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ILÍCITO ADMINISTRATIVO E ILÍCITO PENAL NÉLSON HUNGRIA Membro da. Comissões elaboradoras dos Anteprojetos dos Códigos Penal e do Processo Penal, da Lei das Con- travenções Penais e Desembargador no Tribunal de Apelação do Distrito Federal SUMARIO: Doutrina de Goldschmidt - Identidade essencial Pena administrativa e pena criminal - Autonomia do poder dis- ciplinar - Doutrina nacional - O art. 230 do Estatuto dos Funcionários Civis. A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: tôdas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas. "sôbre um mesmo plano, sôbre um mapamúndi". Assim, não falar-se de um ilícito admi- nistrativo ontolàgicamente distinto de l1II1 ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critério de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interêsse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. Conforme acentua BELING 1, a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilícitude é de quantidade ou de grau: está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um descrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KUKULA 2 justamente chama de "es- téril especulação", idêntica à demonstração da "quadratura do cir- culo". Baldadas têm sido tôdas as tentativas doutrinárias em tal sentido. Doutrina de Goldschmidt: - Sôbre ser inútil, seria fastidioso alinhar e criticar as múltiplas teorias propostas ou aventadas. To- memos, entretanto, pelo seu relêvo, espírito sistemático e reper- 1 Die Lehre vom Verbrechen, 1906, pág. 13.1. 2 Der Verwaltun/l:rwan/l, apud ZANOBINI, Le san"ioni amministrative, 1924. , f I ) \ I I .,

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  • ILCITO ADMINISTRATIVO E ILCITO PENAL NLSON HUNGRIA

    Membro da. Comisses elaboradoras dos Anteprojetos dos Cdigos Penal e do Processo Penal, da Lei das Con-travenes Penais e Desembargador no Tribunal de Apelao do Distrito

    Federal

    SUMARIO: Doutrina de Goldschmidt - Identidade essencial Pena administrativa e pena criminal - Autonomia do poder dis-ciplinar - Doutrina nacional - O art. 230 do Estatuto dos Funcionrios Civis.

    A ilicitude jurdica uma s, do mesmo modo que um s, na sua essncia, o dever jurdico. Dizia BENTHAM que as leis so divididas apenas por comodidade de distribuio: tdas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas. "sbre um mesmo plano, sbre um s mapamndi". Assim, no h falar-se de um ilcito admi-nistrativo ontolgicamente distinto de l1II1 ilcito penal. A separao entre um e outro atende apenas a critrio de convenincia ou de oportunidade, afeioados medida do intersse da sociedade e do Estado, varivel no tempo e no espao. Conforme acentua BELING 1, a nica diferena que pode ser reconhecida entre as duas espcies de ilcitude de quantidade ou de grau: est na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com outra. O ilcito administrativo um minus em relao ao ilcito penal. Pretender justificar um descrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, ser persistir no que KUKULA 2 justamente chama de "es-tril especulao", idntica demonstrao da "quadratura do cir-culo". Baldadas tm sido tdas as tentativas doutrinrias em tal sentido.

    Doutrina de Goldschmidt: - Sbre ser intil, seria fastidioso alinhar e criticar as mltiplas teorias propostas ou aventadas. To-memos, entretanto, pelo seu relvo, esprito sistemtico e reper-

    1 Die Lehre vom Verbrechen, 1906, pg. 13.1.

    2 Der Verwaltun/l:rwan/l, apud ZANOBINI, Le san"ioni amministrative, 1924.

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    cusso, a doutrina de GOLDSCHMIDT 3. Segundo ste, h uma dife~ rena fundamental entre direito penal administrativo (Verwaltungs-strafrecht) e direito penal comum (Justizstrafrecht): enquanto ste visa ao indivduo como vontade ou personalidade autnoma, aqule o encara como membro ou elemento sinrgico da sociedade e, por-tanto, adstrito a cooperar com a administrao pblica. A ilcitude administrativa seria apenas a omisso do dever de auxiliar a admi-nistrao no sentido do bem pblico ou estatal ("Die Unterlassung der Untersttzung der auf Forderung des olfentlichen oder Staat-swohIs gerichteten Staatsverwaltung"). As normas' de direito admi-nistrativo apresentam-se ao cidado, no como normas jurdicas, mas, propriamente. como ordens de servio. O direito penal admi-nistrativo, ao contrrio do direito penal comum, no protege a ordem pblica como bem jurdico (Rechtsgut), mas como_objeto de ateno ou de cuidado (Frsorgeobjekt) da administrao. O ilcito administrativo no uma ao contrria ao direito (recht-swidrig), isto , no representa leso ou perigo de leso a um inte-rsse juridicamente tutelado; mas uma ao contrria adminis-trao (verwaltungswidrig), isto , uma falta de cooperao com a atividade administrativa do Estado. A norma penal comum san-ciona um direito penal subjetivo da justia; a norma pell,;.1 Ildmi-nistrativa sanciona um direito penal subjetivo da administrao. i'.:" isso que uma simples falta de cooperao, o delito administrativo no delito de dno: no constitui um damnum emergens, mas um lucrum cessans. sempre delito de omisso ("Kommissivdelikt verwaltungsrechtlicher Art gibt es nicht"). Desde que a adminis-trao comina penas para o caso de transgresso de suas ordens, assumem estas a forma de preceitos penais; mas, se certo que tais

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    penas qualificam a violao da exigncia administrativa (Verwalt- >A fJR~R8f3FfJsh) eomo i1eito de direito administrativo, no meDOS

    \ certo que ste se destaca do ilcito de direito penal. A conseqncia

    l jurdica do ilcito administrativo uma simples "obrigao ex de-licto de direito administrativo" ("die Diliktsobligation des Verwalt-, ungsrechts") . \ Fixada, sucintamente, nos seus pontos centrais. esta a cons-

    truo doutrinria de GoLDSCHMIDT, cujo artificialismo no pode ser dissimulado. Dizer que o cidado um colaborador da admi-nistrao pblica e, como tal, est obrigado ao cumprimento de ordens administrativas, como se investido em funo pblica, no corresponde realidade (pelo menos, 1"ealidade dos pases demo-crtico-liberais). E' verdade que, em certos casos, o cidado cha-

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    3 DB8 VerwaltunAsstrafrecht (Eint Untersuchunll Strafrecht und Verwaltunl/S~trafrecht). 1902; "Wa~ i.t Strafrechtliche Zeituni/, 1, 1914.

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    mado a colaborar na consecuo dos fins do Estado, v. g., como con-tribuinte de impsto, como soldado, como jurado, como eleitor, como testemunha etc.; mas tais casos tm carter excepcional. No comum dos casos, s metafricamente se pode falar em falta de cooperao. E se a metfora autorizada, no haveria razo para que se no considerasse igualmente falta de cooperao o ilcito penal, quando consistente em omisso.

    As normas de direito penal administrativo so, indiscutivel-mente, normas jurdicas, ditadas no sentido de tutelar o intersse da administrao. A ordem pblica, ainda como simples pbjeto de cuidado da administrao, um intersse a ser protegido por esta, e, como adverte VON HIPPEL 4, desde que essa proteo se faz me-diante preceitos jurdicos, tal intersse um bem jurdico.

    O ilcito administrativo, semelhana do ilcito penal, leso efetiva ou potencial de um bem jurdico, pois, de outro modo, no se compreenderia a existncia de 11m . djrejto penal administrativo Uma ao que no constitua um perigo, sequer in abstracto (como pretende GOLDSCHMIDT), a intersse juridicamente tutelado, no pode ser juridicamente reprovada ou incidir sub poena. O lucrum cessans, de que fala GOLDSCHMIDT, j seria, mais que um simples perigo de leso, um autntico damnum ("in quantum mea interfuit, id est quantum mihi abest, quantumquelucrari potui").

    As normas penais administrativas no se limitam a ordenar ou a exigir aes positivas, pois tambm ordenam .ou exigem omisses; e neste ltimo caso o ilcito administrativo no pode deixar de ser comissivo. No h falar-se em direito penal subjetivo da justia, em contraposio a um direito penal subjetivo da administrao, mas to-smente em direito penal subjetivo do Estado. A ste, apenas a ste, e no aos seus rgos, cabe o jus puniendi. Ordens adminis-trativas so ordens do Estado, e a desobedincia contra estas a essncia, o substratum de todo e qualquer ilcito, e no uma peculia-

    . ridade do ilcito administrativo.

    Identidade essencial: - A identidade essencial entre o delito . administrativo e o delito penal atestada pelo prprio fato histrico, alis reconhecido por GOLDSCHMIDT, de que "existem poucos delitos penais que no tenham passado pelo estdio do delito adminis-

    . trativo" ("Wenige Rechtsdelikte, die nicht das Stadium des Ver-waltungsdelikts durchschritten hiitte"). A disparidade entre um e outro - 1"epita-se - apenas quantItativa. Qual outra diferena, seno de grau, v. g., entre o retardamento culposo de um ato de ofcio e a prevaricao, entre uma infrao sanitria e um crime

    4 Deutsches Strslrecht, 1930, 2.- vol.

  • contra a sade pblica,. entre uma infrao fiscal e o descaminho, entre violaes de posturas municipais.. e contravenes penais?

    Pena administrativa e pena criminal: - Se nada existe de substancialmente diverso entre ilcito administrativo e ilcito penal, de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essen-cialmente distinta da pena criminal. H tambm uma fundamental identidade entre uma e outra, psto que pena seja, de um lado, o mal infligido por lei como conseqncia de um ilcito e, por outro lado, um meio de intimidao ou coao psicolgica na preveno contra o ilcito. So species do mesmo genus. Seria esfro vo procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogneas, e. g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Di"-se- que s esta conversvel em priso; mas isto representa maior gravidade, no diversidade de fundo. E se h sanes em direito adminis-trativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo ca-rter de contragolpe do ilcito, semelhana das penas criminais. A nica . diferena, tambm aqui, puramente quantitativa (de maior ou menor intensidade) e formal: as penas administrativas (de direito penal administrativo) so, em geral, menos rigorosas

    que as criminais e, ao contrrio destas, no so aplicadas em via jurisdicional, isto , no vigora a respeito delas o princpio nul1a poena sine judicio ou memo damnetur nisi per legale judicium. E' inaceitvel o argumento de BATTAGLINI 5, segundo o qual ste cri-trio formal tem valor essencial, dado que no h pena onde no h juzo penal. A rebatida de Rocco' 6 inutiliza semelhante raciocnio: no se pode dizer que ondtl no h juzo penal no h pena: o que se deve dizer que, em tal caso, no h direito judicirio pel!al.

    A punio de certos ilcitos na esfera do direito administrativo, ao. invs de o ser na rbita do direito penal comum, no obedece, como j frisamos, seno a razes de convenincia poltica: para o direito penal comum transportado apenas o ilcito administrativo de maior gravidade objetiva ou que afeta mais diretamente o inte-rsse pblico, passando, assim, a ilcito penal. O ilcito administra-tivo de menor entidade no reclama a severidade da pena criminal, nem o vexatrio streprtus judicii. E' verdade que, em certos casos, o direito penal administrativo comina sano contra fatos que so

    .tambm punidos como ilcito de direito penal comum. E' o que

    5 Apud SPINBLLI, Le preleUi penali linttnlfisrie, 1933. 6 L'oAAetto dei reato, 1932, pg. 364.

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    ocorre notadamente no setor do direito administrativo disciplinar 7, cotejado com o captulo do direito penal comum sbre os crimes funcionais. E apresenta-se, ento, um debatido problema: em tais casos, tratando-se do mesmo agente, a aplicao comulativa das duas penas - a administrativa e a criminal - importa, ou no, infrao do non bis in idem? Ainda mais: absolvido no juzo penal, pode o acusado, pelo mesmo fato, ser condenado no processo dis-ciplinar? Ou ainda :condenadci precedentemente no processo dis-ciplinar, mas vindo a ser, pelo mesmo fato, absolvido no juzo penal, tem o acusado direito restitutio in pristinum? No obstante a diversidade das vias processuais (uma administrativa, outra judicial-penal), a resposta, em nosso modo de entender, no pode deixar de ser afi1-mativa no primeiro e no terceiro caso, e negativa no se-gundo. Em alguns pases h direito expresso regulando o assunto. Assim, na Alemanha, a Reichsbearntengsetz (Estatuto dos Funcio-nrios Pblicos) dispe precisamente para conjugar o bis in idem ou a antinomia de pronunciamentos:

    "No curso de um processo judicial, no deve ser instaurado contra o acusado, pelo mesmo fato, um processo disciplinar. Se, no curso de um processo disciplinar, fr instaurado contra o acusado, pelo mesmo fato, um processo judicial, deve ser o primeiro sobres-tado at a concluso do segundo ( 77). Se fr pronunciada absol-vio pelo juzo penal comum, s ter lugar processo disciplinar, pelo mesmo fato, quando ste, em si, afastada a possibilidade de sua configurao como crime ("ohne ihre Beziehung zu dem gesetz-lichen Tatbestande der straibaren Handlung"), ... represente uma falta disciplinar" ( 78)"

    Autonomia do poder disciplinar: - Na Frana, inexiste dispo-sio legal explcita, e uma rotineira doutrina inclina-se pela radical autonomia do poder disciplinar. GASTON JEZE 8, depois de insistir numa insustentvel e superada distino substancial entre falta dis-ciplinar e infrao penal, faz uma ilgica exceo no caso de absol-vio do acusado no juzo criminal: "11 n'en serait autrement que dans les cas tres particulier. Par exemple, le Tribunal repressif a ec1ar que l'agent pubJilc n'tait pas materiellement l'auteur ni le complice, ni l'inspirateur de l'agissement ayant donn lieu la POUl-suit. lci la FORCE DE VERIT LGALE. qui s'attache la consta-tation faite par le juge repressif exige que l'agent public ne soit pas

    7 No h por que distinguir entre. a pena disciplinar e as outras penas administra-tivas. irrelevante indagar se existe, ou no, uma relao pessoal preexistente entre o individuo e a administrao, ou discriminar entre supremacia especial (em face dos fun-cionrios pblicos) e supremacia geral (er4a omnes). Um ato ilcito pressupe sempre uma relao jurdica da pessoa com o titular do direito ao cumprimento do dever. O contede da responsabilidade o mesmo (ZANOBINI).

    8 Les principes ~nrau" du droit administratil, 1926, pgs. 88 .. 106.

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    frapp disciplinairement,' la peine disciplinaire serait entache d'exces de pouvoir (violation de l'autorit de la chose juge)". Mas, se. no vedado o bis in idem e se h plena autonomia entre o processo administrativo e o judicial (no havendo recurso de um para outro), como se compreende que a deciso dste resulte em res judicata com influncia naquele? A concluso est brigando com as premissas.

    Na Itlia, a doutrina mais autorizada no sentido da subor-dinao do poder disciplinar ao juzo penal. Em tal sentido, Ro-MANO 9, V ACCHELI 10, CINO VITTA 11. Os dois primeiros defendem a obrigatoriedade, em qualquer caso, da prevalncia do juzo cri-minal. CINO VITTA sustenta a vantagem de coordenao entre o peper disciplinar e o judicial, e opina, como GIRIODI 12, pela facul-dade de subordinao do processo disciplinar, acentuando que no direito positivo italiano (lei sbre os funcionrios pblicos civis) se

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    o fato imputado no existe, ou que o acusado no o cometeu, nem dle participou, fica excludo o processo disciplinar. D' ALESSIO 18, depois de anrmar, "em tese, a possibilidade do exerccio cumulativo da ao disciplinar e da ao. penal, tambm informa que a lei italiana "sbre o estado jurdico" contm o princpio geral de que o processo disciplinar deve ser suspenso "qualora il fatto addebitato a11'impiegato abbia dato luogo a denunzia all'autorit giudiziaria", e cessar nos casos j referidos na citao de VITTA.

    Doutrina nacional: - Entre ns, no h razo alguma para rejeitar-se o sistema de subordinao da ao disciplinar ao penal. Entretanto, ThMS'I'OCLES CAVALCNTI 14, um dos nossos mais reputados especialistas em direito administrativo, no admite excees independncia entre as duas aes, chegando mesmo a invocar a opinio de D' ALESSIO com omisso (evidentemente inten-cional) do apoio que ste d s excees contidas na lei italiana. No vale chamar colao os arts. 122, n.o .16, da Constituio, e 320, III, do Cdigo do Processo Civil, sbre a excluso de habeas corpus e de mandado de segurana no tocante a ato ou punio disciplinar: tais artigos no excluem, explcita ou implicitamente, no caso de concurso de competncia entre o poder disciplinar e o

    9 I poteri disciplinari delle publiche amministrazioni, em. da GiurisPruden~a Ita-liana, 1898.

    10 La dil_ ~iurisdiRonaIe dei diritti dei cittadini, in Trattato de ORLANDO, m. 11 11 potere disciplinare suAli impieAati pubblici, 1913. 12 I pubblici ulfici e la lerarchia amministrativa, in Trattato de ORLANDO, I. 13 Diritto Amministrativo Italiano, lI, 1932. 14 IlUItituies de Direito Administrativo Brasileiro, lI, 1938.

  • poder judicirio (isto , quando a, falta disciplinar constitua, tam. bm, delito penal) a subordinao do primeiro ao segundo. Apenas resguarda o pronunciamento disciplinar de impugnao pelo meio sumarssimo do habeas corpus ou do mandado de segurana.

    Interpretando o art. 239 do Estatuto dos Funcionrios Publi-cos, que comina a pena de demisso a bem do servio pblico ao funcionrio que "praticar crime contra a boa ordem e administra-o pblica, a f pblica e a Fazenda Nacional, ou previsto nas leis relativas segurana e defesa do Estado", opinou justamente o DASP (em 23-3-43) que, em tal hiptese, a instncia administrativa deve aguardar o pronunciamento do juzo criminal. Com todo acrto, igualmente, entendeu o mesmo Departamento que, no caso de demisso (Est. dos Func. Pb., art. 238, n.o I), se o fato revestir o carter de crime, nos trmos do Cdigo Penal "dever ser o pro-cesso respectivo encaminhado autoridade competente para o pro-cedimento judicial".

    O prprio CAVALCNTI, esquecido de ter afirmado que "aqui no se pode aplicar o princpio non bis in idem, por isso que o poder disciplinar se pode exercitar independentemente do poder repressivo penal", obtempera, invocando a lio de ALIMENA 15, que, no caso de envolver a condenao c.riminal medida de ordem administra- .". tiva, a represso disciplinar no pode justificar-se seno considerada }j como um efeito dessa condenao, evitando-se uma duplicidade de 2',;' penas. Ora, ste raciocnio redunda numa flagrante contradio. Se h inteira autonomia do poder disciplinar, a atitude dste no pode ser jamais efeito da condenao no juzo penaL No caso figu-rado por CAVALCNTI, da pena de "perda de emprgo", a absteno do poder disciplinar decorreria naturalmente da inutilidade de re-petir a imposio da mesma pena: seria dar uma punhada no vazio ...

    Suponha-se, porm, o caso de absolvio do acusado no juzo penal. Deve tambm, em tal hiptese, abster-se o poder disciplinar? No no-lo diz CAVALCNTI. Os que sustentam a radical autonomia do poder disciplinar estariam logicamente adstritos resposta ne-gativa. Recuam, entretanto, diante da chocante iniqidade e pro-curam resolver o impasse, como j vimos, apelando incongruente-mente para ares judicata. A nica soluo lgica est em fixar-se a premissa de que ilicitude e penas administrativas e ilicitude e penas criminais so substancialmente anlogas, no passando a separao entre o poder penal administrativo e o poder penal comum de um critrio meramente oportunstico ou poltico. Assim, quando as duas sanes - a penal disciplinar e a penal comum - forem comi. nadas para mesmo fato, no padece dvida a necessidade de coordenao entre os dois poderes, para evitar-se o bis in idem ou a

    15 Princ. di diritto penal_, l, pga. 245-246.

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    . contradio de pronunciamentos sbre matria substancialmente idntica, dando-se prevalncia ao poder judicial penal, porque, como pondera VITTA, "le solenni forme, con cui il giudizio penale si svolge, danno il piu pieno affidamento che in quelle si raggiunga il migliare accertamento deUa verit dei fatti". A autonomia do poder disci-plinar s se entende com os fatos que constituem, exclusivamente, faltas disciplinares. S admissvel a ao disciplinar ulterior absolvio no juzo penal, quando, embora afastada a qualificao do fato como crime, persista, residualmente, uma falta disciplinar. a justa deciso do direito germnico. A substancial coincidncia entre ilcito administrativo e ilcito penal confirmada pelo fato de que h perplexidade tda vez que a lei, ao cominar uma sano comum ao direito administrativo e ao direito penal (como, por exemplo, a multa), no indica o poder competente para aplic-la. O nico meio de dirimir a incerteza ser invocar o in dubio pro reo, para reconhecer-se que se trata de pena administrativa, de conse-qncias menos graves que a criminal.

    O art. "230 do Estatuto dos Funcionrios Civis: - Tem-se re-corrido, entre ns, ao preceito do art. 230 do Estatuto dos Funcio-nrios Pblicos, para argumentar no sentido da radical separao entre responsabilidade administrativa e responsabilidade penal: "A responsabilidade administrativa no exime o funcionrio da respon-sabilidade civil ou criminal que no caso couber". Ora, ste artigo no pode ser interpretado isoladamente, mas entrosado no captub de que faz parte e onde smente se cogita da responsabilidade do funcionrio por prejuzo patrimonial Fazenda Pblica. Trata-se de 1"esponsabilidade pela reparao do dano, que no constitui pena. No que tange responsabilidade soboponto de vista da punio, no h por que distinguir entre a esfera administrativa e a esfera penal. Inexiste, de jure condito ou de lege ferenda, qualquer fun-damento plausvel para que no vigorem, num e noutro caso, os mesmos princpios, quer relativamente imputabilidade, quer a res-peito da culpabilidade. Sempre bem de ver que se trate de fatos que representem, ao mesmo tempo, delito administrativo e delito penal.