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ISSN 0034.8007 – RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 258, p. 47-80, set./dez. 2011 Democracia e contrapoderes* Democracy and counter-powers Diogo de Figueiredo Moreira Neto** RESUMO Este artigo contextualiza as atuais manifestações sociais que desafiam a ordem pública em diversos países. Por mais avançada que seja determi- nada ordem jurídica, ela só será suficiente para prevenir desordens sociais se estiver dotada dos adequados meios democráticos. Tais meios devem assegurar o emprego de permanentes e eficientes canais de comunicação institucionais abertos aos cidadãos, de modo a levarem os seus interesses aos órgãos do Estado para que lhes deem resposta. Tais como garantir ao cidadão liberdade de acesso aberto e dialógico com órgãos de decisão. Esta é a pergunta que se impõe à teoria constitucional contemporânea. PALAVRAS-CHAVE Democracia — teoria constitucional — comunicação institucional — cida- dão —manifestação social ABSTRACT This article is contextualized by the current social disorder that threatens public policy in many countries. Though a legal system is advanced it will * Artigo recebido em outubro de 2011 e aprovado em outubro de 2011. Conferência pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em 20 de outubro de 2011. ** Professor titular da Universidade Candido Mendes e procurador do estado do Rio de Janeiro.

8609-18645-1-PB

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  • ISSN 0034.8007 rda revista de direito administrativo, rio de Janeiro, v. 258, p. 47-80, set./dez. 2011

    democracia e contrapoderes*democracy and counter-powers

    Diogo de Figueiredo Moreira Neto**

    Resumo

    Este artigo contextualiza as atuais manifestaes sociais que desafiam a ordem pblica em diversos pases. Por mais avanada que seja determi-nada ordem jurdica, ela s ser suficiente para prevenir desordens sociais se estiver dotada dos adequados meios democrticos. Tais meios devem assegurar o emprego de permanentes e eficientes canais de comunicao institucionais abertos aos cidados, de modo a levarem os seus interesses aos rgos do Estado para que lhes deem resposta. Tais como garantir ao cidado liberdade de acesso aberto e dialgico com rgos de deciso. Esta a pergunta que se impe teoria constitucional contempornea.

    PalavRas-chave

    Democracia teoria constitucional comunicao institucional cida-do manifestao social

    abstRact

    This article is contextualized by the current social disorder that threatens public policy in many countries. Though a legal system is advanced it will

    * Artigo recebido em outubro de 2011 e aprovado em outubro de 2011. Conferncia pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de lisboa, em 20 de outubro de 2011.** Professor titular da Universidade Candido Mendes e procurador do estado do Rio de Janeiro.

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    never be enough to prevent political manifestations if it does not have the adequate democratic means. Such means must assure the use of perma-nent and efficient institutional channels open to citizens, so that they may

    be able to communicate their interests and demand a response from the State. How to guarantee the citizen open access to a dialogue with the de-cision-making authorities is a question that must be examined by contem-porary constitutional theory.

    Key-woRds

    Democracy constitutional theory institutional communication ci-tizen social disorder

    Mesmo a mais avanada e requintada Ordem Jurdica que se logre ins-tituir para assegurar a distribuio de justia a um povo, no ser suficien-te para prevenir desordens, surtos de violncia e explosivas manifestaes populares, se no estiver dotada dos adequados meios democrticos, que assegurem o emprego de permanentes, eficientes e suficientes canais de co-municao institucionais abertos aos cidados, de modo a levarem os seus interesses, insatisfaes, indignaes, reivindicaes e revoltas aos rgos do Estado para que lhes deem resposta.

    O que h de comum entre os recentes movimentos de massa registrados em vrios pases da Europa, da sia, do mundo islmico e da Amrica latina est na insuficincia desses, cada vez mais necessrios, canais de comunicao

    e de institucionalizao de demandas, substancialmente democrticos, neu-trais e apartidrios, para, diante das manifestaes de contrapoderes, garantir ao povo a preciosa liberdade de acesso aberto e dialgico aos rgos de deci-so do Estado.

    1. sociedade, poder e estado

    A sociedade, agregao dinmica de indivduos da mesma espcie, um fenmeno natural e, como tal, uma derivao de instintos de todo ser vivo: associado ao da sobrevivncia e da reproduo, o instinto gregrio, que o ser humano compartilha com os demais seres vivos.

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    Nessa recproca dependncia, prpria da agregao natural instintiva, o homem encontra no apenas o meio elementar para facilitar-lhe a satisfao de suas necessidades primrias, que so a de sobreviver como indivduo e a de sobreviver como espcie, como, ainda nela, o meio propcio para a sa-tisfao de incontveis necessidades derivadas em diversificado rol que no cessa de ampliar-se em funo da cultura e da civilizao , aspecto este que marca sua dupla realizao individual: como pessoa e como membro da sociedade a que pertence.

    O poder, fenmeno social conatural ao homem,1 est presente em to-das as suas manifestaes gregrias como o grande protagonista da histria, construindo culturas e civilizaes e as destruindo, atuando necessariamente como um instrumento, mas, por vezes, servindo perversamente como fim em si mesmo; em suma, a energia que move a sociedade.

    No sentido sociolgico, o poder produto de uma relao social assimtri-ca, na qual a vontade, de um indivduo ou de um grupo, tem capacidade de in-fluir ou determinar o comportamento de outro indivduo ou de outros grupos.

    Como se pode deduzir desses conceitos, trata-se de manifestao espon-tnea em qualquer sociedade humana, que tem lugar ao se travarem relaes sociais assimtricas, tanto entre indivduos, como entre indivduos e grupo e entre grupos, ou, em outros termos, quando o potencial de influncia de uma parte sobre a outra se revele de tal modo suficiente para induzir-lhe efetiva-mente o comportamento.

    No obstante, o estudo do poder, embora se tratando de um dos mais velhos fenmenos das emoes humanas,2 mencionado em clssicos, como em Maquiavel, Hobbes, locke e Montesquieu, s comeou a ser trabalha-do cientificamente a partir do sculo XIX, na obra seminal de Ludwig Von Gumplowicz.3

    Ainda assim, o foi com sua nfase preferentemente focalizada sobre a expresso poltica, ento a mais conhecida, por ser a especfica modalidade qual se imputam os efeitos das relaes assimtricas no que concerne di-reo da sociedade,4 pois o estudo do poder tem negligenciado o tratamento

    1 Assim o consideram, entre seus mais renomados monografistas, Bertrand Russell, Nicolas Tima-sheff, Max Weber e Maurice Hauriou (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 54, nota 143).2 Observao de Adolf A. Berle em seu estudo Power. New York: Ed. Harcourt, Brace & World Inc, 1969.3 GUMPlOWICZ, ludwig von. Die Sociologische Staatsidee. Graz: leuschner & lubensky, 1892.4 Moreira Neto, Teoria do poder, op. cit. (nica monografia em lngua portuguesa sobre o tema).

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    terico de suas demais expresses, como, notadamente, a social e a econmi-ca, igualmente importantes, at mesmo por se projetarem tambm sobre o campo poltico.5

    Com sua origem coletiva nas interaes sociais, a percepo das relaes de poder sobressaa em suas manifestaes concentradas para a direo do grupo: de incio, tribal e religiosa, para, com o tempo, institucionalizar-se como modalidade poltica, que se consolidaria, a partir de ento, em estru-turas de poder organizadas, evoluindo desde os primitivos patriarcados aos reinos da Antiguidade, passando pela singularidade do Imprio Romano e pelas organizaes feudais, at se concentrar, com o Renascimento, na moda-lidade institucional moderna e difundida do Estado.

    Mas nem pelo fato de haver gerado, nessa longa evoluo, tantas espe-cficas modalidades de organizaes cratolgicas, o conceito de poder, por

    ser sempre um produto de toda a sociedade, no se cingiu a essas histricas expresses polticas, de sorte que necessrio que sua teoria geral se estenda ao estudo de quaisquer expresses em que este fenmeno se manifeste, tais como a religiosa, a militar, a econmica etc., pois o poder poltico gerado nas interaes que se processam entre todas elas.

    a prpria histria a nos evidenciar que at nas mais fechadas e absolu-tas modalidades tirnicas de concentrao de poder poltico sempre remanes-ce o poder latente na sociedade, que, mesmo oprimido e sufocado, l restar, pronto a reverter qualquer dominao, aguardando apenas a oportunidade de manifestar-se e de reflorescer.

    Assim, mesmo dominadas e duramente reprimidas, sempre haver em quaisquer sociedades manifestaes deste seu poder social latente, eventual-mente externadas em demonstraes de insatisfao, de rebeldias e de revolta, que provavelmente eclodiro toda vez que indivduos ou grupos se conven-cerem de que compensa o sacrifcio de arrostar as armas do poder institudo dominante para reconquistar uma liberdade perdida.

    Enfim, a semente da liberdade jamais morre no corao dos homens, se-no que neles dormita, aguardando sua primavera, de modo que o arbtrio do poder incontido s lograr subsistir se houver um mnimo crtico de aceitao dos que esto a ele sujeitos, pois at a mais feroz das ditaduras s sobreviver

    5 Todavia, no obstante quase um sculo transcorrido desde Gumplowicz, o estudo integral do poder continua a ser um desafio. Sua bibliografia no abarca todo o fenmeno em toda sua rique-za terica, ressentindo-se da falta de um esforo de unidade sistemtica... (Ibid., p. 38).

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    enquanto as sociedades forem complacentes com a tirania que lhes for impos-ta ou no despertarem de seu letargo.

    Todavia, at o sculo XVIII, essas maravilhosas rebeldias, levantes e re-voltas fatalmente se chocariam com velhos mitos, barreiras milenares que protegiam as instituies que, por tantas eras, sustentaram a concentrao absoluta do poder poltico, o fenmeno que, mais tarde, Carl Schmitt viria a explicar como resduos secularizados de conceitos teolgicos,6 que impregna-vam a dominao poltica de uma, como era ento reputada, sacralidade do poder.

    Tratava-se de consideraes brotadas na meditao religiosa sobre qual deveria ser a misso fundamental do poder nas sociedades humanas, j que se o tinha como exclusivo atributo da Divindade, pois somente ela possuiria em sua essncia (omni potestas dei) o poder absoluto sobre todas as coisas, do qual as manifestaes humanas seriam nada mais que reflexos e os cetros reais, meras outorgas (omni potentatui dominans).7

    Assim, pioneiramente, caberia a Hobbes, no sculo XVII, produzir o pri-meiro sistema moderno de filosofia poltica,8 no qual essas crenas passaram a ser revistas, de modo que em seu pensamento se fincaram os fundamentos da doutrina que prosperaria no sculo seguinte, produzindo as trs grandes re-volues liberais, que passariam a ser as fontes conceptuais das manifestaes do poder estatal moderno: a revoluo inglesa, consolidando a independncia do Poder legislativo, atribudo aos Parlamentos; a revoluo americana, con-solidando a do Poder Judicirio, atribudo em sua cpula s Cortes Supremas, e a Revoluo Francesa, consolidando a do Poder Executivo, como atribuio das administraes pblicas.

    Ao descaracterizar o mito da sacralidade do poder, Hobbes reafirmava a sociedade como a fonte autnoma e natural do poder, com isso definindo a natureza derivada e artificial de sua expresso estatal organizada, e deduzin-do que a legitimidade do poder poltico haveria de repousar na representa-o, como instrumento que garantiria a presena, ainda que de modo indireto, da vontade da sociedade na estrutura decisria do Estado.9

    6 Alle prgnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind skularisierte theologische Begriffe [Todos os conceitos significantes da doutrina moderna do Estado so conceitos teolgicos secularizados]. (traduo nossa). SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humblot, 1996. p. 43.7 livro de Ester, XIV.8 HOBBES, Thomas. The Leviathan (Leviathan or the matter, forme and power of a common wealth eccle-siastical and civil). 1651.9 E esta funo no Estado, prpria dos parlamentares, distinguiriam estes como agentes da socie-

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    Estavam abertas as portas para a expanso das ideias liberais no sculo XVIII, com seus grandes prceres, destacamente John locke e Adam Smith, acrescentando um novo rol de valores a partir do individualismo, a nova corrente de ideias que, revivida no Renascimento, logo amadureceria com o reconhecimento das inatas liberdades do homem e, em consequncia, de seus direitos fundamentais.

    Desde ento, esses valores seriam entronizados como necessrios funda-mentos de uma ordem espontnea da sociedade e, por este motivo, inviolvel por uma ordem artificial politicamente imposta, da derivando-se os suces-sivos conceitos polticos disciplinadores do poder estatal, hoje comezinhos fundamentos do governo limitado, do estado de direito e do constituciona-lismo, que prosperaram em vrios institutos liberais que, difundidos, assen-tariam os fundamentos juspolticos do poder a partir de ento.10

    2. emergem os contrapoderes

    Nas sociedades submetidas s modalidades fechadas, tirnicas e abso-lutas de concentrao de poder poltico, qualquer expresso de insatisfao em face do regime poltico a que estavam sujeitas era vista como insuport-vel rebeldia ou revolta, a ser justamente sufocada, antes que se disseminasse. Este, o modelo dominante na Antiguidade, com a urea exceo da Atenas de Pricles, permanecendo por todo o Medievo e nos primeiros sculos da mo-dernidade, at que ganhassem plena expresso os valores do liberalismo, com a conscincia social e a comunicao de escala.

    Com efeito, no seriam suficientes as arbitrariedades, as interminveis injustias e o sofrimento de incontveis vtimas dos regimes absolutistas para abalar o avelhantado sistema de classes, de estamentos e de privilgios do ancien regime... Seria necessrio que a conscincia da superioridade natural da pessoa humana e de seus valores sobre quaisquer outras ideias e realizaes artificialmente engendradas inspirasse e produzisse revolues, inovando al-ternativas capazes de reverter o sistema piramidal dominante, de modo que

    dade na estrutura do Estado e no como meros agentes do Estado, um tema que hoje ressurge, com grande atualidade, na atualssima categorizao funcional de agentes neutrais no Estado.10 DUMONT, louis. O individualismo: uma perspectiva antropolgica da sociedade moderna. Tra-duo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 38 e 39. O autor desenvolve interessante afirmao de se tratar de um valor caracteristicamente ocidental e, por isso, fundante das socie-dades modernas.

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    as pessoas, ao retomar o gozo de suas liberdades inatas, passassem a deter e a exercer os poderes de escolha poltica: em suma, se transformassem de sditos em cidados.

    Indubitavelmente, a mera insatisfao e, at mesmo, uma eventual oposi-o aberta tinham sido incapazes de operar mudanas no monoltico sistema de poder poltico tradicional, de corte autoritrio, sem que se possibilitasse a mobilizao suficiente de coraes e mentes atravs do aperfeioamento da

    comunicao social, portanto, desde a imprensa de Guttemberg, com evolu-o cada vez mais acelerada, at o acesso aos meios eletrnicos, proporcionan-do hoje informao sem limites e sem fronteiras, tudo afirmando a conscin-cia do coletivo e a convico de que, no obstante subsistam tantas diferenas entre os povos e entre os indivduos, somos todos elementarmente iguais, livres e dignos: qualidades que nos identificam como pessoas.

    Esses valores que eventualmente podem tambm mover a insatisfao e a revolta geram um tipo de poder espontneo na sociedade, obviamente de natureza distinta e mais fraco do que o poder institucionalizado concen-trado nos estados, mas, ainda assim, dadas as circunstncias, com potenciali-dade de a este se opor e at de, eventualmente, sobre ele prevalecer.

    o que nos mostra a histria e, recentemente, se tem repetido, como no Egito, com a derrubada da ditadura de Hosny Mubarak, e na lbia, da pro-longada tirania de Muammar Kadafi, obras deste poder annimo e difuso,

    que continua a se propagar, identificando a primavera islmica a outras auto-cracias de que est povoada a vasta rea, que vai do Magrebe s fronteiras do subcontinente indiano.

    , portanto, esta espontnea percepo da maravilhosa peculiaridade de nossa prpria natureza, capaz de gerar uma ntima certeza, de fcil difuso, de que a vida em sociedade e, nela, a plena realizao individual se assentam sobre um binmio de valores aparentemente antagnicos, mas intimamente intercausais, que precisam ser absorvidos e vividos intensamente, no impor-tando a que custo: a liberdade e a solidariedade. A liberdade, realando a singularidade de sermos individualmente diferentes e aptos a escolher o que pretendemos para nossas vidas, e, com ela interagindo, a solidariedade, res-saltando nossa complexa dependncia da sociedade para que efetivamente o logremos com plenitude.

    Como fiel entre esses dois valores, oscilando historicamente entre am-bos mas presente onde quer que se agrupem seres humanos situa-se o direito, que, mesmo variando no espao e no tempo sob inmeros aspectos,

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    apresenta um ncleo essencial e inaltervel e que lhe imanente e inviolvel: os direitos humanos.

    E a histria ainda a nos ensinar que todo processo de progresso po-ltico, obtido tantas vezes com imenso sacrifcio de vidas humanas, avana muito lentamente, de vitria em vitria, e o est comprovando o momentoso exemplo de nossos dias da referida primavera islmica, em pleno curso na regio mais densamente dominada por autocracias de todo gnero, tudo a demonstrar que sempre possvel aluir as bases seculares de poder concen-trado, a partir da comunicao, que tem a capacidade de se diversificar e de gerar espcies de poder prprias,11 potenciando as insatisfaes, disseminan-do valores e acenando com a inesperada e venturosa eventualidade de se ver resgatada para a democracia mais da metade dos pases do mundo, ainda no comeo deste vigsimo primeiro sculo.

    Cabe, como adequado encerramento e remate desta apresentao vesti-bular que se segue, na qual se adentrar um pouco mais no intrigante tema ps-moderno dos contrapoderes, confiar pena de Manuel Castells, acima lembrado em nota, a sntese do que j foi exposto, nesta tersa observao:

    Em ltima anlise, s o poder da sociedade civil global, atuando sobre a mentalidade pblica por via da mdia e das redes de comunicao poder, eventualmente superar a inrcia histrica dos Estados-nao e assim lev-los a aceitar a realidade de seu poder limitado em troca de incremento de sua legitimidade e eficincia.12

    3. os contrapoderes nas sociedades ps-modernas

    Uma vez reconhecida a inconteste prelazia do homem, seja individual ou coletivamente considerado, sobre todas as suas criaes o que inclui todas as instituies estatais e legais por ele produzidas , tem-se, a partir da, fundamentado o conceito de estado de direito, tal como desenvolvido na modernidade, ou seja, entendido o direito como uma exclusiva e soberana ex-

    11 Manuel Castells sustenta que, com as atuais redes digitais de comunicao, a anlise das re-laes de poder requer uma nova abordagem das formas e dos processos da comunicao, hoje amplamente socializada, notadamente em razo das redes horizontais de participao, que pro-duzem o fenmeno que denomina de autocomunicao de massa (mass self-communication). Commu-nication power. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 4.12 Ibid., p. 42.

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    presso da vontade estatal, ainda que dissociado da legitimidade, bastando, to somente, ao Estado, observar a legalidade, ou seja, respeitar a prpria lei que edita, sintetizada no brocardo patere legem quam fecisti.

    A injustia e desacerto da aceitao desta onmoda e ilimitada sujeio, costumeiramente ignorada ou encoberta nos clssicos manuais tericos, se veio a tornar patente no curso do sculo XX, muito em razo dos holocaustos blicos em escala mundial, que os estados de direito impuseram a socieda-des inermes; um processo que (hlas! quelque chose malheur est bon...) afinal concorreu para robustecer o conceito de legitimidade democrtica referida ao prprio direito, como ideia fora nascida das catstrofes produzidas sob o signo do mito da legalidade, que acobertava tiranos e ditadores, e que logo floresceria com a constitucionalizao do estado democrtico de direito, um movimento iniciado justamente nos pases mais sacrificados por seus pr-prios regimes autocrticos...

    Implcita, portanto, nessa significativa evoluo que, partindo do poder estatal sem sujeio, passaria pelo poder estatal sujeito no mais que prpria lei, para chegar hoje ao poder estatal sujeito lei e ao direito , a emergncia desta nova ideia-fora: a de que as sociedades humanas, independentemen-te de estarem organizadas sob o tradicional modelo renascentista de estados nacionais (ou at, em certos casos, plurinacionais), devem desfrutar de um espao pblico, que lhes prprio e inerente, sobre o qual as interferncias estatais s sero legtimas se democraticamente consentidas.

    neste espao pblico no estatal, que apresenta extrema complexidade e surpreendente dimenso nas sociedades ps-modernas, que medram novas modalidades espontneas de poder societal e passam a interagir com o poder estatal, exercendo crtica, influncia e presso, pondo-se em confronto com posies oficiais de seus rgos, da se lhe conferir a denominao genrica de contrapoderes sociais ou, mais simplesmente, de contrapoderes, como vem sendo empregada pelos pensadores sociais.

    Este cenrio, de complexidade e de expanso da interao nas socieda-des ps-modernas, assim como as intrigantes perplexidades que causam, leva a que conspcuas mentes acadmicas constantemente a ele se refiram como uma arena de desafios, tal como encontrado na viso de Ulrich Beck13 e de Pa-trick lagadec,14 ao denomin-las sociedades e estados de risco, considerando

    13 BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity (sociedade do risco). londres: Sage, 1992.14 lAGADEC, Patrick. La civilization du risque: catastrophes technologiques et responsabilit socia-le. Paris: Seuil, 1981 (Science ouverte); e lAGADEC, Patrick; GUIlHOU, Xavier. La fin du risque zro. Paris: Eyrolles Socit les Echos ditions, 2002.

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    particularmente no apenas a multiplicao como o agravamento de perigos de toda sorte nelas incessantemente gerados ambientais, sanitrios, eco-nmicos, sociais e, por certo, mais agudamente, os polticos , ameaando permanentemente as sempre frgeis conquistas da paz e da democracia e, no raramente, enfrentados em escala global.

    na complicada confluncia de tantos e diversificados riscos, que se potenciam quando acumulados como particularmente o caso dos riscos sociais ao agravar os polticos e vice-versa que as matrias veiculadas fre-quentemente pela imprensa, bem como os amiudados estudos continuamente produzidos nas reas das cincias humanas, se debruam sobre essas mani-festaes pblicas, organizadas ou semiorganizadas, como as promovidas por associaes privadas que se ocupam de interesses pblicos, por grupos de presso, por rgos da imprensa escrita, falada, televisiva, por grupos es-truturados na internet, ou por quaisquer modalidades de demonstraes os-tensivas de opinio pblica e, de modo destacado, as manifestaes cada vez mais veementes dos movimentos de massa em reivindicao e protesto.

    Enfim, est-se diante de um conjunto de fenmenos classificados gene-ricamente como expresses de contrapoderes sociais, que eclodem, ganham fora e se expandem impulsionados pela espantosa intensidade da comunica-o social de nossos dias.

    Note-se que algumas das mais antigas dessas manifestaes, de movi-mentos reivindicantes e de protesto, j de h muito foram contidas e disci-plinadas sob padres jurdicos aceitveis, embora, por vezes, desconfortveis para a sociedade, sendo um bom exemplo a greve, como uma bem-sucedi-da canalizao jurdica de manifestaes coletivas de setores organizados de empregados, podendo igualmente ser mencionadas outras experincias de canalizao jurdica exitosa de reivindicaes e de protestos pblicos, como as que se deram com o emprego de ombudsmen, de auditores, de centrais de reclamao obrigatrias e de outras instituies congneres, cuja misso , em suma, de filtr-los e encaminh-los deciso dos rgos competentes da estrutura do Estado.

    Esses movimentos populares, que, observadamente, se vm amiudan-do nas sociedades contemporneas, se forem ordeiros e pacficos, podem ser teis para ecoar construtivamente os protestos e reivindicaes de v-rios segmentos da sociedade, portanto, com grande importncia para uma canalizao direta de vrias modalidades sociais espontaneamente manifes-tadas de controles difusos, que so aceitveis, quando no desejveis nas democracias.

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    Mas o que tristemente se observa , ao revs, um paulatino incremento de manifestaes pblicas de massa demonstrando contrariedade, insatis-fao e indignao que, se desatendidas, ignoradas ou rechaadas, acabam recorrendo violncia e, com isso, desservindo a seus propsitos originais e causando desordem, insegurana e, paradoxalmente, o abalo da ordem de-mocrtica.

    So fatos acabrunhantes e cada vez mais presentes, que, indiferentemen-te, ocorrem tanto em pases desenvolvidos como em desenvolvimento, tanto nos ricos como nos pobres, e, no raramente, acompanhados de tumultos, de agresses, de depredaes e de vtimas, escancarando a ferocidade da turba-multa, que, se confrontada, em resposta represso policial empregada para cont-la, pode atingir inacreditveis paroxismos de fria.

    possvel constatar a atualidade e a importncia desse fenmeno nas recentes manifestaes anarquistas que se tm propagado em alguns pases da Europa, o que, para observadores acadmicos, como Herfried Mskler, da Universidade Humboldt de Berlim, registraram um espantoso aumento de 43% em 2010.15

    A todas essas manifestaes pblicas, pacficas ou no, constantemen-te estudadas em trabalhos sociolgicos e polticos, agregam-se ainda novas modalidades, as que se valem dos meios de comunicao digital de massa e empregam uma grande variedade de canais prprios de expresso, operando atravs de redes eletrnicas mundiais interligadas, que, assim difundidos globalmente, atuam independentemente dos meios tradicionais tanto os meios de comunicao da imprensa escrita, falada e televisionada, como os meios poltico-partidrios institucionalizados , qualificando-se, portanto, como distintas variedades de manifestaes de poder da sociedade, identifi-cadas genericamente como contrapoderes.

    Esta identificao j se pronunciava bem clara em 1945, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, na obra de Bertrand de Jouvenel,16 ao denominar de contrapoderes aos impedimentos ao poder com origem na sociedade; ex-cludos, portanto, os de ordem natural.17

    15 Estes dados se encontram publicados na reportagem de O Globo, de 30 de dezembro de 2010, a pgina 30, sob o ttulo Anarquismo sobre fronteiras.16 JOUVENEl, Bertrand. Le pouvoir: histoire naturelle de sa croissance. Genebra: ditions du Cheval Ail, 1945. VI, Cap. XV.17 Ao apreciar esta classificao, em 1992, embora registrando ser tecnicamente exata, deixei con-signada uma divergncia, por entender que, embora potencialmente adversativas, essas mani-festaes no se poderiam considerar ainda dotadas de poder, mas de uma potencialidade de

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    No entanto, somente no Segundo Ps-Guerra, no contexto da ps-mo-dernidade, que se inicia uma bibliografia consistente sobre os contrapoderes, mesmo sem clara indicao em seus respectivos ttulos.18

    Mas, indubitavelmente, com a globalizao acelerou-se o fenmeno e sua percepo, ensejando sua definitiva insero como novo tema das cincias sociais, destacando-se seis obras monogrficas versando os contrapoderes, em rol que se abre com a de John Holloway, uma das mais controvertidas e, por isso mesmo, provocadora de um renovado interesse sobre o assunto, por sustentar que o objetivo das revolues no seria necessariamente empolgar o poder poltico institucionalizado, mas promover uma resistncia idealizada, capaz de mudar sua orientao, da o ttulo de sua obra aparecida em 2002: Mudar o mundo sem tomar o poder.19

    A crtica a essa idealizada despolitizao, proposta por Holloway, adviria logo no ano seguinte, com Miguel Benasayag e Diego Sztulwark, reconside-rando que reside no poder do prprio Estado, como gestor de interesses pbli-cos, o real objeto da manifestao transformadora de contrapoderes sociais.20

    , todavia, nesse mesmo ano, de 2002, que o reputado socilogo Ulrich Beck da Universidade de Munique se dedica a examinar o fenmeno do pris-ma da globalizao, com alentado estudo, o mais completo at ento, enrique-cido com uma impressionante bibliografia de cerca de 600 ttulos, no qual o autor parte da premissa de se tratar, os contrapoderes, de uma normal reao das sociedades, cada vez mais esclarecidas, ao envelhecimento e pouca pres-tabilidade das instituies dominantes, que foram criadas em um mundo onde as ideias de pleno emprego, do primado da economia governamental sobre a economia nacionais, de fronteiras em funcionamento, de soberania e de identidade territoriais claramente definidas tinham valor de pontos carde-ais, suscitada por uma ptica que no mais pode ser concebida como nacio-nal, mas transnacional, no quadro de uma poltica interior global.21

    s-lo, concluso que ora se corrige neste ensaio (Moreira Neto, Teoria do poder, op. cit., p. 72 e nota 27.)18 Como, por exemplo, nas seguintes obras, todas surgidas no final do sculo XX: EVANS, P. Globalizacin contrahegemnica: las redes transnacionales como herramientas de lucha contra la marginalizacin. Contemporary Sociology, 1998; EVERS, T. Estatismo vs. imediatismo: noes conflitantes da poltica na Alemanha Federal. Novos Estudos Cebrap, v. 2, n. 1, p. 25-39, abr. 1983; PAOlI, M.C. As cincias sociais, os movimentos sociais e a questo do gnero. Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n. 31, p. 107-120, out. 1991; e PORTES, A. Villagers: the rise of transnational communities. The American Prospect, n. 25, 1999.19 HOllOWAY, John. Change The world without taking power. london: Pluto Press, 2002.20 BENASAYAG, Miguel; SZTUlWARK, Diego. Du contre-pouvoir. Paris: la Dcouverte, 2003.21 BECK, Ulrich. Macht und Gegenmacht im globalen Zeitalter. Frankfurt am Mein: Suhrkamp Verlag,

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    Mais recentemente, j em 2009, a dupla ludovic Franois e Franois-Bernard Huyghe, cunhando a expresso democracia de influncia, v nos contrapoderes uma estratgia de ao, como produto de vrios atores que se interconectam pela informao, e que se manifesta atravs de um sistema so-ciopoltico voltado a convencer e a seduzir, de modo a formatar as menta-lidades para agir sobre os homens e preparar o futuro coletivo, marcando, assim, a passagem de uma sociedade de autoridade, que girava em torno do con-ceito de chefia, para uma sociedade de influncia, que depende da formao da adeso e do consenso.22

    Ainda no ano de 2009, Manuel Castells, depois de reafirmar o poder como o processo fundamental da sociedade e de distinguir dois tipos de processos sociais os processos que impem a dominao existente, e os processos contrapostos, de resistncia dominao, em favor dos interesses, valores e projetos que so excludos ou sub-representados nos programas e compo-sio da rede conclui que o poder nas sociedades em rede o poder da comunicao e que, por isso, o poder governa e os contrapoderes lutam.23

    Para encerrar esta resenha, mencione-se a mais recente obra, de George Corm, autor de O novo governo do mundo, publicado em 2010, que, em seu sub-ttulo, se refere a ideologias, estruturas e contrapoderes, mas nele no teori-za este ltimo tema, seno que a ele se refere com vistas a refutar a inelutabi-lidade da globalizao e se valha do conceito para defender os movimentos antissistmicos que, a seu ver, deveriam dirigir-se a corrigir o funcionamen-to perverso da economia globalizada, pondo em ao mecanismos que tra-vassem a globalizao e permitissem progressivamente uma reorganizao dos espaos socioeconmicos, assegurando mais coerncia e estabilidade s diferentes sociedades...24

    4. os contrapoderes e o direito contemporneo

    O reconhecimento, em princpio, da legitimidade intrnseca dessa din-mica espcie de interao democrtica dos contrapoderes, ainda que compre-

    2002. Citaes acima, com nossa traduo, retiradas da edio francesa Pouvoir et contre-pouvoir: lheure de la mondialisation. Paris: ditions Flammarion, Champs Essais, 2003. p. 7 e 8.22 FRANOIS ludovic; HUYGHE Franois-Bernard. Contrepouvoirs, de la socit dautorit la dmocratie dinfluence. Paris: Ellipses, 2009. p. 3 a 10 e resumo na contracapa.23 Castells, Communication power, op. cit., p. 47, 50 e 53.24 CORM, Georges. Le nouveau gouvernement du monde: ideologies, structures, contre-pouvoirs. Paris: la Dcouverte, 2010. p. 10 e resumo na contracapa.

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    endida a que envolva inconformismo ou confrontao de ideias que, como j reconhecido, socialmente construtiva , no afasta, porm, a possibilida-de e, qui, a inelutabilidade do agravamento de confrontos, de modo que, eventualmente, possam alcanar nveis de agressividade que exijam o empre-go de meios repressivos, se chegarem violao de valores essenciais para a convivncia civilizada das prprias sociedades agredidas.

    Assim, facilmente exasperados os possveis conflitos, justifica-se a impor-tncia que assume o fenmeno dos contrapoderes para o direito, com a conse-quente necessidade de que sejam reconhecidos, analisados e estudados, para que recebam um tratamento receptivo juspoltico adequado, condizente com os progressos jurdicos aportados pela ps-modernidade.

    Trata-se, pois, de uma nova tarefa, que exige no apenas uma percep-o multidisciplinar, como a necessria criatividade, para, sem desfigurar as caractersticas democraticamente saudveis que se expressem nos contrapo-deres, encontrar para as suas manifestaes populares os adequados canais disciplinadores, que so prprios do direito, escoimando seus abusos, que possam representar desafios aos valores republicanos da ordem social, da paz e das liberdades pblicas.

    Trata-se, em suma, de um trabalho a ser desenvolvido concomitantemen-te no mbito jurdico mundial estatal, dos quase 200 pases independentes portanto, interessando aos respectivos direitos constitucionalizados como, simultaneamente, no ecmeno global transestatal com suas milhares de organizaes que, de algum modo, administram interesses pblicos , por-tanto, alcanando o direito globalizado.

    Em ambos os casos ter-se- o mesmo objetivo: a criao de instituies sejam elas nacionais, internacionais, supranacionais ou transnacionais as quais, sempre respeitando a liberdade de expresso das pessoas, estejam aptas a canalizar civilizadamente as manifestaes de contrapoderes, de qualquer espcie e intensidade, para, filtrando-os, incorpor-los ao processo aberto de criao e aplicao do direito, para que sirvam como novos instrumentos da cidadania.

    Ao aludir criatividade, pensa-se, com efeito, em um enfrentamento construtivo da conflitualidade, que espontaneamente sempre se desenvolve-r, quanto mais extraordinria for a complexidade de interesses que apresen-tem as sociedades ps-modernas.

    Em consequncia, hoje, desaparecidas ou enfraquecidas inmeras limi-taes fsicas e sociais que se interpunham livre comunicao humana, tor-na-se necessrio instituir novos padres de ordem para os recentes proces-

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    sos sociais, como, emblematicamente em nossos dias, so os contrapoderes; portanto, uma tarefa que exige concertao e ao ecumenicamente amplia-das, desde os quadros juspolticos delimitados pelos estados a todo o campo globalizado transnacional, onde possa alcanar a natural espontaneidade das relaes sociais.

    H, portanto, uma distino importante a ser, desde logo, registrada re-lativamente a essas expresses da vitalidade gregria dos povos, muitas das quais, em suas manifestaes tradicionais, j foram juridicamente institucio-nalizadas, como espcies histricas do gnero dos contrapoderes sociais, acrescidas ao rol das modalidades institucionalizadas no estatais, de longa data conhecidas e estudadas, tais como as associaes dedicadas arregimen-tao e propagao de ideias, os lobbies parlamentares, a imprensa, as religies e tantas outras manifestaes da opinio pblica organizadas, porm que, em razo das dimenses transestatais que adquiriram, a sociologia as tem, por isso, classificado como expresses de uma nova sociedade civil global.25

    Assim, o que predominantemente as tem caracterizado a todas essas mais recentes manifestaes sociais o fenmeno da comunicao digi-tal de massa, que toma corpo e importncia como expresso no estatal de concentrao de poder difuso em escala global, j assinalando, por isso, para alguns observadores, o que se pode identificar, com Castells, como uma Era Digital.26

    Este megafenmeno da comunicao, tratado como uma especfica mani-festao de poder,27 pode ser constatado na repercusso pblica dos grandes arquivos de dados e de opinies, abertos sem fronteiras polticas ou limites geogrficos, postos disposio de bilhes de pessoas, tais como, exemplifica-tivamente, os blogs, o Facebook aptos a formar redes para transformar infor-maes em grupos de ao e, mais recentemente, o WikiLeaks, que procura

    25 O conceito de sociedade civil global tem emergido muito a propsito das dificuldades de su-perao dos vazios institucionais causados pela globalizao, como o recurso, sempre possvel, ao processo espontneo atravs do qual a sociedade continua a gerar instituies independen-temente das produzidas atravs dos canais juspolticos tradicionais, como sugere Hobsbawm na seguinte passagem de sua conhecida obra: Talvez a caracterstica mais marcante do fim do sculo XX seja a tenso entre esse processo de globalizao cada vez mais acelerado e a incapa-cidade conjunta das instituies pblicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele. HOBSBAWM, E.J. A era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. Traduo de Marcos Santarrita. So Paulo: Cia das letras, 1995. p. 24.26 Sobre este ponto, do recente livro de Castells, Communication power, op. cit., no captulo Com-munication in the digital age (p. 54 e ss.).27 Na mesma obra acima referida, de Manuel Castells, a respeito dessa afirmao destacada em negrito, seu captulo final: Toward a communication theory of power (p. 416 e ss.).

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    desnudar e desmitificar o emprego do sigilo de Estado com a divulgao de correspondncias oficiais reservadas em todo o mundo.

    Embora, por sua prpria natureza, essas manifestaes pblicas virtuais, que empregam a via digital e concentrem poder, em princpio prescindam do emprego da fora, uma particularidade que as distinguem das manifestaes pblicas presenciais, a dos tradicionais movimentos de massa, certo, por outro ngulo de percepo, que elas encurtam a distncia, de um lado, entre a simples demonstrao pblica de ideias ou, mesmo, a da resistncia passiva, e, de outro lado, a exploso de aes coletivas de agresso e de vandalismo, ou, em outros termos: entre o emprego de um lcito poder persuasivo e de um ilcito poder coercitivo.

    Assim que os movimentos de massa, empregados como formas de ex-presso de protestos ou de reivindicaes, podero facilmente se prevalecer dos acrescidos meios de difuso e de arregimentao possibilitados pela co-municao digital, para facilmente se constiturem como espcies compsitas e particularmente agressivas do que seria, assim perigosamente ampliado, a espcie de risco dos contrapoderes sociais.

    E tanto assim o que, mesmo sem que esse hibridismo de meios de pro-pagao atinja todo seu potencial, possvel observar-se que, at em simples manifestaes de massa em praa pblica, indistintamente em pases ricos ou pobres e em vrios nveis de desenvolvimento, j se vem registrando uma preocupante escalada de violncia remotamente induzida pela mobilizao eletrnica.

    , pois, este imponderado potencial de riscos, que tm surgido com essas novas manifestaes de contrapoderes, o objeto dos estudos sociolgicos em-preendidos quanto a suas causas, padres e efeitos, suscitando, como seria de se esperar enquanto processos espontneos de mobilizao da sociedade que so , tanto opinies tolerantes como intolerantes, embora seja, como se-ria de se esperar, geral, a reprovao dos abusos e das selvagerias que possam acompanh-los.28

    Portanto, so arrolados como aspectos positivos do fenmeno, para os que o veem com tolerncia, citando-os em incompleta sntese: a demonstrao do amadurecimento poltico-social das populaes, a intensificao da par-ticipao cidad ativa e, particularmente, sua plena compatibilidade, seno

    28 Da qual exemplo a bibliografia especializada do fim do sculo passado, j referida em nota anterior: Evans, Globalizacin contrahegemnica, op. cit.; EVERS, T. Estatismo vs. imediatismo, op. cit.; Paoli, As cincias sociais, op. cit.; e Portes, Villagers, op. cit.

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    mesmo sua indispensabilidade como til sinal de alarme social do agua-mento de riscos.

    Em confronto, se considerados quanto aos aspectos negativos do fenme-no, para os que os temem, a ponto de no toler-los, mencionem-se: a possi-bilidade da manipulao radical poltico-partidria dos descontentamentos, ainda que legtimos; os abalos que causam segurana pblica, principal-mente nos centros urbanos; e, no menos inquietantes, as graves interfern-cias de fato que acarretam sobre o normal exerccio dos servios pblicos, em prejuzo geral de seus usurios.

    De qualquer forma, sintetizando os argumentos expostos, tais movimen-tos, em seu estado bruto, embora possam ser teis, constituem um potencial de riscos ordem jurdica instituda, pois, por sua prpria natureza, podem incitar agitaes propensas ao emprego da fora, particularidade que as dis-tinguem da mera comunicao massiva, que, embora modalidade concentra-dora de poder, em geral no chega a express-lo pela violncia.

    Eis porque, sem alarmismo ou radicalismo, h que se reconhecer que existem sobejas razes para que os estados democrticos considerem aten-tamente a necessidade de instituir instrumentos juspolticos hbeis para uma conteno preventiva e pacfica sobre esses fenmenos, visando a reduzir seu potencial de riscos de agresso e desordem. Cabe assim, ordem jurdica dos estados, a misso de canaliz-las institucionalmente, ou seja, de sub-met-las a cnones jurdicos, para, bem aproveitando o que h de positivo e de saudvel nessas foras sociais, lev-las a desempenhar um papel valioso e construtivo para a manuteno da paz social e o exerccio das liberdades democrticas, sempre em prestgio das legtimas expresses da cidadania, com solues que no lhe sufoquem a espontaneidade criativa, mas, necessa-riamente, levem a minimizar e, se possvel, eliminar os aspectos negativos que possam oferecer riscos.

    5. Juridicizando os contrapoderes

    Ora, no outra a imemorial misso institucional do direito que a de bus-car a disciplina das situaes de fato conflitivas, de modo a gerar as deseja-das qualidades de previsibilidade e de segurana na convivncia civilizada, um objetivo que, na escala das reivindicaes aqui consideradas, desde logo, obrigatoriamente se inclui no contexto do direito interno dos pases, como uma relevante matria constitucional atinente segurana das instituies.

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    Mas, tal como posto, com o adensamento das relaes transestatais, tor-nou-se evidente que o problema da juridicizao dos contrapoderes trans-cendeu as possibilidades oferecidas pelo desenho constitucional do Estado moderno, at recentemente limitado instituio de apenas duas categorias de funes pblicas as governativas, preponderantemente majoritrias, de legislar e de executar, e as judicativas, contramajoritrias, no quadro de ambas importante observar a soluo para os excessos dos contrapo-deres em geral no passava da adoo de tpicas medidas repressivas.

    Esta , pois, a razo pela qual, hoje, distintamente, nos estados ps-mo-dernos se patenteia a necessidade de instituir novas funes pblicas em acrscimo quelas que se voltem especialmente realizao de novas e di-ferenciadas funes para o atendimento das demandas sociais, tais como estas aqui tratadas, da emergncia contempornea dos contrapoderes.

    Incluem-se neste rol um conjunto de especficas funes de interme-diao e de controle a serem cometidas a instituies constitucionaliza-das, com vistas a atuarem como expresses da democracia substantiva, apartidrias e independentes, de legtimos interesses da cidadania; aptas, portanto, a canalizar e filtrar os contrapoderes, em qualquer manifestao

    e nvel e onde quer que despontem, de modo que possam ser direta ou in-diretamente exercidas no precpuo, ainda que no exclusivo interesse da sociedade.

    Nessa linha, que no outra verso da sempre insuficientemente versa-da, do permanente aprimoramento do controle do poder, tem-se procedido busca de solues e institucionalizado as que possibilitem imediatas res-postas a esses desafios postos pela ps-modernidade, uma vez que os riscos de delongas, para serem superados, muitas vezes sero maiores do que os normalmente previsveis; isto porque as escaladas brbaras e agressivas de manifestaes incontidas das massas podem alcanar paroxismos de desobe-dincia civil e de violncia coletiva, e carrearo, como consequncia, o indese-jvel desencanto popular com as legtimas solues democrticas tradicionais e o correlato perigo de ressuscitar o sombrio mito da necessidade do Estado forte como se s fosse possvel manter a segurana retornando aos mode-los de Estado orientados imposio da ordem pblica exclusivamente pela via autoritria.

    Este risco maior, do regresso via poltica anacrnica e falida do autori-tarismo, infelizmente est sempre acenado pelos inefveis inimigos da liber-dade, como resposta simplista e imediatista, tanto aos reais problemas enfren-

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    tados, como aos falsos, estes que so geralmente concebidos pelos autocratas como reforo lgica falaciosa prpria dessa equivocada opo poltica.

    Ora, eis que essa enganosa resposta, no obstante sua falcia, j tantas vezes historicamente comprovada, praga que novamente se difunde neste incio de sculo em pases que j a haviam superado, como uma sinistra esca-lada anacrnica de neoautoritarismo, que j atinge vinhos da Amrica latina, com o acrescido risco de ressuscitar, entre suas sequelas, as malsinadas razes de Estado, que, alm de vulnerarem frontalmente o dever de transparncia e de motivao das constituies democrticas, desperdiam as oportunidades abertas pelas crises para o aperfeioamento da repblica, da democracia e da cidadania.

    Por isso, dando uma resposta diametralmente oposta a essa sinistra op-o que tanto fracassou no passado, repudiando a represso e o autoritarismo, o exerccio permanente e efetivo do controle do poder qualquer que seja o rgo que se exceda deve ser conduzido na linha civilizada da raciona-lizao permanente e institucionalizada, possibilitada por instrumentos que ampliem, genericamente, as atuaes de zeladoria, fiscalizao, promoo e defesa dos interesses pblicos, o que se obtm pela abertura de novos canais de expresso da sociedade.

    Desse modo, a intermediao cidad, expressada na forma de canaliza-o de contrapoderes funcionalmente institucionalizados na estrutura do Estado, a fim de tratar democraticamente as discordncias e conflitos para incorpor-los aos processos regulares voltados sua apreciao, apresenta-se como uma dessas necessrias e possveis respostas do direito proliferao de riscos, que, de outro modo, s viriam a ser agravados se permitida uma atuao incontida e desabrida dos contrapoderes sociais deixados em estado bruto.

    Com a alternativa jurdica de promover-se o encaminhamento e filtra-gem jurdica de inmeros interesses e reivindicaes emergentes da socie-dade, que de outra forma engrossariam o inconformismo e iriam s ruas, possibilita-se que eles ingressem com segurana e venham at a atuar institu-cionalmente no sistema juspoltico, j sob a forma civilizada de contrapoderes socioestatais juridicamente absorvidos e organizados.

    Desse modo, as sementes de conflito que proliferam nas complexas so-ciedades ps-modernas, em lugar de gerarem sempre novos riscos, podem, superiormente, servir como instrumentos da democracia ativa, uma vez ade-quadamente absorvidos institucionalmente, o que vale dizer: para serem en-caminhados, como expresso legtima de poderes estatais de provocao,

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    apreciao, conforme se apresentem as questes, das funes governativa e judicativa do Estado.29

    Para o aperfeioamento dos estados democrticos abrem-se duas vias para a judicializao dos contrapoderes sociais: ou institu-los diretamente na estrutura ecltica da sociedade oficializando escolhas diretas do povo ou institu-los como rgos hbridos na estrutura cratolgica do Estado oficializando escolhas indiretas do povo.

    A ao direta da sociedade tem lugar pela pluralizao de canais para o exerccio da cidadania, conformando as modalidades polticas de participa-o, como o so o sufrgio eletivo de representantes e de chefes do Executivo dos trs graus federativos, o plebiscito, o referendum e a iniciativa de leis, bem como as modalidades administrativas de participao, tais como a coleta de opinio, a consulta ou debate pblicos, a audincia pblica, o colegiado p-blico, a cogesto de parestatal, a assessoria externa, a delegao atpica, a pro-vocao de inqurito civil, a denncia aos tribunais de contas, a reclamao relativa prestao de servios pblicos e a reclamao contra membros ou rgos do Poder Judicirio, inclusive contra seus servios auxiliares, serven-tias e rgos prestadores de servios notariais e de registro que atuem por delegao do poder pblico ou oficializados, bem como contra membros do Ministrio Pblico e seus servidores.30

    Essa via de oficializao de escolhas diretas do povo, que so os processos da democracia direta, no novidade, pois, alm do primitivo exemplo tico, alguns modelos podem ser lembrados, como a prtica medieval do sufrgio presencial em praa pblica, ainda existente na Sua, e o recall, empregado para a revogao de mandatos de agentes eleitos e a resciso de sentenas judiciais, vigente em alguns estados norte-americanos e na Sua.

    29 Recolhe-se, mais uma vez, neste texto, a lio de Miguel Seabra Fagundes, em seu clssico O controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio (7. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005) em que, com incrvel percepo antecipativa do que hoje se tem como policentrismo de funes, exps o correto entendimento, rarefeito poca, de que o Estado desempenha funes e no poderes que lhes sejam prprios. E isso, primeiro, porque o poder estatal , como hoje pacifi-camente reconhecido, uno e no fracionado e, segundo, com mais razo, porque tais poderes so inerentes cidadania o que Seabra Fagundes sustenta logo nas primeiras pginas de sua obra prima (item n. 1, numerao mantida em todas as edies) e prossegue afirmando que o Estado uma vez constitudo, realiza seus fins atravs de trs funes em que se reparte a sua atividade (item n. 2), explicando, em nota correspondente, que Montesquieu jamais usou a expresso se-parao de poderes, razo pela qual, acrescentava o mestre, no merecia que se o recriminasse pelos defeitos decorrentes desta arraigada concepo, tipicamente estatocntrica, em que se su-bentende um velado desprezo pela democracia (nota 2).30 Para a participao administrativa, suas caractersticas e possibilidades, ver MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participao poltica. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 123 a 142.

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    Por outro lado, uma atuao mista, tanto de democracia semidireta como de indireta, requer maior elaborao, como a que pode ser instituda pela criao de rgos hbridos: instituies que, embora se situem na estrutura organizativa do Estado e estejam dotadas de funes estatais, oficializam a participao da sociedade no desempenho de funes que no so legislati-vas, nem de pblica administrao e nem, tampouco, judicativas.

    Assim, so hbridas certas funes a serem exercidas no interesse tanto da sociedade como do Estado, pois, embora instrumentos da sociedade, elas necessitam da investidura de autoridade para serem eficazmente exercidas, pois que, como advertiu Montesquieu, somente o poder contm o poder: le pouvoir arrte le pouvoir.31

    Da esta soluo depender da criao e do desenvolvimento de novas funes constitucionais independentes destinadas a serem canalizado-ras habilitadas para a expresso da sociedade com caractersticas hbridas devendo ser criadas no prprio Estado, de modo que, ao se articularem, de vrios modos, com as tradicionais funes constitucionais independentes do Estado, de seus tradicionais poderes, produzam uma rica diversificao funcional legitimatria, atuando, portanto, como autnticas vias de expres-so democrtica e civilizada dos interesses legtimos da sociedade e, assim, como necessrias e diversificadas alternativas aos j notoriamente insuficien-tes instrumentos tradicionais da representao poltico-partidria.

    Desse modo, reivindicaes de toda natureza da sociedade ganham voz, em acrscimo aos tradicionais meios de expresso poltico-partidrios que so mais prprios para gerar solues atravs de generalizaes legislati-vas do que para ministrar solues conjunturais , que passam a conformar um conjunto de diversificados meios de atuao que so oferecidos atravs de instituies para tanto j criadas com as caractersticas de serem juridi-camente abertas e fundamentalmente neutrais, por atuarem fora dos canais poltico-partidrios.

    Porm, a mais marcante novidade dessa diversificao de instrumentos sociais, que se prestam a to distintas funes como as de filtragem, fiscali-zao, zeladoria, controle, promoo e defesa dos interesses da sociedade, consiste inegavelmente no notvel aperfeioamento que aportam democra-cia substantiva, ao introduzirem novas vias de participao da cidadania,

    31 Aluso sntese da consagrada expresso de Montesquieu no Esprito das leis: Pour quon ne puis-se abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrte le pouvoir.

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    em seu direto interesse e proveito, sobretudo pelo acrscimo de legitimidade que trazem sempre desejada interao sociedade-Estado, complementando, na ps-modernidade, as solues polticas insuficientes, como observado por Ulrich Beck, pela via da representao e das instituies parlamentares.32

    Importantes exemplos atuais dessas instituies hbridas podem ser apontados nas cortes administrativas tcnicas de controle, como o so os tri-bunais de contas em geral,33 e alguns rgos especficos de controle externo no exerccio de funes contramajoritrias;34 nos Ombudsmen, de tradicional criao escandinava;35 nas vrias modalidades de advocacias independentes, privadas e pblicas, como, no Brasil, o so as Funes Essenciais Justia;36 e,

    32 Da porque Montesquieu s encontrava remdio para a tendncia universal ao abuso de poder poltico na montagem institucional de um mecanismo de poderes e contrapoderes. preciso que, pela prpria disposio das coisas, o poder freie o poder. J no se trata, portanto, de confiar cega-mente nos homens, mas de saber que qualquer um de ns, quando no poder, facilmente levado ao desatino, se no for convenientemente enquadrado pelas instituies polticas. Acontece que o sbio francs raciocinava no quadro da ao poltica exercida por meio de representantes dos governados. Isso era, sem dvida, um progresso em relao s prticas absolutistas do passado, mas revela-se hoje, em tempos de democracia participativa, algo de muito insuficiente. Sabemos todos que o Estado Democrtico de Direito, mencionado na Constituio, no passa, em nossa triste realidade, de uma pea de fico poltica. A democracia pressupe a atribuio efetiva (e no apenas simblica) da soberania ao povo, devendo os rgos estatais atuar como meros exe-cutores da vontade popular. Entre ns, esse esquema funciona em sentido inverso. A soberania pertence de fato aos governantes, que vivem numa espcie de estratosfera ou crculo celeste, onde so admitidos, to s, os que detm algum poder econmico ou alguma influncia junto ao eleito-rado ou opinio pblica. Todos os demais cidados so confinados, c embaixo, como simples espectadores, pois os governantes de h muito lograram transformar a representao poltica em representao teatral: eles encenam, perante o povo, a farsa do rigoroso cumprimento da vontade eleitoral. Em suma, temos todo um sistema de poder estatal, mas nenhuma forma organizada de contrapoder popular diante dele (COMPARATO, Fbio Konder. Contrapoder popular. Folha de S.Paulo, 22 fev. 2004, respeitada a grafia original, com nossos destaques).33 As cortes de contas, no obstantes existentes desde o primitivo modelo napolenico, de 1821, e do belga, j mais avanado, de 1931, tm apresentando uma constante evoluo, desde rgos auxiliares do Poder legislativo a rgos constitucionalmente independentes de controle. No apenas de contas, mas de procedimentos e de resultados da gesto administrativa de quaisquer entes ou rgos que atuem com recursos pblicos.34 Podendo ser citados no Brasil dois rgos constitucionais independentes: de controle adminis-trativo do Poder Judicirio, o Conselho Nacional da Magistratura, e o do Ministrio Pblico, o Conselho Nacional do Ministrio Pblico.35 Admirada institucionalizao pioneira de um contrapoder no Estado, originada em pases escandinavos, com denominao derivada de palavra com etimologia no noruegus arcaico umbusmann , que significa, apropriadamente, representante: agente independente com fun-es de zeladoria, controle e promoo de interesses pblicos manifestados por cidados.36 Tema sobre o qual o autor tem publicado vrios trabalhos desde 1988, ano em que essa modali-dade veio a ser adotada na Constituio, sendo dos mais recentes o artigo a respeito das Novas funes constitucionais no Estado Democrtico de Direito Um estudo de caso no Brasil, em obra coletiva em homenagem ao eminente publicista professor doutor Jorge Miranda, glria e orgulho das letras jurdicas portuguesas, por ocasio de sua jubilao, em 2011, coordenada pelos professores doutores Marcelo Rebelo de Souza, Fausto de Quadros e Paulo Otero.

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    ainda, nas Assembleias de Cidados,37 uma soluo que, no Brasil, j recebeu expresso apoio de Fbio Konder Comparato, em 2004, em artigo pela impren-sa.38 Observe-se que todas essas modalidades, assim como assemelhadas, que venham a ser criadas na mesma linha, se reforam e se completam mutua-mente, conformando uma trama de funes contramajoritrias voltadas, em comum, tutela da legitimidade.

    Realmente, como exposto, essas alternativas institucionais se implemen-tam constitucionalmente pela criao e pelo desenvolvimento de novas fun-es independentes canalizadoras da expresso da sociedade, que, por se-rem hbridas, ou seja, institudas no prprio Estado, se articulam de vrios modos com as tradicionais trs funes constitucionais independentes do Es-tado, produzindo uma rica pluralizao funcional e legitimatria, suficiente para abrir autnticas vias de expresso democrtica e civilizada dos interesses legtimos da sociedade, postas como alternativas aos insuficientes instrumen-tos da representao poltico-partidria.

    As reivindicaes da sociedade ganham, com o acrscimo dessa legiti-mao alm dos tradicionais meios de expresso poltico-partidrios, mais prprios para as generalizaes legislativas do que para ministrar solues pontuais aos conflitos, novos e diversificados caminhos institucionais, juridi-camente abertos e fundamentalmente neutrais, assim entendidos por atua-rem fora dos canais poltico-partidrios.

    37 As Assembleias de Cidados, como as existentes em alguns pases to diversificados, como na Austrlia, na Finlndia, no Canad (Columbia Britnica e Ontario) e o Qunia, proliferam rapida-mente, em razo do efeito demonstrao globalizante, inspirando outras entidades polticas que tm em pauta funes semelhantes.38 Assim expe e justifica o ilustre publicista a sua proposta: Em suma, temos todo um sistema de poder estatal, mas nenhuma forma organizada de contrapoder popular diante dele. Ora, numa democracia autntica, a ao poltica no se desenvolve apenas no nvel do poder estatal, com o objetivo de conquist-lo ou mant-lo. Ela deve tambm exercer-se diretamente pelo prprio povo, perante todos os rgos do Estado, no s para fiscaliz-los, denunciar os crimes, desvios, imora-lidades e omisses, mas tambm para que o povo tome por si, e no por meio de representantes, as grandes decises polticas, aquelas que empenham o futuro da coletividade em todos os nveis: local, regional e nacional. Na esfera do Estado, so incontestavelmente os partidos polticos os grandes instrumentos de representao popular. Mas ainda no conseguimos criar um sistema organizado de agentes polticos que atuem, com o povo, como instrumentos de contrapoder pe-rante os rgos do Estado. Vai, pois, aqui a ideia de criar um consrcio das organizaes no governamentais dedicadas, exclusivamente, tarefa de atuar como agentes desse contrapoder popular. O povo soberano teria assim, a seu servio, um instrumento poltico capaz de promover protestos e campanhas de opinio pblica, bem como de utilizar, da melhor maneira, os escassos mecanismos de denncia e responsabilizao dos agentes pblicos existentes em nosso sistema jurdico: aes populares, aes civis pblicas, representao ao Ministrio Pblico por improbi-dade administrativa ou prticas criminosas em geral, denncias de crimes de responsabilidade visando ao impeachment. (Comparato, Contrapoder popular, op. cit.).

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    Porm, a mais marcante novidade dessa diversificao de instrumentos

    sociais de zeladoria, controle, promoo e defesa dos interesses da socieda-de consiste, inegavelmente, no notvel aperfeioamento que aportam de-mocracia substantiva, pela introduo de novas vias de participao da cida-dania, abertas em seu direto interesse e proveito, constituindo-se em notvel avano, sobretudo pelo acrscimo de legitimidade que trazem interao so-ciedade-Estado, complementando na ps-modernidade as solues hoje tidas como insuficientes da representao poltica.

    Portanto, o notvel aperfeioamento de que aqui se d conta, trazido pelos novos instrumentos democrticos para a expresso da cidadania, no se sobrepe, seno que se acresce aos existentes, de modo a poderem atuar paralela e independentemente dos tradicionais canais partidrios e eleito-rais, que, como exposto, se ressentem das limitaes inerentes s instituies representativas, forjadas para satisfazer as demandas da modernidade, para que possam prover, com individualizao, presteza e qualidade, as diversifica-dssimas prestaes para o atendimento dos cada vez mais exigentes valores, necessidades, interesses e aspiraes das sociedades da ps-modernidade.

    . a importncia das funes neutrais como canais contemporneos de expresso da democracia

    Essas funes independentes tambm necessitam ser desempenhadas por agentes do Estado, que se distinguiro dos demais pelo exerccio de competncias constitucionais prioritariamente afetas a interesses diretos e imediatos da sociedade, embora, sempre que legitimamente com estes com-patveis, possam tambm curar dos interesses do prprio Estado, em seus desdobramentos polticos e administrativos, constituindo-se, assim, tal como o o Judicirio, como outro complexo orgnico constitucional de funes es-tatais neutrais.

    A institucionalizao desse novo bloco de funes constitucionais que ostenta a caracterstica distintiva de serem funes poltico-partidariamente neutras resultado de importantes mutaes juspolticas, incidentes, nota-damente, na teoria dos interesses pblicos, que dissiparam a antiga confuso categorial, gerada pela impreciso da distino entre os interesses pblicos originais, ou primrios, afetos s pessoas em sociedade, e os interesses p-blicos derivados, ou secundrios, afetos ao Estado.

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    Com efeito, os sistemas de produo legislativa tradicional, atravs de grandes colegiados os aparelhos de Estado parlamentares criados para a produo do direito-legalidade, historicamente s funcionaram plenamen-te a contento enquanto no haviam sido claramente diferenciadas as catego-rias especficas de interesses pblicos, at ento consideradas em bloco sob a designao de interesses gerais.

    Observe-se, portanto, que exatamente por este motivo por fidelidade ao princpio da representao poltica (e apenas poltica) , esses interesses gerais, consequentemente, deveriam ser definidos com exclusividade pelos rgos investidos no mandato de manifestar essa presumida vontade geral da sociedade, ou seja: apenas pelas assembleias populares, para tanto toman-do as decises por seus grupos majoritrios.

    Com o crescimento e a diversificao das sociedades, notadamente a par-tir das Revolues Industriais, que marcaram o fastgio e o comeo do fim da modernidade, esses interesses se foram de tal modo se multiplicando, frag-mentando, setorializando e especializando que o sistema legislativo de tipo parlamentar, no tendo como acompanhar essa evoluo o que demanda-ria diversificar-se tambm para a produo das leis , mergulhou em crise de legitimidade.39

    Vale, portanto, dizer que, por no mais poder definir e atender adequa-damente, atravs da funo legislativa, a complexa massa de reivindica-es que conformariam em tese interesses realmente gerais no houve como evitar que no clssico processo legislativo se passasse a negligenciar a precpua misso de cuidar dos interesses pblicos primrios (os da so-ciedade), bem como a de zelar pelos interesses pblicos secundrios (os do Estado), para se aplicar cada vez mais ao jogo do poder poltico-partidrio, de interesses pblicos tercirios (os dos partidos polticos) que se confun-de, ainda, com os interesses dos prprios representantes, de aclitos e das

    39 Elio Chaves Flores e Joana dArc de Souza Cavalcanti, citando Norberto Bobbio (A era dos di-reitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992), do trs razes para este preocupante fenmeno: 1. a re-presentao poltica nos estados democrticos est em crise, principalmente porque a instituio parlamentar na sociedade industrial avanada no mais o centro do poder real, mas quase somente uma cmara de ressonncia de decises tomadas em outro lugar; 2. os mecanismos ins-titucionais de escolha fazem com que a participao popular se limite a legitimar, em intervalos mais ou menos longos, uma classe poltica que tende autopreservao e que cada vez menos representativa; e 3. devido ao poder de manipulao por parte de poderosas organizaes priva-das e pblicas. (O fardo da legitimidade: a democracia para alm dos parlamentos. Prim@-facie, ano 5, n. 9, p. 64-72, jul./dez. 2006. Disponvel em: ).

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    inmeras sees das agremiaes partidrias muito distantes das reais necessidades do povo.

    Em suma, aqui aplicando e estendendo a conhecida classificao de in-teresses pblicos, em primrios, do povo, e secundrios, do Estado, que encontra seus prolegmenos em Marcello Caetano e Oreste Ranelletti e seu enunciado mais divulgado em Renato Alessi, observa-se que os parlamen-tos, por se dedicarem a uma atuao cada vez mais voltada satisfao do que seriam mais propriamente, como acima denominado, interesses terci-rios (os dos prprios partidos polticos em sua atuao pblica na busca de poder), vo, com isso, produzindo resultados que, no obstante formalmen-te democrticos um aspecto que poderia at ser considerado suficiente de uma ptica meramente legalista , em nada servem sua clssica misso de conferir o que se pudesse qualificar de uma autntica legitimao demo-crtica quanto substncia agora entendida da ptica ampliada e ps-positivista da juridicidade.

    Porm, alm dessas razes, como sabido, as casas parlamentares foram perdendo as condies em termos de tempo e de tcnica de exercerem suas importantes funes de controle, como por tradio desempenhavam. Condies de tempo, pois a pletora legislativa cresce alm da possibilidade de um adequado seguimento fiscalizatrio sobre o governo e sua administrao atravs dos institutos usuais das comisses parlamentares de inqurito, de convocao de autoridades e dos demais instrumentos tradicionais.

    Mas, mais grave ainda, as condies de tcnica, pois a diversidade e a especialidade dos interesses originais, bem como as dos temas a serem en-frentados, escapam aos conhecimentos generalistas, que normalmente so esperados dos representantes polticos e que, por isso mesmo, tendem a con-siderar limitadamente tais tipos de problemas, avaliando-os meramente sob os aspectos poltico-partidrios, por escapar-lhes o domnio de critrios de outra natureza, como so os tcnicos e os jurdicos, cada vez mais essenciais a uma autntica legitimao democrtica de suas decises.

    Portanto, a teoria dos poderes neutrais que, mais apropriadamente, hoje no mais assim se definiro corretamente, mas como funes neutrais,40 em razo da prpria unicidade do poder estatal, e entendida no como uma neutralidade genrica, mas como uma neutralidade especfica, ou seja, to

    40 Como o poder do Estado uno e indivisvel, o seu exerccio que se fraciona e se distribui em funes, devendo a expresso plural de usana histrica Poderes do Estado ser entendida apenas como um tropo de linguagem.

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    somente restrita aos assuntos poltico-partidrios parte da constatao des-sa paulatina eroso da legitimidade das assembleias polticas, as quais, muito embora formalmente eleitas, perdem legitimidade quando se trata de aferir, com imparcialidade e independncia, a pletora de valores em constante con-corrncia e em conflito nas sociedades contemporneas.

    Portanto, o direito ps-moderno, ao cometer, em dois nveis, o poltico e o administrativo respectivamente, a rgos constitucionalmente inde-pendentes e a rgos administrativamente autnomos o desempenho de funes neutrais, acorreu com atualidade e eficincia para superar esse im-passe de legitimao de modo a priorizar os interesses pblicos primrios sobre todos os demais e, com isso, garantir equidistncia decisria na tarefa de ponderao concursal entre mltiplos valores, logrando a plena legitima-o, tanto em termos correntes como finalsticos, e sem qualquer interferncia sobre as atividades partidariamente orientadas, a cargo dos rgos governa-mentais do Estado.

    Se, no curso da modernidade, sob o conceito de legalidade, ento hege-mnico, a noo de direito subjetivo sempre legalmente referida era dominante, diferentemente, com o advento da ps-modernidade e a expanso do paradigma mais amplo da juridicidade, em que prevalece a noo de di-reitos fundamentais, essa noo passou a ser supralegalmente referida aos direitos humanos constitucionalizados, desde logo, os atinentes liberdade, seguindo-se os atinentes igualdade, para, como ltimo desdobramento, os atinentes cidadania.

    Assim que, com o objetivo de maximizar a efetivao desses direitos fundamentais da cidadania, como auspicioso rebento republicano que reflo-resceu nos estados democrticos de direito, conheceram extraordinrio de-senvolvimento contemporneo as funes neutrais, com ao contramajorit-ria, ampliando e processualizando novos canais participativos, concorrendo, assim, para maiores visibilidade e controle sobre as funes de governana, com o que atendem satisfatoriamente sua primria destinao societal, re-gistrando-se, assim, ampliados ganhos, tanto em termos de legitimidade cor-rente a que se aperfeioa no curso da ao como em termos de legitimi-dade finalstica que se integra com o resultado: dois importantes aspectos que, com essas novas funes, lograram destaque.

    razovel, portanto, afirmar que a renovao juspoltica sistemtica pro-porcionada por esta expanso da juridicidade, ultrapassando o tradicional e concentrado, quando no autocrtico e elitista sistema estatal de produo da lei, veio possibilitar o surgimento e a multiplicao desses novos, variados e

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    ampliados sistemas hbridos, socioestatais, de produo do direito, possibi-litando um controle policntrico desses acrescentados valores.

    Este fenmeno ps-moderno, do policentrismo de controles, vem a ser no apenas a mais revolucionria como a mais importante das mutaes ju-rdicas contemporneas, em razo de ter informado brilhantes construes jurdicas derivadas, incorporadas tanto ao direito estatal constitucionalizado quanto ao direito transestatal globalizado, tais como, entre tantas que pode-riam ser mencionadas: o neoconstitucionalismo, a democratizao da aplica-o do direito por uma sociedade aberta de intrpretes41 e a legitimao de todo tipo de decises atravs de funes neutrais, que, embora necessaria-mente revestidas do poder estatal, no se atrelam a valores e interesses insti-tucionalmente parciais, portanto eventualmente majoritrios, exatamente por serem partidrios (ambas as expresses derivadas do mesmo timo latino: pars, partis).

    Destaque-se, no plano instrumental, o elenco de novas funes estatais neutrais contramajoritrias,42 cuja concepo eticamente avanada tanto veio a enriquecer, a robustecer e a aperfeioar as alternativas decisrias praticadas no Estado, tanto como, no mesmo nvel de importncia, os seus instrumentos de controle recproco.

    Com essas funes neutrais contramajoritrias voltadas a recolher em suas origens difusas, por toda a sociedade, o puro e legtimo sentido social de justia, reacende-se um novo e forte luzeiro, absolutamente necessrio nas sociedades pluralistas ps-modernas, para iluminar e validar quaisquer apli-caes das leis: tanto as que devam atuar voltadas ordenao do estamento social, como as que devam produzir resultados de controle sobre ele.

    Essas atividades, que se legitimam no pela investidura eleitoral, mas pela fidelidade republicana em seu prprio exerccio e, sobretudo, pelos re-sultados que produzem, progressivamente se esto impondo, tangidas pelos ventos da consensualidade e da flexibilidade, facilitando o atendimento de toda sorte de demandas que so prprias da complexidade e do pluralismo contemporneos, como encontradas em sociedades cada vez mais densas,

    41 Cf. HBERlE, Peter. Hermenutica constitucional: a sociedade aberta dos intrpretes da consti-tuio: contribuio para a interpretao pluralista e procedimental da constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris Editor, 1997. p. 13 e ss. 42 Tema que o autor tem tratado exaustivamente desde a promulgao da Constituio de 1988, que as inovou no sistema constitucional brasileiro.

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    conscientes, atuantes e que se destacam por suas rpidas e profundas muta-es em todos os campos da interao humana; todo este processo, no bojo de uma irresistvel tendncia de globalizao, que vem expandindo os valores fundamentais do direito, como criao cultural por excelncia (...) da huma-nidade como um todo.43

    No processo de renovao, essas e outras caractersticas juspolticas emer-gem no apenas para legitimar, mas para suavizar e humanizar a aplicao do novo direito, aos poucos desfigurando o envilecido esteretipo que dele ha-via conformado a percepo do homem comum durante a modernidade, ou seja: reduzido apenas cega e inflexvel coleo de leis emanadas do Estado a dura lex, sed lex friamente aplicada por agentes que, por isso mesmo, so tantas vezes incompreendidos, quando no aborrecidos e importunos, uma vez que, no por outra razo, eles apenas sabem a poder e a mando autoritrio.44

    As funes atribudas a esta categoria de agentes exercentes de fun-es estatais neutrais contramajoritrias, triplamente legitimados: pelo mrito em seu acesso que uma legitimao originria; pelo exerccio poltico-partidariamente isento de suas funes que uma legitimao corrente; e por atuarem diretamente para lograr resultados de interesse republicano da sociedade que uma legitimao finalstica, caracters-ticas essas que lhes confere plena legitimidade, e dotados de investidura estatal, que lhes confere plena autoridade, vm suprir as deficincias cr-nicas na percepo e no atendimento dos legtimos interesses gerais da sociedade ps-moderna.

    Assim, os agentes neutrais, robustecidos por essas vrias atuaes para-lelas insista-se, independentes daquelas a cargo dos tradicionais estamen-tos estatais poltico-partidrios para obter os resultados legitimatrios de seu desempenho, se vo difundindo e se capilarizando, cada vez mais dis-posio e ao alcance de toda a sociedade, garantindo, com esta realizao do policentrismo do controle, sua mais autntica e poderosa validao.

    43 A referncia aqui tambm a Peter Hberle, em interveno na Conferncia Internacional sobre a Constituio Portuguesa, promovida pela Fundao Calouste Gulbenkian, lisboa, 26 de abril de 2006, indita, p. 6, da verso policopiada, apud Paulo Ferreira da Cunha, que a recolhe e a cita em obra sua, a tratar da vocao universalista e do universalismo do direito constitucional (Pensar o Estado. lisboa: Quid Juris, 2009. p. 165 e 166).44 GROSSI, Paolo. La primera leccin de derecho. Traduccin de Clara lvarez-Alonso. Madrid: Mar-cial Pons, 2006. p. 18.

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    . concluso: globalizao da democracia

    As sociedades humanas no cessam de progredir e suas instituies, como tudo, transitam pelos mesmos ciclos universais de existncia: nascimen-to, desenvolvimento, amadurecimento, declnio e desaparecimento.

    Nelas, os processos institucionais, que ritualizam sua exteriorizao, apresentam ciclos mais efmeros, em contraste com os valores institucionais, que lhes do contedo, e, assim, coincidentes com a prpria trajetria da es-pcie humana, pois que lhe so inatos.

    Porm, no processo histrico-cultural, os valores despertam lentamente com uma conscincia social e nela se desenvolvem e florescem nas sociedades, na medida em que progridem, evoluindo como prpria essncia da espcie.

    Assim, a democracia, entendida como processo institucional poltico at hoje o mais bem-sucedido , espelha sempre o estado dos valores na sociedade que a adota. H 2.400 anos, os processos empregados pela magn-fica experincia ateniense eram distintos dos institudos na Revoluo Ame-ricana e, mais ainda, distantes dos praticados em nossos dias, embora seus imanentes valores no hajam mudado tanto, se confrontadas as respectivas expresses conceituais de Pricles a Jefferson e deste a Bobbio.

    Processos e valores, portanto, ocasionalmente se distanciam, divergem e causam problemticas desarmonias, que se refletem na vida poltica, tornan-do-se necessrio, para recuperar uma razovel coerncia entre ambos, superar esse paulatino distanciamento atravs de ocasionais mutaes, que surpreen-dem como sbitas mudanas de paradigmas porque no seguem o fluxo habi-tual, a sage lenteur das transformaes histricas de modo a restabelecer-se o equilbrio institucional, em cada pas e em cada poca.

    Estas consideraes so particularmente teis, sempre que os povos de-vam atravessar um perodo de mudanas mais intensas, de modo que suas instituies possam acompanhar de perto as transformaes das respectivas sociedades, pois, afinal, atravs delas que se mantm vivas e prestantes.

    A democracia no discrepa da regra e passa por seus prprios ciclos dialticos, quanto aos critrios de legitimidade do poder: partindo da tese de um conceito censitrio, que arvora a vontade da maioria como critrio; confronta-se com a anttese, de criao romana republicana, de um conceito axiolgico, que funda esse critrio em valores essenciais natureza humana e produz a sntese ps-moderna do conceito substantivo, que os integra har-monicamente.

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    Paralelamente, no curso dessa milenar evoluo, ocorreu outra sntese disciplinar: o tema democrtico, tradicionalmente prprio da poltica, foi aos poucos adentrando a agenda do direito e nele veio a prosperar aportando novos desdobramentos, entre os quais, destacadamente, sua constituciona-lizao, bastando apreciar-se o tratamento integrador por parte de juristas mais recentes, com obras importantes que tratam do fenmeno com plena abrangncia juspoltica, ou seja, como uma s realidade com duas expres-ses, confirmando, a cada dia, a conhecida previso de Norberto Bobbio de

    que a poltica se juridiciza e o direito se politiza, noo que se vai impondo como uma realidade de nosso tempo.

    Este processo se patenteia na prpria evoluo do estado de direito, que, na linha das Constituies italiana, de 1947, e alem, de 1949, e das que as seguiram, renovou-se com nova feio, como um estado democrtico de di-reito. Entre as causas dessa extraordinria transformao qualitativa, citem-se cinco fenmenos contemporneos: (1) o desgaste das ditaduras e autocracias, como consequncia da vitria dos Aliados na Segunda Guerra Mundial; (2) a redescoberta dos valores do humanismo; (3) a reposio do Estado como ins-trumento da sociedade: (4) o envelhecimento do legalismo formal institudo pelo positivismo jurdico e, particularmente, (5) a rpida evoluo da globa-lizao da democracia.

    Para ressaltar apenas este ltimo aspecto e com reflexos mais recentes

    a globalizao da democracia , examine-se esquematicamente a saga moderna da democracia j como regime poltico constitucionalizado em quatro etapas:

    1a etapa de 1776 a 1874 a de sua implantao na era moderna, nas Constituies de pases da Europa e das Amricas; uma expanso que perdeu mpeto no final do perodo em razo da proliferao das ideologias que pre-gavam vrios modelos autocrticos, muitas delas se apropriando da qualifica-o democrtica para aproveitar-lhe o carisma;

    2a etapa de 1974 a 1990 a de sua primeira ressurgncia, como con-sequncia da derrota dos regimes nazifascistas na Segunda Guerra Mundial, sobrevinda com a reconstitucionalizao de cerca de 30 pases na Europa, Amricas, frica e sia;

    3a etapa de 1990 a 1995 a de sua segunda ressurgncia, causada pelo melanclico ocaso das experincias comunistas na Unio Sovitica e em outros pases do mundo, acrescendo mais 36 reconstitucionalizaes, che-gando, assim, a 117 o nmero de estados com, pelo menos formalmente, suas

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    Cartas Polticas democrticas (de um total de 191 estados-membros da ONU, ou seja, uma maioria de 60%); e

    4a etapa de 1995 aos dias de hoje a da terceira ressurgncia, marcada pela primavera islmica (expresso mais ampla que a de primavera rabe, pois o mundo islmico alcana outras etnias e outros idiomas), em que v-rios povos da rea se arregimentam de vrios modos para eliminar ou redu-zir a dominao dos regimes polticos fortemente teocrticos e autocrticos em seus pases, como um movimento que representa no apenas uma recu-perao global da adeso dos povos aos valores democrticos, como uma expressiva demonstrao da crescente confiana universal no valor de suas instituies.

    , portanto, neste cenrio que novas funes constitucionais so postas como canalizadoras de contrapoderes positivos e filtradoras dos negativos, correspondendo ao novo ciclo de sntese da democracia, ou seja: de uma democracia cada vez mais constitucionalizada, com as exigncias axiolgi-cas republicanas absorvidas e destinada a superar a insuficincia dos pro-cessos eletivos majoritrios, de escolhas predominantemente formais, para incorporar processos no apenas da garantia como da realizao poltica de valores, o que inclui a participao nas escolhas predominantemente ma-teriais, tudo para, como elegantemente prenunciava Jean Rivero, h quase meio sculo, que no apenas nos conformemos com uma democracia para a escolha de quem nos vai governar, mas aspiremos a uma democracia para a esco-lha de como queremos ser governados.45

    Referncias

    ANARQUISMO sobre fronteiras. O Globo, Rio de Janeiro, 30 dez. 2010.

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