempo em silêncio.
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- dariushka.se nos trouxesses cerveja... - diz andrei efimich.
a primeira garrafa bebem-na ainda em silêncio: o doutor pensativo
e mikail averianich com o aspecto alegre e animado de quem tem
qualquer coisa muito interessante para contar. É o médico quem
inicia sempre a conversa.
- que pena - diz em voz lenta e baixa, abanando a cabeça e sem
olhar o seu interlocutor (nunca olha as pessoas de frente) - que
pena, caro mikail averianich, que na nossa cidade não haja o que
se chama ninguém que saiba e goste de manter uma conversa
espirituosa, interessante! para nós significa uma grande privação.
nem sequer os intelectuais se elevam acima do vulgar; o nível do
seu desenvolvimento, asseguro-lhe, não é melhor do que o das
classes baixas. - tem toda a razão. concordo consigo.
- você próprio sabe - continua o médico, em voz baixa, falando com
lentidão - que neste mundo tudo carece de importância e interesse,
excepção feita às supremas manifestações espirituais do raciocínio
humano. a inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o
homem, sugere o carácter divino deste último, e, em certo grau,
substitui a sua imortalidade, que não existe. partindo desta base,
o raciocínio e a única fonte do prazer. nós, pelo contrário, não
vemos nem sentimos junto de nós manifestações do raciocínio: ou
seja, vemo-nos privados do prazer. É certo que temos os livros,
mas isso é muito diferente da conversa viva e da convivência. se
me permite uma comparação não muito feliz,, os livros são as notas
e a conversação o canto.
- inteiramente certo.
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faz-se um silêncio. dariushka sai da cozinha e com uma expressão
de estúpido enlevo, com a cabeça apoiada no punho, pára no limiar
da porta para escutar.
- ai! - suspira mikail averianich. - você pretende exigir
inteligência às pessoas de hoje!
e começa a falar na vida de outros tempos, sã, alegre e
interessante; na inteligência dos intelectuais na rússia; e no seu
alto conceito de honra e de amizade. emprestava-se dinheiro sem
exigir uma letra de câmbio e era considerado vergonhoso não
estender a mão para ajudar um companheiro necessitado. e que
campanhas, que aventuras, que brigas, que mulheres! e o cáucaso,
que maravilhoso país! a esposa de um chefe de batalhão, uma mulher
muito estranha, costumava disfarçar-se de oficial e ir à tarde
para as montanhas, sozinha, sem companhia. dizia-se que naquelas
aldeias tinha amores com um pequeno rei.
- rainha dos céus, mãezinha... - suspira dariushka.
e como se comia! como se bebia! e que liberais aqueles! andrei
efimich ouve e não ouve; pensa em qualquer coisa e toma um gole de
cerveja.
- sonho frequentemente com pessoas inteligentes e que converso com
elas - diz de súbito, interrompendo mikail averianich. - meu pai
deu-me uma excelente educação, e, sob a influência das ideias dos
anos sessenta, obrigou-me a formar-me em medicina. parece-me que,
se nessa altura não lhe tivesse dado ouvidos, estaria agora no
próprio centro do movimento intelectual. faria possivelmente parte
de uma faculdade. claro que o raciocínio também não é eterno, mas
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um fenómeno passageiro. mas você sabe porque tanto me agrada. a
vida é um engano nojento. quando o homem que pensa alcança a
maturidade e está consciente dos seus actos, sente-se sem querer
envolvido numa armadilha sem saída. com efeito, contra sua
vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi
arrancado do não ser para a vida... para quê! quer saber o sentido
e o fim da sua existência e não lhe
26
dizem nada ou é estúpido o que lhe dizem. chama e não lhe abrem. a
morte vem, também contra sua vontade. e da mesma maneira que na
prisão os homens ligados por um infortúnio comum sentem um alívio
quando se reúnem, também na vida uma pessoa não evita as ciladas
quando os homens inclinados para as análises e generalizações se
juntam e passam o tempo trocando ideias orgulhosas e livres. -
neste sentido, a inteligência é um prazer insubstituível.
- tem toda a razão.
sem fixar o olhar no seu interlocutor, em voz baixa e
pausadamente, andrei efimich continua a falar em homens
inteligentes e em conversas com eles, enquanto mikail averianich
escuta atentamente, concordando: "tem toda a razão."
- você não acredita na imortalidade da alma? - pergunta de súbito
o chefe dos correios.
- não, caro mikail averianich, não acredito, nem tenho razões para
acreditar.
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- pois eu confesso que também tenho as minhas dúvidas. apesar de
que, quanto ao resto, tenho a sensação de que não hei-de morrer
nunca. Às vezes penso: "já são horas de morrer, velho maduro!" mas
certa vozinha exclama do fundo do meu coração: "não acredites, não
morrerás!..."
pouco depois das nove, mikail averianich retira-se. ao vestir o
casaco, na entrada, diz, suspirando:
- no entanto, a que lugar perdido nos trouxe o destino! e o mais
desagradável de tudo é que teremos que morrer aqui. ah!...
27
vii
depois de se despedir do amigo, andrei efimich sentava-se à mesa e
recomeçava a ler. nem o mais pequeno ruído perturbava o silêncio
da tarde e da noite. parecia que o tempo se imobilizara juntamente
com o médico e o seu livro; era como se não existisse mais nada
senão esse livro e o candeeiro de petróleo, com o seu quebra-luz
verde. o rosto tosco de mujique do médico iluminava-se pouco a
pouco com um sorriso enternecido e entusiasta perante os reflexos
da inteligência humana. "oh!, por que razão o homem não é imortal?
", pensava. "para que servem os centros e circunvoluções
cerebrais, para quê a vista, a fala, o próprio sentimento, o
génio, se tudo isto vai parará terra e à posteridade, esfriará
juntamente com a crosta terrestre, e depois, durante milhões de
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anos, seguirá unido com a terra, sem nenhum outro sentido e sem
finalidade, girando em volta do sol? para arrefecer e depois
percorrer o espaço, não valia a pena tirar o homem do não ser, com
a sua inteligência divina, e, a seguir, como para lhe pregar a
partida, convertê-lo em barro."
o intercâmbio de matéria! que cobardia consolar-se com este
sucedâneo da imortalidade! os processos inconscientes que se
verificam na natureza estão inclusivamente abaixo da estupidez
humana, já que na estupidez, apesar de tudo, há consciência e
vontade, e nos processos da natureza não há absolutamente nada. só
o cobarde, em quem o medo da morte é superior à dignidade, pode
consolar-se pensando que o seu corpo viverá com o tempo, na erva,
numa pedra, num sapo,... ver a própria imortalidade no intercâmbio
das matérias é tão absurdo como prometer um futuro brilhante ao
estojo, depois que o valioso violino se estragou e deixou de
servir.
28
quando soam no relógio as badaladas, andrei efemich instala-se na
cadeira e fecha os olhos para meditar um pouco, e, sem dar por
isso, movido pelos agradáveis pensamentos que acabou de ler no
livro, lança um olhar pelo passado e pelo presente. o passado é
assunto que afasta, é melhor não o recordar. quanto ao presente,
passa-se em grande parte o mesmo. sabe que enquanto os seus
pensamentos giram à volta do sol, à semelhança da terra
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arrefecida, a meia dúzia de passos, no pavilhão principal, há
gente que sofre vítima das suas enfermidades e da sociedade que a
rodeia. acaso há alguém que não dorme e luta com os insectos,
alguém que contraiu erisipela, ou geme sofrendo a dor de uma
ligadura apertada. talvez os doentes estejam a jogar às cartas com
as enfermeiras e bebendo vodka. no ano passado foram enganadas
doze mil pessoas. toda a organização hospitalar, tal como há vinte
anos, assenta no roubo, nas discussões, nas intrigas, na protecção
injusta, no logro grosseiro, continuando o hospital a ser um
estabelecimento imoral e nocivo, no mais alto grau, para a saúde
das pessoas. sabe que na enfermaria número seis, por detrás das
grades, nikita espanca os doentes e que moiseika percorre a cidade
todos os dias pedindo esmola.
por outro lado, sabe perfeitamente que, durante os últimos vinte e
cinco anos, se produziu na medicina uma mudança espectacular.
quando estudava na universidade, pensava que a medicina teria em
breve a sorte da química e da metafísica; agora, pelo contrário, a
medicina comovia-o, despertando nele admiração e até mesmo
entusiasmo, quando, à noite, se documentava lendo, efectivamente,
que inesperada grandeza, que revolução! graças aos anti-sépticos,
realizavam-se operações que o grande pirogov considerava
impossíveis até in spe. os simples médicos de província decidiam
fazer ressecções do joelho; entre cem laporotomias, apenas se
registava um caso mortal; e as pedras no rim eram consideradas uma
doença tão insignificante que nem sequer havia nada escrito sobre
ela. a sífilis curava-se radicalmente. e a teoria da
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hereditariedade, o hipnotismo, as descobertas de pastcur e de
koch, a higiene baseada na estatística, a medicina russa dos
zemstvos? a psiquiatria, com a sua actual classificação das
doenças, com os métodos de diagnóstico e de tratamento, era
qualquer coisa de inacreditável, em comparação com o
‘ nikolai ivanich pirogov (1810-1881), cirurgião russo. as suas
investigações deram começo à orientação anatómica experimental em
cirurgia. contribuiu muito para o avanço da anestesia (n. do t.).
29
que existia antes. agora já não se deitava água fria na cabeça dos
loucos, nem os metiam em coletes-de-forças; facultavam-lhes
condições humanas de vida, e, segundo publicavam os jornais, até
lhes ofereciam espectáculos e bailes. andrei efimich sabia que,
dentro desta ordem de coisas, uma vergonha como a da enfermaria
número seis só era possível, a duzentos verxtas do caminho de
ferro, numa miserável cidade em que o presidente da câmara e todos
os vereadores eram semianalfabetos, que viam no médico um
sacerdote no qual era obrigatório acreditar sem a mais pequena
crítica, ainda que deitasse na boca estanho derretido. noutro
lugar, desde há muito que o público e os jornais teriam feito em
pedaços esta pequena bastilha.
e, então? pergunta a si próprio andrei efimich, abrindo os olhos.
qual é o resultado disto tudo? temos os anti-sépticos, koch,
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pasteur, mas nada mudou na sua essência. a morbidez e a
mortalidade continuam na mesma. celebram-se bailes e espectáculos
para os loucos, mas no entanto não os deixam sair à rua. ou seja,
que tudo é absurdo e vão e que, na sua essência, entre a melhor
clínica de viena e o meu hospital não existe qualquer diferença.
mas o desgosto e um sentimento parecido com a inveja não lhe
permitem ficar indiferente. a causa deve ser a fadiga. a cabeça
pesa-lhe e inclina-se sobre o livro. põe a mão debaixo da cara
como se fosse uma almofada e pensa: "estou ao serviço de uma obra
prejudicial e recebo dinheiro de pessoas a quem engano. mas só por
mim não sou nada, uma simples partícula de um mal social
necessário: lodosos funcionários do distrito são nocivos e recebem
um ordenado que não mereceram... o que significa que não sou eu o
culpado de ser desonesto, mas sim o tempo... se tivesse nascido
duzentos anos mais tarde, seria um homem diferente."
Às três horas apaga o candeeiro de petróleo e dirige-se para o
dormitório. não tem sono.
30
viii
dois anos antes, o zemstvo sentira-se generoso e votara a
concessão de um crédito de trezentos rublos anuais para aumentar o
pessoal do hospital da cidade até que se inaugurasse outro mais
apropriado. para ajudar andrei efimich, requisitaram-se os
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serviços de evgueni riodorich kobotov. era um médico muito jovem
ainda não completara trinta anos, moreno e alto, com as maçãs do
rosto salientes e olhos pequeninos. os seus antecessores,
provavelmente, não eram russos. chegara à cidade sem um kopek, com
uma maleta e uma mulher feia e jovem, que dizia ser sua
cozinheira. a mulher trazia um filho de peito, evgucni fiodorich
kobotov usava gorro de pala e botas altas, e no inverno uma
pelica. tornou-se íntimo amigo do assistente serguei sergueich e
do tesoureiro, mantendo-se afastado dos demais funcionários, a
quem não se sabe por que razão chamava aristocratas. não tinha em
sua casa senão um único livro: Últimas receitas da clinica de
viena para 1881, que levava sempre consigo quando ia visitar um
doente. de tarde jogava bilhar no clube, pois não apreciava jogos
de cartas. gustava muito de empregar na conversação palavras e
expressões como "pachorra", "pepinos de conserva", "não armes
sarilhos", etc.
ia duas vezes por semana ao hospital, percorria as enfermarias e
recebia os doentes externos. 'a total falta de anti-sépticos e as
ventosas irritavam-no, mas não se decidia a fazer inovações com
receio de poder com isso melindrar andrei efimich. considerava
este um velho farsante, tomando-o por um homem rico e invejando-o
no seu íntimo. de muito boa vontade ocuparia o seu lugar.
31
ix
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numa noite primaveril de fins de março, quando a neve desaparecera
do chão e os estorninhos cantavam no jardim do hospital, o médico
saiu até ao portão para acompanhar o chefe dos correios, seu
amigo. naquele preciso momento entrava no pátio o judeu moiseika,
que regressava com o seu pecúlio. não trazia gorro e vinha sem
meias, com os pés enfiados nuns tamancos muito usados. trazia na
mão um saquito com as esmolas.
- dá-me um kopek - pediu ao médico, tiritando de frio e sorrindo.
• andrei efimich, que nunca soubera dizer que não, deu-lhe uma
moeda de dez, kopcks.
"que horror! pensou, olhando para os seus pés descalços, com os
tornozelos delgados e roxos. vem completamente molhado."
e, movido por um sentimento ao mesmo tempo de piedade e de
repugnância, dirigiu-se ao pavilhão atrás do judeu, olhando a sua
cabeça calva e os tornozelos. ao ver entrar o doutor, nikita
levantou-se num salto de sobre o montão de trapos onde estava
deitado e colocou-se em posição de sentido.
- olá, nikita - disse andrei efimich em tom suave - era preciso
dar umas botas a este judeu; senão pode apanhar um resfriamento.
- as suas ordens, meu senhor. levarei esse assunto ao conhecimento
do inspector.
- sim, faz favor. pede-lhe em meu nome. diz que sou eu que peço.
a porta do vestíbulo que dava entrada para a sala estava aberta.
ivan dmitrich permanecia deitado no seu catre, ergueu-se atento
àquela voz estranha, tendo de súbito reconhecido o médico.
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estremecendo de cólera, pôs-se de pé, num salto, congestionado e
com os olhos a sair das órbitas, e correu para o meio da sala.
32
- chegou o médico! - gritou, dando uma gargalhada. - finalmente!
felicito-os, meus senhores, o médico dignou-se visitar-nos!
maldito réptil! - gritou, e, frenético como nunca o tinham visto
na enfermaria, deu com o pé uma pancada no chão. - temos que matar
este réptil! não, matá-lo é pouco! temos que o lançar ao fundo do
poço!
andrei efimich, que o ouvira, olhou-o do vestíbulo e perguntou
suavemente:
- e então, porquê?
- porquê? - gritou ivan dmitrich, aproximando-se dele com ar
ameaçador e agitando-se convulsivamente na sua bata. - porquê?
ladrão! - acrescentou com repugnância, juntando os beiços como se
se preparasse para lhe cuspir - charlatão! carrasco!
- acalme-se - disse andrei efimich, sorrindo como quem se
desculpa. - asseguro-lhe que nunca roubei nada a ninguém, e quanto
ao resto exagera provavelmente muito. noto que está muito zangado
comigo. peço-lhe que sossegue, se puder, e diga-me calmamente:
quais os motivos do seu aborrecimento?
- porque me tem aqui?
- porque está doente.
- sim, estou doente. mas dezenas e centenas de loucos passeiam em
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liberdade porque, na sua ignorância, ninguém os distingue das
pessoas sãs. por que razão estes desgraçados e eu temos que estar
aqui em nome de todos, como cabeças-de-turco? o senhor, o
assistente, o inspector e toda essa canalha do hospital estão
moralmente muito abaixo de nós. porque havemos de estar
encarcerados e não vocês? onde está a lógica disto?
- o sentido moral e a lógica não tem nada a ver com isso. É tudo
obra do destino. encontram-se aqui os que foram internados, e
aqueles que não foram passeiam-se livremente, e é tudo. o facto de
eu ser médico e você um doente mental não tem nada a ver para o
caso, nem a moral nem a lógica; É simplesmente o destino.
- não entendo essa estupidez... - balbuciou em surdina ivan
dmitrich, e sentou-se no seu catre.
moiseika, a quem nikita não se atrevia a castigar em presença do
médico, foi colocando em cima da cama nacos de pão, papéis e
ossos, e ainda tiritando de frio principiou a falar, com voz,
rápida e cantante, em hebreu. imaginava provavelmente que tinha
aberto uma loja.
33
- deixe-me ir embora - disse ivan dmitrich com voz trémula.
- não posso.
- porquê? porquê?
- porque isso é uma coisa que não depende de mim. avalie você
próprio: que acontecerá se o deixar sair? vá-se embora. arrisca-se
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a ser preso pela gente da cidade, ou pela polícia, e voltarão a
trazê-lo.
- sim, sim, isso é verdade... - articulou ivan dmitrich, e passou
a mão pela fronte. - É horrível! e que posso fazer? o quê?
a voz de ivan dmitrich e a sua cara jovem e inteligente, agitada
por tiques nervosos, agradaram a andrei efimich. sentiu desejo de
lhe dizer alguma coisa carinhosa e consoladora. sentou-se junto
dele no catre, ficou uns instantes pensativo e disse:
- que há-de fazer, pergunta? na sua situação o melhor seria fugir
daqui. mas infelizmente seria inútil. prendê-lo-iam. quando a
sociedade se protege contra os delinquentes, enfermos mentais e
gente que incomoda em geral, não há ninguém que se possa defender.
a única solução que lhe resta é dominar-se, procurando compreender
que a sua estada aqui é necessária.
- não é necessária para ninguém.
- visto que existem as prisões e os manicómios, alguém tem que lá
estar; se não for o senhor serei eu, e se não for eu será outra
pessoa. aguarde; quando num futuro longínquo deixarem de existir
as prisões e os manicómios, não haverá mais grades nas janelas nem
essas fardas. isto sucederá, é claro, mais tarde ou mais cedo.
ivan dmitrich sorriu com ironia.
- está a brincar - disse revirando as pálpebras. - as pessoas como
você e o seu ajudante nikita não se preocupam absolutamente nada
com o futuro. mas pode estar certo, senhor, de que virão tempos
melhores! talvez me exprima de maneira banal, ria-se se quiser,
mas resplandecerá a aurora de uma vida nova, triunfará a justiça e
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nós estaremos de parabéns, eu já não assistirei a isso, rebentarei
antes, mas vê-lo-ão os nosso bisnetos. saúdo esse momento com toda
a minha alma e alegro-me. alegro-me por eles! avante! que deus os
ajude, amigos!
ivan dmitrich levantou-se, com os olhos resplandecentes, e,
estendendo as mãos em direcção à janela, prosseguiu com voz
emocionada:
- através destas grades os abençoo! viva a justiça! estou
satisfeito!
34
- não vejo grandes motivos para se alegrar - replicou andrei
efimich, a quem a atitude de ivan dmitrich, embora lhe parecesse
teatral, agradara extremamente. - não haverá prisões nem
manicómios, e a justiça, segundo a sua própria expressão,
triunfará, mas não mudará a essência das coisas, e as leis da
natureza serão as mesmas. os homens sofrerão doenças, envelhecerão
e morrerão tanto como agora. por melhor que seja a estrela que
ilumina a sua vida, no final metem-nos num ataúde e lançam-nos na
fossa.
- ha imortalidade?
- não fale nisso!
- o senhor talvez não acredite nela.mas eu acredito. numa obra de
dostoievski ou voltaire, há alguém que diz que se deus não
existisse, tê-lo-iam inventado os homens. estou profundamente
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convencido de que se a imortalidade não existe, mais tarde ou mais
cedo será superiormente inventada pela mentalidade humana.
- bem dito - articulou andrei efimich, sorrindo satisfeito. -
agrada-me que você acredite. com essa fé, até mesmo um
enclausurado pode viver perfeitamente. você fez alguns estudos? •
- sim, estive na universidade, mas não cheguei a acabar a
carreira.
- você é um homem que sabe pensar. em qualquer situação pode
encontrar tranquilidade interior. o pensamento livre e profundo,
que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida
vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e
você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. diógenes
viveu num tonel, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os
reis da terra.
- diógenes era parvo - rosnou ivan dmitrich, mal humorado. -
porque me fala de diógenes e da compreensão humana? - explodiu
subitamente, pondo-se de pé. - eu amo a vida, amo-a
apaixonadamente! sofro de mania da perseguição, um medo permanente
que me tortura, mas há momentos em que me domina a sede de viver,
e então receio enlouquecer. tenho uma ânsia de viver
espantosa,espantosa!
dominado pela agitação, deu uns passos pela sala e disse, baixando
a voz:
- quando sonho vejo fantasmas. aparecem-me uns homens, oiço vozes,
música, parece-me que passeio por um bosque à beira-mar, e sinto
um tal desejo de ter interesses na vida, fazer alguma coisa...
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diga-me, que há de novo por aí? - perguntou ivan dmitrich. - que
novidades há?
35
- deseja saber da cidade ou de uma maneira geral?
- bem, em primeiro lugar fale-me da cidade e depois em geral.
- que posso dizer-lhe? a vida na cidade é de um aborrecimento que
dá náuseas... não há com quem trocar uma palavra, não há ninguém
que se possa ouvir. não há gente nova. quanto ao resto, chegou há
pouco kobotov, o jovem médico.
- chegou antes de me terem internado. É um homem boçal, não é
verdade?
- sim, não é um homem culto. É estranho, sabe?... de uma maneira
geral, nas nossas cidades não há estagnação intelectual, há
movimento: quero dizer que nas cidades deve haver gente capaz.
mas, não sei porque, mandam-nos sempre pessoas para quem não se
pode nem olhar. desgraça da cidade!
- sim, desgraçada cidade! - suspirou ivan dmitrich e desatou a
rir. - e, de um modo geral, que se passa? que dizem os jornais e
as revistas?
a sala estava já envolta em penumbra. o médico levantou-se e,
sempre de pé, principiou a contar o que se publicava no
estrangeiro e na rússia, e qual a orientação que se observava no
campo das ideias. ivan dmitrich escutava atentamente e fazia
perguntas; mas, de repente, como se recordasse qualquer coisa de
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horrível, agarrou a cabeça com as mãos, deitando-se no catre, de
costas para o médico.
- que lhe aconteceu? - perguntou andrei efimich.
- não ouvirá nem mais uma pergunta minha! - articulou
grosseiramente ivan dmitrich. deixe-me!
- e porque?
- repito que me deixe! que diabo está a fazer aqui? - andrei
efimich encolheu os ombros, deixou escapar um suspiro e abandonou
a enfermaria. ao passar no vestíbulo disse:
- seria conveniente limpar isto, nikita... está um cheiro
horrível!
- as suas ordens, meu senhor.
"que rapaz tão interessante pensou andrei efimich, enquanto se
dirigia ao seu andar. desde que vivo aqui, creio que é a primeira
pessoa que encontro com quem se pode falar. sabe raciocinar e
interessa-se precisamente pelo que deve ser."
durante a sua sessão de leitura e depois, ao deitar-se, não deixou
de pensar em ivan dmitrich. ao acordar, na manhã seguinte,
recordou que na véspera conhecera um homem inteligente e com
interesse, tomando a decisão de ir visitá-lo na primeira
oportunidade.
36
ivan dmitrich permanecia na mesma posição da véspera, com a cabeça
entre as mãos e as pernas encolhidas. não se lhe via a cara.
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- boas tardes, meu amigo - disse andrei efimich. - não está a
dormir?
- em primeiro lugar, não sou seu amigo - retorquiu ivan dmitrich,
com a cara enterrada na almofada. - e, em segundo lugar, é inútil
o seu interesse: não me arrancará uma só palavra.
- É estranho... - balbuciou andrei efimich, perturbado. - ontem
estávamos a conversar tranquilamente e, de repente, você ofendeu-
se e não quis continuar...terei talvez dito coisas que não lhe
agradaram, ou manifestado alguma opinião contrária às suas
ideias...
- como posso acreditar em si? - disse ivan dmitrich,erguendo-se e
olhando o médico com uma mistura de ironia e de inquietação; os
seus olhos estavam injectados de sangue. - pode ir espiar e iludir
para outro sítio; aqui não tem nada que fazer. ontem compreendi
bem as razões que o trouxeram.
- que estranha fantasia! - sorriu o médico com ironia. - imaginará
você que sou um espião?
- penso que sim... um espião ou um médico a quem incumbiram da
missão de me pôr à prova, é a mesma coisa.
- que pessoa tão excêntrica que você é. perdoe-me a expressão. - o
médico sentou-se numa banquinha junto da cama e abanou a cabeça
num gesto de reprovação.
- suponhamos que tem razão - prosseguiu. - admitamos que venho com
a malévola intenção de o fazer falar para o denunciar. podem levá-
lo preso e a seguir condená-lo. mas estaria pior no tribunal e na
prisão do que aqui? e ainda que o exilem e inclusivamente o
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mandem para o presídio, seria pior do que permanecer neste
pavilhão? creio que não .. .então de que tem medo?
estas palavras pareceram influir em ivan dmitrich, que se sentou
calmamente.
eram pouco mais de quatro da tarde, hora em que andrei efimich
tinha por costume passear pelas divisões da sua casa e dariushka
lhe perguntava se queria cerveja. estava um dia tranquilo e claro.
- depois do jantar saí a dar um passeio e vim até aqui, como pode
verificar - disse o médico. - está um tempo primaveril.
- em que mês estamos? em março? - perguntou ivan dmitrich.
- sim, em fins de março.
- há lama nas ruas?
- não, nem por isso. no jardim já há veredas.
- neste momento gostaria de dar um passeio de carro pelos
arredores da cidade - ponderou ivan dmitrich, esfregando os olhos
avermelhados como se despertasse do sono. - e depois voltar para
casa, para um escritório aquecido e confortável, e fazer que um
bom médico me curasse a dor de cabeça... já há tempos que não vivo
como gente. isto aqui é um nojo! um nojo insuportável!
depois da excitação da véspera, estava cansado e falava com
desalento. tremiam-lhe os dedos e notava-se pela sua expressão que
lhe doía muito a cabeça.
- entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a
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mais pequena diferença - respondeu andrei efimich. - o repouso e a
satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio.
- que quer isso dizer?
- o homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do
carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si
próprio.
- vá pregar essa filosofia para a grécia, onde está calor e cheira
a laranjas; o clima aqui não favorece. com quem falei de diógenes?
foi consigo?
- sim, foi ontem comigo.
- diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a
grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo
laranjas e azeitonas. mas se tivesse vivido na rússia, já não digo
em dezembro, mas mesmo em maio, teria pedido uma casa. ficaria
gelado.
- não. pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. marco
aurélio disse: "a dor é a exteriorização viva da dor: faz um
esforço de
38
vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te
lamentar, e a dor desaparecerá." isto é exacto. o sábio ou
simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se
precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. está sempre
satisfeito e nada o desgosta.
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- quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou
descontente e desgosta-me a maldade humana.
- não deve pensar assim. se reflectir, compreenderá a significação
de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. há que tentar
compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem.
- compreender a vida... - replicou ivan dmitrich, franzindo o
sobrolho. - o exterior, o interior... perdão, mas não o
compreendo. a única coisa que sei - concordou, levantando-se e
olhando irritado para o médico - a única coisa que sei é que deus
me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! o tecido
orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. e
eu reajo! a dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade, com
indignação; à vilania, com asco. quanto a mim, isto é, na
realidade, aquilo a que se chama vida. quanto mais débil é o
organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à
excitação. e quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é
a sua reacção à realidade. como pode ignorá-lo? É você médico e
não sabe umas coisas tão elementares! para desprezar a dor, estar
sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que
atingir esse estado - ivan dmitrich apontou para o mujique obeso,
transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor
até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si
próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir. perdoe-
me, não sou sábio nem filósofo - prosseguiu, irritado -, e não
compreendo nada destas coisas. não me sinto em condições de
raciocinar.
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- pelo contrário, você raciocina até muito bem.
- os estóicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua
doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem
avançará, porque não é prática nem tem vida. apenas obteve um
certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a
ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não
chegou a compreendê-la. uma doutrina que preconiza a indiferença
em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos
sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa
maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as
comodidades. e desprezar o sofrimento significaria para ela
desprezar a própria vida, visto que o
39
homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio,
desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança
de hamlet. nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode
cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. assim, portanto,
repito: a doutrina dos estóicos nunca poderá ter futuro. pelo
contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o
princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade
perante a dor, a capacidade de responder às excitações...
ivan dmitrich perdeu subitamente o fio ao discurso e calou-se,
passando irritado a mão pela testa.
- queria dizer qualquer coisa importante, mas não me recordo -
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declarou. - de que tenho estado a falar? ah, é verdade! já sei o
que estava a dizer. um estóico vendeu-se como escravo para redimir
o seu semelhante. como vê, isso significa que também o estóico
reagiu à excitação, visto que para realizar um acto tão generoso
como o de se aniquilar a si próprio para bem do próximo é
necessário ter uma alma capaz de se indignar e de se compadecer.
aqui, nesta prisão, esqueci tudo o que aprendi; possuía alguns
conhecimentos que poderia recordar. e, se olharmos para cristo?
cristo reagiu perante a realidade com as suas lágrimas, o seu
sorriso, a sua tristeza, a sua cólera, até mesmo com a sua
angústia. não foi com um sorriso ao encontro do sofrimento, nem
desprezou a morte, mas, pelo contrário, orou no horto de
getsémani, para que afastassem dele o cálix da amargura.
ivan dmitrich principiou a rir e sentou-se.
- admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do
próprio homem, e não fora dele - disse. - admitamos que há que
desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. mas em
que se apoia você para o proclamar? julga-se um sábio? um
filósofo?
- não, não sou um filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve
proclamar, porque é sensato.
- não, o que pretendo saber é porque se considera competente no
que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e
tudo o mais. acaso não terá sofrido nunca? tem alguma noção do que
é o sofrimento? diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?
- não, meus pais eram contrários aos castigos corporais.
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- pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. era um funcionário
público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha
um grande nariz e pescoço amarelo. mas falemos de si. em toda a
sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o
assustou nem
40
lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai,
que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma
sinecura. vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com
aquecimento e luz. tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e
quando quer; pode, inclusivamente, não fazer nada. É preguiçoso e
frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de
modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. abandonou
tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor
ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia
livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes
coisas estúpidas - e aqui ivan dmitrich parou fitando o nariz
vermelho do médico - bebia. numa palavra, não sabe nada da vida,
não a conhece em absoluto; da validade tem apenas uma noção
teórica. se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma
razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno,
o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a
compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto e a filosofia
mais apropriada ao vadio russo. você vê, por exemplo um mujique a
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bater na mulher. para quê meter-se de permeio? que lhe bata; tanto
faz, têm de morrer os dois mais tarde ou mais cedo; além do mais,
quem bate não magoa com as suas pancadas a quem as recebe, mas a
si próprio. embebedar-se é uma coisa estúpida e indecorosa, mas
beber é morrer e não beber também o é. aparece uma mulher com dor
de dentes... e então? a dor é o sinal do sofrimento e sem doenças
é impossível viver; todos temos de morrer. assim o quê, mulher?
vai-te daqui e deixa-me que pense e beba vodka. um jovem pede um
conselho, pergunta que deve fazer, como viver. outro, antes de
responder, meditaria, mas você tem a resposta preparada: procura
compreender o sentido da existência ou aspira ao autêntico bem. e
o que é esse fantástico "autêntico bem"? não existe resposta,
claro. a nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-
nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um
escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma
filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a
consciência tranquila e considera-se sábio... não, senhor, isso
não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas
preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... sim! - voltou a
irritar-se ivan dmitrich - despreza o sofrimento, mas se lhe
entalassem um dedo numa porta bradava aos céus!
- talvez não - disse andrei efimich, sorrindo docemente.
41
- claro que sim! mas se acaso ficasse paralítico ou se,
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suponhamos, um estúpido e insolente, valendo-se da sua posição e
do seu prestígio, o ofendesse em público e você tivesse
conhecimento que o assunto ia ficar impune, compreenderia então o
que significa isso de se conformar, no que se refere aos outros,
ao sentido da vida e ao autêntico bem.
- isso é original - disse andrei efimich, rindo de satisfação e
esfregando as mãos. - impressiona-me agradavelmente o seu gosto
pelas generalizações, e o que disse de mim é simplesmente
brilhante. tenho que confessar que a conversa consigo me
proporciona um prazer extraordinário. bem, estive a ouvi-lo; agora
faça o favor de me ouvir a mim...
42
xi
esta conversa prolongou-se cerca de uma hora e produziu, segundo
parece, uma profunda impressão em andrei efimich. a partir de
então habituou-se a ir todos os dias ao pavilhão. costumava
aparecer de manhã e depois do jantar, sendo frequentemente
surpreendido ao entardecer a conversar com ivan dmitrich. nos
primeiros tempos este mostrava-se insociável, desconfiando que
andrei efimich vinha de má fé, e manifestando abertamente a sua
hostilidade; mas depressa se acostumou a cie e a sua brusquidão de
antes transformou-se numa atitude indulgente e irónica.
não tardou em propagar-se no hospital o rumor de que o doutor
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andrei efimich começara a visitar a enfermaria número seis.
ninguém, nem o assistente, nem nikita, nem as enfermeiras,
compreendiam a razão dessa atitude, nem porque passava ali as
horas mortas, ou de que assunto falava, e porque nunca receitava.
as suas atitudes causavam estranheza. mikail avcrianich
frequentemente não o encontrava em casa, coisa que antes nunca
acontecia. e dariushka sentia-se desorientada, em virtude de o
médico ter deixado de tomar a sua cerveja a determinada hora, e
até às vezes chegar tarde para comer.
numa ocasião passava-se isto já em fins de junho , tendo o doutor
kobotov tido necessidade de falar com andrei efimich, foi a sua
casa; como não o encontrasse, procurou-o no pátio, onde lhe
disseram que o velho médico estava no pavilhão com os doentes
mentais. ao entrar no pavilhão, parou no vestíbulo ouvindo a
seguinte conversa:
- nunca chegaremos a um acordo, não conseguirá convencer-me -
dizia ivan dmitrich, irritado. - o senhor não conhece nada do que
é a realidade e nunca sofreu. a única coisa que fez
43
foi alimentar-se como uma sanguessuga com os sofrimentos alheios;
eu, pelo contrário, sofri desde o dia em que nasci até ao dia de
hoje. por isso digo-lhe francamente que me considero superior a si
e mais competente em todos os sentidos. você não é ninguém para me
dar lições.
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- não pretendo de modo algum convertê-lo às minhas convicções -
murmurava andrei efimich em voz baixa e como lamentando que não
quisessem entendê-lo. - não se trata disso, meu amigo. não se
trata de você ter sofrido e eu não. as alegrias e os sofrimentos
são efémeros. ponhamo-los de parte, e que os leve o vento. trata-
se do que você e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas
capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidários por
mais diferentes que sejam os nossos pontos de vista. se você
soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral, a falta de
talento, a torpeza, e como me alegra conversar consigo! você é uma
pessoa inteligente e encanta-me a sua conversa.
kobotov entreabriu a porta, lançando um olhar para a sala. ivan
dmitrich, com o seu gorro de dormir, e o doutor andrei efimich
estavam sentados no catre, um ao lado do outro. o louco
gesticulava, estremecia, amarfanhava-se convulsivamente na sua
bata, enquanto o médico permanecia imóvel, com a cabeça baixa; e a
sua face estava corada e mostrava uma expressão abatida e triste.
kobotov encolheu os ombros, sorriu ironicamente e trocou um olhar
com nikita. este encolheu igualmente os ombros.
no dia seguinte, kobotov apresentou-se no pavilhão acompanhado
pelo assistente. pararam ambos à escuta, no vestíbulo.
- parece-me que o nosso avô perdeu o tino por completo - disse
kobotov ao sair do pavilhão.
- senhor, tende compaixão de nós, pecadores! - suspirou o devoto
serguei sergueich, procurando não meter os pés nas poças para não
sujar as recém-lustradas botas. - se quer que lhe diga a verdade
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prezado evgueni fiodorich, há tempos que estava a prever isto.
44
xii
depois disto, andrei efimich principiou a notar, à sua volta, uma
atmosfera de mistério. os servitas, as enfermeiras e os doentes,
quando passavam por ele, fitavam-no com olhar perplexo, começando
logo a cochichar. agora, masha, a filhinha do inspector, com quem
lhe agradava sempre encontrar-se no jardim do hospital, afastava-
se quando ele se aproximava para a acariciar. o chefe dos
correios, mikail averianich, ao ouvi-lo, já não dizia: "tem toda a
razão", antes balbuciava, dominado por uma inexplicável
perturbação: "sim, sim, sim,...", olhando-o pensativo e triste.
sem causa aparente, principiou a aconselhar o amigo a que deixasse
o vodka e a cerveja; como pessoa delicada que era, não o dizia
abertamente, mas com reticências, falando de um chefe de batalhão,
excelente pessoa, ou do capelão de um regimento, outra excelente
pessoa, que eram vítimas da bebida, tendo-se curado por completo
quando deixaram de beber. também o seu colega kobotov veio, duas
ou três vezes, visitar andrei efimich; e aconselhou-lhe igualmente
que deixasse as bebidas alcoólicas, e sem motivo visível
recomendou-lhe que tomasse brometo de potássio.
em agosto, andrei efimich recebeu uma carta do presidente da
('amara pedindo a sua comparência, a fim de tratar de um assunto
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de grande importância. À hora marcada, ao chegar à câmara
municipal, andrei efimich deparou com o chefe da polícia, o
inspector da escola do distrito, que era também vereador, kobotov,
e um indivíduo gordo e loiro, que apresentaram como sendo médico.
este último, que possuía um apelido polaco muito difícil de
pronunciar, vivia a trinta verstas da cidade, numa granja
destinada à criação de cavalos, e estava de passagem.
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- temos aqui um assunto que lhe diz respeito - disse o vereador a
andrei efimich, sentando-se à mesa depois dos cumprimentos da
praxe. - segundo evgucni fiodorich, há pouco espaço para a
farmácia no pavilhão principal e seria conveniente transferi-la
para um dos pavilhões anexos. É um assunto a considerar, mas teria
que proceder-se a umas certas modificações.
- sim, doutra forma seria impossível - disse andrei efimich,
depois de reflectir uns momentos. - sim, se reservassem, por
exemplo, o pavilhão da esquina para farmácia, creio que seriam
necessários, pelo menos, quinhentos rublos. É uma despesa sem
fundamento. - fez-se um silêncio.
- já tive a honra de informar, há dez anos - prosseguiu andrei
efimich em voz baixa - que este hospital, tal como o temos agora,
é um luxo que a cidade não se pode permitir. foi construído nos
anos quarenta, quando havia mais recursos. a cidade gasta
demasiado em obras desnecessárias e em cargos supérfluos. creio
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que com o mesmo dinheiro, com uma administração diferente,
poderiam sustentar-se dois hospitais-modelo.
- vamos pois mudar a administração! - disse vivamente o vereador.
- já tive a honra de informar o seguinte: entreguem os serviços
médicos ao zemstvo.
- sim, entreguem o dinheiro ao zemstvo e ficará com todo -
retorquiu, rindo, o médico loiro.
- É o que costuma acontecer - acentuou o vereador, que também
rompeu a rir.
andrei efimich lançou ao médico loiro um olhar perturbado e disse:
- temos que ser justos.
novamente se fez uma pausa. serviram o chá. o chefe da polícia,
evidenciando uma inexplicável perturbação, tocou por cima da mesa
no braço de andrei efimich e disse:
- tem-se esquecido de nós, doutor; claro que você é um eremita:
não joga às cartas e não gosta de mulheres. sentir-se-ia
aborrecido connosco.
principiaram todos a falar na monotonia da vida na cidade para um
homem culto. não havia nem teatro, nem música, e no último baile
do clube estavam cerca de vinte senhoras e apenas dois
cavalheiros. os jovens não dançavam, ficavam no bar ou jogavam às
cartas. andrei efimich, com voz lenta e suave, sem olhar para
ninguém, disse que era
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uma pena, uma verdadeira pena, que as pessoas da cidade gastassem
as suas energias, o seu coração e a sua inteligência a jogar às
cartas e a criticar, e não soubessem nem quisessem passar o tempo
numa conversa interessante ou a ler; não queriam desfrutar dos
prazeres que a inteligência proporciona. somente a inteligência
tinha interesse e era importante; tudo o mais era ruim e interior.
kobotov, que ouvia atentamente o seu colega, perguntou-lhe de
súbito: - andrei efimich, quantos são hoje?
obtida a resposta, o doutor loiro e kobotov, no tom de
examinadores conscientes da sua incapacidade, passaram a perguntar
a andrei efimich que dia era, quantos dias tem o ano e se era
certo que na enfermaria número seis vivia um extraordinário
profeta.
em resposta à última pergunta, andrei efimich ruborizou-se
dizendo:
- sim, trata-se de um doente, mas é um jovem com muito interesse.
não voltaram a perguntar-lhe mais nada.
enquanto vestia o sobretudo, na antecâmara, o chefe da polícia
colocou-lhe a mão no ombro e disse com um suspiro:
- chegou a hora de nós, os velhos, nos retirarmos para descansar!
ao sair da câmara, andreiefimich compreendeu que aquela reunião
era constituída por uma comissão encarregada de se pronunciar
sobre as suas faculdades mentais. recordou as perguntas que lhe
tinham feito, corou, e, pela primeira vez na sua vida, sentiu
profunda lástima pela carreira médica.
"meu deus pensou, recordando a maneira como os médicos acabavam de
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o julgar , não foi assim há tanto tempo que estudaram psiquiatria
e ficaram aprovados; como podem ser tão ignorantes? não fazem a
menor ideia do que é psiquiatria!"
e pela primeira vêz na sua vida sentiu-se ofendido e irritado.
naquela mesma tarde esteve em sua casa mikail avcrianich. sem
sequer o cumprimentar, o chefe dos correios aproximou-se dele,
pegou-lhe em ambas as mãos e disse com voz comovida:
- caro amigo, meu querido amigo, dê-me uma prova de que crê na
minha sinceridade e me considera seu amigo... caro amigo! - e, sem
deixar falar andreiefimich, prosseguiu veementemente. - lastimo-o
pela sua cultura e nobreza de espírito. oiça-me, amigo. a ética
profissional obriga os médicos a ocultar-lhe a verdade, mas eu,
como militar que sou, digo-lhe lealmente: você está doente!
perdoe-me,meu caro, mas é verdade; há muito que se aperceberam
disso quantos o
47
rodeiam. o doutor evgueni fiodorich acaba de me dizer que, para
bem da sua saúde, deve descansar e distrair-se, ele tem toda a
razão! É exacto! dentro de alguns dias entro de férias, e projecto
mudar de ares. prove-me a sua amizade: vamos juntos! deitemos
foguetes ao ar!
- sinto-me perfeitamente bem - disse andrei efimich, depois de
reflectir. - não posso ir. permita que lhe mostre a minha amizade
de outra maneira.
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nos primeiros instantes a ideia de ir não sabia onde nem para quê,
sem livros, sem dariushka, sem cerveja, e a ideia de alterar por
completo o regime de vida estabelecido ao longo de vinte anos
pareceram-lhe absurdas e fantásticas. mas recordou a conversa na
câmara e o estado de espírito que sentira ao regressar a casa, e à
ideia de afastar-se algum tempo daquela cidade, onde gente
estúpida o considerava louco, principiou a sorrir.
- e onde pensava ir?
- a moscovo, são petersburgo, varsóvia,... passei em varsóvia os
cinco anos mais felizes da minha vida. É uma cidade assombrosa!
venha comigo, meu caro!
48
xiii
uma semana mais tarde, andrei efimich era convidado a descansar,
ou seja, a apresentar a sua demissão, facto que ele acolheu com
indiferença, e na semana seguinte partia com mikail averianich, na
diligência, em direcção da estação de caminho de ferro mais
próxima. os dias estavam frescos e claros, o céu azul, e via-se
nitidamente a linha do horizonte. levaram dois dias a percorrer as
duzentas verstas que os separavam da estação, pernoitando duas
vezes no caminho. quando nas estações de serviço lhes serviam chá
em chávenas sujas ou demoravam a atrelar os cavalos, mikail
averianich punha-se vermelho e gritava frenético: "calem-se! não
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aceito desculpas!" e na diligencia não parava um instante de
contar as suas viagens através do cáucaso e do reino da polónia.
quantas aventuras tivera, quantos encontros! falava aos gritos e
com uma expressão tão estranha que dava a sensação de mentir. além
do mais, falava respirando para cima de andreiefimich e rindo às
gargalhadas junto ao seu ouvido. isto incomodava o médico e não o
deixava pensar e concentrar-se.
por motivos de economia, compraram bilhetes de terceira, numa
carruagem para não fumadores. metade dos viajantes era constituída
por pessoas bem vestidas. mikail averianich não tardou em travar
conhecimento com todos e, mudando de um lugar para outro,
declarava aos gritos que não deviam ser utilizados aqueles
incríveis comboios. era tudo uma fraude! viajar a cavalo era outra
coisa: percorria cem verstas num dia e sentia-se tão fresco como
antes. e, na rússia, as más colheitas foram devidas ao facto de
terem secado os pântanos de pinsk. de uma maneira geral, passavam-
se tremendas irregularidades. exaltava-se, gritava e não deixava
ninguém intervir. esta interminável conversa, semeada de
gargalhadas e gestos expressivos, acabou por fatigar andrei
efimich.
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"qual de nós dois é o louco?” pensava irritado, “eu que procuro
não incomodar os outros passageiros, ou este egoísta, que se julga
o mais inteligente de todos e não deixa ninguém sossegado? "
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em moscovo, mikail averianich envergou o casaco do uniforme
militar sem dragonas e calças debruadas a vermelho. andava na rua
com boné militar e capote, e os soldados faziam-lhe continência ao
passar. andrei hfimich achava que o companheiro perdera tudo
quanto de bom tivera noutros tempos, dentro dos seus hábitos
senhoriais, guardando apenas o lado mau. queria ser servido, mesmo
quando não era necessário. via os fósforos na sua frente, sobre a
mesa, mas chamava o criado para que lhos desse. não se importava
de andar diante da criada em trajes menores; tratava por tu todos
os criados, sem excepção, inclusivamente os velhos, e quando se
zangava chamava-lhes maltrapilhos e estúpidos. tudo isto parecia a
andreiefimich senhorial, mas repugnante.
em primeiro lugar, mikail averianich levou o amigo a visitar a
virgem de ivcria. rezou fervorosamente, fazendo profundas
genuflexões, com lágrimas nos olhos, e ao terminar deu um profundo
suspiro e disse:
- mesmo não sendo crente, parece que se fica mais tranquilo quando
se reza. beije a imagem, meu caro.
andreiefimich perturbou-se e fez o que lhe disseram. mikail
averianich, por sua vêz, entreabriu os lábios e, abanando a
cabeça, recitou outra oração; novamente os olhos se lhe marejaram
de lágrimas. foram depois ao kremlin, onde viram o canhão rei e o
sino rainha e até passaram a mão pelo bronze. contemplaram as
paisagens que se estendiam até zamoskovorc kie e visitaram o
templo do salvador e o museu de rumiantsev.
comeram num restaurante em testov. mikail averianich examinou
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demoradamente a ementa, afagando as patilhas, e disse no tom de um
gastrónomo habituado a sentir-se nos restaurantes como em sua
casa: - vejamos o que tem hoje para nos dar, amigo!
50
xiv
o médico ia a um sítio e outro, observava, comia, bebia, mas
sempre dominado pelo mesmo sentimento: o aborrecimento que mikail
averianich lhe produzia. sentia desejo de se ver livre do amigo,
de o evitar, de se esconder, mas este julgava-se na obrigação de
não se separar dele nem um instante e de lhe proporcionar o maior
número possível de distracções. quando não havia nada para ver,
procurava entretê-lo com a sua conversa. andrei efimich aguentou
dois dias, mas ao terceiro alegou estar indisposto e desejar ficar
o dia inteiro no hotel. o amigo declarou que, nesse caso, também
ele ficava. era, de facto, indispensável descansar, senão
acabariam estafados. andrei efimich deitou-se, de bruços, no sofá
e, cerrando os dentes, escutou o amigo assegurar calorosamente
que, mais tarde ou mais cedo, a frança acabaria por destronar a
alemanha; que em moscovo havia muitos patifes; e que só pelo
aspecto não era possível apreciar as qualidades de um cavalo. o
médico principiou a sentir zumbidos nos ouvidos e palpitações, mas
por delicadeza não se atrevia a pedir ao amigo que se fosse embora
ou se calasse. afortunadamente, mikail acabou por se aborrecer de
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estar no quarto do hotel, e depois de comer saiu a dar uma volta.
quando ficou só, andrei efimich entregou-se ao prazer do descanso.
que agradável era estar imóvel, deitado no sofá, com a sensação de
não haver mais ninguém no quarto! sem solidão é impossível a
verdadeira felicidade. o anjo caído atraiçoou provavelmente a
deus, porque sentiu desejos de uma solidão que os anjos não
conhecem. andrei efimich queria pensar no que tinha visto e ouvido
nos últimos dias, mas mikail averianich não lhe saía da cabeça.
51
"e o facto e que tirou as suas férias e veio comigo por amizade,
movido por um espírito generoso pensava o médico, irritado. - não
há nada pior que esta tutela de um amigo. parece que é bom,
magnânimo e divertido, mas acaba por ser maçador.
insuportavelmente maçador. acontece o mesmo com as pessoas que
falam sempre de coisas transcendentes e belas, mas que nós nos
apercebemos que são estúpidas."
nos dias seguintes, andrei efimich fingiu-se indisposto para não
sair do quarto. permanecia deitado no sofá, de cara voltada para a
parede, sofrendo quando o amigo se empenhava em distraí-lo com a
sua conversa, mas descansando quando o outro saía. irritava-se
consigo próprio, por ter empreendido a viagem, e com o amigo, que
cada dia se mostrava mais falador e desenvolto. era-lhe impossível
fixar os seus pensamentos em qualquer assunto sério e elevado.
"É a realidade de que falava ivan dmitrich pensava, aborrecido com
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a sua mesquinhez. nada disto faz sentido .. .quando regressar a
casa, será tudo como dantes..."
em s. petersburgo repetiu-se exactamente o mesmo: passava todo o
santo dia no quarto, deitado no sofá, e apenas se levantava para
beber cerveja.
mikail averianich continuava a insistir na ida a varsóvia quanto
antes.
- para que hei-de ir, meu amigo? - dizia andrei efimich,com voz
suplicante. - vá você sozinho e deixe-me voltar para casa. peço-
lhe!
- de maneira nenhuma! - protestava mikail averianich. - - É uma
cidade maravilhosa. nela vivi os cinco anos mais felizes da minha
vida!
andrei efimich não era um homem com força de vontade bastante para
se manter intransigente, e fazendo das tripas coração foi a
varsóvia. ali também não saía do quarto, permanecendo deitado no
sofá, e irritava-se consigo mesmo, com o amigo e com os criados,
que se negavam tenazmente a compreender russo. entretanto, mikail
averianich, sadio, animado e jovial como de costume, percorria a
cidade de manhã à noite à procura de velhos conhecimentos. uma ou
outra noite não dormiu no hotel. numa dessas noites, passada deus
sabe onde, regressou de madrugada, num estado de grande agitação,
vermelho e despenteado. durante um grande bocado passeou de um
lado para o outro, resmungando para dentro;em seguida parou e
disse: - a honra acima de tudo!
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depois de novas idas e vindas, agarrou a cabeça entre as mãos e
disse com voz trágica:
- sim, a honra acima de tudo! maldita a hora em que me ocorreu vir
a esta babilónia! caro amigo - acrescentou, voltando-se para o
médico -, despreze-me i joguei e perdi! dê-me quinhentos rublos!
andrei efimich contou o dinheiro e, em silêncio, entregou-o ao
amigo. este, ainda vermelho de vergonha e cólera, balbuciou um
juramento incoerente e desnecessário, enfiou o gorro e saiu para a
rua. ao regressar, duas horas mais tarde, esbarrondou-se numa
poltrona, deixou escapar um sonoro suspiro e disse:
- está salva a honra! vamos, meu amigo! não quero permanecer nem
mais um minuto nesta maldita cidade. são uns malandros! uns
espiões austríacos!
entrara o mês de novembro quando os dois amigos regressaram à sua
cidade, e as ruas estavam cobertas com uma espessa camada de neve.
o lugar de andrei efimich fora ocupado pelo doutor kobotov, que
vivia ainda na mesma casa, enquanto esperava que aquele voltasse e
deixasse livre o andar do hospital. a mulher feia, a qucrn chamava
cozinheira, habitava já um dos pavilhões.
corriam novos rumores pela cidade acerca do hospital. dizia-se que
a mulher feia tinha discutido com o inspector e que este se
arrojara de joelhos aos seus pés, pedindo-lhe perdão.
no dia seguinte ao seu regresso, andrei efimich teve de procurar
novo alojamento.
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- meu amigo - disse-lhe timidamente o chefe dos correios -,
perdoe-me uma pergunta indiscreta: quais são os seus recursos?
andrei efimich contou o dinheiro em silêncio e disse: - oitenta e
seis rublos.
- não me refiro a isso - insistiu perturbado mikail averianich,que
não compreendera o médico. - pergunto quais são os seus recursos
de uma maneira geral.
- já disse: oitenta e seis rublos... não tenho mais nada.
mikail averianich tinha o médico na conta de uma pessoa honrada e
nobre, mas suspeitava, no entanto, que disporia pelo menos de um
capital de vinte mil rublos. agora, ao saber que era um mendigo,
que não tinha de que viver, rompeu a chorar e abraçou-se ao amigo.
53
xv
andrei efimich mudou-se para uma pequena casa com três janelas,
propriedade da viúva de um operário, chamada vitória. tinha apenas
três divisões, sem contar acozinha. duas das divisões, com janelas
para a rua, eram ocupadas pelo médico; na terceira e na cozinha
viviam dariushka e a senhoria com três filhos. Às vezes vinha à
noite o amante da senhoria, um bêbado inveterado que assustava as
crianças e dariushka. quando chegava, sentava-se na cozinha e
começava a pedir vodka. a divisão era demasiado pequena, e o
médico, movido por um sentimento de compaixão, levava as crianças,
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que não paravam de chorar, e deitava-as no seu próprio quarto, no
chão, facto que lhe proporcionava grande satisfação.
continuava a levantar-se às oito e, depois de tomar chá, sentava-
se a ler os seus velhos livros e revistas. já não tinha dinheiro
para comprar novos. e fosse porque os livros eram velhos ou talvez
porque o ambiente era diferente, a leitura já não o atraía como
dantes, e cansava-o. a fim de não cair em completa ociosidade,
dedicou-se a coligir um catálogo completo dos seus livros e a
colar as respectivas etiquetas nas lombadas, e este trabalho
mecânico e meticuloso suscitava-lhe mais interesse do que a
leitura; pela sua monotonia e minuciosidade, distrafa-o de uma
maneira surpreendente. não pensava em nada e o tempo passava com
rapidez. constituía uma distracção o simples facto de descascar
batatas, na cozinha, com dariushka, ou escolher o trigo negro. aos
sábados e domingos ia à igreja. de pé, encostado à parede e com os
olhos fechados, ouvia os cânticos e pensava nos pais, na
universidade, nas religiões; sentia-se tranquilo e triste; e
depois de sair da igreja, lamentava que as cerimónias tivessem
terminado tão depressa.
54
foi por duas vezes ao hospital a fim de visitar ivan dmitrich e
conversar um bocado com ele. mas de ambas as vezes ivan dmitrich
se mostrou muito excitado e encolerizado; pediu-lhe que o deixasse
em páz, porque o aborreciam as palavras ocas; e disse que a única
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recompensa que esperava desses malditos patifes, por todos os seus
sofrimentos, era que o encarcerassem onde não estivesse ninguém.
seria que até isso lhe negariam? de ambas as vezes, quando andrei
efimich se despediu dando-lhe as boas-noites, o outro arreganhou
os dentes e disse-lhe: - vá para o diabo!
e andrei efimich hesitava em voltar uma terceira vêz,. mas o certo
é que sentia desejo de o fazer.
antigamente, depois do jantar, andrei efimich dava um passeio pela
casa, meditando; agora, desde o jantar ao chá da noite, permanecia
deitado no sofá, voltado para a parede, e deixava-se arrastar por
pensamentos mesquinhos de que não conseguia alhear-se. achava
injusto que, depois de mais de vinte anos de serviço, não lhe
tivessem concedido uma pensão, nem o mais pequeno subsídio. É
certo que não trabalhara com inteira consciência, mas a pensão era
concedida por princípio a todos os funcionários, honestos ou não.
porque a justiça moderna consistia precisamente em recompensar por
meio de honrarias, condecorações e pensões vitalícias, não as
qualidades morais nem a capacidade intelectual, mas o simples
facto de ter exercido um cargo, fosse qual fosse. porque fariam
dele uma excepção? acabara-se-lhe o dinheiro. sentia vergonha de
passar pela loja e encontrar a dona. já lhe devia trinta e dois
rublos de cerveja. estava igualmente em dívida com a vielova.
dariushka vendia dissimuladamente os fatos velhos e os livros, e
enganava a senhoria, dizendo que o médico receberia em breve uma
quantia importante.
sentia-se arrependido de ter gasto na viagem os mil rublos que
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tanto ele como kobotov e mikail averianich acabariam tarde ou cedo
por morrer, sem deixarem na natureza o menor vestígio da sua
passagem. se dentro de um milhão de anos passasse um espírito no
espaço, junto ao globo terrestre, veria apenas terra e rochas
nuas. tudo o resto - a cultura e as leis morais teria
desaparecido; nem sequer cresceriam cardos. que importavam a
vergonha perante o tendeiro, o minúsculo kobotov, a pesada amizade
com mikail averianich? tudo isto não passava de um absurdo e de
disparates.
mas estas reflexões não lhe serviam já de nada. apenas começava a
imaginar o que seria o globo terrestre dentro de um milhão de
anos, logo lhe aparecia, por detrás de uma rocha escarpada,
kobotov com as suas botas altas e mikail averianich com o seu
sorriso forçado. até se lhe afigurava ouvir um murmúrio
envergonhado: "a deusa de varsóvia lhe pagará qualquer dia, meu
caro... sem falta."
56
xvi
um dia, depois do jantar, quando andrei efimich estava deitado no
sofá, apareceu mikail averianich. as coisas encaminharam-se de
maneira que daí a pouco chegou kobotov com o brometo de potássio.
andrei efimich ergueu-se pesadamente e sentou-se, apoiando as mãos
no sofá.
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- hoje, meu caro - principiou mikail averianich -, tem muito
melhor aspecto do que ontem. acho-o muito bem! sinceramente, acho-
o muito bem!
- já é tempo de corrermos com o azar, colega - declarou kobotov. -
você é o primeiro, com certeza, a estar farto de tanta confusão.
- havemos de nos curar! - exclamou jovialmente mikail averianich.
- ainda viveremos cem anos! É como lhe digo!
- cem não digo, mas vinte - disse kobotov para o consolar. - isto
não é nada, colega, não há razão para estar abatido... não seja
tão pessimista.
- verão do que somos capazes! - acrescentou mikail averianich, com
uma gargalhada, dando uma palmada nos joelhos do amigo. - ainda
havemos de dar que falar! no próximo verão, se deus quiser, iremos
ao cáucaso e havemos de o percorrer a cavalo. e no regresso do
cáucaso, se não houver novidade, celebraremos o casamento - e
mikail averianich fez uma expressão maliciosa. - havemos de o
casar, querido amigo, havemos de o casar...
andrei efimich sentiu de repente que o rancor lhe subia à
garganta. principiou a bater-lhe aceleradamente o coração.
- isto é infame! exclamou, erguendo-se com rapidez e retirando-se
para a janela. - não compreendem que é infame o que estão a dizer?
57
queria prosseguir em tom cortês, mas, contra sua vontade, cerrou
os punhos e levantou-os acima da cabeça .
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- deixem-me! - gritou com voz transtornada, congestionado e
trémulo. - fora! fora os dois, os dois!
mikail e kobotov puseram-se de pé e ficaram a olhá-lo, primeiro
perplexos e depois com medo.
- fora daqui! - prosseguiu gritando andrei efimich. - sois
abjectos, estúpidos! não necessito nem da tua amizade, nem dos
teus remédios, imbecil! que infâmia tudo isto! que asco!
kobotov e averianich olharam-se desconcertados, recuaram até à
porta e saíram para o vestíbulo. andrei efimich agarrou o frasco
de brometo e atirou-o fora. o frasco partiu-se com estrondo no
umbral.
- vão para o diabo! - gritou com lágrimas na voz, saindo para o
vestíbulo. - para o diabo!
quando ficou só, andrei efimich, tremendo como se estivesse a
arder em febre, estendeu-se no sofá e continuou a repetir
demoradamente:
- estúpidos! são uns estúpidos!
quando se acalmou, o primeiro pensamento que teve foi o de que o
pobre mikail averianich devia sentir uma vergonha terrível e que
tudo aquilo era absurdo. nunca antes lhe sucedera nada igual. onde
estavam a inteligência e o tacto? onde estava a compreensão das
coisas e a equanimidade filosófica?
a vergonha e o descontentamento em relação a si próprio impediram-
no de dormir durante toda a noite. de manhã, por volta das dez,
dirigiu-se aos correios para apresentar as suas desculpas a mikail
averianich.
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- não falemos do que aconteceu - disse este, comovido e dando um
suspiro, enquanto lhe apertava a mão. - esqueçamos tudo!
liubavkin! - gritou subitamente, de tal modo que todos os
empregados e o público estremeceram. - traz uma cadeira. e tu,
espera! - gritou a uma mulher que através do postigo lhe estendia
uma carta para registar. não vês que estou ocupado? esqueçamos o
passado - prosseguiu em tom carinhoso, dirigindo-se a andrei
efimich. - sente-se, meu caro, peço-lhe encarecidamente.
afagou os joelhos, em silêncio, durante uns instantes e disse em
seguida:
- nem me passou pela cabeça zangar-me consigo. uma doença não é
nada agradável, e eu entendo. a sua explosão de ontem assustou-
nos,
58
ao médico e a mim, e estivemos depois a falar em si largo tempo.
caro amigo, porque se nega a tomar a sério a sua enfermidade? será
razoável? perdoe-me a minha amistosa franqueza - balbuciou mikail
averianich. - você vive num ambiente que não pode ser mais
desfavorável: falta de espaço, de higiene; não cuidam de si,
carece de recursos para se tratar... querido amigo, o médico e eu
suplicamos-lhe de todo o coração; escute o nosso conselho:
interne-se no hospital! terá uma boa alimentação, cuidados,
tratamento. evgucnifiodorich, ainda que mauvais ton , verdade seja
dita, sabe o que faz e pode-se confiar inteiramente nele, deu-me a
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sua palavra em como se ocupará de si.
andrei efimich sentiu-se comovido pelo sincero interesse e pelas
lágrimas que de súbito brilharam nos olhos do chefe dos correios.
- não acredite nisso, meu estimado amigo! - murmurou, levando a
mão ao coração. - não acredite! É um engano! a minha única doença
é que depois de vinte anos não encontrei em toda a cidade mais do
que um homem inteligente, e esse está louco. não há qualquer
doença; apenas entrei num círculo vicioso de que não há saída. mas
tudo me é indiferente, e estou conformado com o que tiver que
acontecer.
- dê entrada no hospital, meu caro.
- É-me indiferente. mesmo que seja na prisão.
- dê-me a sua palavra de que obedecerá em tudo a evgueni
fiodorich.
- como queira, dou-lhe a minha palavra, mas repito-lhe que caí num
círculo vicioso. tudo, até o sincero interesse dos meus amigos,
conduz agora a uma coisa: à minha perdição. perco-me e tenho o
mérito de o reconhecer.
- há-de restabelecer-se, meu caro.
- para quê dizer isso? - replicou andrei efimich, irritado. - são
raras as pessoas que não sentem no fim da sua vida o que eu sinto
agora. quando lhe diagnosticarem qualquer coisa acerca dos rins ou
do coração dilatado e você começar a tratar-se, ou se lhe disserem
que está doido ou é um criminoso, numa palavra, quando as pessoas
lhe prestarem atenção, deve saber que caiu num círculo vicioso do
qual já não poderá sair. quanto mais se esforçar, mais se
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extraviará. É preferível que se renda, porque nenhum esforço
humano poderá salvá-lo. É assim que eu penso.
'em francês no texto (n. do t.).
59
entretanto o público ia aumentando diante do postigo. andrei
efimich pôs-se em pé e despediu-se. mikail averianich obrigou-o a
dar novamente a sua palavra de honra, e acompanhou-o até à porta
da rua.
naquela mesma tarde kobotov, com a peliça e as botas altas,
apresentou-se em casa de andrei efimich, dizendo-lhe, como se na
véspera não tivesse acontecido nada:
- tenho que consultá-lo sobre um assunto, colega. pode acompanhar-
me?
pensando que kobotov queria distraí-lo com um passeio ou
proporcionar-lhe uma ocasião de ganhar algum dinheiro, andrei
efimich vestiu o casaco e saiu com ele para a rua. sentia-se feliz
por ter a oportunidade de poder reparar a sua falta da véspera e
no seu íntimo estava agradecido a kobotov, que nem sequer
mencionara o incidente que, segundo parecia, tinha perdoado. da
parte de um homem tão rude, era inesperada tanta delicadeza.
- onde está o doente? - perguntou andrei efimich.- no hospital. já há algum tempo que gostava que você o visse. Éum caso interessantíssimo.
entraram no pátio do hospital e, sem se aproximarem do pavilhãoprincipal, dirigiram-se ao pavilhão dos loucos. e tudo isto em
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silêncio. ao entrarem, nikita, conforme o seu costume, pôs-se empé de um salto e ficou em posição de sentido.- sobreveio uma complicação nos pulmões - disse kobotov a meiavoz, entrando com andrei efimich na enfermaria. - espere aqui;volto já, vou buscar o fonendoscópio.
e saiu.
60
xvii
caía a noite. ivan drnitrich estava deitado no seu catre, comacara enterrada na almofada; o paralítico, imóvel, choravasuavemente, movendo os lábios. o mujiquc gordo e o antigoseleccionador de cartas dormiam. acalma era total.andrei efimich sentara-se na cama de ivan drnitrich e esperava.
mas decorreu meia hora e, em vêz, de kobotov, entrou na salanikita, trazendo uma bata, roupa interior e uns sapatos.- tenha a bondade de se vestir, meu senhor - disse a meia voz. -tem aqui a sua cama, venha - acrescentou, indicando um catre vagoque, ao que parece, tinham trazido pouco antes. - não d nada; deushá-de fazer com que recobre a saúde.andreiefimich compreendeu tudo; sem dizer uma só palavra, mudou-separa o catre que nikita lhe indicava e sentou-se nele. ao ver queo guarda continuava à sua frente à espera, despiu-secompletamente, ao mesmo tempo que sentia invadi-lo uma sensação devergonha. em seguida vestiu a roupa do hospital; os calções
estavam curtos e a camisa comprida; a bata cheirava a peixefumado.- deus queira que se restabeleça - repetiu nikita.recolheu a roupa de andrei bfimich, saiu e fechou a porta atrásdele.“tanto faz” pensou andreiefimich, envolvendo-se envergonhado nabata e pensando que com a sua nova indumentária tinha o aspecto deum prisioneiro. tanto faz... tanto faz um fraque como um uniformeou esta bata..."e o relógio? e o livro de apontamentos que guardava no bolso? e oscigarros? que fizera nikita à sua roupa? agora, provavelmente não
voltaria a vestir calças, casaco, nem botas. tudo isto pareciaestranho e
61
até incompreensível à primeira vista. andrei efimich continuavaconvencido de que entre a casa da viclova e a enfermaria númeroseis não havia a mais pequena diferença, que neste mundo era tudoum absurdo, vaidade das vaidades; mas as mãos tremiam-lhe, tinhaos pés frios e sentia horror ao pensar que ivan dmitrich podialevantar-se daí a pouco e vê-lo com esta bata. pôs-se de pé, deu
umas voltas e sentou-se novamente.esteve assim meia hora, uma hora. tudo aquilo o cansava ao ponto
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de lhe produzir uma sensação de angústia. seria possível passarali um dia, uma semana, anos inclusivamente, como aquela gente?deixou-se estar sentado, levantou-se mais uma vez para dar umpasseio, e voltou a sentar-se. podia aproximar-se da janela,olhar, e recomeçar os seus passeios de um lado para o outro. e
depois? continuar ali eternamente como uma estátua,e pensar?não;era impossível.andrei efimich estendeu-se em cima da cama, mas imediatamente sepôs de pé, limpou com a manga o suor frio que lhe escorria dafronte e notou como a sua cara cheirava a peixe fumado. voltounovamente aos seus passeios.- há aqui um mal-entendido... - articulou, abrindo os braçosperplexo. - É preciso esclarecer as coisas, trata-se de umaconfusão... - neste momento ivan dmitrich acordou. sentou-se,apoiando a cara nas mãos. cuspiu. em seguida, lentamente, olhou omédico, sem que no primeiro momento desse sinal de ter
compreendido alguma coisa. mas depressa o seu semblante sonolentoadquiriu uma expressão rancorosa e matreira.- olá! também a si o enclausuraram, amigo? - disse com voz roucade quem acaba de acordar, piscando um olho. - muito me alegro.antes chupava você o sangue das pessoas e agora chuparão o seu.Óptimo!- trata-se de um mal-entendido... - murmurou andrei efimich, aquem as palavras de ivan dmitrich tinham assustado. - É um mal-entendido... - repetiu, encolhendo os ombros. ivan dmitrich cuspiuoutra vêze deitou-se.- maldita vida! - resmungou. - e o pior de tudo é que não
terminará com uma recompensa por danos sofridos, nem com umaapoteose, como na ópera, mas com a morte. vem os servitas dohospital, agarram o morto pelos braços e pernas e levam-no para acave. brrr! que se há-de fazer!... em contrapartida, no outromundo teremos a nossa festa... voltarei aqui do outro mundo comouma
62
sombra e assustarei estes canalhas. farei com que lhes nasçamcabelos brancos..
nesse momento, chegou moiseika que, ao ver o médico, estendeu amão.- dá-me um kopek - disse.
63
xviii
andrei efimich retirou-se para junto da janela e ficou a olhar ocampo. já estava escuro e no horizonte, para a direita, assomavauma lua fria e alaranjada. perto da cerca do hospital, mais ou
menos a cem braças de distância, erguia-se um edifício alto ebranco, rodeado por um muro. era a prisão.
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"a realidade é isto", pensou andrei efimich, com um arrepio demedo.davam-lhe medo a lua, os pregos da cerca e a luz longínqua dumafábrica. andrei efimich ouviu um suspiro nas suas costas. voltou-se e viu um homem, com resplandecentes estrelas e condecorações ao
peito, sorrindo e piscando maliciosamente o olho. isto fez-lheigualmente medo.disse para si mesmo que na lua e na prisão não havia nada deespecial, que as pessoas psiquicamente sãs também ostentamcondecorações e que, com o tempo, tudo apodreceria e seconverteria em pó. mas de momento apoderou-se dele o desespero,agarrou-se com ambas as mãos às grades, sacudindo-as com todas assuas forças. os sólidos barrotes não cederam.depois, procurando afastar os seus temores, aproximou-se do catrede ivan dmitrich e sentou-se.- sinto-me muito diminuído, meu caro - balbuciou, tremendo e
limpando as bagas do suor. - muito diminuído.- dedique-se às suas filosofias - replicou ivan dmitrich em tom degracejo.- meu deus, meu deus... sim, sim,... dizia você que na rússia nãohá filosofia, mas que todos filosofam, até a escumalha. mas que aescumalha filosofe não faz mal a ninguém - disse andrei efimich
64
como se sentisse vontade de chorar e de inspirar compaixão. - aque se deve esse riso irónico, meu caro? e como não há-de
filosofar essa escumalha, se está descontente? o homeminteligente, culto, orgulhoso e livre, semelhante a deus, não temoutro recurso senão ir como médico a uma maldita cidade, suja eestúpida, e levar a vida inteira a receitar ventosas, sanguessugase sinapismos. charlatanismo, espírito tacanho, vulgaridade! Ó meudeus!- isso são patetices. se não lhe agradava a carreira de médico,podia ter sido ministro.- nada, nada é possível. somos débeis, meu caro... eu eradesapaixonado, raciocinava com clareza e sensatez, mas, desde quea vida me marcou, sinto-me diminuído... sumido na minha
insignificância. somos débeis, não valemos nada... você também,querido amigo. você é inteligente e nobre; através do leitematerno cresceram em si altos propósitos; mas, apenas deu osprimeiros passos na vida, cansou-se e adoeceu... somos débeis,débeis!uma sensação da qual não conseguia libertar-se, além do medo e deum sentimento de mágoa, não deixava andrei efimich sossegado desdeo entardecer. percebeu por fim que necessitava de tomar cerveja efumar.- vou sair, meu caro - disse. - direi que tragam uma vela... nãoposso continuar assim... nesta situação...
andrei efimich aproximou-se da porta e abriu-a, mas imediatamentenikita se levantou de um salto, tolhendo-lhe o passo. - onde vai?
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não pode sair! - disse. - já são horas de dormir.- É só um instante; quero dar uma volta no pátio - explicou andreiefimich, espantado.- não pode ser, é proibido. bem o sabe.nikita fechou a porta com um empurrão e segurou-a encostando-se a
ela do lado de fora.- que mal pode acontecer, se sair? - perguntou andrei efimich,encolhendo os ombros. - não percebo! nikita, tenho que sair! -acrescentou com voz trémula. - necessito sair!- não faça escândalo; não pode ser - declarou nikitaperemptoriamente.- diabos me levem! - explodiu subitamente ivan dmitrich,levantando-se. - com que direito não o deixa sair? como se atrevema ter-nos aqui encerrados? creio que a lei é bem clara: ninguémpode ser
65
privado da sua liberdade sem uma sentença dos tribunais. isto éuma violência! uma arbitrariedade!- claro que é uma arbitrariedade! - repetiu andrei efimich,estimulado pelos gritos de ivan dmitrich. - necessito sair, tenhode sair! não tem o direito de mo impedir! já te disse que medeixes sair!- estás a ouvir, grande besta? - gritou ivan dmitrich, começandoaos murros à porta. - abre ou deito a porta abaixo! criminoso!- abre! - gritou andrei efimich, tremendo. - sou eu que o exijo!
- continua! - respondeu nikita do outro lado da porta. - continuae verás!- ao menos, vai chamar evgueni fiodorich. diz-lhe que lhe peço porfavor...não e mais do que um minuto.- evgueni fiodorich vem amanhã, sem ser preciso chamá-lo.- nunca libertam! - prosseguiu, entretanto.dmitrich. - deixam-nos apodrecer aqui! Ó meu deus! será possívelque no outro mundo não haja inferno e que estes miseráveis sejamperdoados? onde está a justiça? abre, canalha; não posso respirar!- gritou com voz rouca, lançando-se contra a porta. - vou-tepartir a cabeça! assassinos!
nikita abriu a porta de um sacão, deu um forte empurrão a andreiefimich com as mãos e o joelho, desfechando-lhe um murro na cara.andrei efimich pensou que uma enorme vaga de água salgada oenvolvera e o arrastara até ao catre. com efeito, sentia na bocaum sabor salgado: devia ser sangue dos dentes. como se estivesse aafogar-se, agitou os braços e agarrou-se a uma cama, ao mesmotempo que sentia que nikita lhe dava mais dois murros nas costas.ivan dmitrich deu um grande grito. deviam estar igualmente abater-lhe.depois seguiu-se um silêncio. a escassa luz da lua entrava porentre as grades e no chão projectava-se uma sombra que parecia uma
rede. aquilo era horrível. andrei efimich deitou-se contendo arespiração; esperava, estupefacto, que o espancassem novamente,
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era como se alguém lhe tivesse espetado uma noz, remexendo-avárias vezes,no peito e no ventre. a dor fez-lhe morder a almofadae cerrar os dentes, quando de repente, no meio do caos que reinavana sua cabeça, brilhou com clareza o pensamento, terrível einsuportável, de que essa mesma dor deviam tê-la sofrido anos
inteiros, dia após dia,
66
aqueles homens que agora, à luz da lua, mais se assemelhavam aumas sombras negras. como foi possível que durante mais de vinteanos não se tivesse apercebido nem tivesse querido saber nadadisto? desconhecia, ignorava essa dor; o que significava que nãoera culpado. mas uma consciência tão fria e rude como a de nikitafê-lo sentir um arrepio dos pés à cabeça. levantou-se, tentougritar com todas as suas forças, e correr para matar nikita, e a
seguir kobotov, o inspector e o assistente; depois acabaria com aprópria vida. mas do seu peito não saiu nem um som e as pernas nãolhe obedeceram. ofegante, arrancou do corpo a bata e a camisa,rasgou-as e, perdendo os sentidos, caiu sobre o catre.
67
xix
na manhã seguinte doía-lhe a cabeça, zumbiam-lhe os ouvidos esentia um mal-estar geral. não sentia vergonha ao recordar a sua
fraqueza da véspera. mostrara-se pusilânime, assustara-o a próprialua e expressara sinceramente ideias e sentimentos que jamaissuspeitara existirem nele. por exemplo, a ideia da insatisfação daescumalha filósofa. mas agora tudo lhe era indiferente.sem comer nem beber, jazia imóvel e silencioso."tudo me é indiferente", pensava, quando lhe faziam qualquerpergunta. "não responderei... tanto me faz."depois do almoço, chegou mikail averianich, que lhe trazia umpacote de chá e uma libra de marmelada. veio também dariushka, quepermaneceu de pé junto da cama durante uma hora com uma expressãode surda amargura no rosto. esteve o doutor kobotov, que trouxe um
frasco de brometo e ordenou a nikita que arejasse a sala.andrei efimich morreu a meio da tarde, vítima de um ataque deapoplexia. sentiu primeiro profundos calafrios e náuseas; pareceu-lhe que qualquer coisa repugnante invadia todo o seu corpo, atéaos dedos, e que, subindo do estômago, lhe chegava à cabeça e lheinundava os olhos e os ouvidos. pareceu-lhe que via tudo verde.andrei efimich compreendeu que tinha chegado ao fim e recordou queivan dmitrich, mikail averianich e milhões de pessoas acreditavamna imortalidade. e se, de facto, fosse verdade que existia? masnão a desejava; apenas pensou nela um instante. uma manada deveados de excepcional graça e beleza, cuja descrição lera na
véspera, passou junto dele; depois uma mulher estendeu-lhe a mãocom uma carta registada... mikail averianich disse qualquer coisa.
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em seguida tudo desapareceu e andrei efimich perdeu a noção dascoisas para sempre.
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apareceram os servitas do hospital, agarraram-no pelos braços epelas pernas e levaram-no para a capela. ali ficou em cima de umamesa, com os olhos abertos, iluminado pela lua. pela manhã chegouserguei sergueich, orou com devoção diante do crucifixo e fechouos olhos daquele que fora o seu chefe.no dia seguinte fez-se o enterro. apenas assistiram mikailaverianich e dariushka.
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vizinhos
i
piotr mikailich ivashin sentia-se de muito mau humor: a irmã, umarapariga solteira, fugira com vlasich, um homem casado. ao tentarafastar de si a profunda depressão que se apoderara dele, e não olargava nem em casa nem no campo, piotr mikailich procurouagarrar-se ao seu sentimento de justiça e às suas honradasconvicções (porque sempre fora partidário da liberdade no campo!).mas eram inúteis os seus esforços, e acabava sempre, contra suavontade, por chegar à mesma conclusão: a de que a estúpida ama, ou
antes a irmã, se conduzira mal e que vlasich a havia raptado. eisto era horroroso.a mãe não saía do seu quarto, a ama falava a meia voz e não paravade suspirar; e a tia manifestava constantemente o desejo de se irembora, e as suas malas tão depressa eram colocadas na entradacomo as levavam de novo para o quarto. dentro de casa, no pátio eno jardim, reinava um tal silêncio que mais parecia haver alguémmorto. piotr mikailich tinha a impressão de que a tia, asserviçais e até os mujiques o olhavam com uma expressão enigmáticae perplexa, como se quisessem dizer "seduziram a tua irmã, porqueficas de braços cruzados? ". também ele se censurava a si próprio
pela sua inactividade, ainda que, na realidade, não soubesse aocerto o que devia fazer.assim passaram seis dias. no sétimo um domingo, depois do almoçoum homem a cavalo trouxe uma carta. a direcção para sua excel. ananikolaievna yvashina estava escrita numa letra feminina que lhesera familiar. piotr mikailich julgou ver no sobrescrito, na letrae na palavra “excel." meia escrita qualquer coisa de provocante,liberal. e o liberalismo da mulher é obstinado, implacável,cruel,...
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"preferirá a morte a fazer qualquer concessão à sua desgraçada
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mãe, a pedir-lhe perdão", pensou piotr mikailich quando ia àprocura da mãe com a carta na mão.aquela estava na cama, embora vestida. ao ver o filho ergueu-seimpulsivamente e ajeitando os cabelos cinzentos, que se lhe tinhamsoltado da touca, perguntou secamente:
- o que há? o que há?- mandou... - disse o filho, entregando-lhe a carta.o nome de zina e até a palavra "ela" não se pronunciavam em casa.falava-se de zina de uma maneira impessoal: "mandou", "foi-seembora",... a mãe reconheceu a letra da filha e o seu rostotranstornado endureceu. os cabelos soltaram-se novamente da touca.- não - disse, afastando as mãos como se a carta lhe tivessequeimado os dedos. - não, não, nunca! por nada deste mundo!a mãe rompeu em soluços histéricos provocados pela dor e pelavergonha; parecia sentir desejos de ler a carta; mas o orgulhoimpedia-a de o fazer. piotr mikailich entendia no seu íntimo que
devia abrir e ler a carta em voz alta, mas sentiu-se subitamentedominado por uma cólera como nunca experimentara. correndo para opátio gritou ao homem que trouxera a missiva:- diz-lhe que não tem resposta! não haverá resposta! diz-lhe istomesmo, imbecil!e rasgou imediatamente a carta em pedaços. depois, as lágrimassaltaram-lhe dos olhos, e sentindo-se duro, culpado e infeliz,saiu para o campo.tinha apenas vinte e sete anos, mas já era gordo, vestia como umvelho, usava os fatos muito folgados e sofria de dispneia. jápossuía todas as manias do fazendeiro solteirão. não se
apaixonava, não pensava em casar-se, e gostava unicamente da mãe,da irmã, da ama e do jardineiro vasilich. gostava de comer bem,dormir a sesta e falar de política e de temas elevados...terminara em tempos os estudos na universidade, e agora encarava-os como uma obrigação inevitável para os jovens entre os dezoito eos vinte e cinco anos. pelo menos, os pensamentos que oatormentavam não tinham nada de comum com a universidade nem com oque ali estudara.o campo estava quente, com aquela calmaria que fazia prever chuva.o bosque exalava um ligeiro vapor e um cheiro penetrante apinheiro e a folhas secas. piotr mikailich parava frequentemente
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para limpar o suor da testa. revistou os seus trigais de outono eprimavera, percorreu os campos de cevada; e por duas vezes, numaclareira do bosque, espantou uma perdiz com os seus perdigotos.entretanto pensava constantemente que tão insustentável situaçãonão podia prolongar-se eternamente e havia que pôr-lhe cobro dequalquer maneira. fosse como fosse, mesmo de um modo estúpido,absurdo; mas era necessário acabar com aquilo."mas como? que fazer", perguntava piotr mikailich a si próprio,
olhando o céu e as árvores como se implorasse a sua ajuda.mas o céu e as árvores guardavam silêncio. as convicções honestas
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não lhe serviam para nada, e o seu senso comum segredava-lhe que odilacerante problema só poderia ter uma solução estúpida e que acena com o homem que trouxera a carta não seria a última nestegénero. sentia medo ao pensar no que ainda podia acontecer.voltou para casa ao pôr do sol. parecia-lhe nesse momento que o
problema não tinha solução, era impossível aceitar o factoconsumado, mas também não era possível não o aceitar, e nãoexistia qualquer solução intermédia. quando, de chapéu na mão eabanando-se com o lenço, ia andando pelo caminho e lhe faltava umpar de verstas para chegar a casa, ouviu uma campainha nas suascostas. era um tilintar muito agradável de campainhas e guizos quelembrava um som de cristais. só podia ser mcdovski, o chefe dapolícia do distrito, antigo oficial de hussardos que perdera todosos bens e a saúde, um homem doente, parente afastado de piotrmikailich. era muito amigo dos ivashin e sentia por zina grandeadmiração e carinho paternal.
- vou a sua casa - disse aproximando-se de piotr mikailich. -suba, eu levo-o.sorria jovialmente; era evidente que não sabia o que sucedera comzina. se por acaso lho tivessem dito, não teria acreditado. piotrmikailich sentiu-se numa situação embaraçosa.- ainda bem - balbuciou, corando ao ponto de lhe saltarem aslágrimas, sem saber como esconder a verdade. - gosto muito -prosseguiu, esforçando-se por sorrir , - mas,... zina saiu e a mãeestá doente.- que pena! - disse o chefe da polícia, fitando pensativamentepiotr mikailich. - e eu que contava passar a noite com vocês...
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onde foi zinaida mikailovna?- a casa dos sinitski; depois parece que tencionava ir aoconvento. não tenho a certeza.o chefe da polícia acrescentou mais qualquer coisa é deu a volta.piotr mikailich seguiu para casa, e pensava horrorizado no quesentiria o chefe da polícia quando soubesse a verdade. faziacálculos; e sob esta desagradável impressão entrou em casa."ajuda-me, senhor, ajuda-me...", pensava.
na sala de jantar, a tomar o seu chá, estava apenas a tia. como decostume, a sua fisionomia apresentava a expressão de alguém, aindaque débil e indefesa, que não permitia a ninguém que a ofendesse.piotr mikailich sentou-se do outro lado da mesa (não sentia grandeafeição pela tia) e, em silêncio, principiou a tomar o chá.- a tua mãe também hoje não comeu - disse a tia. - tu, petrusha,devias tomar cuidado. morrer de fome não remedeia a nossadesgraça.piotr mikailich achou absurdo que a tia se intrometesse emassuntos que não eram da sua competência e fizesse depender dapartida de zina a marcha dos acontecimentos. sentiu desejos de
dizer uma impertinência mas conteve-se a tempo, e ao conter-seapercebeu-se de que chegara o momento oportuno para agir, e de que
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se sentia incapaz, de sofrer por mais tempo; tinha de fazerqualquer coisa imediatamente, ou atirar-se ao chão gritando edando cabeçadas. imaginou vlasich e zina, liberais e contentesconsigo próprios, beijando-se debaixo de um arco, e todo o peso eo rancor que acumulara durante estes sete dias se concentraram em
vlasich."um seduziu e raptou a minha irmã, outro virá e degolará a minhamãe, um terceiro roubar-nos-á ou incendiará a casa... e tudo istosob a máscara da amizade, das ideias elevadas e dos sofrimentos",pensou.não, não será assim! gritou de repente, dando um murro em cima damesa.levantou-se de um salto e saiu a passos rápidos da sala de jantar.na cavalariça estava selado o cavalo do feitor. montou-o, e saiu agalope à procura de vlasich.
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desencadeara-se no seu íntimo uma verdadeira tempestade. sentia anecessidade de fazer qualquer coisa de tremendo e fora do comum,ainda que depois tivesse de arrepender-se a vida inteira. acusarvlasich de ser um miserável, dar-lhe uma bofetada e desafiá-lo emseguida? mas vlasich não era dos que se batem em duelo; e ao seracusado de miserável e esbofeteado, a sua única reacção seriasentir-se mais desgraçado e retrair-se ainda mais. este género depessoas infelizes e submissas são os seres mais insuportáveis, osmais difíceis de tratar. tudo neles permanece impune. quando o
homem infeliz, em resposta a uma observação merecida, olha com umaexpressão em que se reflecte a consciência da sua culpa, sorriamargamente e inclina docilmente a cabeça, parece que a própriajustiça é incapaz de levantar a mão contra ele.- tanto faz. dou-lhe uma chicotada à frente dela e dir-lhe-ei umasquantas coisas desagradáveis - decidiu piotr mikailich.cavalgava através do bosque e das terras baldias que lhepertenciam, e imaginava a maneira como zina, querendo justificar oseu acto, invocaria os direitos da mulher e a liberdadeindividual, afirmando que era exactamente igual o casamentoreligioso ou o civil. discutiria como mulher as coisas que não
podia compreender, e acabaria provavelmente por lhe perguntar:"que tens tu a ver com tudo isto? com que direito te intrometes?- sim, não tenho direito nenhum - resmungava piotr mikailich. -mas ainda bem... quanto mais grosseiro for e menos direito tiver,melhor.estava um calor sufocante. nuvens de mosquitos voavam muito baixo,ao rés do solo, e nos terrenos baldios choravam dolorosamente asaves-frias. piotr mikailich atravessou o limite da propriedade,seguindo a galope através de um terreno completamente plano.percorrera muitas vezes este caminho e conhecia cada matagal até àmais pequena vereda. aquilo que de longe, entre duas luzes,
parecia uma rocha escura era uma igreja vermelha; piotr podiarecordá-la no seu mais ínfimo detalhe, inclusivamente o estuque do
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portal; e lembrava-se dos carneiros que pastavam sempre no adro.para a direita, a uma versta da igreja, avistava-se a mata doconde koltovish. e para lá da mata começavam as terras devasilich.
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atrás da igreja e da mata do conde avizinhava-se uma nuvem enorme,que de vez em quando era iluminada por uns pálidos relâmpagos."já está!", pensou piotr mikailich. "ajuda-me, senhor!"o cavalo não tardou em dar sinais de fadiga, e o próprio piotrmikailich se sentia cansado. a imensa nuvem contemplava-oameaçadora, como a aconselhá-lo a voltar para casa. sentiu receio."hei-de demonstrar-lhes que não têm razão! pensou, tentando ganharcoragem. dirão que é amor livre, liberdade individual; mas aliberdade consiste na abstenção, e não na subordinação às paixões.
aquilo é depravação e não liberdade!"chegou ao grande lago do conde. o reflexo da nuvem dava-lhe umaspecto acinzentado e sombrio, e o lago emanava uma humidadedensa. junto ao dique, dois salgueiros, um velho e outro novo,inclinavam-se um para o outro, amparando-se carinhosamente. poreste mesmo caminho, duas semanas antes, piotr mikailich e vlasichtinham passado a pé, cantando a meia voz uma canção estudantil:"não amar e destruir a juventude..." miserável canção!quando piotr mikailich atravessou a mata, soou um trovão e asárvores estremeceram, inclinando-se com a força do vento. tinha deapressar-se, entre a mata e a fazenda de vlasich tinha ainda de
atravessar o prado, de cerca de uma versta. em ambos os lados docaminho alinhavam-se os velhos ciprestes, de aspecto tão triste einfeliz como vlasich, seu dono; assim como ele, eram esguios etinham crescido desmedidamente. nas folhas dos ciprestes e na ervatamborilaram grandes gotas; ao mesmo tempo caiu o vento eespalhou-se um cheiro a terra molhada. apareceu a cerca devlasich, com a sua acácia amarela que era igualmente esguia ecrescera mais do que o normal. em determinado sítio onde a cercacaíra, via-se um pomar abandonado de árvores de fruto.piotr mikailich já não pensava no bofetão nem na chicotada. nãosabia o que faria em casa de vlasich. acobardou-se. sentia medo ao
pensar na irmã e em si próprio, e horrorizava-se com a perspectivade a ver. como se comportaria ela? de que iriam falar? não seriapreferível regressar antes que fosse tarde? com estes pensamentos,galopou em direcção à casa pela avenida das tílias, deixou paratrás os grandes maciços de lilases e, de súbito, deu de frente comvlasich.
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este, de cabeça descoberta, com uma camisa de percal e botasaltas, curvado sob a chuva, caminhava da esquina da casa ao
portão. seguia-o um trabalhador com um martelo e uma caixa compregos. estivera decerto a consertar as madeiras das janelas
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batidas pelo vento. ao ver piotr mikailich, vlasich deteve-se.- És tu? - perguntou sorrindo. - Óptimo.- sim, vim, como vês... - disse piotr mikailich suavemente,sacudindo a chuva com as mãos.- ainda bem, folgo muito - acrescentou vlasich, sem estender a
mão; não se decidia a fazê-lo e esperava que o outro o fizesseprimeiro. - esta chuva é muito boa para a aveia! - prosseguiu,olhando o céu.- sim.entraram em casa em silêncio. do lado direito da entrada havia umaporta que conduzia à saleta e daí directamente à sala; do ladoesquerdo havia uma pequena divisão que era ocupada no inverno peloleitor. piotr mikailich e vlasich penetraram nesta última.- onde te apanhou a chuva? - perguntou vlasich.- perto. quando vinha a chegar a casa.piotr mikailich sentou-se na cama. agradava-lhe que a chuva
fizesse aquele ruído e que o quarto estivesse às escuras. eramelhor assim: sentia menos receio e evitava encarar o seuinterlocutor de frente. o seu sentimento de cólera desaparecera; eo que sentia agora era receio e irritação consigo próprio. tinha aintuição de que começara mal e que desta sua iniciativa nãoresultaria praticamente nada.durante certo tempo permaneceram ambos em silêncio, simulandoprestar atenção à chuva.- obrigado, petrosha - principiou vlasich pigarreando. - agradeçomuito teres vindo. É um acto generoso e nobre. entendo-o e,acredita, dou-lhe grande valor. podes crer. - olhou para a janela
e prosseguiu, de pé, no centro do quarto.- tudo isto se passou em segredo, como se fosse às tuasescondidas. a consciência de que podias sentir-te ofendido eestivesses aborrecido connosco tem sido durante estes dias umanuvem na nossa felicidade. mas permite que nos justifiquemos. seguardámos segredo, não foi por falta de confiança em ti. emprimeiro lugar, tudo se passou inesperadamente, movidos por umsúbito impulso, e não havia tempo para raciocinar. segundo,
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tratava-se de um assunto íntimo, delicado... era por demaisdesagradável, fazer intervir uma terceira pessoa, ainda que tãochegada como tu. o principal é que confiámos muito na tuagenerosidade. És um homem muito generoso e nobre. fico-teinfinitamente grato. se alguma vêz, necessitares da minha vida,vem e toma-a.vlasich falava com voz suave e surda, monótona como um zumbido; eestava visivelmente emocionado. piotr mikailich sentiu que chegaraa sua vez de falar e que escutar e calar-se significaria,efectivamente, fazer-se passar por uma pessoa generosa e nobre nasua boa fé. e não eram essas as suas intenções. levantou-se
rapidamente e disse, ofegante, a meia voz:- ouve, grigori: sabes quanto te estimava e que não teria podido
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desejar melhor marido para minha irmã. mas o que aconteceu éhorroroso. ainda tremo ao pensar nisso.- porquê? - perguntou vlasich, com voz comovida. - seria de tremerse tivéssemos procedido mal, mas não é o caso.- ouve, grigori: sabes que não tenho preconceitos. mas perdoa-me a
franqueza: quanto a mim, procederam egoisticamente. É evidente quenão o direi a znu, ficaria aflita, mas tu deves sabê-lo; a nossamãe sofre a tal ponto que nem te posso explicar.- sim, isso é muito doloroso - suspirou vlasich. - não foi nadaque não pensássemos, petrusha, mas que podíamos fazer? o facto deas nossas acções desagradarem aos outros não implica que sejamcondenáveis. a vida é assim. qualquer passo importante de umapessoa tem forçosamente de desagradar a alguém. se tu fossescombater pela liberdade; farias igualmente sofrer a tua mãe. quehavemos de fazer! aquele que coloca acima de tudo a tranquilidadedos seus familiares deve renunciar por completo a viver segundo os
seus ideais.o clarão de um relâmpago resplandeceu no céu e o seu brilho mudouo rumo aos pensamentos de vlasich. sentou-se junto de piotrmikailich e principiou a divagar.- e petrusha, adoro a tua irmã - declarou. - sempre que me dirigiaa tua casa imaginava ir em peregrinação a fim de elevar as minhasorações a deus, quando a verdade é que as minhas orações sedirigiam a zina. agora a minha adoração aumenta todos os dias.zina ocupa, aos meus olhos, uma posição mais elevada do que sefosse minha mulher. muito mais! - vlasich ergueu os
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braços. É o meu santuário! desde que ela vive aqui, entro nestacasa como se fosse um templo, é uma mulher excepcional,extraordinária, nobilíssima!"pronto, já começou com a sua ladainha!", pensou piotr mikailich.mas a palavra "mulher" não lhe agradara.- porque não se casam legalmente? - perguntou. - quanto pede a tuamulher para te conceder o divórcio?- setenta e cinco mil.- acho muito, e se tentasses que ela pedisse menos?
- não baixará nem um kopek. É uma mulher terrível, irmão! - dissevlasich suspirando. - nunca antes te falara nela, porque medesagradava o assunto, mas visto que as coisas se encaminharamneste sentido, vou-te contar. casei-me, honestamente, movido porum respeitável, ainda que fugaz, sentimento. no nosso regimento,caso te interessem os pormenores, havia um chefe de batalhão quese enamorou de uma jovem de dezoito anos; ou seja, falandoclaramente, seduziu-a, viveu com ela dois meses, e abandonou-a. arapariga ficou numa situação muito embaraçosa. tinha vergonha devoltar para casa dos pais, além de que não a aceitariam, e foraabandonada pelo amante: restava-lhe ir aos quartéis e vender-se.
os oficiais estavam indignados. eles também não eram nenhunssantos, mas a infâmia era demasiado evidente. para mais, no
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regimento ninguém gostava daquele chefe. para lhe fazerem ver asua patifaria, compreendes, os tenentes e capitães principiaram areunir dinheiro para a desgraçada rapariga. e então, quando nós,os oficiais de patente inferior, havíamos feito uma colecta em quecada um dava entre cinco a dez rublos, a mim subiu-me o sangue à
cabeça. a situação pareceu-me indicada para realizar uma autênticaproeza. fui ter com ela e manifestei-lhe ardentemente a minhasimpatia. e quando ia visitá-la e enquanto conversava com elaamava-a apaixonadamente, vendo nela uma mulher humilde e ofendida.sim... daí resultou que uma semana depois a pedi em casamento. osmeus superiores e camaradas acharam que semelhante casamento eraincompatível com a dignidade de um oficial. foi como deitar achasna fogueira. eu, compreendes, escrevi uma longa carta na qualafirmava que a minha acção devia ficar, na história do regimento,gravada com letras de ouro, etc. mandei-a ao chefe e enviei cópiasaos meus camaradas. estava exaltado, é claro, e
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houve uma troca de palavras duras. pediram-me que abandonasse oregimento. tenho guardado o rascunho em qualquer sítio, hei-dedar-to para que o leias. a carta foi escrita com muita emoção.poderás notar os honestos e sinceros sentimentos que me moviam.solicitei a baixa ao quartel e para aqui vim com minha mulher. meupai deixara algumas dívidas, eu carecia de dinheiro; quanto a ela,contraiu desde o primeiro dia muitas amizades, começou a presumire a jogar às cartas, e tive de hipotecar a propriedade. portava-se
mal, e foste tu, entre todos os meus vizinhos, o único que não foiseu amante. ao fim de dois anos, dei-lhe, para que me deixasse empáz, tudo o que então possuía, tendo ela partido em seguida para acidade. sim... e agora dou-lhe dois mil rublos por ano. É umamulher horrível! É uma mosca que põe a larva nas costas da aranhade tal modo que esta não a pode sacudir; e a larva agarra-se àaranha, chupando-lhe o sangue do coração. o mesmo faz esta mulher:agarrou-se a mim, chupa-me o sangue. odeia-me e despreza-me porquetive a estúpida ideia de casar com ela. a minha generosidadeparece-lhe uma coisa miserável. um homem inteligente costuma dizerabandonou-me e
recolheu-me um estúpido. pensa que só um desgraçado idiota podiater procedido como eu. É isto, irmão, a mim causa-me uma amarguraintolerável. dir-te-ei, aqui para nós, que o destino me persegue.persegue-me ferozmente.piotr mikailich escutava vlasich, interrogando-se perplexo: comoterá podido agradar tanto a zina? já não é jovem, tem quarenta eum anos, e franzino, peito estreito, nariz comprido e algunscabelos brancos na barba. quando fala parece que zomba; tem umsorriso doentio e agita as mãos de modo desagradável. não podiaorgulhar-se de ser saudável nem de possuir belas maneiras viris, ecarece de espírito mundano e alegria. em resumo: a julgar pelas
aparências, é um ser pusilânime e indefinido. não tem gosto parase vestir, a sua expressão é triste, não se interessa por poesia
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nem pintura, porque "não correspondem às necessidades diárias", ouseja, porque não as compreende, e não é apreciador de música, emau administrador. a herdade encontra-se no mais completo abandonoe está hipotecada; pela segunda hipoteca paga doze por cento, alémde que assinou letras no valor de dez mil rublos. quando chega o
momento de liquidar os juros ou mandar dinheiro à mulher, pedeemprestado a toda a gente, com a expressão de
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quem tem a casa a arder; e, simultaneamente, sem reflectir, vendetodas as reservas de lenha para o inverno por cinco ruhlos, e apalha por três, e depois manda acender os fogões com as traves dacerca do pomar ou as velhas estacas do jardim de inverno. osporcos estragam a pradaria, e o gado dos mujiqucs come, no bosque,as árvores novas, enquanto as velhas vão morrendo todos os
invernos. no pomar e no jardim as colmeias estão ao abandono,sendo utilizadas para deitar os baldes velhos. vlasich não temqualquer aptidão e nem sequer possui a virtude comum e corrente deviver como as outras pessoas vivem. É ingénuo nos assuntospráticos, ingénuo e fraco, e qualquer pessoa o pode enganarfacilmente, sendo por alguma razão que os mujiqucs lhe chamam "osimples".e liberal e no distrito tem fama de vermelho, mas isso só lhecausa enfado. na sua livre maneira de pensar não existe qualqueroriginalidade ou ênfase; indigna-se, irrita-se e alegra-se sempreno mesmo tom, displicentemente, sem procurar tirar efeito. não
ergue a cabeça, nem mesmo nos momentos de grande exaltação, epermanece sempre curvado. mas o mais maçador de tudo é que até osseus bons e nobres ideais são expressos de forma que parecembanais e ultrapassados. dá a impressão de que está a falar dequalquer velho assunto, que leu há muito, quando com palavraslentas principia a falar, como se se tratasse de coisa muitoprofunda, das fases nobres e lúcidas da sua vida, e de anosmelhores; ou quando se entusiasma com a juventude que sempre andouà cabeça da sociedade; ou, ainda, quando censura os russos porquedurante trinta anos vestem a mesma roupa e se esquecem de adquirira sua alma mater. quando passo a noite em sua casa, coloca, em
cima da minha mesa-de-cabeceira, livros de pisarev e darwin. e, selhe digo que já os li, sai e volta com dobroliubov.naquele distrito, chamavam a isto livre-pensamento, e eraconsiderado por muitos como uma extravagância ingénua e inocente;no entanto, tornava-o a ele profundamente infeliz. significavapara ele a larva de que falara antes: agarrara-se-lhe com toda aforça e sugava-lhe o sangue do coração. no passado, o estranhocasamento à moda de dostoievski, as longas cartas e as cópiasescritas com uma letra ilegível, mas com profundo sentimento; oseternos equívocos, explicações e desilusões; em seguida, asdívidas, a segunda hipoteca, o dinheiro que dava à
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mulher, novas dívidas que contraía todos os meses... e tudo istosem proveito para ninguém, nem para ele nem para os outros. epresentemente, tal como antes, vive ansioso, toma iniciativas, emete-se em assuntos que lhe são alheios; como noutros tempos,
assim que uma ocasião se apresenta escreve grandes cartas com asrespectivas cópias, mantém conversas fatigantes e triviais acercada comunidade rural ou da necessidade de pôr de pé as indústriasde artesanato ou, ainda, da construção de uma fábrica de queijos:conversas muito semelhantes umas às outras, ao ponto de pareceremsaídas não de um cérebro vivo, mas de uma máquina. e, finalmente,este escândalo de zina, que não se sabe como terminará.e entretanto zina é jovem, tem apenas vinte e oito anos, é bonita,elegante e alegre; gosta de rir e conversar, agradam-lhe asdiscussões e é apaixonada por música; tem bom gosto para sevestir, para escolher livros e móveis; e em sua casa não
consentiria um quarto como este, a cheirar a coiro das botas e avodka barato. É igualmente liberal, mas na sua livre maneira depensar adivinham-se a superabundância de energia, a vaidade de umamulher jovem, forte e impulsiva, e a vibrante aspiração de sermelhor e mais original do que as demais... como pôde enamorar-sede vlasich?"ele é um dom quixote, um fanático obstinado, um maníaco”, pensavapiotr mikailich, “e ela é tão suave, tão débil de carácter econciliadora, como eu... ambos nos rendemos depressa e semresistência! enamorou-se dele; ainda que eu próprio o estime,apesar de tudo..."
piotr mikailich tinha vlasich na conta de um homem bom e honesto,se bem que de vistas estreitas. nas suas emoções e sofrimentos, noconjunto da sua vida, não distinguia fins elevados, próximos ouremotos; via unicamente o tédio e a incapacidade de viver. o seusacrifício e tudo aquilo que vlasich denominava proeza ou impulsohonrado pareciam-lhe um inútil desgaste de energia, desnecessáriostiros sem bala em que se queimava muita pólvora. a circunstânciade vlasich estar fanaticamente certo da extraordinária honestidadee infalibilidade da sua maneira de pensar afigurava-se-lhe de umaingenuidade quase doentia. e quanto ao facto de se haver esforçadoa vida inteira para misturar o mesquinho com o sublime, de se
haver casado estupidamenteconsiderando essa acção uma tacanha, e de logo haver procuradooutras mulheres, vendo nisso o triunfo de uma ideia, tudo isto erasimplesmente incompreensível.apesar de tudo, piotr mikailich sentia afeição por vlasich,pressentia nele uma certa força de vontade, sendo por isso incapazde o contrariar.vlasich sentara-se junto dele para conversar, ao som da chuva, naobscuridade, principiando a pigarrear e disposto a contar coisasintermináveis, no género da história do seu casamento. mas piotrmikailich não conseguia prestar-lhe atenção, obcecado com a ideia
de ir, dentro de instantes, encontrar-se com a irmã.- sim, não tiveste sorte na vida - disse suavemente. - mas,
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perdoa-me, estamos a afastar-nos do ponto principal. não era esseo assunto de que necessitávamos de falar.- sim, sim, tens razão. vamos ao que interessa - aquiesceu vlasichpondo-se de pé. - escuta-me, petrusha: a nossa consciência estálimpa. não nos casou um padre, mas o nosso matrimónio é
perfeitamente legítimo. não tentarei demonstrar-to, nem tensobrigação de me ouvir. as tuas convicções são tão independentescomo as minhas e, graças a deus, não pode haver entre nósdiscrepância neste ponto. quanto ao nosso futuro, não te devemeter medo. trabalharei dia e noite, incansavelmente; numapalavra, farei quanto esteja ao meu alcance para que zina sejafeliz. terá uma vida agradável. serei capaz, de o conseguir? sim,conseguirei, irmão! quando alguém pensa constantemente numa únicacoisa, não lhe é difícil conseguir o que pretende. mas vamos tercom zina. temos que lhe dar esta alegria.piotr mikailich sentiu um aperto no coração. levantou-se e seguiu
vlasich até à saleta, e daí à sala. nesta divisão enorme esombria, não havia senão um piano e uma longa fila de velhascadeiras, com incrustações de bronze, em que nunca alguém sesentava. uma vela ardia em cima do piano. da sala passaram emsilêncio à casa de jantar, outra divisão ampla e poucoconfortável, em cujo centro havia uma mesa redonda de dobrar, comseis pés grossos, e sobre ela luzia igualmente uma vela. orelógio, de caixa vermelha, semelhante à urna de um ícone, marcavaas duas e meia.vlasich abriu a porta do quarto contíguo, dizendo: - zinochka,chegou o petrusha!
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ouviram-se passos precipitados e zina entrou na sala de jantar.alta, um pouco forte e muito pálida, tal como piotr mikailich avira pela última vêz, em casa: vestida com saia preta, blusavermelha e um cinto com uma grande fivela, abraçou o irmãolongamente, beijando-o no rosto.- que temporal! - disse. - cirigori saiu e deixou-me sozinha emcasa.não parecia perturbada, fitando o irmão com uma expressão sincera,
diáfana, como dantes. ao vê-la, piotr mikailich deixou de sesentir perturbado.- mas tu não costumas ter medo do temporal - disse, sentando-sejunto da mesa.- sim, mas aqui os temporais são muito fortes, a casa é velha e,quando ecoa o trovão, estremece toda como um armário com loiça. Àparte isso, é muito agradável - continuou, e sentou-se em frentedo irmão. - aqui, cada quarto tem a sua recordação. no meu (o queé o destino!) o avô de grigori desfechou um tiro em si próprio.- em agosto, receberei algum dinheiro e arranjarei o pavilhão dojardim - disse vlasich.
- não sei porque recordo o avô quando há temporal - prosseguiuzina. - e nesta sala de jantar mataram um homem.
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- É verdade - confirmou vlasich, olhando piotr mikailich, com osolhos muito abertos. - nos anos quarenta, esta herdade foiarrendada por um francês chamado olivier. o retrato da filha aindaestá nas águas-furtadas. este olivier, segundo contava meu pai,despregava os russos pela sua ignorância e troçava constantemente
deles. assim, exigia que o sacerdote, ao passar junto da quinta,tirasse o chapéu meia verxta antes de casa; e quando andava pelaaldeia com a família, queria que mandasse repicar os sinos. com oscriados e o pessoal menor ainda fazia menos cerimónias. certaocasião passou por aqui um dos elementos mais típicos da rússiavagabunda, alguém no género do estudante jorna hrut, de gogol.pediu que o deixassem pernoitar, agradou ao pessoal, tendo-lhesido permitido ficar na arrecadação. existem várias versões. unsdizem que o estudante revoltou os
' 1'erxomigem du um conto de gogol intitulado viy (n. do t.).
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camponeses; outros, que a filha de olivier se enamorou dele. nãosei bem, mas o certo é que um dia olivier chamou-o aqui e ordenou,em seguida, que lhe dessem uma sova. estás a ver? enquanto elepermanecia sentado atrás desta mesa, bebendo como se nada fosse,os criados espancavam o estudante. presume-se que o martirizaram.o estudante morreu na manhã seguinte, tendo o seu cadáverdesaparecido. dizem que o deitaram ao lago de koltovish.iniciaram-se investigações, mas o francês pagou vários milhões de
rublos a quem de direito e partiu para a alsácia. chegara, muito apropósito, ao termo o prazo de arrendamento e assim acabou tudo.- que canalhas! - exclamou zina, estremecendo. - meu pai lembrava-se muito bem de olivier e da filha. dizia que era muito bonita eexcêntrica. penso que o estudante fez ambas as coisas: revoltou oscamponeses e seduziu a filha. talvez nem sequer se tratasse de umestudante, mas de uma pessoa que viajasse incógnita.zinochka ficou pensativa: a história do estudante e da belafrancesa parecia ter levado os seus pensamentos para muito longe.piotr mikailich chegou à conclusão de que, exteriormente, zina nãomudara nada na última semana; apenas a achava um pouco mais
pálida. o seu olhar era tranquilo, como se tivesse vindo emcompanhia do irmão visitar vlasich. quanto a si, piotr mikailichsentia-se ligeiramente mudado. efectivamente, antes, quando zinavivia em casa, podia conversar acerca de tudo, enquanto agora eraincapaz de lhe perguntar sequer "como vives aqui? ". parecia-lheuma pergunta torpe e desnecessária. devia-se ter dado nela a mesmamudança. não se mostrava desejosa de falar na mãe, na casa, na suahistória amorosa com vlasich; não procurava justificar-se, nãodeclarava que o casamento civil era melhor que o religioso, não semostrava receosa e permanecera tranquilamente meditando no caso deolivier... e a que propósito principiaram, subitamente, a falar no
francês?- têm ambos as costas molhadas da chuva - disse zina sorrindo com
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alegria, afectada por esta pequena semelhança entre o irmão evlasich.e piotr mikailich sentiu toda a amargura e todo o horror da suasituação. recordou a casa vazia, o piano fechado e o quarto dezina, cheio de luz, em que ninguém entrava agora. recordou que
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nas áleas do jardim deixaram de se notar as marcas dos seuspequenos pés e que um pouco antes do chá da tarde já ninguémtomava banho entre risos de alegria. aquilo que mais o atraíadesde a sua mais tenra infância, que lhe agradava recordar quandosentado no sombrio ambiente do salão - claridade, pureza, alegria, tudo quanto enchia a casa de vida e de luz, fora-se para nãomais voltar, desaparecera e misturava-se com a grosseira e torpehistória de um chefe de batalhão, de um tenente generoso, de uma
mulher corrompida, do avô que dera um tiro em si próprio... eprincipiar a conversa sobre a mãe ou imaginar que o passado podiavoltar, significaria não entender o que estava bem claro.os olhos de piotr mikailich encheram-se de lágrimas e a sua mãopousada sobre a mesa principiou a tremer, zina adivinhou os seuspensamentos e os seus olhos resplandeceram igualmente humedecidosde lágrimas.- vem cá, grigori disse, dirigindo-se a vlasich.retiraram-se para o vão da janela e principiaram a falar em vozbaixa. pela maneira como vlasich se inclinava para ela e como elaolhava vlasich, piotr mikailich compreendeu mais uma vez que tudo
acabara para sempre e não valia a pena falar. zina retirou-se.- verás, irmão - principiou vlasich depois de um curto silêncio,esfregando as mãos e sorrindo, - dizia-te há pouco que a nossavida era feliz, mas afirmava-o para me submeter, digamos, àsexigências literárias. na realidade, ainda não tivémos a sensaçãode felicidade, zina pensava constantemente em ti e na tua mãe eatormentava-se; isso significava um sofrimento para mim. ela é umespirito livre, decidido, mas, como não está habituada, pesa-lheesta situação, além de ser ainda jovem. os criados chamam-lhemenina. parece um facto sem importância, mas preocupa-a, é como tedigo, irmão.
zina trouxe um prato com morangos, era seguida por uma criadinhade aspecto submisso. a criada pousou uma caneca com leite em cimada mesa, fazendo uma profunda reverência antes de sair... tinhaqualquer coisa de comum com os velhos móveis, dava a sensação deespanto e aborrecimento.a chuva parara. piotr mikailich comia morangos enquanto vlasich ezina o olhavam em silêncio. chegara o momento da conversadesnecessária mas inevitável, e os três começaram a sentir o seupeso. os olhos de piotr mikailich de novo se encheram de
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lágrimas; afastou o prato, dizendo que iam sendo horas de voltar,
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porque se fazia tarde e podia recomeçar a chover. chegara omomento em que zina, por decoro, devia fazer incidir a conversasobre os seus e a sua nova vida.- como vão as coisas lá por casa? - perguntou em tom sacudido, aomesmo tempo que o seu pálido rosto se crispava ligeiramente. e a
mãe?- já a conheces... respondeu piotr mikailich, desviando o olhar.- petrusha, tu tens pensado muito em tudo o que sucedeu -continuou ela, agarrando o irmão pelo braço, e piotr percebeu comolhe era penoso falar. - reflectiste muito. diz-me: podemos teralguma esperança de que a mãe, um dia, se reconcilie comgrigori... e aceite toda esta situação?zina estava muito perto dele, olhando-o de frente, e piotradmirou-se de a ver tão bonita, pensando que nunca antes seapercebera disso. e o facto de a irmã, tão parecida fisicamentecom a mãe, delicada e elegante, viver em casa de vlasich e com
vlasich, ao lado daquela criada, da mesa de seis pés, numa casaonde haviam morto um homem à paulada, e ainda o facto de já nãovoltar com ele para casa, e ficar ali a dormir, tudo lhe pareceuum incrível absurdo.- sabes como é a mãe... - disse sem responder à pergunta. acho quedevias pensar, fazer qualquer coisa, pedir-lhe perdão...- mas pedir perdão significa admitir que procedemos mal. estoudisposta a mentir para a sua tranquilidade, mas isso não resolveránada. conheço-a. enfim, veremos! - acrescentou zina, contente poro pior ter passado. – esperaremos cinco anos, dez, aguentaremos, eseja o que deus quiser.
deu o braço ao irmão e, ao passar pela saleta sombria, encostou-seao seu ombro.saíram a porta. piotr mikailich despediu-se, montou a cavalo eprincipiou, a passo, a viagem de regresso. zina e vlasich seguiramuns passos com ele para o acompanhar. estava um fim de tardeaprazível e ameno e pairava no ar um maravilhoso cheiro a feno; nocéu, por entre as nuvens, brilhavam as estrelas. o velho jardim devlasich, testemunha de tantas histórias dramáticas, dormia
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envolto na penumbra, e despertava na alma de quem o atravessava umsentimento de melancolia.- hoje, depois do almoço, passei com zina momentos verdadeiramentemaravilhosos - disse vlasich. - estive a ler-lhe um artigo muitobem feito sobre a emigração. deves lê-lo, irmão! vais gostar! É umartigo notável de seriedade. não resisti e mandei uma carta àredacção para que a façam chegar ao autor. apenas uma linha:"agradeço-lhe e aperto a sua honrada mão."piotr mikailich esteve tentado a dizer "não te metas onde não éschamado", mas calou-se.vlasich caminhava junto ao estribo direito e zina junto ao
esquerdo. davam ambos a impressão de haver esquecido que tinham devoltar para casa, apesar de estar muito húmido e já pouco faltar
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para chegarem à mata de koltovish. piotr mikailich percebeu queesperavam qualquer coisa dele, ainda que não soubessem bem o quê,e sentiu por ambos uma profunda piedade. neste momento, enquantocaminhavam junto ao cavalo, pensativos e submissos, teve aprofunda convicção de que eram infelizes e de que não podiam ser
felizes, parecendo-lhe o seu amor um erro triste e irreparável. apiedade e a consciência de que não podia fazer nada por elesproduziam-lhe aquela sensação de mal-estar em que para evitar openoso sentimento de compaixão se está disposto a qualquersacrifício.- virei algumas vezes passar a noite convosco.mas isto soava como uma concessão e não lhe agradou. ao pararjunto à mata de koltovish, a fim de se despedir definitivamente,inclinou-se para a irmã, pôs-lhe a mão no ombro e disse:- tens razão, zina: fizeste bem!e para não acrescentar mais nada e não romper em pranto, deu uma
chicotada ao cavalo e desapareceu a galope por entre as árvores.ao entrar na escuridão, voltou a cabeça e viu que vlasich e zinaregressavam a casa pelo caminho, ele em grandes passadas e elasaltitando conversando animadamente."sou um pateta”, pensou piotr mikailich. “vinha para resolver esteassunto e ainda o compliquei mais. bem, que deus os proteja!"sentia-se amargurado. ao passar a mata meteu o cavalo a passo,parando depois junto ao lago. precisava de se concentrar e pensar.
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nascera a lua, que se reflectia como uma coluna alaranjada vindada outra margem do lago. ouviu-se soar ao longe o ruído do trovão.piotr mikailich fixava a água sem pestanejar, imaginando odesespero da irmã, a sua dolorosa palidez, e o firme olhar com quese esforçaria por ocultar a todos a sua humilhação. imaginou o seuproblema, a morte e o enterro da mãe, o horror de zina... porque asupersticiosa e orgulhosa velha não podia deixar de morrer. osterríveis acontecimentos futuros desfilaram perante os seus olhosna superfície escura da água e entre as pálidas figuras dasmulheres viu-se a si próprio, pusilânime, débil, com o semblantede quem se sente culpado...
a cem passos, no extremo direito do lago, notava-se qualquer coisaimóvel e escura: seria uma pessoa ou um tronco de árvore? piotrmikailich recordou a história do estudante que tinham lançado aolago depois de morto."olivier foi desumano, mas, no fim de contas, solucionou oproblema, enquanto eu não resolvi nada, não fiz senão complicá-loainda mais”, pensou, olhando a silhueta escura que parecia umaaparição. - ele dizia o que pensava, e eu não digo nem faço aquiloque penso. nem sequer tenho a certeza do que na realidadepenso..."aproximou-se da silhueta negra: era um velho tronco apodrecido, a
única coisa que ficara de uma antiga construção.da mata e da propriedade de koltovish chegava até ele um intenso
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perfume a muguet e ervas aromáticas. piotr mikailich prosseguiu oseu caminho à beira do lago, contemplando tristemente a água, e aorecordar a sua vida convenceu-se de que nunca até aí dissera nemfizera nada do que pensava e que os outros lhe tinham pago namesma moeda. isto fê-lo ver a sua vida passada tão sombria como
aquela água em que se reflectia o céu da noite e se confundiam asalgas. e pareceu-lhe que nada tinha já remédio.
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dÔ-doce
olennka, filha do assessor do colégio plcmianikov, sentada nopátio, à soleira da sua porta, sonhava.o tempo estava abafado, as moscas peganhentas, importunas, e eraagradável pensar que em breve chegaria a noite. a leste passavam
sombrias nuvens carregadas de chuva, e de vêz, em quando corriauma leve aragem.no meio do pátio, observando também o céu, estava kukinc, o donodo jardim de tivoli, o café-concerto da cidade; kukinc habitava umdos pavilhões anexos à casa.- mais! - proferiu com desespero. - vem aí mais chuva! todos osdias chove. chove todos os dias. parece de propósito. Édesesperante. É a ruína!... todos os dias um prejuízo enorme...abriu os braços e continuou, dirigindo-se a olennka:
- É isto a minha vida, olga semionovna. dá vontade de chorar.trabalhamos, afadigamo-nos, damos cabo de nós, não dormimos de
noite; procuramos agir da melhor maneira; e qual o resultado?por um lado, um público ignorante, selvagem. faculto-lhe asmelhores operetas, variedades deslumbrantes, cançonetistasextraordinários; mas merece o público o nosso esforço? gosta éde palhaçadas; só
‘ nenhum título nos parece mais apropriado do que aquele queadoptámos.
tchekov dá à sua heroína uma alcunha feita de um diminuitivo,muito terno e muito cordial, da palavra alma (ducha), que édutchechok. (existe um outro diminuitivo ainda mais meigo e suave
que é dussia.) se o leitor está interessado em saber, o títulodeste conto significa lioa-alma, querida-alma, pequena-alma,pequeno-coração, querida, encantadora, perfeita,... e explicadoisto ficará ao par do "exacto valor" do título de tchekov (n. dot.).‘ diminuitivo de olga. de seu nome completo, olennka chama-se comovamos ver, olga semionovna (n. do t.).
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aprecia coisas banais. por outro lado, olhe para o tempo. chove
quase diariamente. começou a chover a nove de maio, continuandodurante todo o mês e em junho a mesma coisa; é simplesmente
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aterrador. o público não comparece, mas sou obrigado a pagar arenda e os artistas.ao fim da tarde do dia seguinte, as nuvens voltaram a aparecer.kukine exclamou com um riso histérico:- bem! acabou-se! que o jardim seja todo inundado e eu com ele!
que não tenha sorte nenhuma, nem nesta vida nem na outra! que osartistas me arrastem perante a justiça! e depois... que mecondenem a trabalhos forçados na sibéria, a morrer no cadafalso!ah, ah, ha,...no dia seguinte repetiu-se a mesma coisa. olennka escutava kukinesem pronunciar palavra, com ar sério, vindo-lhe às vezes aslágrimas aos olhos. com o decorrer do tempo, as infelicidades dekukine comoveram-na; começou a gostar dele.kukine era um homem de pequena estatura, magro, tez, amarelenta,as fontes lisas. falava com voz de falsete, retorcendo a boca.tinha sempre uma expressão desesperada; mas, apesar de tudo,
despertou nela um sentimento verdadeiro, profundo.olennka estava permanentemente apaixonada por alguém e não podiapassar sem isso. gostara primeiro do pai, agora doente, que viviasentado numa cadeira, num quarto sombrio, respirando comdificuldade. gostava da tia, que, lá de longe em longe, de dois emdois anos, vinha de briannsk. e muito antes, quando aindafrequentava o liceu, apaixonara-se pelo professor de francês.olennka era uma jovem recatada, boa, caridosa, com um olhar doce eterno, muito saudável. ao verem a sua face redonda e rosada, opescoço macio e branco com um sinal preto, o bom e ingénuo sorrisoque transparecia no seu rosto quando lhe diziam qualquer coisa
agradável, os homens pensavam: "sim, não está mal..." e tambémeles sorriam.e quando ela falava, as senhoras, não podendo conter-se,agarravam-lhe impulsivamente a mão, dizendo com satisfação:- dô-doce.a casa em que vivia desde que nascera, e que o pai lhe legava emtestamento, estava situada no extremo da cidade, no bairro dosciganos, perto de tivoli. olga ouvia, noite e dia, a música atocar, os foguetes a estalar, tendo a impressão de que era kukinea lutar
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contra o destino e a conquistar de surpresa o seu principalinimigo, o público indiferente.o coração de olennka palpitava suavemente; deixava-se ficaracordada e, quando kukine voltava para casa de madrugada, elabatia docemente à janela do seu quarto, não lhe deixando entrever,através das cortinas, mais do que o seu rosto e um ombro; esorria-lhe ternamente...kukine fez o seu pedido, e casaram. e quando pôde contemplar ávontade o seu pescoço e os seus ombros sadios e gordos, abriu os
braços com alegria, exclamando: dô-doce!sentia-se feliz; mas como no dia do seu casamento e durante toda a
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noite não parou de chover, a expressão de desespero não oabandonou.depois do casamento viviam bem. olennka ocupava-se da caixa,tratava do jardim, registava as despesas, pagava os ordenados; e asua face rosada, o seu sorriso encantador, ingénuo, radioso,
aparecia e desaparecia, ora no postigo da caixa, ora nosbastidores ou no restaurante.afirmava aos seus conhecidos não haver no mundo nada maisimportante, mais sério e mais indispensável do que o teatro, e nãoser possível sentir verdadeiro prazer e ser-se humano senãoatravés do teatro.- mas o público compreende? - perguntava ela. - o que ele gosta éde palhaçadas. ontem demos o pequeno fausto e quase todos oscamarotes estavam vazios; se vanitchka1 e eu tivéssemosrepresentado uma coisa banal o teatro estaria, acreditem-me,superlotado. amanhã representamos, vanitchka e eu, orfeu nos
infernos; venham!olennka repetia tudo o que o marido dizia acerca do teatro e dosactores. como ele, desprezava o público pela sua indiferençaquanto à arte, e pela sua ignorância. durante os ensaiosintervinha e corrigia os actores, vigiava os músicos e, quando nojornal local diziam mal do teatro, chorava e ia pedir explicaçõesà redacção.os artistas gostavam dela. chamavam-lhe "vanitchka e eu" e "dô-doce". olennka tinha pena deles, adiantava-lhes dinheiro e, se
' diminutivo do vânia (ivan) (n. do t.).
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acontecia enganarem-na, chorava às escondidas, sem se queixar aomarido.o inverno também correu bem. arrendaram o teatro da cidade,subalugando-o para digressões, uma vez a uma companhia prussiana,outra vez a um prestidigitador, ou ainda aos amadores da cidade.olennka engordara e resplandecia de alegria. kukine emagrecia,empalidecia, queixava-se de prejuízos enormes, se bem que osnegócios não tivessem corrido mal durante todo o inverno. tossia
durante a noite, e ela fazia-lhe tomar infusões de framboesa etília. esfregava-o com água-de-colónia e embrulhava-o em xailesmacios.- como és gentil - dizia-lhe, sinceramente, afagando-lhe oscabelos. - como és bonito!durante a grande quaresma, kukine foi a moscovo a fim de contrataruma companhia, e na sua ausência olennka, não conseguindoconciliar o sono, ficava sentada à janela contemplando asestrelas. e comparava-se às galinhas, que também não dormem denoite e se sentem inquietas quando não há um galo na capoeira.kukine, retido em moscovo, escrevia que voltaria na páscoa, dando
as suas instruções para tivoli. mas, na noite de domingo de ramos,muito tarde, pancadas sinistras ecoaram na porta da rua, batiam na
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pequena porta como num barril: bum, bum, bum.a cozinheira acordou e patinhando descalça nas poças de água,correu a abrir.- faça o favor de abrir - proferiu alguém atrás da porta, em vozcava. - um telegrama!
olennka recebera mais vezes telegramas do marido, mas desta vez,deus sabe porquê, sentiu-se terrivelmente inquieta. abriu com mãotrémula e leu o que se segue:"ivan petrovich, morto subitamente hoje, esperamos ordens, enterrosegunda-feira."no telegrama vinha escrito interro, e mais uma outra palavraincompreensível. o signatário era o director da companhia deoperetas.- meu amor - soluçava olennka. - meu querido vanitchka, meu amor.porque te encontrei? porque te conheci e amei? a quem deixas a tuapobre olennka, essa pobre infeliz?...
enterraram kukine, na terça-feira, em moscovo, no cemitério devagannkovo. olennka voltou para casa no dia seguinte, e logo que
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chegou atirou-se para cima da cama e principiou a soluçar tão altoque a ouviam na rua e nos pátios vizinhos.- dô-doce - diziam as vizinhas benzendo-se. - É aquela boa alma deolga semionovna; pobrezinha, como ela sofre!três meses depois, olennka regressava um dia da missa, triste, deluto pesado,. por coincidência, um dos seus vizinhos, vassili
andreievitch pustovalov, gerente numa serração de madeiras docomerciante babakaiev, que também regressava da missa, acompanhou-a pelo caminho.usava chapéu de palha, colete branco com uma corrente de ouro,parecendo mais um proprietário do que um comerciante.- tudo tem o seu tempo, olga semionovna - declarou pausadamente aolennka, em tom de condolência. - quando um dos nossos morre,cumpre-se a vontade de deus, é necessário encará-lo assim eaguentar o golpe com submissão.depois de acompanhar olennka até à pequena porta despediu-se econtinuou o seu caminho. durante todo esse dia a sua voz profunda
ecoou aos ouvidos de dô-doce, e mal ela fechava os olhos, via asua barba castanha; agradara-lhe muito.e, segundo parece, olennka também o impressionara, porque algumtempo depois uma senhora que mal conhecia veio tomar café em suacasa, e assim que se sentou principiou a falar de pustovalov, umhomem de bem, sério, que qualquer mulher gostaria de desposar.três dias depois, veio o próprio pustovalov visitá-la. não estevemuito tempo - dez minutos -, falou pouco, mas olennka começou agostar dele.e gostou tanto, que não conseguiu dormir nessa noite, escaldandocomo se tivesse febre.
pela manhã mandou chamar a velha senhora. em breve foi anunciado onoivado, seguindo-se a boda.
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pustovalov e olennka viveram bem depois de casados. pustovalovficava na serração de madeira até à hora de jantar, em seguidavinha olennka substituí-lo e ficava até à noite no escritóriopassando facturas e entregando a mercadoria.- a madeira - dizia ela aos compradores e aos seus conhecidos -
vai aumentar anualmente vinte por cento. ora vejam: antesvendíamos madeira daqui; agora, vassitchka tem que ir comprá-la aogoverno de moguiliov. e que despesas de
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transportes - dizia aterrada, tapando a cara com as mãos. - quetarifas!parecia-lhe que há muito tempo se dedicava ao comércio de madeirae que, na vida, a coisa mais importante e mais necessária era amadeira. encontrava qualquer coisa de familiar nas palavras:
trave, toro, tábua, prancha, tabuinha, costaneira.durante a noite, sonhava com montanhas de tábuas e tabuinhas.filas intermináveis de carroças transportavam a madeira para longeda cidade. olennka imaginava um regimento completo de achas dedoze, de cinco archinas1, de pé, declarando guerra à serração demadeiras. via as achas, as traves lutando entre si, produzindo umsom surdo de madeira seca. caíam, levantavam-se, empilhavam-seumas em cima das outras. olennka dava um grito, e pustovalovdizia-lhe ternamente:- olennka, que tens, minha querida? benze-te.as ideias do marido eram as suas. se pustovalov achava que estava
calor no quarto ou que os negócios não progrediam, ela tinha amesma opinião. o marido não gostava de nenhum divertimento e nãosaía nunca nos dias de festa; ela também não.- vocês estão sempre em casa ou no escritório - diziam-lhe osamigos. - deviam ir ao teatro, dô-doce, ou ao circo.- não temos tempo, nem vassitchka nem eu, para andarmos pelosteatros - respondia olennka pausadamente. - somos pessoas detrabalho, não temos tempo para futilidades. para que servem todosesses teatros?aos sábados, pustovalov e ela assistiam às matinas; nos dias defesta iam à primeira missa, e no regresso da igreja caminhavam
lado a lado,, ternamente, ambos perfumados, acompanhados pelorumorejar agradável do vestido de seda de olennka. em casa,tomavam chá e comiam pãezinhos de leite com as mais variadascompotas; a seguir, comiam brioches. todos os dias, à sua porta,no pátio e mesmo lá fora, cheirava à boa sopa de beterraba, ecarneiro ou pato assado. e em dias de abstinência, cheirava tãobem a peixe que não se podia passar à frente da sua casa semsentir vontade de comer. no escritório, o samovar estava sempre aferver e ofereciam aos compradores chá e biscoitos.
‘ l medida linear usada na rússia (n. do t.).
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uma vez por semana, marido e mulher iam à estufa e voltavam lado alado, ambos queimados do sol.- não nos podemos queixar, vivemos bem, graças a deus - diziaolennka aos seus conhecidos. - que deus permita a todos viverem
como vivem vassitchka e eu.quando pustovalov ia ao governo de moguiliov comprar madeira,olennka aborrecia-se muito. não dormia de noite e chorava. oveterinário militar, smirnine, um jovem que vivia no pavilhão desua casa, vinha às vezes, à noite, visitá-la.conversava ou jogava com ela às cartas, distraindo-a. eprincipalmente as histórias familiares de smirnine eram muitointeressantes. era casado e tinha um filho, mas vivia separado damulher, que o enganara. agora, detestava-a e enviava-lhe quarentarublos por mês, para manter o filho.ao ouvir isto olennka suspirava, abanava a cabeça, e compadecia-se
dele.- vamos, que deus o acompanhe! - dizia-lhe conduzindo-o com umavela acesa, até à escada. - obrigada por ter vindo aborrecer-secomigo. que deus e a rainha dos céus o protejam!exprimia-se sempre pausadamente, sensatamente, imitando o marido.quando o veterinário estava já à porta da rua, gritava-lhe:- sabe, vladimir plantonytch, devia reconciliar-se com a suamulher. devia perdoar-lhe, quanto mais não fosse pelo seu filho...o pequeno, com certeza, compreende tudo.e, quando pustovalov chegava, falava-lhe a meia voz do veterinárioe da sua infeliz vida de família. ambos suspiravam, abanavam a
cabeça e conversavam sobre o rapazinho que sentia, sem dúvida,saudades do pai.em seguida, por uma estranha sequência de ideias, ajoelhavam-seambos diante dos ícones, prostravam-se e rezavam a deus para quelhes enviasse filhos.os pustovalov viveram assim seis anos, calmos e tranquilos, numclima de amor e perfeito entendimento. mas, de vez em quando, noinverno, vassili andreievitch, depois de ter tomado chá quente naserração, saía sem boné para entregar madeira. apanhou frio e caiuà cama, doente; foi tratado pelos melhores médicos, mas o malvenceu-o; morreu, depois de se ter arrastado durante quatro meses;
e olennka enviuvou novamente.
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- a quem me deixas, meu querido! - soluçava ela, depois doenterro. - como posso continuar a viver sem ti, infeliz edesafortunada que sou? boa gente, tenham pena de mim, umaautêntica órfã!usava vestido preto com crepes, tendo renunciado definitivamente apôr chapéus e luvas. saía raramente e apenas para ir à igreja ouvisitar a campa do marido; levava uma vida de freira.
só ao fim de seis meses tirou os crepes e principiou a abrir aspersianas. começou a aparecer na praça com a cozinheira; mas que
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vida levava, que se passava em sua casa? apenas se podia imaginar.podiam tirar-se conclusões, porque, por exemplo, fora vista,tomando chá no seu pequeno jardim, com o veterinário, que lhe liao jornal, ou ainda porque tendo encontrado à porta um dos seusconhecidos, olennka lhe dissera:
- não existe em toda a cidade uma assistência veterináriapermanente, por isso há tantos casos de doença. ouve-se,constantemente, dizer que o leite provocou doenças em algumaspessoas ou que contraíram esta ou aquela doença das vacas oucavalos. em suma, era necessário cuidar tanto da saúde dos animaisdomésticos como das pessoas.olennka repetia as ideias do veterinário e estava de acordo comele em tudo. era evidente que não podia viver, nem sequer um ano,sem uma afeição, e que encontrara a felicidade à sua própriaporta, no pavilhão.qualquer outra mulher teria sido criticada, mas ninguém podia
pensar mal de olennka: tudo na sua vida era fácil de compreender.nem ela nem o veterinário se referiam à mudança ocorrida nas suasrelações procurando escondê-la; no entanto, isso não deuresultado, porque olennka era incapaz de guardar um segredo.quando os camaradas de smirnine, no regimento, o vinham visitar,olennka, enquanto lhes servia o chá ou a ceia, dissertava sobre apeste e a tísica dos bovinos nos matadouros municipais; e smirnineficava muito perturbado. depois das visitas saírem, agarravaolennka pela mão e dizia-lhe encolerizado, em voz áspera:.- já te pedi para não falares daquilo que não compreendes. quandoconversamos entre veterinários, peço-te que não te intrometas. que
maçada!
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de que devo então falar, voloditchka!?e beijava-o de lágrimas nos olhos, suplicando-lhe que não sezangasse.e ambos eram felizes.no entanto aquela felicidade não durou muito tempo. o veterináriopartiu com o seu regimento e partiu sem ideia de voltar, porque oregimento fora transferido para muito longe, quase para a sibéria,
e olennka ficou só.estava agora completamente só. o pai morrera havia muito tempo e asua cadeira jazia no sótão, abandonada, coberta de pó, com um pépartido. olennka emagreceu, tornou-se mais feia e aqueles que aencontravam já não a olhavam como noutros tempos, nem lhe sorriam.era evidente que os melhores anos da sua vida haviam passado,tinham ficado para trás. começava agora uma vida nova,desconhecida, em que mais valia não pensar.À noite, olennka permanecia na soleira da porta, ouvindo tocar amúsica em tivoli e estalar os foguetes; mas isso não despertavanela nenhum interesse.
indiferente, olhava o pátio deserto, não pensava em nada e, quandochegava a noite, ia-se deitar e via em sonhos o seu pátio vazio.
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bebia e comia por obrigação.mas principalmente, e isto era o pior, não tinha nenhumaopinião... via objectos à sua volta, compreendia tudo o que sepassava, mas não tinha opinião sobre nada, não sabia de que falar.e como é horrível não ter opinião! vé-se, por exemplo, uma garrafa
de pé, a chuva a cair, um mujique passar numa carroça; mas qual osentido de tudo isso? impossível de o dizer, mesmo se lheoferecessem mil rublos. com kukine, com pustovalov, e depois com oveterinário, olennka podia explicar tudo; teria dado a sua opiniãosobre fosse o que fosse. presentemente, no íntimo dos seuspensamentos e da sua alma, havia o mesmo vazio que no pátio.e era angustiante e amargo como se tivesse tomado absinto.pouco a pouco a cidade aumentava de todos os lados; o bairrocigano chamava-se agora rua dos ciganos; e onde fora o jardim detivoli e as serrações de madeira construíram-se casas, abriram-seruas. como o tempo passa! a casa de olennka escurecera; o tecto
1 diminutivo terno de volodia (vladimir), como os do género devanitchka,vassitchku (n. do t.).
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enferrujara, o alpendre abatera. o pátio estava todo coberto deervas e urtigas. olennka envelhecera, fizera-se feia.no verão ficava na soleira da porta e a sua alma, como antes,sentia-se triste, vazia, com um vago travo a absinto. e no inverno
permanecia junto da janela olhando a neve.logo que pressentia a primavera, que o vento lhe trazia o som dossinos da catedral, invadiam-na subitamente as recordações dopassado. sentia o coração contrair-se de prazer e lágrimasabundantes corriam dos seus olhos. mas durava apenas um minuto. eera outra vez o vazio e o desconhecimento da razão por quevivemos.a gata negra bryska encostava-se a ela meigamente, fazendo ronrom,mas as suas carícias não comoviam olennka. de que lhe serviam?precisava de um amor que invadisse todo o seu ser, toda a suaalma, todo o seu espírito, que lhe desse ideias, opiniões, uma
linha de conduta, e que aquecesse o seu sangue envelhecido. eenxotava bryska de entre as pregas do vestido, dizendo-lhe,impaciente:- vai-te embora, vai-te embora!... não precisas ficar aqui.e isto, dia após dia, ano após ano. nem uma alegria, nem umaopinião. o que dizia mavra, a cozinheira, estava certo.num dia quente de julho, ao cair da tarde, no momento em quepassava pela rua a manada de vacas dos habitantes e que o pátiointeiro estava cheio de nuvens de pó, alguém bateu, de repente, àpequena porta. olennka foi ela própria abrir e, quando olhou,ficou estupefacta.
diante da porta estava o veterinário smirnine, cabelos jágrisalhos, vestido à paisana. olennka, recordando de súbito todo o
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passado, não pôde conter-se, e, rompendo em pranto, apoiou acabeça ao peito de smirnine sem pronunciar uma palavra, não seapercebendo, na sua profunda emoção, como a seguir entraram emcasa e se sentaram a tomar chá.- meu querido - balbuciava ela, tremendo de alegria - vladimir
plantonytch, de que país vos envia deus?- quero instalar-me definitivamente aqui - explicou smirnine. -pedi a minha demissão e venho tentar a sorte na vida privada;quero deixar de levar uma vida de nómada. É altura, aliás, deinscrever o meu filho no liceu. já está crescido. imagine que mereconciliei com minha mulher.- e onde está ela? - perguntou olennka.
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- no hotel com o meu filho; estou à procura de um apartamento.
- meu deus, pai santo, mas ofereço-lhe a minha casa, em que é quenão é um apartamento? ah, meu deus - perturbou-se olennka,recomeçando a chorar -, mas não lhe cobrarei nada! fiquem aqui;para mim o pavilhão é suficiente: que alegria, senhor!no dia seguinte, já andavam a pintar o tecto da casa, a caiar asparedes e olennka, de mãos nas ancas, ia e vinha, no pátio, dandoordens. o mesmo sorriso doutros tempos iluminava o seu rosto.revivia, voltara a ter frescura, como se tivesse acordado depoisde um longo sono.por fim chegou a mulher do veterinário - uma senhora magra, feia,de cabelos curtos e expressão caprichosa -, e com ela um
rapazinho, sacha, pequeno para a idade (já tinha nove anos),gordo, olhos azuis-claros e duas covinhas na face. logo que opequeno chegou ao pátio, correu para a gata, ouvindo-se o seu risoradioso.tiazinha - perguntou a olennka -, a gata é sua? quando ela tivergatinhes, ofereça-nos um, a minha mãe tem medo dos ratos.olennka conversou com ele, deu-lhe chá e, de repente, sentiu umasensação de calor e o coração palpitar-lhe docemente no peito,como se aquele pequeno fosse seu filho.e quando à noite ele estudava as lições, sentado na casa dejantar, olennka olhava-o com ternura e compaixão, murmurando:
meu querido, meu lindo tesouro... meu filho, como és bonito! quepele tão branca! como és inteligente!-- dá-se o nome de ilha - soletrava ele - a um espaço de terrarodeado de água por todos os lados.dá-se o nome de ilha... - repetia ela.e foi esta a primeira opinião que emitiu com convicção depois detantos anos de silêncio e vazio nos seus pensamentos.já tinha outra vez opiniões, comunicando aos pais de sacha durantea ceia como se tornara difícil para as crianças seguir o curso dosliceus; mas, no entanto, a instrução clássica é bem melhor do queo ensino moderno, porque o liceu dá acesso a todas as carreiras.
podem vir a ser o que quiserem, doutores, engenheiros,...sacha começou a frequentar o liceu. a mãe foi para kharkov, para
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casa da irmã, e não voltou. o pai partia todos os dias em viagempara examinar os animais e, às vezes, ficava três dias sem voltara casa.
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e olennka convenceu-se de que tinham abandonado completamentesacha, que ninguém se importava com ele e que o deixavam morrer defome. levou-o consigo, para o pavilhão, e instalou-o num pequenoquarto.- sachennka1 disse-lhe tristemente -, levanta-te, meu filho,! sãohoras de ir para o liceu.sacha levanta-se; veste-se, diz as suas orações, e senta-se paratomar o seu chá. bebe três taças, come três grandes sequilhos emetade de um pão francês barrado com manteiga. ainda não estácompletamente acordado, por isso não se sente de muito bom humor.
- não aprendeste bem a tua fábula, sachennka - diz olennka,olhando-o como se ele fosse partir para uma longa viagem. - estoupreocupada contigo. esforça-te por aprender, meu filho... dáatenção aos teus professores!- ah! não se preocupe, minha tia, peço-lhe! - diz sacha.em seguida dirige-se para o liceu, minúsculo, com um grande boné esaco às costas. olennka segue-o em silêncio.- saohennka - grita.sacha volta-se e olennka mete-lhe na mão uma tâmara ou um bombom.ao chegarem à rua do liceu, sacha tem vergonha de ser seguido poruma mulher gorda e alta. vira-se e diz-lhe:
- volte para casa, tia, agora já posso ir sozinho.olennka pára e olha, sem o perder de vista, até o ver entrar aporta do liceu.ah! como gosta dele! de todas as suas afeições passadas, nenhumafora tão profunda. nunca antes o seu coração se submetera tãocompletamente, sem o mínimo pensamento preconcebido, e com tantaalegria, como neste momento em que o sentimento maternal arde nelacada vez mais.por aquele rapazinho desconhecido, pelas covinhas do seu rosto,pelo seu boné, olennka daria toda a sua vida; dá-la-ia comalegria, com lágrimas de emoção. porquê? ah! quem sabe porquê?
depois de deixar a criança na escola, voltou serenamente paracasa, tão contente, tão tranquila, tão cheia de amor. o seu rosto,mais jovem nestes últimos seis meses, sorri e alegra-se. aspessoas que a encontram sentem prazer em vê-la; dizem-lhe:
‘ diminutivo de sacha (n. do t.).
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- bom dia, querida olga semionovna. como tem passado, dô-doce?tornou-se muito difícil o curso dos liceus - explica olennka na
praça. - não é nenhuma brincadeira,. ontem, no segundo ano,passaram uma fábula para decorar, uma tradução de latim e um
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problema... como pode uma criança sair-se bem?e principia a falar dos professores, das lições, dos livrosescolares, tudo quanto ouve sacha dizer.Às três horas, jantam juntos. À noite, olennka ajuda-lhe a fazeros exercícios e choram os dois. quando o vai deitar faz sobre ele
longos sinais da cruz e murmura uma oração. a seguir, mete-se nacama e sonha com um futuro longínquo e incerto, quando sacha,depois de terminar os estudos, for médico ou engenheiro, quandotiver uma grande casa que seja dele, cavalos, um carro, quando secasar e tiver filhos...olennka adormece e pensa sempre nas mesmas coisas, e as lágrimasdeslizam dos seus olhos fechados, sobre o seu rosto. a gata pretaestá deitada a seu lado. faz ronrom: rom...rom...rom...de súbito, ouve-se um estrondo na pequena porta do jardim. olennkaacorda e deixa de respirar, gelada de pavor. o coração bate-lhedesordenadamente. passado meio minuto batem novamente.
"É um telegrama de kharkov - pensa, começando a tremer. - a mãeexige que lhe mandem sacha a kharkov... ah! meu deus..."sente-se desesperada; esfriam-lhe os pés, as mãos, a cabeça; éimpossível que haja alguém mais infeliz do que ela no mundo... maspassa mais um minuto; ouvem-se vozes. É o veterinário que regressado clube."ah! – pensa -, deus seja louvado!"a pouco e pouco o peso no seu coração desaparece, sente-se de novocalma e satisfeita. deita-se e pensa em sacha. dorme profundamenteno quarto ao lado, dizendo em sonhos, de vez em quando:dou-te uma sova! deixa-me em paz! não me batas.
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um assassinato
i
na estação de progonaia celebravam-se as vésperas. perante agrande imagem pintada de cores garridas sobre fundo de ouro,agrupavam-se os empregados dos caminhos de ferro, com suasmulheres e filhos, e também os lenhadores e serradores que
trabalhavam nas imediações, ao longo da linha. todos se mantinhamsilenciosos, fascinados pelo brilho das luzes e pelo ruído datempestade de neve que, apesar de serem já as vésperas daanunciação se desencadeara quando já ninguém a esperava. oficiavao velho sacerdote de vedeniapino, e os cânticos estavam a cargo dosalmista e de matvei terekov.matvei resplandecia de felicidade; e desapertara o colarinho, noauge do entusiasmo. cantava com voz de tenor, recitando no mesmotimbre, impregnado de um vigor terno. na altura de "a voz doarcanjo", principiou a agitar a mão como um director de orquestrae, esforçando-se por acompanhar a voz de baixo profundo do
sacristão, soltou um complicado trinado. via-se que isso lhecausava uma satisfação intensa.
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terminadas as vésperas, dispersaram-se todos tranquilamente.voltaram à penumbra, ao vazio, e àquele silêncio que apenas se nosdepara nas estações de caminho de ferro erguidas em pleno campo,ou nos bosques, quando o vento sopra e não deixa ouvir mais nada equando se sente o vazio em redor e toda a angústia da vida que
decorre monotonamente.matvei vivia perto da estação, na pousada de um seu primo, mas nãose sentia com disposição de regressar a casa. deixara-se ficar como cantineiro., por detrás do balcão, conversando a meia voz:
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- tínhamos o nosso coro na fábrica de azulejos. e digo-lhe mais:apesar de constituído por simples operários, cantávamos, naverdade, maravilhosamente. mandavam-nos com frequência à cidade, eenquanto o vigário joann oficiava na igreja da trindade o coro da
diocese cantava à direita e o nosso à esquerda. a única coisa deque se queixavam na cidade era de prolongarmos muito o canto, e dese tornar demasiado demorado. bem, é verdade que principiávamos àssete horas o hino de santo andré' e o hossana, e acabávamos depoisdas onze; assim, quando chegávamos à fábrica, passava da meia-noite. que bem se estava lá! - suspirou matvei. - pode-se mesmodizer muito bem, serguei nikanorich. pelo contrário, aqui, na casafamiliar, não existe a mínima alegria. a igreja mais próxima estásituada a cinco verstas; com a minha falta de saúde não me épossível frequentá-la. não têm cantores. na nossa família não hásossego: só há barulho, blasfémias e sujidade. comemos todos na
mesma malga, como os mujiques, e aparecem baratas na sopa... deusnão me dá saúde, serguei nikanorich. se não fosse isso já me tinhaido embora há muito tempo.matvei terekov não era velho. tinha apenas quarenta e cinco anos,mas a sua expressão doentia, o rosto cheio de rugas, e a barbicha,branca, rala e transparente, faziam-no aparentar muito mais.falava com voz débil, cautelosa, e quando tossia levava as mãos aopeito; nesses momentos, notava-se-lhe uma inquietação no olhar,como as pessoas muito apreensivas. nunca dizia ao certo onde lhedoía, mas gostava de contar detalhadamente como numa ocasião, aolevantar um pesado caixote, sentira uma profunda dor, e se lhe
formara uma hérnia que o obrigara a abandonar o trabalho nafábrica de azulejos, e recolher a casa. mas não sabia explicar oque era uma hérnia.
- para dizer a verdade não gosto do meu primo - prosseguiuservindo-se de uma chávena de chá. -- É mais velho do que eu, epode parecer pecado criticá-lo; temo a deus nosso senhor, masnão posso com meu primo. É um homem orgulhoso, muito sisudo, commaus modos; tortura a família e criados; e não vai à igreja. nodomingo passado pedi-lhe com carinho: "primo, vamos à missa depakomovo", e ele replicou: "não quero; o padre de pakomovo jogaàs cartas." e também não veio hoje aqui, porque, segundo diz, o
sacerdote de vedeniapino fuma e bebe. não gosta dos padres! rezaele próprio, em sua casa, a missa, as matinas e as vésperas,
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servindo-lhe a irmã de sacristão. começa com o oremus e elaresponde com uma voz muito fina, como uma galinha, "senhor,
tende piedade de nós!...". um verdadeiro pecado. digo-lhe todosos dias: "olha o que estás a fazer, primo. arrepende-te", masnão me dá ouvidos.
serguei nikanorich, o cantineiro, encheu cinco chávenas de chá elevou-as numa bandeja à sala de espera das senhoras. mal entrara,ouviu-se um grito:que maneiras são estas, focinho de porco? nem sequer sabes servir?era a voz do chefe da estação. seguiu-se um tímido murmúrio e logooutro grito, mal humorado e duro: fora daqui!o cantineiro voltou muito perturbado.- noutros tempos eu contentava condes e príncipes - murmurou. -
agora diz que não sei servir chá... repreendeu-me à frente dosacerdote e das senhoras!serguei nikanorich tivera em tempos muito dinheiro, e fora dono dacantina de uma estação de primeira classe, numa capital deprovíncia onde se cruzavam duas linhas férreas. nesses temposusava fraque e relógio de ouro. mas a vida começou a correr-lhemal: investiu todos os seus recursos num serviço de luxo; oscriados roubavam-no; e, de mal a pior, passou para outra estaçãomenos importante. aí fugiu-lhe a mulher levando-lhe todo odinheiro, e isso obrigou-o a mudar para uma terceira estação aindade menos categoria, onde já não se serviam pratos quentes. depois,
foi para uma quarta estação. mudando com frequência e descendocada vez mais, chegou a progonaia, onde só se vendia chá, vodkabarato e, como aperitivo, ovos cozidos e um pastel em que não seconseguia cravar os dentes e que cheirava a breu, e a que elepróprio chamava, em ar de graça, "pastel musical". estavacompletamente calvo, tinha olhos azuis e salientes e usava umasespessas e cómicas patilhas que penteava frequentemente, olhando-se num pequeno espelho. as recordações do passado perseguiam-noconstantemente; não conseguia acostumar-se ao pastel musical, àgrossaria do chefe da estação e, sobretudo, aos mujiques queregateavam os preços, porque, segundo ele, regatear na cantina era
tão indecoroso como numa farmácia. sentia vergonha da sua pobrezae humilhação, e este sentimento era o ponto dominante da sua vida.
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- a primavera, este ano, vem atrasada - disse matvei, escutando oassobiar do vento. - e tanto melhor. não gosto da primavera. hámuita lama, serguei nikanorich. vem escrito nos livros que quandochega a primavera cantam os pássaros e o sol aquece. que tem issode agradável? o pássaro não é mais do que um pássaro. a mimagrada-me a boa sociedade; ouvir falar as pessoas, conversar sobre
assuntos religiosos ou cantar em coro qualquer música bonita; masos rouxinóis e as flores, que tenham muita saúde!
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principiou novamente a falar na fábrica e no coro, mas o ofendidoserguei nikanorich não havia maneira de se acalmar, e não paravade encolher os ombros e resmungar. matvei despediu-se, e dirigiu-se para casa.não havia gelo e já escorriam gotas dos telhados, mas a neve caía
em farrapos grossos que se enrodilhavam no ar, e as suas nuvensbrancas rodopiavam por cima da via férrea. o carvalhal, que seestendia de ambos os lados dos carris, apenas iluminado pela lua,que se escondia lá no alto atrás das nuvens, deixava ouvir umsibilar agudo e prolongado. as árvores infundem medo quando umforte vendaval as açoita! matvei caminhava pela estrada, ao longoda linha, protegendo a cara e as mãos, e era empurrado pelo vento.de súbito, apareceu um cavalinho coberto de neve, um trenóresvalou pelas pedras nuas da estrada; e um mujique, com a cabeçatapada e todo branco, fez estalar o seu chicote. quando matvei sevoltou para olhar, já o trenó e o mujique tinham desaparecido,
como se tudo tivesse sido uma visão, e matvei acelerou o passo,com um vago sentimento de medo.chegou à passagem de nível e à humilde casinha do guarda. abarreira estava levantada. junto a ela tinham-se formadoverdadeiras montanhas de neve e as estrigas giravam como bruxas emnoite de sábado. naquele ponto cruzava a linha um velho caminho,importante noutros tempos, e a que continuavam a chamar calçada.para a direita, perto da passagem de nível e mesmo à beira daestrada, ficava a taberna de terekov, que antes fora uma pousada.ali, à noite, brilhava sempre uma luz. quando matvei chegou,havia, em todos os quartos, inclusivamente no vestíbulo, um
intenso cheiro a incenso. seu primo yakov ivanich continuava acelebrar as vésperas. num canto do quarto do oratório, onde acerimónia se realizava, estava uma redoma com velhas imagens,herdadas dos avós, em molduras douradas; e, à direita e àesquerda, havia imagens
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antigas e modernas, algumas dentro de redomas. sobre a mesa,coberta com uma toalha que tocava o chão, estavam dispostas umaimagem da anunciação, uma cruz de cipreste e um incensório. ardiam
as velas de cera. junto da mesa havia uma estante. ao passar peloquarto do oratório, matvei parou e assomou a cabeça. yakov ivanichestava a ler junto da estante. acompanhava-o nas orações sua irmãaglaia, uma velha alta e magra, vestida de azul, com um lençobranco na cabeça. estava também dashutka, a filha de yakovivanich, jovem de dezoito anos, feia e sardenta, que andava sempredescalça e com o mesmo vestido que usava quando, de tarde, dava debeber ao gado.- glória a ti, que nos mostraste o caminho da luz! - entoava yakovivanich em voz cantante, fazendo uma profunda reverência.aglaia, com o queixo apoiado nas mãos, acompanhou o cântico com
uma voz fina e gritante. em cima, do tecto, ressoavam também umasvozes confusas que ameaçavam ou anunciavam qualquer coisa aziaga.
7/30/2019 7038856 Anton Tchekhov a Enfermaria 6 e Outros Contos
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no segundo andar, como resultado de um incêndio que deflagrara hámuito tempo, não vivia ninguém; as janelas estavam pregadas; e ochão, entre as traves, estava coalhado de garrafas vazias. agora,soprava ali o vento e parecia ouvir-se alguém correr, tropeçandonas traves.
metade do primeiro andar era destinada à taberna; a outra metadeera ocupada pela família terekov: de modo que, quando na tabernaaltercavam os viajantes embriagados, ouviam-se nos quartos todasas palavras. matvei ocupava um quarto junto à cozinha; nele haviaum grande forno em que noutros tempos, quando aquilo era pousada,coziam pão todos os dias. no mesmo quarto, atrás do forno, dormiadashutka, que não tinha quarto só para si. todas as noitescantavam os grilos e ouvia-se o barulho das ratazanas.matvei acendeu uma vela e pôs-se a ler um livro que lhe emprestarao guarda da estação. entretanto, tinham terminado as rezas, tendo-se ido todos deitar. o mesmo fez dashutka, que principiou a
ressonar acto contínuo, acordando logo a seguir, para dizerbocejando:- não devias ter a vela acesa sem necessidade, tio matvei.- a vela é minha - replicou ele. - comprei-a com o meu dinheiro.dashutka deu umas voltas na cama e não tardou a adormecernovamente. matvei continuou a ler ainda um bocado porque não
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tinha sono e, quando terminou a última página, tirou um lápis dobaú e escreveu na primeira: "eu, matvei terekov, li este livro e
acho que é dos melhores que tenho lido, pelo que expresso a minhagratidão a kuzma nikolaievich zhukov, suboficial da guarda dadirecção dos caminhos de ferro, proprietário deste livroprecioso." significava para ele um dever de cortesia fazer taisanotações nos livros que lhe emprestavam.
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ii
no dia de nossa senhora da assunção, depois da partida do comboio
correio, matvei tomava chá com limão na cantina, conversandoanimadamente.escutavam-no o cantineiro e o guarda zhukov.devo dizer-lhes - explicava matvei - que me senti atraído pelareligião, desde muito pequeno. aos doze anos já lia a epístola naigreja, coisa que dava grande alegria a meus pais, fazendo todosos anos uma peregrinação com minha defunta mãe. enquanto os outroscantavam ou apanhavam caranguejos, eu costumava ficar com ela. osmais velhos animavam-me, sentindo eu próprio prazer em observartão bom comportamento. e, sempre que minha mãe me mandava àfábrica, fora das horas de trabalho, era eu o tenor do nosso coro,
e não havia para mim maior alegria. não é preciso dizer que nãobebia nem fumava e que tomava banho frequentemente, e esta vida,
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conforme se sabe, não agrada ao inimigo do género humano. omaldito quis perder-me e tratou de obscurecer o meu entendimento,como faz agora com o meu primo. primeiro que tudo, fiz voto deobservar vigília às segundas-feiras e nunca comer carne. com odecorrer do tempo, principiei a ser dominado por toda a espécie de
fantasias. na primeira semana da quaresma, até sábado, conformeordenaram os santos padres, não se pode comer nada quente, aindaque as pessoas que trabalham e os débeis possam tomar chá; mas eunão tocava em nada até mesmo ao domingo e depois, durante toda aquaresma, não comia manteiga, e às quartas e sextas fazia jejumintegral. fazia o mesmo nas vigílias menores. na quaresma de s.pedro, o pessoal da fábrica costumava tomar sopa de couve comesturjão, mas eu, procurando não ser visto, mastigava um pedaço de
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pão seco. cada um tem a sua força, já se sabe, mas eu falo de mim:nos dias de vigília, não me custava nada jejuar, e quanto maiorera o meu zelo mais feliz me sentia. apenas sentia fome, nosprimeiros dias do jejum, mas depois acostumava-me, sentindo-mecada vez melhor, e ao fim de uma semana encontrava-meperfeitamente bem. as minhas pernas estavam tão ligeiras que maisme parecia viver nas nuvens do que na terra. além do mais,impunha-me toda a espécie de obrigações: levantava-me de noitepara fazer reverências, arrastava pesadas pedras de um lugar parao outro, andava descalço na neve e, claro está, usava cilício.mas, ao fim de algum tempo, quando me ia confessar, pensei: "este
padre é casado, come carne e fuma. como poderei confessar-me? quepoder tem para me absolver, se é mais pecador do que eu? eu chegoa privar-me da manteiga e ele possivelmente come esturjão." fui aoutro padre, e este, por coincidência, era gordo, usava umasotaina de seda, que fazia um ruído semelhante às saias dassenhoras e cheirava igualmente a tabaco. fui praticar os meusjejuns para um convento, mas ali o meu coração não se sentiatranquilo; tinha a sensação de que os monges não observavam asregras. depois disto não havia nenhum serviço religioso que mesatisfizesse: num sítio a missa acabava demasiado cedo; noutro,não tinham cantado como deviam; num terceiro, o sacristão era
fanhoso... havia ocasiões, e que o senhor perdoe este pecador, emque o meu coração estremecia de raiva em pleno templo. que oraçãoera aquela? achava que as pessoas não se benziam nem escutavamcomo era devido; em qualquer lado para que me voltasse, erambêbados, glutões, fumadores, libertinos, jogadores. eu era o únicoque cumpria os mandamentos. o espírito maligno não dormia e, com odecorrer do tempo, agravava aquele estado de coisas. deixei decantar no coro e de frequentar a igreja. julgava-me um justo, e aoverificar a imperfeição da igreja, desgostei-me; ou seja, àsemelhança do anjo caído, tornei-me soberbo no mais alto grau."depois disto quis ter uma igreja só para mim. aluguei a uma
mulher surda um pequeno quarto, nos arredores, perto do cemitério,e converti-o num oratório no género daquele do meu primo, ainda
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que no meu houvesse candelabros e um verdadeiro incensário. nesteoratório praticava as regras do santo monte de atos; ou seja, asmatinas principiavam, diariamente, à meia-noite e nas festas maissolenes a missa durava dez e até mesmo doze horas. os frades,
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segundo as regras, permanecem sentados durante a leitura doevangelho, mas eu, para me tornar mais agradável a deus, costumavalê-lo de joelhos. lia e cantava durante largo tempo, com lágrimasnos olhos e suspirando, erguendo os braços, e assim que terminavaa oração ia para a fábrica, sem dormir, e não parava de rezardurante o trabalho. por fim, principiou a correr um rumor pelacidade: matvei é santo, matvei cura os doentes e os loucos. claroque não curara ninguém, mas é sabido que quando aparece um cismaou uma falsa doutrina, as mulheres nunca mais nos largam. acodem
como moscas ao mel. principiaram a perseguir-me casadas esolteironas de todas as espécies: faziam-me vénias, beijavam-me asmãos e afirmavam que eu era um santo. uma delas chegou a ver-mecom a cabeça aureolada. o oratório estava a tornar-se pequeno,pelo que aluguei um quarto mais espaçoso, que se transformou numaverdadeira torre de babel. o diabo apoderou-se de mimdefinitivamente e tapou a luz dos meus olhos com a sua peçonharepugnante. parecíamos todos possessos, eu lia, e as casadas esolteironas cantavam, e assim, sem comer nem beber, permanecíamosde pé dias inteiros. as mulheres principiavam de repente a tremercomo se tivessem febre, e punham-se a gritar umas atrás das
outras. até metia medo! eu também tremia como um judeu nocaldeirão. nem eu próprio sei a razão, mas as minhas pernascomeçavam a agitar-se. era prodigioso: saltava, gesticulando,mesmo contra a minha vontade. a seguir vinham os gritos e aberraria, dançávamos, e corríamos uns atrás dos outros até cairmosexaustos. assim, num momento de absurda loucura, caí no pecado daluxúria. o guarda deu uma gargalhada, mas ao reparar que ninguém oseguia tornou-se sério, dizendo:isso chama-se "molokanismo". já li algures que no cáucaso todos opraticavam.mas não me fulminou um raio - prosseguiu matvei, fazendo o sinal
da cruz diante da imagem e murmurando uma oração. - decertointercedeu por mim, no outro mundo, a minha defunta mãe. quando nacidade já me consideravam santo, e mesmo senhoras e senhores meprocuravam secretamente em busca de consolo, fui despedir-me donosso amo, osip varlamich. era dia de perdão. osip varlamichaferrolhou a porta e ficámos os dois sós. principiou a fazer-me umsermão. devo dizer que osip varlamich era um homem sem estudos,mas com muitos conhecimentos; todos o respeitavam e temiam, porqueera rigoroso e trabalhador, e levavauma vida exemplar. foi durante vinte anos presidente do município,desempenhando muito bem o seu lugar: empedrou a rua novo-
moskovskaia e mandou pintar a catedral e as colunas, de cor demalaquita. pois bem, fechou a porta e principiou: "já há tempo que
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queria falar contigo, filho, de umas coisas e doutras... julgas-tesanto? nada disso, és um apóstata, um malvado herege...", e assimpor diante.... não sou capaz de reproduzir o bem que falou, comque talento, como se estivesse escrito, a ponto de me comover.falou durante duas horas. as suas palavras tocaram-me o coração,
abriram-me os olhos. acabei por romper num pranto. "sê - disse-me- uma pessoa como as demais: come, bebe, veste-te e reza como todaa gente; tudo o resto vem do diabo. o teu silício é coisa dodemónio, assim como os teus jejuns e o teu oratório. tudo issoprovém do teu orgulho.""no dia seguinte, que era a primeira segunda-feira da quaresma,deus quis que caísse doente. apareceu-me uma hérnia ao levantar umpeso e levaram-me para o hospital. passei por grandes tormentos echorei amargamente, sem parar de tremer. pensava que do hospitalia parar ao inferno, porque na realidade estive a ponto de morrer.padeci seis meses no leito de dor, e quando tive alta a primeira
coisa que fiz foi acabar com os jejuns e senti-me pessoa outravez. quando se despediu, osip varlamich insistiu: "lembra-te,matvei, que tudo aquilo que sai do normal vem do diabo." e agoracomo, bebo e rezo como toda a gente... se, por exemplo, o popecheira a tabaco ou a vodka, não ouso censurá-lo, porque ele é umhomem como qualquer outro. e logo que se diz que na cidade ou numaaldeia apareceu um santo que passa semanas sem comer e impõe assuas regras, compreendo de quem tudo isso é obra. É esta, meussenhores, a história da minha vida. agora, eu, como fez osipvarlamich, trato de convencer os meus primos, mas a minha vozclama no deserto. deus não me concedeu esse dom.
o relato de matvei não pareceu produzir qualquer efeito. serguei^nikanorich não disse uma palavra e dedicou-se a retirar assanduíches] do balcão. o guarda referiu-se à fortuna de yakovivanich, o primo de matvei.- terá pelo menos trinta mil rublos - disse.o guarda zhukov, ruivo, de cara redonda - quando andava! tremia-lhe a face -, robusto e nédio, costumava, quando não estava| empresença dos seus superiores, refastelar-se na cadeira de pernas
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cruzadas, e enquanto falava baloiçava-se e assobiavadespreocupadamente, ao mesmo tempo que o seu rosto exprimia ocontentamento de quem acaba de comer uma boa refeição. possuíaalgum dinheirinho, e falava sempre deste assunto como grandeconhecedor da matéria. dedicava-se à corretagem e qualquer pessoaque desejasse vender uma quinta, um cavalo ou um carro usadorecorria a ele.sim, tem com certeza de parte uns trinta mil rublos - concordouserguei nikanorich. o seu avô possuía uma enorme fortuna - disse,dirigindo-se a matvei. -- enorme! o seu pai e o seu tio herdaramtudo. seu pai morreu novo, seu tio foi o herdeiro, e depois,
claro, foi tudo para seu primo yakov ivanich. enquanto você andavaem peregrinação com sua mãe e cantava na fábrica, aqui não ficaram
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de braços cruzados.- a si correspondiam-lhe quinze mil - disse o guarda, baloiçando-se. - a taberna pertence a ambos, quanto ao capital devia ser omesmo. no seu lugar, tinha levado o caso aos tribunais.compreende-se. e depois, enquanto as coisas se esclareciam, ter-
lhe-ia dado, a sós, uma boa sova...ninguém gostava de yakov ivanich porque, quando alguém professacrenças fora do comum, desagrada até mesmo àqueles que sãoindiferentes em matéria religiosa. além do mais, o guardainvejava-o porque se dedicava igualmente à venda de cavalos ecarros em segunda mão.se não quer apresentar queixa contra seu primo, é porque vocêpossui também bastante dinheiro - disse o cantineiro a matvei,lançando-lhe um olhar de inveja. - quem tem recursos vivesatisfeito, mas eu, por exemplo, creio que hei-de rebentar semnunca ter saído desta miséria...
matvei tratou de o convencer de que não tinha dinheiro algum, masserguei nikanorich já não o ouvia; afluíam-lhe as recordações dopassado e das ofensas que diariamente sofria. a sua cabeça calvacomeçou a transpirar, tornou-se corado, e principiou a pestanejar.maldita vida! exclamou furioso, arremessando a sanduíche ao chão.
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iii
dizia-se que o albergue fora construído no tempo de alexandre i
por uma viúva que ali se instalara com um filho. chamava-seavdotia terekova. a todos quantos viajavam na mala-posta,principalmente em noites de luar, o pátio sombrio, com o alpendree o portão sempre fechado, infundia um sentimento de angústia e devaga inquietação, como se ali vivessem bruxos ou bandidos. e ococheiro, sempre que passava no largo, voltava a cabeça e incitavaos cavalos. os viajantes ficavam de má vontade, porque os donos semostravam sempre muito austeros e cobravam muito caro. o pátioestava atravancado até ao verão. enormes porcos chafurdavam nalama, e os cavalos que os terekov negociavam andavam à solta. porvezes, os cavalos, na sua ânsia de liberdade, fugiam do pátio e
lançavam-se em galope desordenado pelo caminho, assustando a quempor ali passava. por essa altura, havia ali muito movimento epassavam longas caravanas com mercadorias. davam-se casos como oocorrido, trinta anos atrás, quando os carreteiros enfurecidosmataram, numa contenda, um comerciante que ia de passagem: existiaainda, a meia versta da casa, a cruz de madeira meio apodrecida.passavam diligências com as suas campainhas e pesados trenssenhoriais. entre mugidos e nuvens de pó, cruzavam também manadasde vacas e touros.quando construíram o caminho de ferro, aquilo era um simplesapeadeiro, que dez anos mais tarde se converteu na actual estação
de proganaia. a circulação pelo velho caminho das diligênciascessou] quase por completo: apenas se serviam dele os
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proprietários e os mujiques da comarca e na primavera e no outonoos ranchos trabalhadores. a pousada transformou*se em taberna.ardeu o andar
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de cima, o tecto adquiriu uma cor amarelada, devido à oxigenaçãoda chapa, e o alpendre ruiu, enquanto no pátio continuavam achafurdar na lama os enormes porcos, rosados e repugnantes. comonoutros tempos, fugia às vezes um cavalo, que, com a caudaencolhida, galopava desabridamente pelo caminho. na tabernavendiam chá, feno, aveia, farinha e também vodka e cerveja, parabeber ao balcão ou levar. as bebidas alcoólicas eram vendidas emcontrabando, e nunca era tirada a respectiva licença.os terekov foram sempre muito religiosos, a ponto de seremconhecidos por os "beatos". mas, talvez porque viviam isolados,
como ursos, afastavam-se das pessoas, guiavam-se em tudo pela suaprópria cabeça, mostravam-se propensos à fantasia e às divagaçõesem matéria religiosa, e sustentavam que cada geração tinha a suaprópria fé. avó avdotia, a que construíra a pousada, pertencia aovelho rito, mas o filho e os dois netos (os pais de matvei e yakoviam à igreja ortodoxa, recebiam o clero em sua casa e rezavamdiante das novas imagens com a mesma devoção que diante dasantigas. o filho, ao chegar à velhice, deixou de comer carne e fezvoto de silêncio, vendo em todas as conversas um pecado. os netosapresentaram a particularidade de entenderem as escrituras à suamaneira, não como toda a gente, mas buscando nelas um sentido
oculto e afirmando que cada palavra sagrada devia conter umsegredo. matvei, o bisneto de avdotia, lutou desde a infância comvisões que quase lhe custaram a vida. o outro bisneto, yakovivanich, era ortodoxo, mas depois da morte da mulher deixou defrequentar a igreja e fazia as suas orações em casa. influenciousua irmã aglaia, que não ia à igreja nem deixava ir dashutka.dizia-se também de aglaia que costumava ir na sua juventude avedeniapino, onde havia uma seita de flageladores a que elapertencia secretamente, e esse era o motivo por que usava lençobranco.yakov ivanich era mais velho dez anos do que matvei. era um velho
bem parecido, alto, barba comprida e grisalha quase até à cintura,e espessas sobrancelhas que lhe davam uma expressão severa evagamente perversa. usava um jaquetão comprido de boa fazenda ouuma pelica preta, e gostava de andar sempre bem vestido, tratandocuidadosamente da sua roupa; não descalçava os tamancos, mesmoquando o chão estava enxuto. não frequentava a igreja porque,segundo ele, o ritual não era cumprido à letra e porque ossacerdotes bebiam vinho fora da missa e fumavam. lia com aglaia as117escrituras e cantavam os salmos todos os dias em casa. emvedeniapino não liam a epístola às matinas, e as vésperas não eram
celebradas nem sequer por ocasião das grandes festas; emcompensação, yakov ivanich rezava em casa as orações
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correspondentes a cada dia, sem saltar uma só linha e lentamente,e nas horas vagas lia em voz alta a vida dos santos. cingia-sefielmente aos preceitos em todos os aspectos da vida; e assim, seem determinado dia da quaresma era permitido beber vinho "emrecompensa do zelo no trabalho", tomava-o ainda que não sentisse
desejos de beber.recitava as suas orações, cantava os salmos, incensava a casa eobservava fielmente o jejum, não para alcançar favores de deus,mas para observar a ordem estabelecida. o homem não pode viver semfé, e a fé deve adquirir uma expressão justa, de ano a ano, diaapós dia, segundo determinada ordem, de tal modo que todas asmanhãs e todas as tardes deus seja invocado precisamente com aspalavras e os pensamentos que correspondem ao dia e hora. há queviver e, portanto, rezar como é da vontade de deus; por isso énecessário cantar e recitar diariamente apenas o que é da suavontade; quer dizer, segundo o ritual. assim, o primeiro capítulo
segundo s. joão só devia ser lido no dia da páscoa, e desde apáscoa até à ascensão não se podia cantar o "digníssimo". e assimpor diante. a consciência desta ordem de coisas e a suaimportância proporcionavam a yakov ivanich uma profunda satisfaçãodurante as; suas orações. quando as circunstâncias o obrigavam aalterar aquela; ordem,por exemplo, quando tinha de ir à cidadebuscar provisões ou, ao banco, atormentava-se-lhe a consciência esentia-se infeliz.o primo matvei, que chegara inesperadamente da fábrica e se]instalara na taberna como em sua própria casa, principiou ainfringir! as regras desde o primeiro dia. negava-se a participar
nas rezas em conjunto, comia e tomava chá a horas indevidas,levantava-se tarde e| às quartas e sextas-feiras tomava cháalegando que se sentia fraco;| quase todos os dias, durante asrezas, entrava no oratório gritando* "toma cuidado com o quefazes, primo! arrepende-te, primo!'* estas palavras faziam perdera cabeça a yakov ivanich, e aglaia, sem se poder conter,principiava a injuriá-lo. ou então, pela calada da noite, matveientrava no oratório dizendo a meia voz: "primo, a| tuas oraçõesnão são gratas a deus, porque está escrito: reconcilia-ti
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primeiro com teu irmão e vem então oferecer as tuas dádivas. e tuemprestas dinheiro a juros e vendes vodka. arrepende-te!"nas palavras de matvei, yakov não via mais do que o habitualpretexto dos homens fúteis e negligentes que, se falam no amor aopróximo ou em reconciliar-se com o irmão, é apenas para não orar,não jejuar e não ler as sagradas escrituras; e se falam comdesprezo do lucro e dos juros é porque não têm amor ao trabalho.porque ser pobre e não economizar é muito mais fácil que ser rico.apesar de tudo, sentia-se preocupado e já não conseguia rezar comodantes. apenas entrava no oratório e abria o livro, perturbava-o o
temor de que seu primo viesse incomodá-lo. e efectivamente matveinão tardava em aparecer para gritar com voz emocionada: "toma
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cuidado com o que fazes, primo! arrepende-te, primo!" a irmãprincipiava com as suas injúrias e yakov, igualmente fora de si,gritava: "sai da minha casa!", a que matvei replicava: "a casa éde todos."yakov recomeçava a leitura e o canto, mas já não conseguia
recuperar a calma e, mesmo sem dar por isso, ficava pensativodiante do livro. apesar de considerar uma estupidez as palavras doprimo, começava também ultimamente a cismar que é difícil aosricos entrar no reino dos céus; que comprara três anos antes,muito barato, um cavalo roubado; que, ainda em vida da mulher,morrera nesta mesma taberna um homem em estado de embriaguez porcausa do vodka...dormia mal de noite, com um sono muito leve, e ouvia matvei, quetambém não podia dormir e não cessava de suspirar, com saudades dasua fábrica de azulejos. e enquanto dava voltas na cama recordavao cavalo roubado, o bêbado e as palavras do evangelho acerca do
camelo.parecia que o invadiam as alucinações doutros tempos. e paracúmulo, apesar de já ser fins de março, nevava todos os dias e ovento soprava no bosque como se fosse inverno; e parecia que aprimavera não chegava, não chegava nunca mais. o tempo predispunhaao tédio, às desordens, ao ódio, e de noite, quando o ventosoprava no telhado, tinha a impressão de que alguém vivia lá emcima, no andar vazio, e as visões principiavam, pouco a pouco, asurgir; e ardia-lhe a cabeça, não podendo conciliar o sono.
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iv
na segunda-feira da semana santa pela manhã, matvei".ouviu no seuquarto dashutka dizer a aglaia:-- o tio matvei assegurou ontem que não é preciso jejuar.matvei recordou toda a conversa da véspera com dashutka e sentiu-se irritado.- não mintas, rapariga! - disse com voz plangente, como seestivesse moribundo. - É impossível viver sem jejuar. o própriodeus jejuou quarenta dias. a única coisa que te disse foi que as
pessoas doentes não devem fazê-lo.- acredita naquilo que te dizem na fábrica; eles te ensinarão oque se deve fazer - disse em tom de gracejo aglaia, que estava aesfregar o chão (costumava fazer este trabalho aos dias de semana,o que a punha de mau humor com toda a gente). - já se sabe comojejuam na fábrica. tu, pergunta ao teu tio pela víbora, que teconte como ambos bebiam leite nos dias de jejum. ele gosta deensinar aos outros, mas esquece, por seu lado, o caso da víbora.pergunta-lhe a quem deixou o dinheiro.matvei ocultava cuidadosamente de todos, como uma úlcerarepugnante, que naquele período da sua vida em que velhas e novas
acudiam ao oratório para saltar e correr com ele mantiverarelações com uma mulher de quem tinha tido um filho. quando chegou
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a casa entregou-lhe tudo quanto amealhara na fábrica. para asdespesas da viagem tivera que pedir emprestado ao senhorio; edepoisl restaram-lhe apenas alguns rublos, que reservou para chá evelas. aí tal mulher comunicou-lhe mais tarde que o filho tinhamorrido, perguntava-lhe na carta que destino devia dar ao
dinheiro. a carta em questão fora trazida da estação por umoperário; aglaia abrira-a e| lera-a, e por isso recriminava depoismatvei diariamente.
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não é brincadeira: novecentos rublos! - prosseguiu aglaia. - aíestá, dar novecentos rublos a uma víbora, a uma perdida dafábrica! oxalá rebentes! perdera o domínio em si e gritavaexaltadamente. - calas-te? a minha vontade é fazer-te em pedaços,inútil! dar novecentos rublos como se fossem um kopek! podias tê-
los deixado a dashutka, que é do teu sangue, e não a uma estranha;ou podias tê-los mandado a belev, para os infelizes órfãos demaria. porque não rebentou a tua víbora? seja mil vezes maldita emalvada! oxalá não tenha um só dia de felicidade na vida!yakov ivanich chamou-a: era o momento de rezar as horas. aglaialavou-se, pôs o lenço" branco e precipitou-se para o oratório areunir-se ao seu amado irmão, já cheia de compunção. quando falavacom matvei ou servia chá no albergue aos homens, era uma velhamagra, sempre alerta e mal-humorada; mas no oratório a sua caraadquiria uma expressão pura e devota, parecia rejuvenescer, esentava-se calmamente e até comprimia os beiços num trejeito de
humildade.yakov ivanich principiou a ler o livro de horas com a voztranquila e melancólica que sempre reservava para a quaresma.momentos depois parou a fim de prestar atenção ao silêncio quereinava em toda a casa. recomeçou a leitura com ar de satisfação.tinha as mãos postas em atitude devota, com os olhos muitoabertos, e abanava a cabeça e suspirava constantemente. mas nestaaltura ouviram-se vozes. o guarda e serguei nikanorich acabavam dechegar de visita a matvei. yakov ivanich não ousava ler ou cantarquando havia gente estranha em casa, e agora, ao ouvir vozes,prosseguiu a leitura num sussurro e com lentidão. no oratório
ouviu-se o cantineiro dizer:- o tártaro de schepovo trespassa o seu negócio por mil equinhentos rublos. pode pagar-se quinhentos rublos em dinheiro eassinar uma letra para o resto. oiça, matvei vasilich, peço-lhe ofavor de me emprestar esses quinhentos rublos. dar-lhe-ia dois porcento mensalmente.- onde quer que vá buscar esse dinheiro? - perguntou matvei comespanto. - onde vou buscá-lo?- os dois por cento mensais significam para si uma bênção do t-éuexplicou o guarda -,e se guardar o seu dinheiro em casa, este serácomido pela traça sem proveito nenhum.
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os visitantes partiram e voltou o silêncio. mas, apenas yakovivanich recomeçara a leitura em voz alta e o canto, ecoou uma vozdo outro lado da porta:- primo, necessito de um cavalo para ir a vedeniapino. era matvei.
yakov voltou a sentir-se inquieto.- qual há-de ser? - perguntou depois de meditar. - o baio levou-oum criado com um porco, e o potro necessito dele para ir ashuteikino logo que acabe de rezar. .primo, porque podes tu dispor dos cavalos e eu não? - perguntoumatvei, irritado.- porque vou tratar de negócios, e não passear.- os bens são de ambos; portanto os cavalos também. deviascompreender isto, irmão.fez-se um silêncio. yakov, sem- recomeçar as orações, esperava quematvei se afastasse.
- primo - insistiu matvei -, sou um homem doente e não quero apropriedade. que vá com deus, dispõe dela. mas dá-me ao menosuma pequena parte para que possa sustentar-me durante a minhadoença. dá-me essa parte e partirei.vakov calou-se. tinha muito empenho em ver-se livre de matvei,mas não podia dar-lhe dinheiro porque o tinha todo investido.além do mais, na linhagem dos terckov não existia um únicoexemplo de repartição de bens. reparti-los significava a ruína.*
yakov continuava calado, à espera que matvei se fosse embora, enão deixava de fitar a irmã, temendo que esta se intrometesse no
assunto e recomeçassem os insultos da manhã. quando, finalmentematvei se retirou yakov retomou a sua leitura, mas já sem prazeralgum. as genuflexões provocaram-lhe dor de cabeça e sentia oolhos turvados; causava-lhe tédio a sua própria voz apagadatristonha. quando um tal estado de depressão se produzia nele, ànoite, atribuía-o à falta de sono; mas quando o acometia de diaassustava-se, e então principiava a imaginar que os demónios lhetinham subido à cabeça e aos ombros.terminadas as horas o melhor que pôde, descontente e irritadoyakov ivanich partiu para shuteikino. no último outono tinhamestado alguns operários a abrir uma vala perto de progonaia, tendo
feito na taberna uma despesa de dezoito rublos; necessitavaencontrar agora em shuteikino o encarregado da obra a fim dícobrar esse dinheiro. o degelo e os nevões haviam deteriorado
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o caminho, que estava escuro e cheio de buracos; nalguns pontosparecia que se ia afundar. a neve dos lados estava abaixo do níveldo caminho, e por isso yakov tinha de caminhar como se andasse naparte mais alta de um estreito terrapleno, sendo muito difícilencostar-se a um lado quando vinha alguém em direcção oposta. o
céu estava carregado desde manhã e soprava um vento húmido... umgrande grupo em fila indiana veio ao seu encontro: eram mulheres
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carregando ladrilhos. yakov teve que dar passagem, o cavaloenterrou-se na neve até à barriga, o trenó inclinou-se para adireita e ele, para não cair, teve que inclinar-se para a esquerdae assim permaneceu enquanto o comboio de mulheres desfilavalentamente. entre o sibilar do vento, ouviu os guinchos dos trenós
e o resfolgar dos cavalos esquálidos. as mulheres diziam entre si:"É o beato", e uma delas, olhando o cavalo com comiseração, disseem voz rápida: parece que vai haver neve até são jorge. quetormento!yakov sentia-se desconfortável, feito num novelo, e conservava osolhos meio cerrados por causa do vento. À sua frente passavam oraos cavalos, ora os ladrilhos vermelhos. e, talvez porquepermanecia numa posição incómoda e lhe doíam as costas, sentiu-seirritado, pareceu-lhe que o seu assunto não era assim tãoimportante e que podia ter mandado um criado a shuteikino noutrodia qualquer. de novo, como na noite de insónia anterior, recordou
a história do camelo, e em seguida começou a pensar no mujique quelhe vendera um cavalo roubado, e no bêbado, e nas mulheres quetraziam os samovares de presente. É evidente que qualquernegociante trata de obter o máximo de lucro, mas yakov sentiu umasensação de agonia ao pensar que tinha querido ir mais além dogeralmente admitido; e incomodava-o pensar que naquele dia tinhaainda que ler as vésperas. o vento batia-lhe na cara e produzia umzumbido na gola do sobretudo, como se lhe sussurrasse estas mesmasideias, que trazia do extenso campo branco... ao olhar este campo,familiar desde a sua infância, yakov lembrou-se de que essa mesmainquietação e essas mesmas ideias o haviam assaltado nos seus
jovens anos, quando tinha visões e a sua fé vacilava.sentiu medo de ficar sozinho no campo. deu a volta e seguiudevagar o comboio de mulheres, enquanto estas riam e comentavam. obeato regressa a casa.em casa,por ser quaresma, não tinham cozinhado, nem acendido osamovar, pelo que o dia parecia compridíssimo. yakov ivanich já
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há um bom bocado que desatrelara o cavalo, mandara farinha para aestação e, por duas vezes, principiara a ler o saltério, mas
restava todavia ainda muito tempo. aglaia esfregara todos ossoalhos e, sem nada que fazer, dedicou-se a arrumar o seu baú,cuja tampa estava toda ornamentada por dentro com etiquetas degarrafas. matvei, esfomeado e triste, lia ou aproximava-se daestufa holandesa para contemplar os azulejos, que lhe faziamlembrar a fábrica. dashutka dormia; depois, quando acordou, foidar de beber aos animais. ao tirar água do poço partiu-se a corda,e o balde caiu à água. um criado foi buscar um gancho para opescar. dashutka, descalça e com os pés vermelhos como as patas deum ganso, seguiu atrás dele pela neve suja repetindo sem cessarque o poço era mais fundo do que o que podia alcançar o gancho;
mas o criado não lhe dava ouvidos, e provavelmente cansado voltou-se e dirigiu-lhe os piores impropérios. yakov ivanich, que saía
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neste momento para o pátio, ouviu dashutka responder-lhe com umachusma de grosseiros insultos, que só podia ter ouvido aos bêbadosna taberna.- que dizes, desavergonhada? - gritou horrorizado. - que palavrassão essas?
dashutka olhou para o pai, perplexa, com cara de estúpida, semcompreender porque não se podiam pronunciar semelhantes palavras.yakov ivanich quis dar-lhe uma lição, mas a rapariga pareceu-lhetão selvagem e ignorante que, pela primeira vez, percebeu que elanão tinha fé nenhuma. e toda aquela vida passada no bosque, entrea neve, entre bêbados e blasfémias, afigurou-se-lhe tão ignorantee selvagem como a própria moça, e, em vez de a repreender, fez umgesto de desalento e meteu-se no seu quarto.o guarda e serguei nikanorich tinham voltado para falar commatvei. yakov ivanich lembrou-se que estes também não tinham féalguma, sem que se preocupassem com isso, e a vida pareceu-lhe
estranha, insensata e sombria como a de um cão. sem se dar aotrabalho de pôr o gorro, deu uma volta pelo pátio; em seguida saiupara a estrada e principiou a andar de punhos cerrados. começou anevar, o vento agitava-lhe a barba, e yakov não parava de abanar acabeça, sentindo esta e os ombros oprimidos por qualquer coisa,como se os diabos lhe tivessem trepado em cima. afigurou-se-lheque não era ele quem caminhava, mas uma fera, enorme e terrível, eque se gritasse a sua voz ecoaria como um rugido pelo campointeiro e pelo bosque, assustando toda a gente.
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v
quando voltou para casa, o guarda tinha partido. o cantineiro,sentado no quarto de matvei, fazia contas. aparecia quasediariamente; antes vinha visitar yakov ivanich, mas ultimamenteera matvei quem o atraía. fazia as suas contas com a ajuda databuada, suarento e concentrado; ou pedia dinheiro; ou então,acariciando as patilhas, contava, como estando uma vez numaestação de primeira categoria, preparara um ponche para unsoficiais, e como nos banquetes ele mesmo servia a sopa de
esturjão. a única coisa que lhe interessava eram as cantinas, e sósabia falar de pratos variados, de serviços e de vinho. uma vez,quando estava a servir uma chávena de chá a uma jovem senhora queestava a amamentar um filho, disse-lhe, com a intenção de seragradável:o peito da mãe é a cantina do filho.enquanto fazia as suas contas no quarto de matvei e lhe pediadinheiro emprestado, afirmando que em progonaia a vida.se lhetornara impossível, ia dizendo repetidas vezes num tomlacrimejante: para onde havia de ir? diga-me, para onde havia deir?
em seguida matvei entrou na cozinha e principiou a descascarbatatas cozidas que tinha, decerto, guardadas desde a véspera.
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tudo estava silencioso e yakov ivanich pensou que o cantineiro sefora embora. chamou aglaia e, imaginando que não estava ninguém emcasa, começou a cantar em voz alta, despreocupado. cantava erecitava as orações, mas mentalmente pronunciava outras palavras:"perdoa-me, senhor! salva-me, senhor!", e com uma invocação atrás
da outra, não parava de fazer genuflexões como se quisessetorturar-se. abanava incessantemente a cabeça, de tal maneira queaglaia o fitava assombrada. yakov temia que matvei entrasse,estava
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mesmo certo que este o faria, sentindo contra ele um rancor quenem as rezas e genuflexões podiam vencer.matvei abriu com suavidade a porta e entrou no oratório.- que pecado, que pecado! - disse em tom de censura, deixando
escapar um suspiro. - arrepende-te! olha o que fazes, primo!yakov ivanich, com os punhos cerrados e sem o olhar, para evitarbater-lhe, saiu rapidamente do oratório. assim como o fizera antesna estrada, sentindo-se uma fera enorme e terrível, atravessoutambém o vestíbulo para entrar no quarto cinzento, sujo e cheio defumo, onde os mujiques costumavam tomar chá. ali, caminhou durantemuito tempo de um lado para o outro, com passo tão pesado que abaixela tilintava nos aparadores e as mesas tremiam. adquirira aclara noção de que a sua fé não o satisfazia e já não podia rezarcomo dantes. devia arrepender-se, voltar à razão, viver e orardoutro modo. mas como consegui-lo? e se tudo isto fosse obra do
demónio e não fosse necessário mudar nada?... qual o caminho aseguir? que fazer? quem poderia aconselhá-lo? que sensação deimpotência! parou e, com a cabeça entre as mãos, tratou dereflectir; mas o facto de matvei se encontrar ali perto impedia-ode pensar tranquilamente. dirigiu-se com rapidez para os quartos.matvei permanecia sentado na cozinha, diante de uma escudela combatatas que ia comendo. junto da estufa, uma à frente da outra,aglaia e dashutka dobavam uma meada. entre a estufa e a mesa ondematvei estava sentado tinham colocado uma tábua de engomar quetinha em cima um ferro frio.- prima •- suplicou matvei -, dá-me um pouco de manteiga. quem
come manteiga num dia como o de hoje? - perguntouaglaia.- eu, prima, não sou frade, mas um simples paroquiano. econsiderando a minha débil saúde, não só me está permitida amanteiga, como também o leite.sim, na fábrica permite-se tudo.aglaia tirou da cantoneira uma garrafa de azeite e colocou-adiante de matvei, pousando-a com força sobre a mesa; e sorriurancorosa, como se estivesse satisfeita por ele ser um tão grandepecador.-- já te disse que não podes tomar alimentos com gordura! gritou
yakov.
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aglaia e dashutka estremeceram. matvei, fingindo que não ouvia,deitou azeite na escudela e continuou a comer.estou-te a dizer que não podes ingerir comidas gordurosas! -
repetiu yakov com voz ainda mais alta, congestionado; e agarrandonum ímpeto a escudela, levantou-a acima da cabeça, arrojando-aviolentamente ao chão. - nem uma palavra! - vociferou frenético,apesar de matvei não ter aberto a boca. não pronuncies uma sópalavra! - repetiu, dando um murro na mesa.matvei levantou-se pálido.primo - disse sem cessar de mastigar -, primo, olha o que fazes.fora da minha casa, já! - gritou yakov. repugnava-lhe a caraenrugada de matvei, a sua voz, as migalhas que se desprendiam dobigode, o simples facto de o ver mastigar. fora daqui!acalma-te, irmão! deixaste-te dominar pelo orgulho de satanás!
cala-te! yakov bateu com o pé no chão. - sai daqui, demónio!se queres saber - prosseguiu matvei em voz alta, pois também jácomeçava a enervar-se -, és um apóstata e um herege. os malditosdemónios impedem-te de ver a verdadeira luz; as tuas orações nãosào gratas a deus. arrepende-te antes que seja tarde! aquele quemorre em pecado não tem salvação! arrepende-te, primo!yakov agarrou-o pelos ombros, afastando-o da mesa. matvei, aindamais pálido, assustado e desnorteado, balbuciava: "que estás afazer? que é isto? "; e resistindo, esforçando-se por se libertarde yakov, agarrou-o instintivamente pela camisa, desapertando-lheo colarinho. aglaia, imaginando que ele tentava matar yakov, deu
um grito, empunhou a garrafa do azeite e vibrou, com todas as suasforças, um profundo golpe na fronte do seu odiado primo. matveicambaleou, e o seu rosto adquiriu no mesmo instante uma expressãode tranquilidade e indiferença. yakov, ofegante e excitado,satisfeito por a garrafa, ao bater na cabeça de matvei, terproduzido um som cavo como se fosse um ser vivo, agarrou-o paraevitar que caísse e, repetidas vezes (havia de o recordarnitidamente), chamou a atenção de aglaia para o ferro de engomar.e quando o sangue lhe escorreu pelas mãos e se ouviu o pranto dedashutka, quando a tábua de engomar caiu com estrondo e sobre elaescorregou pesadamente o
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corpo de matvei, yakov só então sentiu que a sua ira sedesvanecia, e compreendeu o que acabava de suceder.- que rebente o patife! - exclamou aglaia com repugnância, semlargar o ferro de engomar. o lenço branco, salpicado de sangue,deslizara-lhe para os ombros e os seus cabelos cinzentos estavamdesgrenhados. - era o que ele merecia!era um quadro horrível. dashutka, sentada no chão junto da estufa,com a meada nas mãos, soluçava, balançando-se de trás para a
frente e repetindo a cada inclinação: "ai, ai!" mas nadahorrorizava tanto yakov como as batatas cozidas manchadas de
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sangue, e que temia pisar. havia também uma coisa aterradora, queo oprimia como um pesadelo, e representava um perigo maior, aindaque ao princípio não conseguisse entender de que se tratava: era ocantineiro serguei nikanorich, que se mantinha no limiar da portamuito pálido e contemplando horrorizado o que sucedera na cozinha.
só quando aquele se voltou e, atravessando o vestíbulo, saiu parao pátio, yakov compreendeu de quem se tratava e foi atrás dele.enquanto limpava as mãos com neve, sem se deter, ia raciocinando.lembrou-se de que o criado pedira licença para passar a noite emsua casa, na aldeia, e saíra havia um bom bocado; na vésperatinham morto um porco e a neve estava salpicada de grandes manchasavermelhadas, assim como o trenó e até um dos lados do monte delenha, não sendo portanto de suspeitar que toda a família de yakovestivesse manchada de sangue. era monstruoso ocultar a morte, emais monstruosa lhe parecia ainda a ideia de que acorreria oguarda da estação e daria um assobio sorrindo ironicamente; viriam
outros que lhe poriam as algemas assim como a aglaia, levando-osem ar de triunfo à sede do distrito e daí para a cidade; e pelocaminho todos os apontariam dizendo alegremente: "vão ali osbeatos!" era necessário deixar passar o tempo, fosse como fosse, enão sofrer esta vergonha agora, mas mais tarde.- posso emprestar-lhe mil rublos... - disse ao acercar-se deserguei nikanorich. - se disser alguma coisa não ganhará nada... ejá não é possível ressuscitá-lo.não tinha outro remédio senão seguir o cantineiro, que nem sequervoltava a cabeça e cada vez apressava mais o passo. prosseguiu:- posso dar-lhe mil e quinhentos...
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parou ofegante, continuando serguei nikanorich sem abrandar opasso, temendo provavelmente que o assassinassem também. só depoisde atravessar a passagem de nível e de ter percorrido metade docaminho da estação, voltou por momentos a cabeça e afrouxou opasso. na estação e ao longo da via brilhavam já as luzes verdes eencarnadas. o vento acalmara, apesar de continuar a nevar, e ocaminho ficara de novo todo branco. mas, quase ao chegar àestação, serguei nikanorich estacou, pensou uns segundos, e voltou
atrás com passo decidido.- dê-me os mil e quinhentos, yakov ivanich - disse a meia voz etremendo. - de acordo.
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vi
yakov ivanich guardava parte do seu dinheiro no banco da cidade eo resto tinha-o investido em hipotecas; só guardava em casa oindispensável para as despesas diárias. ao entrar na cozinha
procurou às apalpadelas a caixa metálica dos fósforos e, à luzazulada do enxofre, pôde lançar um olhar a matvei, que continuava
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estendido junto à mesa, no mesmo lugar, mas já coberto por umlençol que apenas deixava a descoberto as botas. os griloscantavam. aglaia e dashutka não estavam nos quartos: encontravam-se atrás do aparador, dobando a meada em silêncio. yakov ivanich,alumiando-se com uma palmatória, dirigiu-se ao seu quarto e tirou
debaixo da cama a pequena arca em que guardava o dinheiro. destavez tinha quatrocentos e vinte rublos em notas pequenas e trinta ecinco em moedas de prata; as notas exalavam um cheiro intenso edesagradável. depois de meter o dinheiro todo no gorro, yakovivanich atravessou o pátio e saiu para a estrada. olhou à suavolta, mas o taberneiro tinha desaparecido.- É, lá! - gritou.junto à cancela da passagem de nível surgiu uma silhueta escuraque se aproximou com passo indeciso.- o que anda a fazer de um lado para o outro? - exclamou yakovirritado ao reconhecer o cantineiro. - aqui tem: falta qualquer
coisa para os quinhentos... não tinha mais em casa.- está bem... fico-lhe muito agradecido - balbuciou sergueinikanorich, agarrando avidamente o dinheiro e guardando-o nosbolsos.apesar da escuridão notava-se que não parava de tremer.
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pode ficar tranquilo, yakov ivanich... para que havia de falar?estive lá mas já me tinha vindo embora. não sei de nada... - eacrescentou com um suspiro: - maldita vida!
permaneceram uns momentos silenciosos, sem se olharem.- É inacreditável o que aconteceu por nada... - disse ocantineiro, tremendo. - estava eu ali tão sossegado a fazer asminhas contas, quando se armou uma algazarra... aproximei-me daporta e você, por um pouco de azeite... onde está agora?- continua na cozinha. deviam levá-lo para qualquer sítio...porque esperam?yakov acompanhou-o em silêncio até à estação, depois voltou paracasa e aparelhou o cavalo a fim de levar matvei a limarovo.pensava em transportar o cadáver para o bosque e deixá-lo aí, nocaminho. diria depois a toda a gente que matvei fora a vedeniapino
e não voltara; pensariam assim que teria sido morto por qualquertranseunte. sabia que não enganaria ninguém com isto, masmovimentar-se, fazer qualquer coisa, estar ocupado, não era tãodoloroso como deixar-se ficar quieto e esperar. chamou dashutka etransportaram ambos o cadáver de matvei. aglaia ficou paraesfregar a cozinha.no regresso yakov e dashutka encontraram a passagem de nívelfechada. passava nessa altura um longo comboio de mercadoriaspuxado por duas locomotivas que resfolgavam penosamente, lançandochispas de fagulhas vermelhas. quando chegou à passagem de nível,ao entrar na estação, a máquina da frente apitou estridentemente:
apita... - articulou dashutka.quando a última carruagem passou, o guarda foi abrir as cancelas,
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com todo o seu vagar.És tu, yakov ivanich? - perguntou. - não'te tinha conhecido, sinalde que vou ficar rico.quando chegaram a casa eram horas de dormir. aglaia e dashutkadeitaram-se juntas num colchão que estenderam no chão da loja.
yakov acomodou-se no balcão. não rezaram nem acenderam alamparina. nenhum dos três pôde conciliar o sono até de madrugada,mas não pronunciaram uma só palavra. tinham a sensação de que porcima, no andar vazio, havia alguém que não parava de andar de umlado para o outro.
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dois dias depois vieram da cidade o comissário da polícia dodistrito e o juiz de instrução, e principiaram por passar umabusca ao quarto de matvei e depois por toda a casa. em primeiro
lugar interrogaram yakov, que declarou que matvei fora na segunda-feira, ao cair da tarde, a vedeniapino com a intenção de jejuar eque devia ter sido assassinado no caminho pelos serradores quetrabalhavam na linha. quando o juiz de instrução lhe perguntou porque razão matvei aparecera na estrada e o seu gorro em casa, sendoinadmissível que tivesse ido a vedeniapino com a cabeçadescoberta, e por que motivo na neve do caminho, junto ao cadáver,não tinham encontrado nem uma gota de sangue, não obstante ter acabeça esmigalhada e a cara e o peito cobertos de sangue, yakovperturbou-se e respondeu atrapalhado:- não sei que dizer-lhe.
sucedeu precisamente o que tanto temia: chegou o guarda, umpolícia rural pôs-se a fumar no oratório e aglaia invectivou-o,cobriu-o de insultos que tornou extensivos ao comissário. e, aseguir, quando levaram yakov e aglaia para o portão, aglomeraram-se os mujiques, comentando: "vão levar os beatos!", e davam aimpressão de que estavam contentes.o guarda declarou categoricamente que yakov e aglaia tinhamassassinado matvei para não repartirem os bens, dado que estepossuía também o seu pecúlio; se não aparecia era porque yakov eaglaia se tinham apoderado dele. interrogaram igualmente dashutka.esta disse que o tio matvei e a tia aglaia se disputavam
diariamente e quase chegavam a vias de facto por causa dodinheiro; o tio era rico, porque chegara ao extremo de oferecernovecentos rublos à sua amada.dashutka ficou sozinha na taberna. não vinha ninguém tomar chá ouvodka, e ela entretinha-se a fazer a limpeza dos quartos oupassava o tempo comendo mel e rosquilhas. mas alguns dias maistarde interrogaram o guarda da passagem de nível e este disse quena segunda-feira, já tarde, vira yakov e dashutka que regressavamde limarovo.dashutka foi também detida e levada para a prisão da cidade. nãotardou em saber-se por aglaia que serguei nikanorich presenciara o
feito; passaram-lhe uma busca à casa; e encontraram dinheiro emlugar muito pouco apropriado, dentro de uma bota de feltro
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escondida debaixo do forno. era tudo em notas pequenas; havia
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trezentas de um rublo. serguei nikanorich assegurava que amealhara
o dinheiro na cantina e que havia mais de um ano que não ia àtaberna. mas as testemunhas declararam que ele era pobre e queultimamente andava com muita falta de recursos. além do mais, iatodos os dias à taberna, procurando obter um empréstimo de matvei;o guarda declarou que no citado dia acompanhara duas vezes ocantineiro à taberna para ajudar a obter o empréstimo. recordaramtambém que na segunda-feira à tarde serguei nikanorich não estavapresente à chegada da composição mista, tendo-se ausentado. foiigualmente detido e conduzido à cidade.onze meses depois realizava-se o julgamento.yakov ivanich envelhecera muito, estava magro e falava com voz
apagada como um doente. sentia-se débil e miserável, diminuído, eparecia que os remorsos e as visões, que não o tinham abandonadona prisão, o haviam feito envelhecer e emagrecer a sua alma tantocomo o seu corpo. quando se descobriu que se recusava a frequentara igreja, o presidente perguntou-lhe: É cismático?- não sei - respondeu ele.já não tinha fé em nada, e nada sabia nem compreendia. as suasantigas crenças surgiam-lhe agora como repulsivas, insensatas,duvidosas. aglaia não se conformava com a sua sorte e continuavamaldizendo o defunto matvei, a quem tornava responsável por todasas desditas. a serguei nikanorich, que antes usava patilhas,
crescera-lhe a barba; na sala de audiência suava e corava,envergonhando-se da sua farda de prisioneiro e de que o tivessemfeito sentar no mesmo banco que uma classe de gente ordinária.justificava-se torpemente e na sua ânsia de demonstrar que duranteo último ano não estivera na taberna discutia com todas astestemunhas, fazendo rir o público. dashutka engordara durante asua estada na prisão; e não compreendia as perguntas que lhefaziam, limitando-se a dizer que se assustara muito quando mataramo tio matvei, mas depois passou-lhe tudo.foram os quatro culpados de assassinato com fins lucrativos. yakovfoi condenado a vinte anos de trabalhos forçados; aglaia, a treze
anos e seis meses; serguei nikanorich, a dez anos; e dashutka aseis.
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vii
ao cair da tarde um barco estrangeiro ancorou na baía de due, nailha de sacalina, para se abastecer de carvão. pediram ao capitãopara esperar até ao dia seguinte de manhã, mas este não quisaguardar nem uma hora, alegando que, se durante a noite o tempo
piorasse, corria o risco de partir sem carvão. no estreito detartária o tempo pode mudar bruscamente em meia hora, e então as
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costas de sacalina tornam-se perigosas; e já começava a refrescar,sendo a ondulação bastante forte.da colónia penal de voievodskaia, o mais miserável e rigoroso detodos os presídios de sacalina, levaram para as minas um grupo deprisioneiros. havia que carregar o carvão nas barcaças, que eram
depois rebocadas por uma lancha a vapor até ao barco, que seencontrava a mais de meia versta da margem, onde devia principiaro transbordo da carga; era um trabalho árduo quando a barcaçabatia contra o barco; e as pessoas a custo conseguiam manter-se depé por causa da ondulação. os presidiários, a quem tinham feitolevantar dos seus catres, caminhavam sonolentos pela margem,tropeçando na obscuridade e fazendo soar as suas grilhetas. Àesquerda apenas se distinguia o escarpado da margem,extraordinariamente sombrio, e à direita, rodeado por uma densaescuridão, gemia o mar, emitindo um prolongado e monótonoa...a...a...a... só quando o guarda acendia o cachimbo, alumiando
por momentos o soldado da escolta, com a sua espingarda, e os doisou três presidiários mais próximos, de feições grosseiras, ouquando aproximava a lanterna da água, se podiam distinguir ascristas brancas das primeiras ondas.entre os presidiários encontrava-se yakov ivanich, a quem nacolónia penal tinham dado o cognome de "vassoura", por causa dasua comprida barba. já ninguém o chamava pelo seu nome e
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patronímico mas somente pelo diminutivo pejorativo de yashka. não
era bem visto, pois três meses depois de ter chegado, movido porum irreprimível sentimento de nostalgia, sem poder esquecer a suaterra natal, não resistiu à tentação de fugir; mas foi logocapturado, condenado a trabalhos forçados perpétuos e a levarquarenta açoites. os açoites repetiram-se mais duas vezes, sob aacusação de ter vendido a farda de presidiário, embora em ambas asocasiões houvesse na verdade sido roubado. a sua nostalgiaprincipiou no preciso momento em que, quando o comboio depresidiários o levava a odessa, parou de noite em progonaia.yakov, com o rosto colado à janela, procurou descobrir a sua casa,sem ter conseguido o seu propósito em virtude da escuridão.
não havia ninguém com quem pudesse falar da sua terra. sua irmãaglaia fora conduzida ao presídio através da sibéria e yakov nãosabia onde se encontrava. dashutka estava em sajalin, mas foraentregue como concubina a um colono de um lugar muito afastado.não sabia nada dela, ainda que uma vez outro colono que fora pararà colónia penal de voievodskaia contasse a yakov que dashutka játinha três filhos. serguei nikanorich prestava serviço como criadoa um funcionário perto dali, em due, mas não seria fácil verem-se,pois o antigo cantineiro envergonhava-se dos seus conhecimentosentre os presidiários da baixa extracção.o grupo chegou à mina e tomou posição junto ao embarcadouro.
dizia-se que não se poderia efectuar o carregamento porque o tempocontinuava a piorar e o barco estava em risco de zarpar. viam-se
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três luzes. uma delas movia-se: era a lancha a vapor, que seaproximara do barco e regressava, segundo parecia, para comunicarse o trabalho se fazia ou não. tiritando com o frio outonal e ahumidade do mar, embrulhando-se na sua curta e andrajosa pelica,yakov ivanich olhava fixamente, sem pestanejar, na direcção onde
estava situada a sua aldeia. desde que convivia no mesmo presídiocom pessoas vindas de diferentes pontos russos, ucranianos,tártaros, georgianos, chineses, fineses, ciganos, judeus - e desdeque principiara a prestar atenção às suas conversas e observara osseus padecimentos, começara novamente a levantar as suas preces adeus, chegando à conclusão de que encontrara, por fim, averdadeira fé, aquela por que tanto ansiavam e tanto tinhamprocurado, sem a descobrir, todos os seus antepassados, desde aavó avdotia. já sabia tudo e descobrira onde está deus e comohavia que servi-lo. não
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compreendia, porém, a razão por que a sorte das pessoas é tãodiferente, por que motivo esta fé tão simples que deus concediagraciosamente a uns juntamente com a vida, lhe custara a ele opreço de tantos horrores e castigos que, a julgar pela evidência,se prolongariam até ao dia da sua morte. isto fazia-lhe tremer osbraços e as pernas como se estivesse embriagado. olhava fixamenteas trevas, parecendo-lhe ver, através de milhares de verstas deescuridão, a sua terra natal, a sua província, o seu distrito,progonaia. parecia-lhe ver a ignorância, o selvagismo, a
insensibilidade e a torpe e bestial indiferença das pessoas quehavia deixado ali. as lágrimas toldavam-lhe os olhos, mascontinuava olhando ao longe, onde apenas de distinguiam as pálidasluzes do barco, e sentia o coração oprimido e dominado pelanostalgia. sentia desejos de viver, de voltar para casa, de falaraí da sua nova fé, salvar da perdição nem que fosse uma só alma, eviver sem sofrimentos nem que fosse um só dia.a lancha chegou e o guarda anunciou em voz alta que o carregamentonão se fazia.- para trás - ordenou. - sentido!podia ouvir-se a azáfama suscitada no barco pelo levantar da
âncora. começava a soprar um vento forte e áspero. em cima, namargem escarpada, rangiam as árvores. avizinhava-se a tempestade.
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o mendigo
- meu bom senhor, tende a bondade de prestar a vossa atenção a uminfeliz esfomeado. há três dias que não como... nem um tostão parapagar a noite no asilo... juro por deus! fui durante oito anosprofessor rural e perdi o lugar em virtude das intrigas do
zemstvo. fui vítima de uma denúncia... há um ano que estoudesempregado...
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o advogado skvortsov contemplou a face do pedinte, azulada,enrugada, os olhos congestionados de alcoólico, as manchasvermelhas do rosto, e pareceu-lhe já ter visto aquele indivíduo emqualquer outra parte.oferecem-me agora um lugar no estado de kaluga - prosseguiu o
mendigo -, mas não tenho recursos para a viagem. ajude-me, meu bomsenhor; fazei-me essa graça. É vergonhoso andar a pedir, mas... ascircunstâncias a isso me obrigam.skvortsov olhou as botas de borracha do indivíduo, uma de inverno,outra de verão, e lembrou-se subitamente:- oiça! - disse-lhe -, parece-me que o encontrei anteontem emsadovia1, mas você disse-me então que era um estudante expulso dauniversidade e não um professor de aldeia. lembra-se?- não, não,... não é possível - murmurou o pedinte perturbado -,sou um professor da província. se quiser mostro-lhe os papéis.- pare de mentir. fez-se passar por estudante e chegou mesmo a
contar-me a razão por que tinha sido expulso. lembra-se?skvortsov corou e afastou-se do maltrapilho com uma expressão derepugnância.
‘ rua dos jardins (n. do t.).
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- É vil, senhor! - gritou-lhe irritado. É uma burla. vou mandá-lopara a esquadra, diabos o levem! ser pobre, esfomeado, não lhe dáo direito de mentir tão descaradamente, com tão grande
inconsciência.o maltrapilho pôs a mão no fecho da porta e como um ladrãoapanhado em falta olhou o vestíbulo à sua volta.- eu não minto... - gaguejou -,posso mostrar-lhe os meus papéis.- quem acredita nisso? -- prosseguiu skvortsov, indignado. -explorar a simpatia que dedicamos aos professores de aldeia e aosalunos, é tão reles, tão cobarde, tão infame.indignado, skvortsov repreendeu o mendigo sem dó nem piedade. omaltrapilho, com a sua impudente mentira, provocara nele umsentimento de desprezo e indignação. melindrara o que skvortsovtinha em maior apreço: a bondade, a sensibilidade, a comiseração.
com a sua mentira e o seu atentado à caridade, o indivíduo tinhacomo que profanado a esmola que o advogado gostava, por bondade,de dar aos pobres. o indigente começou por se defender, jurou portodos os santos, mas por fim calou-se e, atrapalhado, baixou acabeça.- senhor - disse pousando a mão no coração -, efectivamente...menti... não sou nem estudante, nem professor de aldeia; é umapura invenção da minha parte. pertenci a um coro de cantoresrussos, donde me expulsaram pelo uso excessivo de bebidasalcoólicas. mas que hei-de fazer? que deus me valha, como épossível não mentir? se digo a verdade ninguém me dá nada. quando
se fala verdade, morre-se de fome e gela-se sem asilo. tem razão,concordo; mas... que hei-de fazer?
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- que há-de fazer?... pergunta-me o que há-de fazer? - exclamouskvortsov, aproximando-se do maltrapilho. - trabalhar, eis o quedeve fazer. É preciso trabalhar.- trabalhar... também penso da mesma maneira, mas onde encontrartrabalho?
- desculpas. você é novo, saudável, robusto; arranjará trabalhosempre que quiser. mas é preguiçoso, vicioso, bêbado. bebe vodkacomo quem bebe água. mente como uma mulher, está corrompido até àmedula dos ossos; não presta senão para mendigar e mentir. paraque você, algum dia, se resolvesse a trabalhar, seria necessáriooferecer-lhe um belo escritório, um bom coro russo, um lugar de
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corretor na bolsa, onde não haja nada que fazer senão receberdinheiro. seria capaz de transigir em fazer um trabalho de mão-de-
obra? sem dúvida, não deseja ser porteiro, ou operário numafábrica. É que tem grandes pretensões!- que opinião a sua, meu deus respondeu o mendigo, com um sorrisoamargo. - onde posso arranjar trabalho? sou demasiado velho paraempregado de escritório; porque no comércio é preciso primeiro seraprendiz; não me empregam como guarda-pátios porque, na minhaqualidade de intelectual, não me podem empurrar... e numa fábricatambém não me querem: é preciso ter uma profissão e eu não tenho.- desculpas. encontra sempre um pretexto... quer partir lenha?- não me recuso, mas hoje em dia nem os próprios lenhadores deprofissão conseguem ganhar a sua vida.
- todos os preguiçosos pensam como você. recusam aquilo que lhespropõem. quer partir lenha em minha casa?- Às suas ordens, partirei lenha...- bom, veremos... Óptimo... veremos.skvortsov levantou-se rapidamente e, esfregando as mãos, com umacerta satisfação mesquinha, chamou a cozinheira.-ouve, olga - disse-lhe -.conduz este senhor à serraria parapartir lenha.o pedinte encolheu os ombros com ar perplexo, e seguiu, indeciso,a cozinheira. notava-se pela sua atitude que aceitara partirlenha, não porque tivesse fome e quisesse trabalhar, mas
unicamente por amor-próprio e vergonha, come apanhado de surpresa.era visível que se encontrava muito enfraquecido pela bebida, queestava doente, e não sentia nenhuma propensão para o trabalho.skvortsov apressou-se a ir para a casa de jantar. das janelas quedavam para o pátio podia observar a serraria e tudo quanto lá sepassava. o advogado viu a cozinheira e o maltrapilho saírem pelaporta de serviço e, atravessando a neve suja, encaminharem-se paraa serraria. olga, zangada, fitava o seu companheiro com rancor e,com um gesto de impaciência, abriu a serraria, fazendo bater aporta com violência."provavelmente, impedimos a boa mulher de tomar o seu café -
pensou skvortsov. - que horrível criatura."skvortsov viu o pseudoprofessor e pseudo-estudante sentar-se em
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cima de um cepo, apoiar a face vermelha nas mãos e reflectir. a
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cozinheira lançou o machado aos seus pés, cuspiu com desdém, e, a
avaliar pelo movimento dos beiços, começou a resmungar.o maltrapilho agarrou irresolutamente uma acha, colocou-a entre aspernas e desferiu um golpe, molemente. a acha rebolou e caiu. oindigente agarrou-a de novo, soprou nas mãos entorpecidas erecomeçou a bater na acha, mas com tanta cautela que parecia temeratingir um pé ou cortar os dedos. a acha rebolou outra vez.a irritação de skvortsov já tinha passado. sentia um certo mal-estar e estava envergonhado por ter constrangido um homemdesabituado de trabalhar, alcoolizado e talvez doente, a fazer, aofrio, um trabalho de servente."não faz mal - pensou skvortsov, regressando ao seu escritório -
que trabalhe. faço isto para o seu bem."olga voltou, uma hora depois, para anunciar que a lenha estavapartida.- dá-lhe cinquenta kopeks ~ disse skvortsov.- se ele quiser quevolte para partir lenha no dia um de cada mês... haverá sempretrabalho para ele.no primeiro dia do mês seguinte, o maltrapilho voltou e ganhoumais cinquenta kopeks, ainda que mal se sustentasse em pé. emseguida tornou a aparecer várias vezes no pátio e de todas asvezes lhe arranjavam trabalho; umas vezes juntava a neve em monte,outras arrumava a serraria, outras ainda batia os tapetes e os
colchões. recebia pelo seu trabalho vinte a quarenta kopeks e umavez chegaram mesmo a dar-lhe um par de calças velhas. comoskvortsov decidisse mudar de casa, contratou-o para ajudar amudança. desta vez o mendigo não estava alcoolizado, mas sóbrio esilencioso. mal tocava nos móveis, caminhava diante dos carros,cabeça baixa, não procurando sequer parecer atarefado. encolhia-secom frio, embaraçado, quando os homens dos transportes troçavam dasua inacção, da sua fraqueza e do seu sobretudo coçado de burguês.depois da mudança skvortsov mandou-o chamar.- vejo que as minhas palavras surtiram efeito - disse, dando-lheum rublo -, aqui tem pelo seu trabalho. verifico que não bebeu e
que deseja trabalhar. como se chama?- luchkov.- posso agora, luchkov, arranjar-lhe um trabalho melhor. É capazde fazer escrita?- sou.
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- dirija-se amanhã de manhã com esta carta ao escritório de umcolega meu, que lhe dará cópias... trabalhe, não beba; não esqueçao que lhe disse. adeus.
skvortsov, contente por ter ajudado um homem a encontrar o seucaminho, bateu amigavelmente no ombro de luchkov e estendeu-lhe
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mesmo a mão quando se despediu. luchkov pegou na carta, partiu enunca mais voltou a trabalhar no pátio.passaram dois anos. um dia, quando skvortsov comprava um lugar nabilheteira de um teatro, viu junto de si um homem pequeno, com umagola de astracã no seu sobretudo e um gorro de lontra usado. o
homem pediu um bilhete para as galerias e pagou em moedas decobre.- É você, luchkov? - perguntou skvortsov reconhecendo o seu antigorachador de lenha. - então? que é feito de si? corre tudo bem?- menos mal. trabalho agora no escritório de um notário; ganhotrinta e cinco rublos, senhor.- deus seja louvado, ainda bem. alegro-me por si. estou muito,muito contente, luchkov. você é para mim como um afilhado. fui euque o empurrei para o bom caminho. lembra-se como o repreendi,hem? você quase se meteu pelo chão abaixo! bom, meu caro, obrigadopor não ter esquecido as minhas palavras.
- obrigado igualmente a si - disse luchkov. - se não tivesse ido asua casa, ainda agora me intitularia professor ou estudante...sim, foi em sua casa que me salvei, que fui tirado para fora doprecipício...estou muito, muito contente.- obrigado pelas suas boas palavras e pelas suas decisões. deu-memuito bons conselhos. estou-lhe muito reconhecido, assim como àsua cozinheira. que deus proteja essa boa e nobre mulher. o senhordisse-me, na altura, exactamente o que era preciso. ficar-lhe-eidecerto reconhecido até ao fim dos meus dias; mas para dizer averdade foi a sua cozinheira quem me salvou.
- como assim?- eis o que se passou. quando vinha a sua casa partir lenha, olgacomeçava: "ah!, maldito borracho, a morte não quer nada contigo."e sentava-se diante de mim, entristecia-se, olhava-me ecompadecia-se: "desgraçado de ti. não conheces a felicidade nestemundo nem no outro, pobre bêbedo, serás pasto das chamas do
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inferno. infeliz de ti", e assim por diante. quanto se preocupoucomigo, quantas lágrimas chorou por minha causa, não lhe saberei
dizer. mas o principal é que partia a lenha em meu lugar. nãoparti uma única acha em sua casa; era olga quem o fazia. por querazão me salvou, por que motivo me modifiquei, enquanto acontemplava, e deixei de beber? não sei explicar-lhe... sei apenasque, graças às suas palavras e aos seus nobres actos se operou nomeu íntimo uma transformação. corrigiu-me e nunca o esquecerei.mas é altura de entrarmos, oiço a campainhaluchkov cumprimentou e dirigiu-se para as galerias.
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sem tÍtulo
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no século v, como ainda hoje, o sol nascia todas as manhãs epunha-se todas as noites. de madrugada, quando os primeiros raiosde sol trocavam beijos com a aurora, a terra despertava, o arenchia-se de sons de alegria, de êxtase e de esperança; e quandocaía a noite a terra sossegava e mergulhava no melancólico
crepúsculo. todos os dias e todas as noites se assemelhavam.de vez em quando aparecia uma nuvem e ouvia-se soar o trovão, ouuma estrela distraída caía do céu. ou então aparecia um fradepálido, a segredar aos outros irmãos que acabara de ver um tigreperto do convento. e era tudo. depois, os dias e as noitesvoltavam a ser iguais.os monges trabalhavam e rezavam. o superior tocava órgão, compunhamúsica e escrevia versos em latim. esse admirável velho possuía umdom extraordinário: tocava órgão com tamanha arte que mesmo osvelhos frades, cujo ouvido com o decorrer da vida se tornara maisapurado, não podiam conter as lágrimas, quando lhe chegavam os
sons do instrumento, vindos da sua cela.fosse qual fosse o assunto de que falasse, mesmo coisas muitobanais - as árvores, os animais, o mar -, não era possível ouvi-losem sorrir ou chorar, e mais parecia que na sua alma vibravamcordas semelhantes às do órgão.quando se zangava, ou se se entregava a uma grande alegria, oufalava de qualquer coisa terrível e grandiosa, era dominado por umsentimento de paixão. lágrimas brotavam-lhe dos olhos brilhantes.corava. a sua voz ecoava; e ao ouvi-lo os monges sentiam ainspiração invadir as suas almas. em momentos tão belos emaravilhosos, o seu poder não tinha limites. se desse ordem aos
seus
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frades para se lançarem ao mar, todos, até ao último, se teriamprecipitado com prazer a fim de executarem a sua vontade.a sua música, as entoações, os versos de louvor a deus, ao céu e àterra, eram para os seus irmãos em cristo uma fonte incessante dejúbilo. acontecia que em razão da uniformidade das suas vidas, asárvores, as flores, o verão, o outono, os exasperavam. o barulhodo mar fatigava-lhes os ouvidos, o canto dos pássaros tornava-se-
lhes desagradável; mas os talentos do seu superior eram para elestão indispensáveis como o pão de cada dia.decorreram dezenas de anos. os dias e as noites eram semelhantes.À excepção dos pássaros e dos animais selvagens, nenhum ser vivose aproximava do convento. a casa mais próxima ficava longe e,para a alcançar, era necessário transpor a pé, em pleno deserto,uma centena de verstas. apenas se decidiam a transpor esse espaçoas pessoas que tinham desprezo pela vida, fugiam dela, e seacolhiam ao convento como num túmulo.foi imenso o espanto dos monges quando, uma noite, lhes bateu àporta um habitante da cidade, simples pecador que amava a vida.
esse homem, antes de pedir a bênção do superior e rezar, ordenouque lhe servissem vinho e comida. quando lhe perguntaram como
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viera da cidade até ao deserto, narrou uma longa história de caça.partira para a caça, depois de ter estado a beber, perdendo-sepelo caminho. quando lhe propuseram que entrasse para o convento afim de salvar a sua alma, respondeu sorrindo:- não sou o vosso homem.
depois de ter comido e bebido, olhou atentamente os monges que oserviam, abanou a cabeça com ar reprovador, e disse:- vocês levam uma vida ociosa, monges. não sabem senão comer ebeber. É assim que se trabalha para a salvação? pensem queenquanto estão aqui a repousar, comendo, bebendo e sonhando com abeatificação, o vosso semelhante perde-se e vai para o inferno.vejam o que se passa na cidade! enquanto uns morrem de fome,outros não sabem que fazer ao seu ouro, e afundam-se nalibertinagem como moscas no mel. não existe entre os homens nem fénem verdade. a quem pertence a obrigação de os salvar e lhespregar? É a mim, que bebo de manhã à noite? vós recebestes uma
alma dócil, um coração cheio de amor e a fé, para ficarem entre'quatro paredes sem fazerem nada?...
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apesar de insolentes e inconvenientes, as palavras do cidadãobêbado agiram de estranha maneira no superior do convento. oancião olhando os seus monges empalideceu e disse:- irmãos, mas ele tem razão. os pobres mortais perdem-se,efectivamente, no vício e impiedade, no disparate e na1 fraqueza,enquanto nós continuamos impassíveis como se isso não nos dissesse
respeito. porque não hei-de ir eu à cidade para lhes fazer lembraro cristo que eles esqueceram?as palavras do homem da cidade haviam seduzido o velho monge. logono dia seguinte agarrou no seu bastão e partiu para a cidade. osfrades ficaram privados de música, de sermões e de poesia.um mês, dois meses, pareceu-lhes longo o tempo, sem que o anciãovoltasse. finalmente, no princípio do terceiro mês, ouviu-se oruído familiar da sua bengala. os monges correram ao seu encontroe sufocavam-no com perguntas. mas, ao vê-los, em vez de seregozijar, o abade principiou a chorar amargamente, sem dizer umapalavra.
os monges notaram que ele emagrecera e envelhecera muito. o seurosto cansado exprimia profunda aflição e, quando principiou achorar, tinha o ar de um homem que fora insultado.os frades começaram também a chorar e trataram-no com solicitude.porque chorava e tinha uma cara tão lúgubre?mas, sem responder, o superior fechou-se na sua cela. ali ficousete dias sem beber nem comer; nem tocar órgão; apenas chorava.quando lhe batiam à porta e os frades lhe pediam que saísse e lhescontasse o seu desgosto, guardava profundo silêncio.por fim, saiu. agrupando todos os seus frades à sua volta, a facevermelha de chorar, com uma expressão de dor e desalento,
principiou a contar o que lhe sucedera durante esses três meses.a sua voz estava calma e o olhar sorridente, quando descreveu a
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viagem do convento à cidade. pelo caminho, os pássaros ofereciam-lhe os seus cânticos, os ribeiros corriam, e doces e jovensesperanças enchiam a sua alma. caminhava, sentindo-se um soldadoque vai para o combate, já seguro da vitória. caminhava sonhando ecompondo versos e hinos, sem se aperceber de como tinha chegado.
mas quando principiou a falar da cidade e dos seus habitantes, avoz tremeu-lhe, os olhos brilharam, e a cólera apoderou-se dele.nunca vira, nem ousara imaginar, o que encontrou quando chegou àcidade. foi só no declínio da vida que descobriu e compreendeuquanto é poderoso o demónio, quanto é belo o mal, e
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quão fracos, pusilânimes e nulos são os homens. a primeira casa emque entrou foi, por azar, uma casa de deboche. uma meia centena depessoas, com muito dinheiro, comiam e bebiam sem medida. bêbedos,
cantavam e proferiam provocantemente palavras horríveis,repugnantes, que não ousaria pronunciar um homem temente a deus.profundamente independentes, fortes e felizes, não temiam deus,nem o diabo, nem a morte. diziam e faziam tudo o que lhesapetecia. iam até onde a luxúria os levava. o vinho que bebiam,transparente como o âmbar, semeado de centelhas de ouro, era semdúvida extremamente doce e perfumado, porque ao bebê-lo todossorriam de beatitude, querendo beber mais. ao sorriso do homem, ovinho respondia com um sorriso, e quando o bebiam cintilava comalegria como se soubesse o encanto diabólico que emanava da suadoçura.
o ancião, cada vez mais excitado e chorando de cólera, continuavaa descrever o que vira. em cima da mesa, entre os convivas, estavauma pecadora seminua. É difícil imaginar e encontrar na naturezanada mais belo e cativante. essa jovem devassa, de cabeloscompridos, morena, olhos negros, lábios carnudos, impudente,cínica, mostrava os dentes, brancos como a neve, e sorriaparecendo dizer: "vejam como sou descarada e bela." a seda e obrocado caíam em sedosas pregas dos seus ombros, mas a sua belezanão desejava esconder-se sob as vestes; como a erva nova brotandodo solo primaveril, essa beleza emergia avidamente através dosrefegos. a impudente mulher bebia vinho, cantava e oferecia-se a
quem a desejava.em seguida, o velho monge, agitando colericamente os braços,descreveu corridas de circo, combates de touros, teatros, ateliersde artistas onde se pintam ou modelam em gesso mulheres nuas.falava com eloquência, descrevendo ao vivo, como se tocasse músicaem cordas invisíveis; e os frades petrificados escutavam-noavidamente, sufocados de êxtase. depois de ter descrito todos osatractivos do diabo, a beleza do mal e a graça compassiva do corpofeminino, o ancião amaldiçoou o demónio, e partiu desaparecendoatrás da porta...no dia seguinte, quando saiu da sua cela, não havia um único monge
no convento. tinham fugido todos para a cidade.
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o adulador
com o seu capote novo e um embrulho na mão, ochumelov, o inspector
da polícia, atravessa a praça do mercado. atrás dele, caminha umguarda ruivo, com uma peneira cheia de groselhas apreendidas. emredor, reina o silêncio... na praça não há nem uma alma... asportas abertas das lojas e tabernas olham o mundo,melancolicamente, como fauces famintas; nas imediações nem sequerhá mendigos.a quem estás tu a morder, maldito? - ouve, de repente, ochumelov.- não o deixem sair, rapazes! É proibido morder! agarra-o! ah!...ah!ouve-se ganir um cão. ochumelov olha em volta e vê que do armazémde lenha de pichugin, saltando sobre três patas e olhando para um
lado e para outro, sai, correndo, um cachorro. em sua perseguiçãovem um homem com camisa de percal engomada e colete desapertado.corre atrás do cão com o corpo inclinado para a frente, cai eagarra o animal pelas patas traseiras. ouve-se outro ganido e umnovo grito: "não o deixes fugir!" caras sonolentas apareceram àsportas das lojas e, de repente, nas imediações do armazém delenha, como se tivesse brotado do solo, junta-se gente. houve umadesordem, senhor!... - diz o guarda.ochumelov dá meia volta à esquerda e dirige-se para o grupo. mesmoà porta do armazém vê o homem que atrás descrevemos, com o coletedesapertado, o qual, de pé, levanta a mão direita e mostra um dedo
ensanguentado. na sua expressão de alcoólico parece ler-se: "voutirar-te a pele, malandro!"; ergue o dedo como uma bandeiravitoriosa. ochumelov reconhece o ourives kriukin. no centro dogrupo, com as patas dianteiras estendidas e tremendo, sentado no
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solo, está o culpado do escândalo, um galgo branco, aindacachorro, de focinho afilado e uma mancha amarela no lombo. osolhos lacrimosos têm uma expressão de angústia e pavor.- que aconteceu? - pergunta ochumelov, abrindo caminho entre a
gente. - que é isto? que fazes aí com esse dedo?... quem gritou?- eu não me meti com ninguém, meu senhor... - começa kriukin, epigarreia tapando a boca com a mão. - vinha falar com mitrimitrich e este maldito cão, sem mais nem menos, mordeu-me odedo... perdoe-me, sou um homem que ganha a vida com o seutrabalho... É um labor muito delicado. alguém tem que me pagar,porque posso estar uma semana sem poder mexer o dedo... não hánenhuma lei que nos obrigue, meu senhor, a sofrer por culpa dosanimais... se todos começam a morder será melhor morrermos...-hum!... está bem... - diz ochumelov, pigarreando e arqueando osobrolho. - está bem... de quem é o cão? isto não fica assim. vou
ensiná-los a deixar os cães à solta! já é tempo de tratar comesses senhores que não desejam cumprir o que está estabelecido.
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quando fizerem pagar uma multa a esse miserável, ficará a saberquanto custa deixar andar pela rua cães e outros animais. vai-selembrar de mim!... eldirin - prossegue o inspector, voltando-separa o guarda -, informa-te de quem é o cão e levanta o respectivoauto. e o cão tem que ser morto. sem perder um instante! decerto
está com raiva... quem é o dono?- creio que é o general zhigalov - alvitrou alguém.- o general zhigalov? hum!... eldirin, ajuda-me a tirar ocapote... está um calor terrível! com certeza anuncia chuva... mashá uma coisa que não compreendo: como pôde o cão morder-te? -continua ochumelov, dirigindo-se a kriukin. - não podia chegar-teao dedo. É um cão pequeno e tu, tão grande! com certeza espetasteaí um prego e depois ocorreu-te a ideia de dizer esta mentira.porque tu... já nos conhecemos! conheço-os a todos, que diabo!- o que ele fez, meu senhor, foi chegar-lhe o cigarro ao focinho,de brincadeira, e o cão, que não é parvo, deu-lhe uma dentada...
está sempre a fazer destas, meu senhor.- mentes, malandro! para que mentes, se não viste nada? suasenhoria é um homem inteligente e percebe quem mente e quem diz averdade... e se estou a mentir, o juiz de paz o dirá. É ele quemdita
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a lei... aqui somos todos iguais... um irmão meu é polícia... sequeres saber.basta de comentários!
não, não pertence ao general... - observa pensativo o guarda. - ogeneral não tem cães como este. os dele são cães de exposição...tens a certeza?sim, meu senhor...também me parece. os cães do general são caros, de raça, enquantoeste, sabe-se lá o que é! não tem pêlo nem categoria... é um nojo.para que teria o general um cão destes? aonde tens a cabeça? seeste cão aparecesse em petersburgo ou em moscovo, sabem o queacontecia? não estavam com meias medidas e no mesmo instante, zás!tu, kriukin, foste prejudicado; não descures o assunto... já étempo de lhes dares uma lição!
- em todo o caso podia ser do general... - pensa o guarda em vozalta. - não traz nada escrito ao pescoço... no outro dia vi lá nopátio um cão como este.É do general, com certeza! - disse uma voz.- hum!... ajuda-me a pôr o capote, eldirin... parece querefrescou... sinto arrepios... leva-o ao general e pergunta. dizque o encontrei e que lho mando... e recomenda que não o deixemsair para a rua... pode ser um cão de valor e um burro qualquerchega-lhe o cigarro ao nariz e não tardarão a dar cabo dele. o cãoé um animal delicado... e tu, imbecil, põe a mão para baixo. jábasta de mostrar o teu estúpido dedo! tu é que tens a culpa!...
- aí vem o cozinheiro do general; vamos perguntar-lhe... eh,prokor! aproxima-te, amigo! olha para este cão... É vosso?
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- que ideia! nunca houve cães como este na nossa casa!- basta de perguntas! - disse ochumelov. - É um cão vagabundo. nãohá razão para perder tempo em conversas... se eu disse que era umcão vagabundo é um cão vagabundo... temos que o matar e acabou-se.- não é nosso - continua prokor. - É do irmão do general, que
chegou há dias. o meu amo não gosta de galgos:seu irmão...- chegou o irmão? vladimir ivanich? - pergunta ochumelov, e todo orosto se ilumina com um sorriso de ternura. - valha-me deus! nãosabia. veio de visita?-sim...
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- ora... tinha saudades do irmão... e eu não sabia nada. então ocão é dele? folgo muito... leva-o... É um bom cão... muito vivo...mordeu o dedo a este! bem, bem, bem,... É, lá, porque tremes?
rrr... rrr... amuou, o velhaco. ora o cãozito...prokor chama o animal e afasta-se do armazém de lenha... o povori-se de kriukin.- voltaremos a ver-nos! - ameaçou-o ochumelov e, envolvendo-se nocapote, segue o seu caminho pela praça principal do mercado.
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a boticÁria
a pequena cidade de b., composta de duas ou três ruas tortuosas,
dorme, de um sono profundo. na atmosfera estática, reina osilêncio. apenas se ouve ao longe, já nos arredores, o débil erouco ladrar de um cão. em breve amanhecerá.há muito que tudo está mergulhado no sono. a única que não dorme éa jovem esposa de chernomordik, o boticário. deitou-se por trêsvezes, mas, sem saber porquê, não consegue dormir. está sentadadiante de uma janela aberta, em camisa de noite e olha a rua.sente calor e tédio, domina-a uma irritação tal que está prestes aromper em soluços, sem saber dizer porquê. sente um nó no peitoque lhe sobe até à garganta... atrás, a alguns passos daboticária, de cara virada para a parede, chernomordik ressona
calmamente. uma pulga, ávida de sangue, picou-o no sobrolho, masele não sente e, inclusivamente, sorri, visto estar a sonhar quena cidade toda a gente tosse e se precipita para comprar gotas dorei-da-dinamarca. neste momento não o despertariam nemalfinetadas, nem tiros de canhão, nem caricias.a farmácia está situada quase nos subúrbios da cidade, assim, aboticária tem diante de si o campo... pouco a pouco, para leste,vê clarear a linha do horizonte, tornar-se lentamente vermelha,tal como se houvesse um grande incêndio. inesperadamente, pordetrás de uns arbustos longínquos, aparece uma lua grande, muitoredonda. está vermelha (em geral, quando a lua sai detrás de uns
matagais, não sabemos porquê, parece terrivelmente perturbada).de repente, no silêncio da noite, ressoa um ruído de passos e de
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esporas. ouvem-se vozes."são oficiais que estavam em casa do comissário da polícia evoltam para o acampamento", pensa a boticária.
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pouco depois aparecem duas silhuetas de dólmanes brancos: uma éalta e gorda, a outra um pouco mais baixa e delgada... caminhamvagarosamente ao longo da vedação, e conversam em voz alta. aochegarem junto da farmácia abrandam ainda mais o passo e olhampara as janelas.- cheira a farmácia... - diz o magro. - efectivamente, é isso!agora me lembro... a semana passada estive aqui a comprar óleo derícino. o boticário é um homem bilioso e com mandíbula de asno.que queixada, meu amigo! igual à que sansão usou contra osfilisteus.
- sim... - continua o gordo em voz de baixo profundo. - dorme afarmacopeia! também dorme a boticária. É muito bonita, sabe,obtesov?- vi-a nessa altura. agradou-me muito... diga-me, doutor: será elacapaz de amar esse homem com queixada de burro?- não creio - suspira o doutor, como se tivesse pena do boticário.- ela deve estar a dormir. pode imaginá-la, obtesov? extenuadapelo calor... com a boquita entreaberta... e uma perna fora daroupa. o estúpido do boticário, com certeza não sabe o que tem emcasa. para ele, esta mulher é igual a uma botija de ácido fénico.- sabe, doutor? entremos para comprar qualquer coisa.
- que ideia! em plena noite!- que tem de extraordinário? são obrigados a atender a qualquerhora. vamos, meu caro.- se tem tanto empenho...a boticária, oculta pelas cortinas, escuta a campainhada afónica.olha para o marido, que continua a ressonar com a mesma placidez esorri. veste uma bata, enfia umas sapatilhas e sai para afarmácia.através do vidro da porta, distinguem-se duas sombras... aboticária sobe a mecha do candeeiro de petróleo para aumentar aluz e acerca-se para abrir. já não sente tédio nem irritação; não
tem vontade de chorar, embora, isso sim, o coração lhe bataaceleradamente. entram o gordo doutor e o esguio obtesov. agora épossível observá-los. o doutor, ventre proeminente, moreno, usabarba, e os seus movimentos são lentos. parece a cada momento queo dólman vai rebentar e o seu rosto brilha de suor. o outro érosado, imberbe, de feições femininas e flexível como uma chibatainglesa.
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- que desejam? - pergunta a boticária, com a mão no peito para
segurar a bata.- dê-me... quinze kopeks de pastilhas de mentol.
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sem pressa, a boticária tira da prateleira um boião e dispõe-se apesar. os militares, sem pestanejar, olham as suas costas. odoutor franze as pálpebras, como um gato com a barriga cheia, e otenente está muito sério.- É a primeira vez que vejo uma senhora a aviar numa farmácia -
observa o doutor.- não tem nada de especial... - replica a boticária, olhando com orabinho do olho o rosto rosado de obtesov. - o meu marido não temempregado e eu ajudo-o.- claro... É muito agradável a sua farmácia! quantos boiões efrascos! e não tem medo de andar entre venenos! brr!a boticária faz um embrulhinho e entrega-o ao doutor. obtesov dá-lhe quinze kopeks. decorrem uns instantes de silêncio... os homensolham-se, dão um passo para a porta, voltam a olhar-se.dê-me dez kopeks de bicarbonato - diz o doutor. com preguiça elentidão, como antes, a boticária vira-se para as estantes.
tem alguma coisa... - balbucia obtesov, movendo os dedos -,qualquer coisa de alegórico, um líquido tonificante, água deseltz? tem água de seltz?- tenho.- bravo! a senhora não é uma mulher, mas uma fada! dé-nos trêsgarrafas.a boticária embrulha rapidamente o bicarbonato e desaparece napenumbra do armazém.- É um encanto! - diz o doutor, piscando o olho. - uma fruta tãoapetitosa, obtesov, você não encontraria nem na ilha da madeira.não lhe parece? mas, ouve esses roncos? o senhor boticário
descansa.ao cabo de um minuto a boticária volta e coloca sobre o balcãocinco garrafas. esteve na cave e por isso vem um pouco afogueada.- chiu... não faça barulho - diz obtesov quando ela, depois deabrir as garrafas, deixa cair o saca-rolhas. - vai acordar o seumarido.- e que importa?tem um sono tão doce... está a sonhar consigo... à sua saúde!
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- e depois - acrescenta o doutor, arrotando com a água de seltz -,os maridos são uma coisa tão aborrecida que deviam dormir a todasas horas. se pudesse dar-nos um pouco de vinho tinto...- que coisas diz! - ri-se a boticária.- seria magnífico! pena que nas farmácias não vendam bebidasalcoólicas. aliás,... os senhores devem vender vinho como remédio.tem vinum gallicum rubrum ?- sim.- perfeito. venha! traga-o, que diabo!- quanto quer?- quantum satis!... primeiro dé-nos uma onça, em água, a cada um
de nós; depois veremos... não lhe parece, obtesov? primeiro comágua e depois per se...
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o doutor e obtesov instalam-se junto ao balcão, tiram os gorros etomam uns goles de vinho.- temos que reconhecer que é detestável. vinum plochissimum 1.embora na sua presença... pareça néctar. a senhora é encantadora.mentalmente, beijo-lhe a mão.
- pois eu daria muito mentalmente - acrescentou obtesov. vida!- deixemos isso... - diz ruborizando-se e pondo-se séria.- É tão coquete! - ri o doutor suavemente, olhando-a de soslaiocom uma expressão brejeira. - os seus olhos disparam como umaespingarda. pif, paf! felicito-a: venceu! fomos derrotados!a boticária olha os seus rostos corados, escuta a sua conversa enão tarda a animar-se. É tão divertido! intervém na conversa, ri-se e, depois de muito instada, bebe um par de onças de vinho.- os senhores oficiais deviam frequentar mais a cidade - declarou-, porque morremos de aborrecimento. eu, morro.- com certeza que sim! - horroriza-se o doutor. - uma mulher que é
um portento num lugar tão perdido... mas devemos retirar-nos.folgo muito tê-la conhecido. quanto lhe devemos?a boticária fixa os olhos no tecto e durante um bocado move osbeiços.para palavrao defazer não honra. daria aa senhora de chernomordik,
‘ forma latinizada do vocábulo russo ploko, mau (n. do t.).
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- doze rublos e quarenta kopeks - diz.obtesov tira da algibeira uma grande carteira, e paga. - seumarido dorme tranquilamente... tem sonhos agradáveis... - balbuciaapertando a mão da boticária.- não me agrada ouvir patetices...- terei, por acaso, dito uma patetice? pelo contrário... atéshakespeare disse: "bem-aventurado o que foi jovem na suajuventude."- largue-me a mão!
finalmente, os militares, depois de longa despedida, beijam a mãoda boticária e, indecisos, como reflectindo se haveriam esquecidoalguma coisa, saem da farmácia.ela corre para o quarto de dormir e senta-se junto da janela ondeestivera antes. observa o doutor e o tenente, que, ao saírem dafarmácia, se afastam vagarosamente uns vinte passos, se detém ecomeçam a falar em voz baixa. de quê? o coração da boticária batecom violência; também sente que lhe latejam as fontes, embora nãosoubesse dizer a causa... o coração bate como se aqueles homensque pararam a sussurrar fossem decidir a sua sorte.passados cinco minutos o doutor afasta-se definitivamente e
obtesov volta. passa junto da farmácia uma vez, outra... detém-seao pé da porta, caminha novamente... por fim, toca suavemente a
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campainha.- que se passa? quem é? - a boticária ouve a voz do marido. -estão a bater e não ouves nada! - acrescenta enfadado o boticário.- É um escândalo!levanta-se, veste o roupão e cambaleando, meio adormecido,
arrastando os chinelos, vai à farmácia. que deseja? - pergunta aobtesov.- dê-me... dé-me quinze kopeks de pastilhas de mentol.ofegante, bocejando, tropeçando a cada passo, batendo com os
joelhos contra o balcão, o boticário procura o boião...dois minutos depois a boticária observa obtesov, que, uns passosadiante da farmácia, atira as pastilhas de mentol para o pó docaminho. da esquina, sai o doutor e vai ao seu encontro... juntam-se e, gesticulando muito, desaparecem na neblina da manhã.- que infeliz eu sou! - diz a boticária, olhando enraivecida omarido, que despe rapidamente o roupão para voltar para a
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cama. - que desgraçada! - repete e, de repente, desata num prantoamargo. - e ninguém, ninguém sabe...- esqueci-me dos quinze kopeks no balcão - grunhe o boticário,tapando-se com o lençol. - faz o favor de mós guardar na caixa.e adormece no mesmo instante.
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uma curista
certa ocasião, quando era mais jovem e formosa e tinha melhor voz,encontrava-se no rés-do-chão da sua casa de campo com nikolaipetrovich kolpakov, seu amante. fazia um calor insuportável, nãose podia respirar. kolpakov acabara de comer, tinha bebido umagarrafa de mau vinho do reno e sentia-se de péssimo humor edesorientado. estavam aborrecidos e esperavam que o calorabrandasse para saírem a dar um passeio.de súbito, inesperadamente, bateram à porta. kolpakov, que estavasem casaco e de chinelos, pôs-se de pé e olhou interrogativamente
para pasha.- talvez seja o carteiro, ou uma amiga - disse a cantora.a kolpakov não lhe importava nada ser visto pelo carteiro ou pelasamigas de pasha, mas, na dúvida, apanhou a roupa e retirou-se parao quarto ao lado. pasha foi abrir. com grande assombro seu, nãoera o carteiro nem uma amiga, mas uma mulher desconhecida, jovem,formosa, bem vestida e que, a julgar pelas aparências, pertencia àclasse das mulheres decentes.- que deseja? - perguntou pasha.a senhora não respondeu. deu um passo em frente, olhou em volta esentou-se como se se sentisse cansada ou indisposta. depois,
durante um longo momento, moveu os beiços descorados, procurandomurmurar qualquer coisa.
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- está aqui meu marido? - perguntou por fim, levantando para pashaos seus grandes olhos, de pálpebras avermelhadas pelo choro.- que marido? - murmurou pasha, sentindo que lhe arrefeciam pés emãos, com o susto. - que marido? - repetiu, começando a tremer.
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- meu marido... nikolai petrovich kolpakov.- não... não, senhora... eu... não sei de quem está a falar. houveuns instantes de silêncio. a desconhecida passou váriasvezes o lenço pelos beiços pálidos e, para vencer o medo interior,conteve a respiração. pasha, diante dela, imóvel, como quepetrificada, olhava-a assustada e perplexa.- diz que não está aqui? perguntou a senhora, já com voz firme eum sorriso estranho.- eu... não sei por quem pergunta.
- você é miserável, é infame... - balbuciou a desconhecida,olhando pasha com ódio e repugnância. - sim, sim... miserável.estou feliz, felicíssima por, finalmente, poder dizer-lho.pasha compreendeu que produzia uma péssima impressão naquelasenhora vestida de negro, olhos coléricos e dedos brancos eesguios, e teve vergonha das suas faces redondas e coradas, do seunariz picado das bexigas e da franja sempre despenteada. afigurou-se-lhe que se fosse magra, sem pintura e sem franja poderiaocultar que não era uma mulher decente; assim não lhe teria feitotanto medo e vergonha encontrar-se diante daquela senhoradesconhecida e misteriosa.
- onde está o meu marido? - continuou a senhora. - embora sejaindiferente que ele esteja aqui ou não. para mais devo dizer-lheque se descobriu um desfalque e procuram nikolai petrovich...querem prendê-lo. É para que veja o que fez!a senhora, presa de grande agitação, deu uns passos. pasha olhava-a perplexa: o medo não a deixava compreender.- hoje mesmo o hão-de encontrar e levá-lo-ão para a cadeia -continuou a senhora, que deixou escapar um soluço em que semisturavam a afeição traída e o despeito. - sei quem o arrastoupara esta espantosa situação. miserável, infame: você é umacriatura repugnante que se vende ao primeiro que aparece! - os
beiços da senhora contraíram-se num trejeito de desprezo e enrugouo nariz com asco. - vejo-me impotente... sabia-o miserável...vejo-me impotente; você é mais forte do que eu, mas deus, que tudovê, tomará a minha defesa e a de meus filhos. deus é justo! pedir-lhe-á contas de cada uma das minhas lágrimas, de todas as minhasnoites em claro. então lembrar-se-á de mim!novamente se fez silêncio. a senhora andava pelo quarto, de umlado para outro, torcendo as mãos. pasha seguia-a com o olhar,
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perplexa, sem compreender e na expectativa de que ela fizessequalquer coisa extraordinária.
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- eu, senhora, não sei nada - articulou e, de repente, começou achorar.-- mente! - gritou a senhora, olhando-a encolerizada. - sei tudo.há muito que a conheço. sei que este último mês o meu marido veiovê-la todos os dias.
- sim. e depois? que tem isso? vêm muitos, mas eu não forçoninguém. cada um é livre de fazer o que lhe apetece.- e eu digo-lhe que se descobriu um desfalque! ele levou dinheirodo escritório. cometeu um delito por causa de uma mulher comovocê. ouça-me - acrescentou a senhora em tom enérgico, detendo-sejunto de pasha. - você não tem princípios a guiá-la. vive parafazer o mal, esse é o seu único objectivo, mas não posso pensarque tenha caído tão baixo que não conserve vestígios desentimentos humanos. ele tem mulher e filhos... se o condenam e édesterrado, os meus filhos e eu morreremos de fome... compreenda.há, no entanto, um modo de nos salvarmos, nós e ele, da miséria e
da vergonha. se hoje entregar os novecentos rublos deixá-lo-ãotranquilo. são somente novecentos rublos!- a que novecentos rublos se refere? - perguntou pasha em vozbaixa. - eu... eu não sei nada... nem sequer os vi...- não estou a pedir-lhe os novecentos rublos... você não temdinheiro e eu não quero nada seu. peço outra coisa... os homenscostumam presentear com jóias as mulheres como você. devolva-me asque lhe foram dadas por meu marido!senhora, ele nunca me deu nada. - pasha, que começava acompreender, elevou a voz.- onde está então o dinheiro? gastou o dele, o meu e o alheio.
onde meteu tudo isso? ouça-me, suplico-lhe. há pouco estavairritada e disse-lhe muitas inconveniências, mas peço-lhe que meperdoe. deve odiar-me, bem sei, mas, se é capaz de sentir algumacompaixão, ponha-se na minha situação. suplico-lhe que me devolvaas jóias.- hum... - começou pasha encolhendo os ombros -, dava, com muitogosto, mas, deus me castigue se minto, o seu marido nunca me deunenhum presente, pode crer. embora tenha razão - disse a cantora,perturbando-se -: em certa altura trouxe-me duas coisas. sequiser, dou-lhas...
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pasha abriu uma gaveta do toucador e tirou uma pulseira oca, deoiro,e um anel de pouco valor, com um rubi.- aqui tem - disse, entregando-os à senhora. esta fez-se corada eestremeceu; sentia-se ofendida.- que é isso que me dá? - perguntou. - não lhe estou a pediresmola, mas o que me pertence... aquilo que você, valendo-se dasua situação, tirou a meu marido... a esse desgraçado sem força devontade... na quinta-feira, quando a vi na doca, com ele, vocêostentava uns broches e pulseiras de grande valor. portanto não
finja; não é um cordeirinho inocente. É a última vez que lhe peço:dá-me as jóias ou não?
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- a senhora é muito esquisita... - disse pasha, que começava aaborrecer-se. - asseguro-lhe que o seu nikolai petrovich não medeu senão esta pulseira e este anel. a única coisa que me traziaeram pastéis.- pastéis... - sorriu ironicamente a desconhecida, - em casa os
filhos não tinham de comer e, para aqui, trazia pastéis.decididamente, nega-se a devolver-me as jóias?não recebendo resposta, a senhora sentou-se pensativa, com o olharperdido no espaço."que posso fazer? - pensou. - se não consigo os novecentos rublos,é um homem perdido e os meus filhos e eu ficaremos na miséria. quefazer? matar esta miserável ou cair de joelhos a seus pés? "a senhora levou o lenço ao rosto e enxugou as lágrimas.- rogo-lhe - dizia, através dos soluços -, você arruinou e perdeumeu marido, salve-o... não se compadece dele, mas os filhos... osfilhos... que culpa têm eles?
pasha começou a imaginar uns meninos pequenos, pelas ruas,chorando de fome. ela própria rompeu a chorar.- que posso fazer, senhora? - disse. ~ diz que sou uma miserável eque arruinei nikolai petrovich. perante deus lhe asseguro que nãorecebi nada dele... no nosso coro, motia é a única que tem umamante rico; as restantes vivem como podem. nikolai petrovich é umhomem culto e delicado e eu recebia-o. nós não podemos fazer outracoisa.- eu o que lhe peço são as jóias! dê-me as jóias! humilho-me... sequiser ponho-me de joelhos!
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pasha, assustada, deu um grito e abanou as mãos. compreendeu queaquela senhora pálida e formosa, que se exprimia em frases tãonobres, como no teatro, era efectivamente capaz de pôr-se dejoelhos a seus pés: e isso por orgulho, movida pelos seus nobressentimentos, para se elevar a si própria e humilhar a corista.- está bem, dar-lhe-ei as jóias - disse pasha, limpando os olhos.- como queira. mas pense bem que não são de nikolai petrovich...foram-me dadas por outros senhores, mas se as deseja...abriu a gaveta de cima da cómoda; tirou de lá um broche de
diamantes, uma gargantilha de corais, vários anéis e uma pulseira,que entregou à senhora.- tome, se quer, mas do seu marido não recebi nada. tome, que lhefaçam bom proveito! - continuou pasha, ofendida pela ameaça de quea senhora se ia pôr de joelhos -, e, se a senhora é uma pessoanobre... sua esposa legítima, faria melhor tendo-o mais preso, eraisso o que devia fazer. eu não o chamei, ele veio porque quis...a senhora, por entre as lágrimas, olhou para as jóias que lheentregavam e disse:- isto não é tudo... isto não vale novecentos rublos.pasha, impulsivamente, tirou da cómoda um relógio de oiro, uma
cigarreira e uns botões de punho e disse, abrindo os braços:- É tudo o que tenho... verifique se quiser.
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a senhora suspirou, embrulhou com mãos trémulas as jóias num lençoe, sem dizer uma só palavra, sem sequer inclinar a cabeça, saiu.abriu-se a porta do quarto ao lado e entrou kolpakov. estavapálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se acabasse deengolir algo muito azedo. nos seus olhos, brilhavam lágrimas.
- que jóias me deu você? - invectivou-o pasha. - quando, diga-me?-jóias... que importância têm as jóias - replicou kolpakov.abanando a cabeça. - meu deus! chorou diante de ti, humilhou-se...- pergunto-lhe quando foi que me deu jóias! - gritou pasha.- meu deus, ela, tão honesta, tão orgulhosa, tão pura... atéqueria ajoelhar-se diante desta... mulherzinha. e fui eu que alevei a este extremo! e consenti!levou as mãos à cabeça e gemeu:- não, nunca perdoarei a mim próprio. nunca! afasta-te de mim...canalha! -gritou com asco, dando um passo atrás e
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afastando de si pasha, com mãos trémulas. - queria pôr-se dejoelhos... diante de quem? diante de ti? oh, meu deus!vestiu-se rapidamente e, com um gesto de repugnância, procurandomanter-se afastado de pasha, dirigiu-se para a porta, por ondedesapareceu.pasha atirou-se para a cama e começou a soluçar alto. estava jáarrependida de se ter desfeito das suas jóias, que entregaraimpulsivamente, e sentia-se ofendida. recordou que, três anosantes, um comerciante lhe batera sem razão nenhuma, e o seu choro
tornou-se ainda mais desesperado.
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Índice
a enfermaria nº 6............... 7vizinhos................... 71dô-doce................... 91um assassinato................. 105o mendigo.................. 137
sem título.................. 143o adulador.................. 147a boticária.................. 151uma corista.................. 157
livros rtpbiblioteca bÁsica verbo
1. maria moisÉs - camilo castelo branco2. cem obras-primas da pintura europeia3. o jogador - - f. dostoievski
4. antÍgona - Ájax - rei Édipo - sófocles5. o mÉdico em casa - ramiro da fonseca
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6. o vestido cor de fogo - josé régio7. memorial de aires - machado de assis8. werther - j. w. goethe9. segredos da vida mental - josé luis pinillos10. quatro prisÕes debaixo de armas - vitorino nemésio
11. a tia tula - miguel de unamuno12. carta de guia de casados - d. francisco manuel de melo13. nÓs, as crianÇas - gérard mahec14. o espÓlio do senhor cipriano - júlio dinis15. histÓrias de mistÉrio e imaginaÇÃo - edgar allan poe16. o casamento ardiloso e outras novelas exemplares - miguel decervantes17. guia de alimentaÇÃo racional - g. pimentel18. a noite e a madrugada - fernando namora19. a morte de ivan ilich - tolstoi20. o advogado em casa - flamirio martins
21. imitaÇÃo de cristo22. o arco de santana - almeida garrett23. eugenia grandet - balzac24. antologia da poesia brasileira - josé valle de figueiredo25. o mundo em nÚmeros - artur parreira26. rio turvo - branquinho da fonseca27. o passado remoto - giovanni papini28. o avarento - molière29. vamos falar de televisÃo - lopes da silva e vasco hogan tevês30. a brusca - agustina bessa luís31. o retrato de dorian gray - oscar wilde
32. poesia lÍrica - luís de camões33. problemas da infÂncia e da adolescÊncia - claude kohler epaule aimard34. apariÇÃo - vergílio ferreira35. clarissa - erico veríssimo36. pensamentos - marco aurélio37. a humanidade prÉ-histÓrica - pericot garcia e maluquer demotes38. as mulheres e as cidades - augusto de castro39. a queda - albert camus40. textos escolhidos - fernão lopes
41. vamos falar de cinema - garcia escudero42. o bispo negro - alexandre herculano43. a inocÊncia e o pecado - - graham greene44. lazarilho de tormes45. o livro do automÓvel – filipe nogueira46. venÂncio e outras histÓrias - joaquim paço d'arcos47. menino de engenho - josé lins do rego48. textos escolhidos – p’e antónio vieira49. passaporte para o futuro - luís miravitlles50. histÓrias castelhanas - domingos monteiro51. armance - stendhal
52. novelas do decameron - boccaccio53. que É a mÚsica? - manuel valjs gorina
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54. farpas escolhidas - ramalho ortigão55. o mistÉrio dos frontenac - françois mauriac56. a vida É sonho - calderón de la barca57. as fronteiras do possÍvel - jacques bergier58. contos bÁrbaros - joão de araújo correia
59. cÂntico de natal - charles dickens60. trÊs autos e uma farsa - gil vicente61. a conquista da terra62. nome de guerra - j. de almada negreiros63. contos escolhidos - luigi pirandello64. Êutifron - apologia de sÓcrates – crÍton - platão65. histÓria da arte em portugal - flórido de vasconcelos66. pÁginas escolhidas - oliveira martins67. a enfermaria nº 6 e outros contos - anton tchekov