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Conselhos Gestores

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  • Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular

    Maria da Glria Gohn

    Resumo

    O trabalho objetiva realizar um estudo sobre a forma "conselho" na gesto das polticas urba-

    nas. Estabelecem-se comparaes entre os conselhos gestores modernos e outras formas de

    conselhos do passado (recente e/ou remoto). Depois, focaliza-se a temtica dos conselhos

    num quadro referencial mais amplo relativo gesto pblica. A autora questiona o papel dos

    conselhos gestores na atualidade. Analisa suas metas, problemas, obstculos, e desafi os pol-

    ticos na gesto das polticas sociais urbanas. Trata ainda do impacto dos conselhos gestores

    na realidade urbana brasileira aps 1996. Faz um mapea mento dos conselhos existentes na

    rea social dos municpios e destaca sua presena na rea da moradia, onde se incorporam

    propostas do Frum Nacional de Reforma Urbana em relao aos conselhos.

    Palavras-chave: conselho gestor; participao popular; gesto pblica; polticas sociais.

    Abstract

    The work aims to study the form "council" in the administration of urban policies. It establishes

    comparisons between the modern administrative councils and other forms of councils in the

    recent or remote past. Afterwards, it focuses on the theme of councils in a wider set of references

    related to public administration. The author questions the role of today's administrative councils.

    She analyses their aims, problems, obstacles and political challenges in the administration

    of urban social policies. She also discusses the impact of the administrative councils on the

    Brazilian urban reality after 1996. She maps the existing councils in the social area of the

    municipalities and points out their presence in the area of housing, where proposals of the

    National Forum on Urban Reform regarding the councils are incorporated.

    Keywords: administrative council; popular participation; public administration; social policies.

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    Antecedentes histricos

    A forma "conselho" utilizada na gesto pblica, ou em coletivos organizados da so-

    ciedade civil, no nova na histria. Alguns pesquisadores afi rmam que os conselhos so

    uma inveno to antiga como a prpria democracia participativa e datam suas origens

    desde os cls visigodos. Em Portugal, entre os sculos XII e XV, foram criados "conce-

    lhos" municipais (escrita da poca), como forma poltico-administrativa de Portugal, em

    relao s suas colnias. As Cmaras Municipais e as Prefeituras do Brasil colnia foram

    organizadas segundo esse sistema de gesto (Vieira, 1992). Contemporaneamente, na

    realidade de Portugal, a forma tradicional dos conselhos deu lugar aos conselhos urba-

    nos originrios das comisses de moradores. Eles se iniciaram a partir das Assemblias

    e das Juntas de Freguesias e foram fundamentais durante o perodo da "Revoluo dos

    Cravos" naquele pas (Estevo, 1993).

    Entretanto, os conselhos que se tornaram famosos na histria foram: a Comuna

    de Paris, os conselhos dos sovietes russos, os conselhos operrios de Turim estuda-

    dos por Gramsci , alguns conselhos na Alemanha nos anos 1920, conselhos na antiga

    Iugoslvia, nos anos 1950, conselhos atuais na democracia americana, etc. Observa-se

    que na modernidade os conselhos irrompem em pocas de crises polticas e institucio-

    nais, confl itando com as organizaes de carter mais tradicionais. Os conselhos oper-

    rios e os populares, em geral, rejeitavam a lgica do capitalismo, buscavam outras formas

    de poder, autnomo, descentralizados, com autonomia e autodeterminao.

    Os conselhos como formas de gesto da coisa pblica foram defendidos por

    Hannah Arendt, ao analisar as revolues francesa e americana assim como ao defi nir os

    espaos da ao coletiva entre o pblico e o privado. Para Arendt, os conselhos so a

    nica forma possvel de um governo horizontal; um governo que tenha como condio de

    existncia a participao e a cidadania. Em Crises da repblica (1973) ela afi rmou que

    os conselhos poderiam ser, no apenas uma forma de governo, mas tambm uma forma

    de Estado. O debate sobre os conselhos como instrumento de exerccio da democracia

    um tema da agenda de propostas para a gesto pblica, tanto entre os setores liberais

    como entre os da esquerda. A diferena que eles so pensados como instrumentos ou

    mecanismos de colaborao, pelos liberais, e como vias ou possibilidades de mudanas

    sociais no sentido de democratizao das relaes de poder, pela esquerda.

    No Brasil, nas ltimas dcadas, devemos relembrar as seguintes experincias cole-

    giadas "conselheiristas": os conselhos comunitrios criados para atuar junto administra-

    o municipal ao fi nal dos anos 1970 (Gohn, 1990); os conselhos populares ao fi nal dos

    anos 1970 e parte dos anos 1980 (Urplan, 1984); e os conselhos gestores institucionali-

    zados, principal objeto de refl exo e anlise deste trabalho, a serem tratados a seguir (es-

    tamos deixando de lado os tradicionais conselhos de "notveis" existentes em algumas

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    reas do governo , como educao, sade etc., pelo fato de eles serem formas de asses-

    soria especializadas e incidirem na gesto pblica de forma indireta). Dada a similaridade

    de temas e problemas entre os conselhos populares dos anos 1980 e os conselhos ges-

    tores dos anos 1990, vale a pena resgatarmos um pouco da memria dos primeiros.

    Os conselhos populares foram propostas dos setores da esquerda ou de oposi-

    o ao regime militar e surgiram com papis diversos, tais como: organismos do movi-

    mento popular atuando com parcelas de poder junto ao Executivo (tendo a possibilidade

    de decidir sobre determinadas questes de governo); como organismos superiores de

    luta e organizao popular, gerando situaes de duplo poder uma espcie de poder

    popular paralelo s estruturas institucionais; ou como organismos de administrao muni-

    cipal, criados pelo governo para incorporar o movimento popular ao governo, no sentido

    de que sejam assumidas tarefas de aconselhamento, de deliberao e/ou execuo. A

    discusso sobre os conselhos populares nos anos 1980 tinha como ncleo a questo

    da participao popular. Reivindicada pela sociedade civil ao longo das dcadas de lu-

    tas contra o regime militar, havia vrios entendimentos sobre o seu signifi cado. O termo

    recorrente era participao popular e a categoria central a das classes populares que

    remete de "povo" fi gura genrica, carente de estatuto terico, bastante criticada na

    literatura das cincias sociais. A participao popular foi defi nida, naquele perodo, co-

    mo esforos organizados para aumentar o controle sobre os recursos e as instituies

    que controlam a vida em sociedade. Esses esforos deveriam partir fundamentalmente

    da sociedade civil organizada em movimentos e associaes comunitrias. O povo, os

    excludos dos crculos do poder dominante eram os agentes e os atores bsicos da par-

    ticipao popular.

    Vrios pesquisadores trabalharam com a categoria da participao como impe-

    rativo nas relaes sociais vigentes como forma de democratizar o Estado e seus apa-

    relhos. Participao se tomou um dos principais termos articuladores no repertrio das

    demandas e movimentos. Demo (1988) assinalou naquela poca que a participao en-

    volve mais que a demanda, ela envolve a criao de canais; disso resultou toda uma

    discusso de como seriam e quais seriam esses canais. J se comeava a delinear uma

    discusso sobre se h canais, quais canais, com que qualidade, como participar. O deba-

    te denotava que se estava passando de uma fase da participao como simples presso

    pela demanda de um bem, para uma outra fase, em que h numa certa qualifi cao da

    participao.

    Dentre os conselhos populares que se destacaram no cenrio urbano daquele pe-

    rodo vale registrar, entre outros, trs exemplos signifi cativos: os Conselhos Populares de

    Campinas, no incio dos anos 1980; O Conselho Popular do Oramento, de Osasco; e o

    de Sade da Zona Leste de So Paulo. Este ltimo foi criado em 1976, a partir do traba-

    lho de sanitaristas que trabalhavam nos postos de sade daquela regio, articulados ao

    Partido Comunista, mas, ao mesmo tempo, vivenciando o clima de participao gerado

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    pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Catlica, Os conselhos de Campinas

    desenvolveram-se tambm articulados aos programas das pastorais religiosas e deram

    origem ao movimento "Assemblia do Povo". Cumpre recordar tambm a importncia

    dos conselhos em algumas experincias de gesto municipal que j se tornaram refern-

    cias histricas, em que a participao popular era uma das diretrizes bsicas, tais como

    Lages, em Santa Catarina (Conselho de Pais); Boa Esperana, no Esprito Santo (Conse-

    lho de Desenvolvimento Municipal); e Piracicaba, em So Paulo (gesto 1976-82). Vale

    lembrar ainda a infl uncia que algumas experincias de participao democrtica exerce-

    ram no Brasil dos anos 1970, tais como as prefeituras de Bolonha, na Itlia, e Barcelona,

    na Espanha.

    Nos anos 1990 a grande novidade foram os conselhos gestores, de carter inte-

    rinstitucional. Eles tm o papel de ser instrumentos mediadores na relao sociedade/

    Estado e esto inscritos na Constituio de 1988 e em outras leis do pas. Sabemos que

    essa Constituio adotou como princpio geral a cidadania e previu instrumentos concre-

    tos para seu exerccio via democracia participativa. Leis orgnicas especfi cas passaram

    a regulamentar o direito constitucional participao por meio de conselhos deliberati-

    vos, de composio paritria entre representantes do poder Executivo e de instituies

    da sociedade civil. Desde ento, um nmero crescente de estruturas colegiadas passou

    a ser exigncia constitucional em diversos nveis das administraes (federal, estadual

    e municipal). Muitas j foram criadas, a exemplo dos conselhos circunscritos s aes

    e aos servios pblicos (sade, educao e cultura) e aos interesses gerais da comuni-

    dade (meio ambiente, defesa do consumidor, patrimnio histrico-cultural), assim como

    a interesses de grupos e camadas sociais especfi cas, como crianas e adolescentes,

    idosos, mulheres, etc.

    No contexto dos anos 1990, a participao passou a ser vista sob o prisma de

    um novo paradigma como Participao Cidad, baseada na universalizao dos direi-

    tos sociais, na ampliao do conceito de cidadania e numa nova compreenso sobre o

    papel e o carter do Estado. A participao passou a ser concebida como interveno

    social peridica e planejada, ao longo de todo o circuito de formulao e implementao

    de uma poltica pblica, porque as polticas pblicas ganharam destaque e centralidade

    nas estratgias de desenvolvimento, transformao e mudana social. A sociedade civil

    no o nico ator social passvel de inovao e dinamizao dos canais de participao,

    mas a sociedade poltica, por meio das polticas pblicas, tambm passa a ser objeto

    de ateno e anlises. A principal caracterstica desse tipo de participao a tendn-

    cia institucionalizao, entendida como incluso no arcabouo jurdico-institucional do

    Estado, a partir de estruturas de representao criadas por leis. Essas estruturas so

    mistas, compostas por representantes do poder pblico estatal e por representantes elei-

    tos diretamente pela sociedade civil; eles integram-se aos rgos pblicos vinculados

    ao Executi vo. Isso implica a existncia do confronto (que se supe democrtico) entre

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    diferentes posies poltico-ideolgicas e projetos sociais. Todas as demandas so, em

    princpio, tidas como legtimas. Os novos sujeitos polticos se constroem por meio de

    interpelaes recprocas.

    Origens e frames dos conselhos gestores: poder local, esfera pblica, governana

    e governana local

    Antes de avaliarmos os conselhos gestores e seus impactos no urbano, faz-se

    necessrio estabelecer algumas diferenciaes no universo de conceitos que tratam da

    gesto de bens pblicos. Objetivamos recuperar a origem da prpria formulao "conse-

    lho gestor" por meio da trajetria de alguns conceitos da cincia poltica, tais como poder

    local, esfera pblica, governana e governana local, tratados aqui de forma sumria, ten-

    do em vista que recorremos a eles to-somente para termos subsdios para nosso objeto

    central de anlise.

    Resumidamente, pode-se dizer que as teorias tradicionais sobre governo local to-

    mam como enfoque prioritrio a anlise da governabilidade das unidades administrativas

    territoriais de um dado Estado nacional, destacando a capacidade das elites dirigentes de

    perseguir, atingir ou combinar objetivos econmicos, sociais, polticos e administrativos.

    O tema da participao propriamente dito no existe ou tem um papel coadjuvante, de

    auxiliar uma boa gesto. O olhar focalizado no poder poltico, nos dirigentes governan-

    tes de planto: a sociedade entra no cenrio como consumidora, cliente ou contribuinte/

    benefi ciria. Acesso a recursos, bens e servios parece ser a meta ltima dos indivduos

    e grupos sociais numa sociedade em que todos so vistos de forma indiferenciada, do

    ponto de vista de suas condies socioeconmicas. O processo de mudana e transfor-

    mao social, e a prpria democratizao do poder, assim como a ampliao das esferas

    de decises do governo e da sociedade, no se colocam nessas abordagens. A principal

    tarefa dos governos locais seria dar condies para que os servios coletivos locais se

    viabilizassem no mercado, num plano de competio. O tema da autonomia tratado se-

    gundo o binmio governo local versus governo central, e quando se refere exclusivamen-

    te ao plano do governo local, o enfoque sobre a autonomia dos agentes locais privados

    versus a dos agentes estatais, governamentais.

    Em relao ao conceito de poder local, desde logo, bom assinalar que ele

    mais abrangente que o de governo local. No Brasil, vrios estudos destacaram como ele

    penetra no interior do governo local e como interfere nas polticas pblicas locais (Da-

    niel, 1994). Nos anos 1990, o local passa a ser visto como dinamizador das mudanas

    sociais. Como isto foi possvel? Justamente porque a categoria ampliou-se, abarcando

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    outras dimenses alm da geogrfi ca-espacial, tais como a questo do comunitrio e

    do associativismo (tambm com novas dimenses). O poder local passou a ser visto

    como espao de gesto poltico-administrativa e no como simples sede das elites (eco-

    nmicas, sociais e polticas). Mudanas na conjuntura poltica e no cenrio econmico

    explicam tais alteraes. De um lado, as novas regras constitucionais a partir de 1988,

    e, de outro, a chamada crise do Estado do Bem-Estar Social, representado no Brasil por

    um Estado de mal-estar social, levou descentralizao e transferncia de papis e

    responsabilidades, delegando-se autoridade aos governos locais. A volta do processo

    eleitoral em todas as localidades brasileiras possibilitou o acesso de representantes do

    campo democrtico ao poder Executivo e tornou possvel reverter o signifi cado da ento

    usual apropriao privada que sempre caracterizou os mandatrios das administraes

    municipais. A publicizao das informaes relativas aos negcios do Estado, barreira

    e pedra de toque na questo do monoplio do poder, foi colocada na agenda de vrios

    grupos sociais organizados. Experincias envolvendo a participao da populao pude-

    ram ser implementadas, a exemplo da poltica do Oramento Participativo.

    A construo de outros atributos e signifi cados para o poder local, no fi nal do s-

    culo XX, possibilitou trazer para o centro do debate um outro conceito, muito caro teoria

    democrtica, que o de esfera pblica. Avritzer (2000), apoiando-se em J. Habermas,

    Jean Cohen e Andrew Arato, etc. afi rma que esse conceito foi a renovao mais impor-

    tante na teoria democrtica no sculo XX. Trata-se de uma esfera que comporta a intera-

    o entre os grupos organizados da sociedade, originrios das mais diversas entidades,

    organizaes, associaes, movimentos sociais, etc. A natureza dessa esfera essen-

    cialmente poltico-argumentativa, um espao para o debate face-a-face dos problemas

    coletivos da sociedade, diferenciado do debate no espao estatal propriamente dito.

    Nesse espao os indivduos interagem uns com os outros, debatem o con-tedo moral das diferentes relaes existentes ao nvel da sociedade e apre-sentam demandas em relao ao Estado. (...) Os indivduos no interior de uma esfera pblica democrtica discutem e deliberam sobre questes polticas, adotam estratgias para tornar a autoridade poltica sensvel s suas discus-ses e deliberaes. (...) a idia aqui presente de que o uso pblico da razo estabelece uma relao entre participao e argumentao pblica. (Avritzer, 2000, p. 31)

    A emergncia ou o alargamento de uma esfera pblica na contemporaneidade

    possibilitou, segundo Habermas, a dessacralizao da poltica ao incorporar ao debate

    pblico a discusso de temas at ento tratados na esfera privada, como o tema da mu-

    lher, do cotidiano domstico, etc. Destaque-se ainda que, na dcada de 1990, os proces-

    sos de globalizao econmica e as reformas polticas neoliberais desmantelaram boa

    parte da capacidade de o Estado controlar, via polticas pblicas reguladoras, proble-

    mas ambientais, assim como problemas de ordem socioeconmicos, como desemprego,

    pobreza, etc. Esse fato abriu espao para que organizaes da sociedade civil, ONGs,

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    movimentos sociais e ambientalistas ganhassem novos espaos de poder como estru-

    turas instituintes no formais, no lugar de um institudo ausente, o Estado. Em sntese: a

    ampliao da esfera pblica pelos setores organizados da sociedade civil em luta pela

    construo de suas identidades e os efeitos das reformas que confi guraram novo papel

    para o Estado na sua relao com a sociedade criaram os elementos para a constituio

    de um novo conceito na cincia poltica: governana. Ele ser a matriz, o conceito-"me",

    de outros que lhe seguiram, tais como, governana poltica, governana global, regional e

    governana local, esse ltimo com algumas diferenciaes, como veremos adiante.

    O Dicionrio de Poltica, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, publicado originalmen-

    te na Itlia em 1983, no contm o verbete governana. Ele contm o conceito de go-

    vernabilidade, que incorpora a discusso sobre a crise de governabilidade e as possveis

    causas/origens e hipteses sobre a no-governabilidade. A famosa crise fi scal do Estado

    j estava presente nas explicaes, assim como outros componentes que, posteriormen-

    te, passaram a ser atribudos globalizao e s polticas neoliberais, como responsveis

    pela crise de governabilidade. Destacam-se as explicaes de ordem poltica, entre as

    quais a crescente organizao dos cidados e de grupos polticos e a incapacidade do

    Estado para responder s demandas e manter, ao mesmo tempo, sua legitimidade. Entre-

    tanto, uma importante explicao de ordem estrutural e econmica tambm lembrada, a

    de que houve transformaes entre os Estados e

    um cartel de pases do Terceiro Mundo tornou cada vez mais difcil a aquisi-o, a baixo preo, de matrias-primas e de fontes energticas, introduzindo um fator de forte desequilbrio na acumulao e distribuio de recursos por parte dos sistemas polticos ocidentais. (Pasquino, 1986, pp. 544-555)

    Resumindo, a crise adveio como resposta ao crescimento da organizao da sociedade

    civil em suas diversas formas e canais, inclusive via movimentos sociais e incapa-

    cidade de o Estado continuar a se legitimar no mesmo grau de antes ante essa popu-

    lao organizada; e aos detentores/controladores do sistema econmico (que passarem

    a ter, na nova conjuntura, difi culdades para obter os mesmos lucros). Isso tudo levou

    reorganizao do mercado de acumulao e distribuio de recursos em escala global.

    O conceito de governana surgiu associado ao de governana global, em um pro-

    jeto que objetivava ter alcance global, criado em fruns internacionais tais como o da

    "Comisso Mundial sobre Governana Global", ocorrido em 1993. Na realidade, "gover-

    nana" foi criado para dar conta dos novos processos que as polticas de globalizao

    impuseram, enfraquecendo o conceito ento vigente, que era o de governabilidade. Ante

    a no governabilidade ou "ingovernabilidade", criadas pela globalizao e pelas novas

    polticas neoliberais,

    almejou-se estabelecer formas de cooperao global institucionalizadas entre Estados, agentes econmicos privados, organizaes internacionais e orga-nizaes no governamentais. (...) O novo conceito passou tambm a ser a

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    moldura dentro da qual direitos substanciais de indivduos (direitos huma-nos) e de povos (direitos dos povos) podem ser defendidos e preservados. (Altvater, 1999, pp. 114-115)

    O mesmo autor destaca ainda que, quando algum pas recorre ajuda econmica da

    comunidade internacional, ele precisa passar pelo "teste da democracia", ou seja, tem

    que apresentar ndices razoveis de respeito aos direitos humanos, padres ecolgicos

    mnimos e transparncia democrtica, como ingredientes de uma "boa governana".

    Observa-se, tambm, que o conceito de governana insere-se nos marcos refe-

    renciais de um novo paradigma da ao pblica estatal. Ele foi criado e desenvolvido

    em reunies de cpulas num novo frame, em que o papel central do Estado nacional

    mudou. "Em vez de encorajar (o) desenvolvimento e prover servios pblicos, agora eles

    vigiam a dvida externa e implementam os ajustes estruturais inspirados no FMI" (Volk

    apud Altvater, 1999, p. 122).

    O conceito de governana alterou o padro e o modo de se pensar a gesto de

    bens pblicos, antes restritos ao atores presentes na esfera pblica estatal. A esfera p-

    blica no estatal incorporada via novos atores que entraram em cena nos anos 1970/80,

    pressionando por equipamentos coletivos pblicos, melhores condies materiais e am-

    bientais de vida, direitos sociais, cidadania, identidade de raa, etnia, gnero, geracional,

    etc. Elmar Altvater afi rma que esses novos atores:

    cada vez mais se tornaram parte de novas estruturas de governana poltica em nvel regional e nacional, e mesmo em nvel global. As estruturas de go-vernana emergentes esto substituindo funes tradicionais do Estado, pelo menos nas reas de poltica ambiental e social. (1999, p. 147)

    Embora esse autor entenda que esse tipo de governana limitado por no

    se estender a questes ridas como as condies em que o Banco Mundial concede

    emprstimos, as regras da Organizao Mundial do Comrcio ou as decises tomadas

    nas reunies do G-7 e tambm o o poder das ONGs ante as companhias privadas,

    destacamos que tem sido desses setores ONGs, movimentos sociais e ambientalistas,

    etc. que tm surgido as primeiras contestaes/demonstraes de mobilizao pbli-

    cas contra as polticas neoliberais, e principalmente contra o capital fi nanceiro o grande

    ator que at ento s havia enfrentado crticas dos intelectuais de esquerda, passando

    inclume ao largo da avalanche de manifestaes e mobilizaes sociais que caracte-

    rizam o sculo XX. No meu entendimento, esse sculo, alm de "breve", foi tambm o

    sculo das mobilizaes, de massas e de minorias organizadas, populares e de outras

    categorias sociais.

    No podemos deixar de registrar ainda que a incorporao dos novos atores tem

    ocorrido em cenrios de tenses e confl itos. Por um lado, os espaos construdos no

    pblico no estatal so conquistas dos setores organizados; por outro, eles so tambm

    parte de reconfi gurao de estratgias de recomposio de poder de grupos polticos

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    e econmicos em lutas pela hegemonia do poder. Enquanto os primeiros buscam de-

    mocratizar os espaos conquistados por meio de lutas pelo acesso s informaes e

    igualdade nas condies de participao, priorizando sempre na cidadania a questo

    dos direitos; os ltimos lutam por atribuir aos novos atores um perfi l de cidados/consu-

    midores, destacando apenas suas obrigaes, ressignifi cando a cidadania pelo lado dos

    deveres. Essa tenso mais perceptvel ao nvel local, no qual os atores sociais se rela-

    cionam mais diretamente e no qual reconfi gurar as formas e culturas polticas tradicionais,

    carregadas de estruturas clientelsticas e patrimonialistas, uma tarefa bem mais difcil.

    Esse cenrio produziu os elementos bsicos para o terceiro conceito que destaca-

    mos no incio deste tpico: o de governana local, fundamental para o entendimento do

    objeto central de anlise deste trabalho: os conselhos gestores.

    Enquanto o conceito-"me" de governana tem grandes vnculos com os gran-

    des grupos que decidem os rumos da poltica e da economia global, o conceito de go-

    vernana local no uma simples transposio daqueles atributos. bom destacarmos

    novamente que os nveis pensados inicialmente para o conceito de governana foram

    o global, o nacional e o regional. Entretanto, as transformaes polticas operadas na

    sociedade civil nos anos 1970/80, decorrentes dos ciclos de mobilizaes, fortaleceram

    o plo do nvel local, pois elas expressavam foras sociais territorialmente localizadas.

    As marcas dos movimentos sociais, populares ou no, e das antigas ONGs reivindica-

    tivas deixaram memrias de experincias compartilhadas e, sobretudo, redes sociais e

    polticas construdas. O acervo dessas heranas infl uiu decisivamente no surgimento do

    novo vocbulo: governana local. um conceito hbrido que busca articular elementos do

    conceito de governo local com os de poder local. Refere-se a um sistema de governo que

    envolve um conjunto de organizaes, pblicas (estatais e no estatais) e organizaes

    privadas. Ou seja, trata-se de um sistema que poder envolver, entre outros, as ONGs, os

    movimentos sociais, o terceiro setor de uma forma geral, assim como entidades privadas

    e rgos pblicos estatais. A governana local diz respeito ao universo das parcerias, a

    gesto compartilhada entre diferentes agentes e atores, tanto da sociedade civil como da

    sociedade poltica, a exemplo do Oramento Participativo.

    A idia de uma esfera pblica est no centro dos debates sobre a governana

    local, mas a sua relao com o sistema poltico propriamente dito est carregada de pol-

    micas. Isso se refl ete, na prtica, nas diferentes concepes e atribuies dos conselhos

    gestores, como veremos na segunda parte deste texto. Se formos nos ater ao conceito

    de Habermas, observa-se que a esfera pblica tem um papel fundamental na reconstru-

    o da teoria democrtica, ao introduzir uma concepo participativa, discursiva, criando

    espao para a generalizao da ao social, para o reconhecimento das diferenas e pa-

    ra a ampliao da forma do poltico. Mas, ao mesmo tempo, o conceito habermasiano de

    esfera pblica restringe o papel dos novos "pblicos" a interlocutores de uma ao co-

    municativa, constitudos via interlocues pblicas, a um papel de mera "infl uncia" nas

  • Maria da Glria Gohn18

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    decises governamentais, legislativas ou do Executivo, e no de sujeitos deliberativos/

    atuando diretamente nos processos. Para Habermas, esses novos pblicos devem ser

    informais, no podendo portanto ter o poder de deliberar. Como bem assinala Avritzer.

    Ao nvel da esfera pblica, a racionalidade do processo participativo no leva constituio imediata de propostas administrativas, mas conduz a um proces-so democrtico de discusso. (...) Diferentes atores construindo identidades em pblico, estabelecendo novas formas de solidariedade e possibilitando a superao de uma condio privada de dominao constituem os elementos centrais da noo de esfera pblica. (Avritzer, 2000, p. 32)

    A deliberao pblica, ou o exerccio de uma democracia deliberativa, nos moldes

    propostos por Souza Santos (1999), Fungerik e Wright (apud Gohn, 2000), entre outros,

    fornecem-nos elementos mais concretos para entendermos o conceito de governana

    local e suas possibilidades no escopo de uma gesto democrtica compartilhada. A de-

    mocracia participativa e redistributiva o ncleo de fundamentao de Souza Santos,

    enquanto para Fungerik e Wright ser a democracia deliberativa.

    Para Souza Santos,

    Cabendo ao Estado mais funes de coordenao do que funes de produ-o direta de bem-estar, o controle da vinculao da obteno de recursos a destinaes especficas por via dos mecanismos da democracia representa-tiva torna-se virtualmente impossvel. Da a necessidade de a complementar com mecanismos de democracia participativa. A relativa maior passividade do estado, decorrente de perda do monoplio regulatrio, tem de ser compensa-da pela intensificao da cidadania ativa, sob pena de essa maior passividade ser ocupada e colonizada pelos fascismos societais. (1999, p. 70)

    O autor conclui que a "fi scalidade participativa" uma via possvel para recuperar

    a capacidade perdida no Estado e prope uma democracia redistributiva como nova luta

    no campo democrtico. A sua assertiva, ao destacar a "cidadania ativa", deve ser vista

    num campo de lutas para a conquista efetiva dos espaos de governana local, para o

    exerccio da "fi scalidade participativa", e no como algo j posto por um decreto ou sim-

    ples implementao de uma lei. Para exemplifi car, citamos o caso da rea da sade, em

    So Paulo, durante as gestes de Paulo Maluf e de Celso Pitta, e as lutas do conselho j

    existente para se institucionalizar segundo as novas leis. Diz a conselheira:

    Durante sete anos o Conselho Municipal de Sade de So Paulo, democrati-camente eleito pelos vrios segmentos da sociedade, apesar de no ser reco-nhecido pelos Secretrios de Sade (...) funcionou regularmente, controlando e fiscalizando a poltica municipal de sade (...) Aps todos estes anos de des-considerao do Conselho, a tentativa de golpe final para restringir o funcio-namento desse espao democrtico de participao foi a aprovao de uma lei Municipal (...) constituindo um Conselho ilegtimo e inconstitucional porque no tinha a participao paritria prevista na lei, sem ampla participao dos movimentos populares e outros segmentos da sociedade e restrito em suas atribuies e autonomia. Depois de intensa negociao, a Plenria Municipal

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 19

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    de Sade (...) conseguiu um acordo com o SMS, conquistando: a reviso da Legislao do Conselho Municipal de Sade, que resultou em um novo decre-to e recomps a representao do Conselho (...) (Mulin, 2000).

    Os editores do boletim Repente, no qual esse relato foi publicado, concluem:

    Esta experincia mostra que a representatividade, entendida como capacidade de enraizamento e mobilizao social, essencial para que um campo institu-cional de negociao, como o Conselho, tenha sentido e funcione realmente como espao pblico de gesto participativa. (Repente, n. 7, So Paulo, Insti-tuto Plis, julho de 2000, p. 4)

    O exemplo serve ainda de alerta no sentido de evidenciar que um modelo de "democracia

    redistributiva" ou qualquer outra forma participativa proposta s podem vir a acontecer se

    os cidados ativos de uma comunidade lutarem para garantir a existncia do carter demo-

    crtico desses novos espaos desde seus primrdios, logo no incio de sua implantao.

    Souza Santos chega a afi rmar que "A democracia redistributiva o primeiro gran-

    de investimento da converso do Estado em novssimo movimento social" (1999, p. 71).

    Entendemos que ele se refere a movimento social em seu sentido mais amplo, como

    fora de um movimento mais geral da histria, pois, se no for nesses termos, fi ca difcil

    compreender o Estado como movimento social especfi co, conceito que se situa no cam-

    po da sociedade civil, e a partir da interpenetrar outras esferas da vida sociopoltica.

    A democracia deliberativa um sistema que mistura a democracia direta com a de-

    mocracia representativa; ela diz respeito aos mecanismos de representao poltica nos

    quais havia o envolvimento dos indivduos, como cidados polticos ativos, construtores

    de consensos, via processos de dilogos interativos realizados no decorrer do processos

    de participao na gerao e elaborao de polticas pblicas. Esse modelo de demo-

    cracia exige a redefi nio institucional de algumas instituies governamentais, principal-

    mente em nvel local, em instituies de participao deliberativas.

    Fungerik e Wright (apud Gohn, 2000) destacam cinco princpios institucionais

    que embasam os "experimentos" em democracia deliberativa, a saber: eles orientam a

    soluo de problemas, h uma centralidade da deliberao direta para descobrir solu-

    es e programas para implement-Ios, reduzem a distncia entre o pblico (marcado

    pela lgica burocrtica organizacional) e o privado (marcado pela lgica do mercado, do

    lucro), engajam grupos diversifi cados no dilogo e transformam os aparatos estatais em

    instituies de participao deliberativas, permanentemente mobilizadas.

    Portanto, a nova forma de administrar os negcios pblicos, denominada "gover-

    nana local", , simultaneamente, uma conquista dos movimentos e grupos que lutaram

    pela redemocratizao nos anos 1970/80, como uma resposta das elites dirigentes s

    presses sociais e ao suposto corporativismo que aquelas demandas envolviam. im-

    portante estarmos cientes dessa ambigidade para entendermos o alcance dessas ini-

    ciativas, seus limites e suas possibilidades. Ao examinarmos os prprios argumentos dos

  • Maria da Glria Gohn20

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    que defendem as vantagens da democracia deliberativa, encontramos afi rmaes que

    contrapem essas aes s aes coletivas advindas de partidos polticos, sindicatos,

    movimentos sociais ou grupos de interesses que atuam fazendo lobby diretamente sobre

    as agncias governamentais.

    Os novos mecanismos participativos includos na governana local se baseiam no

    engajamento popular como um recurso produtivo central: a participao dos cidados

    prov informaes e diagnsticos sobre os problemas pblicos, geram conhecimentos e

    subsdios elaborao de estratgias de resoluo dos problemas e confl itos envolvidos.

    A qualidade da participao pode ser mensurada pelo grau de informao (ou de desin-

    formao) contido nas opinies dos participantes. Assim como os movimentos sociais

    dos anos 1970/80, os novos experimentos participativos desempenham tambm um pa-

    pel educativo entre seus participantes, medida que fornecem informaes, capacitam-

    nos tomada de decises e desenvolvem uma sabedoria poltica. Eles contribuem para o

    desenvolvimento de competncias e habilidades a partir das experincias que vivenciam.

    Nesse sentido contribuem para o desenvolvimento poltico dos indivduos. importante

    registrar que pesquisas feitas em Porto Alegre indicaram a predominncia de pessoas

    com algum tipo de experincia associativa anterior entre os participantes do OP. Isto pos-

    to, podemos concluir que as atuais experincias associativas tanto bebem no passado

    como do elementos de estmulo para a retomada da organizao popular de base, pois

    ela realimentadora do processo institucionalizado.

    Dado o carter pblico das instncias nas quais os experimentos so vivenciados,

    a ambigidade assinalada acima pode resultar em cidados ativos no sentido de politiza-

    dos, com viso crtica da realidade, conhecedores dos problemas que os circundam, com

    compreenso sobre as causas e as origens desses problemas, tanto quanto pode-se

    ter cidados ativos s na dimenso de simples tarefeiros, executores de "misses", com

    atuaes individualizadas e personalistas, muito distantes de qualquer sentido pblico

    propriamente dito, respaldando-se em ticas e culturas que s contribuem para corroer

    ainda mais a j desgastada credibilidade nos rgos pblicos. Nos experimentos, todos

    so envolvidos numa teia de discusses sobre como resolver grandes e graves proble-

    mas ante a inexistncia de recursos pblicos e como implementar as "solues tampes"

    engendradas nas polticas de parcerias entre o Estado e a sociedade civil organizada, via

    terceiro setor, com o apoio da iniciativa privada.

    Oliveira (2000) faz um alerta para os perigos da privatizao e fi lantropizao que

    tais parcerias envolvem; ele afi rma que essas aes ocorrem no vcuo da inao estatal,

    no so polticas, negam a polis e a universalizao, dirigem-se a grupos especiais, priva-

    tizam o pblico e "buscam substituir-se s polticas universais da cidadania, dever estatal,

    sob a alegao da proclamada incapacidade, inefi ccia e corrupo que lavram no apare-

    lho de Estado" (2000, p. 38). Mas o mesmo autor destaca que

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 21

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    a possibilidade de correo da falta de poltica social depende, em altssimo grau, da organizao dos atores e sujeitos sociopolticos e da publicizao de suas demandas, em grande medida obstaculizadas pela conjuno da es-tratgia governamental neoliberal com a subjetividade antipblica de amplos setores do empresariado e da mdia. (2000, p. 40)

    No cenrio acima deve ser entendido o novo conceito de governana local e inse-

    rir-se a discusso sobre os conselhos gestores. Se compostos por lideranas e grupos

    qualifi cados, do ponto de vista do entendimento de seu papel, limites e possibilidades

    e articulados a propostas e projetos sociais progressistas, os conselhos gestores po-

    dem fazer poltica publicizando os confl itos; como interlocutores pblicos podero reali-

    zar diagnsticos, construir proposies, fazer denncias de questes que corrompem o

    sentido e o signifi cado do carter pblico das polticas, fundamentar ou reestruturar argu-

    mentos segundo uma perspectiva democrtica: em suma, eles podem contribuir para a

    ressignifi cao da poltica de forma inovadora. Seu impacto na sociedade no ser dado

    por ndices estatsticos, mas por uma nova qualidade exercitada na gesto da coisa pbli-

    ca, ao tratar o tema da excluso social, no meramente como incluso em redes compen-

    satrias destinadas a clientes/consumidores de servios sociais. Eles podem cumprir um

    papel muito diferente do integrativo/assistencial atribudo no passado a outras formas de

    conselhos, como os comunitrios/assintencialistas, compensatrios e integrativos- Isso

    tudo pressupe transformar o Estado num campo de experimentao institucional em

    que coexistam solues institucionais e coletivos permanentes de cidados organizados,

    todos participando sob igualdades de condies dadas.

    Os conselhos contemporneos: novidades nos conselhos gestores

    Os conselhos gestores apresentam muitas novidades na atualidade. J destaca-

    mos, entre outros fatores, que eles so importantes porque so frutos de demandas po-

    pulares e de presses da sociedade civil pela redemocratizao do pas. Caccia-Bava

    (2000) tambm destaca a importncia da criao dos conselhos setoriais de gesto, co-

    mo conquista dos movimentos sociais. Esse autor afi rma que os conselhos "tm criado

    a possibilidade do encontro e da construo de uma viso conjunta por parte das enti-

    dades que deles participam Essa viso conjunta vai no sentido de afi rmao de direitos"

    (2000, p. 50). Ou seja, se o Estado e as polticas neoliberais "desconstroem" o sentido

    do pblico, retirando sua universalidade, remetendo para o campo do assistencialismo e

    da lgica do consumidor usurio de servios, os conselhos tm a possibilidade de reaglu-

    tinar esses direitos fragmentados, reconstituir os caminhos de construo da cidadania

    que est sendo esfacelada.

  • Maria da Glria Gohn22

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Os conselhos esto inscritos na Constituio de 1988 na qualidade de instru-

    mentos de expresso, representao e participao da populao. As novas estruturas

    inserem-se, portanto, na esfera pblica e, por fora de lei, integram-se com os rgos

    pblicos vinculados ao poder Executivo, voltados para polticas pblicas especfi cas, res-

    ponsveis pela assessoria e suporte ao funcionamento das reas onde atuam.

    Os conselhos gestores so diferentes dos conselhos comunitrios, populares ou

    dos fruns civis no governamentais porque esses ltimos so compostos exclusivamen-

    te de representantes da sociedade civil, cujo poder reside na fora da mobilizao e da

    presso e no possuem assento institucional junto ao poder pblico. Os conselhos ges-

    tores so diferentes, tambm, dos conselhos de "notveis" que j existiam nas esferas

    pblicas no passado, compostos exclusivamente por especialistas.

    O nmero de conselhos est crescendo progressivamente dado o fato de serem

    exigncias da Constituio. Entretanto, para sua implementao, eles dependem de leis

    ordinrias estaduais e municipais. Em algumas reas essas leis j foram estabelecidas ou

    h prazos para sua criao. Os conselhos gestores so novos instrumentos de expresso,

    representao e participao; em tese, eles so dotados de potencial de transformao

    poltica. Se efetivamente representativos, podero imprimir um novo formato s polticas

    sociais, pois relacionam-se ao processo de formao das polticas e tomada de decises.

    Com os conselhos gera-se uma nova institucionalidade pblica, pois eles criam uma no-

    va esfera social-pblica ou pblica no-estatal. Trata-se de um novo padro de relaes

    entre Estado e sociedade porque eles viabilizam a participao de segmentos sociais na

    formulao de polticas sociais e possibilitam populao o acesso aos espaos nos

    quais se tomam as decises polticas.

    A legislao em vigor no Brasil preconiza, desde 1996, que, para o recebimento de

    recursos destinados s reas sociais, os municpios devem criar seus conselhos. Isso expli-

    ca por que a maioria dos conselhos municipais surgiu aps essa data (em 1998, dos 1.167

    conselhos existentes nas reas da educao, assistncia social e sade, 488 haviam sido

    criados aps 1997; 305 entre 1994-96; e apenas 73, antes de 1991). Nos municpios, as

    reas bsicas dos conselhos gestores so educao, assistncia social, sade, habitao,

    criana e adolescentes. Na esfera municipal eles devem ter carter deliberativo.

    Apesar de a legislao incluir os conselhos como parte do processo de gesto des-

    centralizada e participativa, e contititu-Ios como novos atores deliberativos e paritrios, vrios

    pareceres ofi ciais tm assinalado e reafi rmado o carter apenas consultivo dos conselhos,

    restringindo suas aes ao campo da opinio, da consulta e do aconselhamento, sem poder

    de deciso ou deliberao. A lei vinculou-os ao poder Executivo do municpio, como rgos

    auxiliares da gesto pblica. preciso, portanto, que se reafi rme em todas as instncias

    seu carter essencialmente deliberativo porque a opinio apenas no basta. Nos municpios

    sem tradio organizativa-associativa, os conselhos tm sido apenas uma realidade jurdico-

    formal, e muitas vezes um instrumento a mais nas mos dos prefeitos e das elites, falando em

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 23

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    nome da comunidade, como seus representantes ofi ciais, no atendendo minimamente aos

    objetivos de mecanismos de controle e fi scalizao dos negcios pblicos.

    O atual debate sobre os conselhos gestores

    Vrias das questes implcitas no debate sobre os novos conselhos so da mesma

    natureza das que se fi zeram presentes quando do debate sobre os conselhos popula-

    res, tais como: qual o seu papel e a sua natureza, eles devem ser organismos apenas

    consultivos ou tambm deliberativos, etc. A necessidade de intervir nesse debate e nas

    discusses sobre a prpria implantao dos conselhos decorre das vrias lacunas hoje

    existentes, tais como a criao de mecanismos que lhes garantam o cumprimento de seu

    planejamento; instrumentos de responsabilizao dos conselheiros por suas resolues;

    estabelecimento claro dos limites e das possibilidades decisrias s aes dos conselhos;

    uma ampla discusso sobre as restries oramentrias e suas origens; a existncia de

    uma multiplicidade de conselhos no municpio, todos criados recentemente, competindo

    entre si por verbas e espaos polticos, inexistncia de aes coordenadas entre eles, etc.

    Existem duas posies em relao ao papel central dos conselhos, a saber: a

    primeira circunscreve-os ao plano da consulta, preocupa-se com a demarcao de sua

    atuao em relao ao Legislativo, defende que eles se limitem a ser auxiliares do poder

    Legislativo. A segunda postula que eles atuem como rgos de fi scalizao do Executi-

    vo, segundo uma perspectiva e um modelo de gesto descentralizada desse Executivo;

    preconiza-se que eles operem dentro das decises que so tomadas em sua rea. Essa

    segunda posio implica um estilo de governo que tenha como diretrizes e eixos funda-

    mentais as questes da participao e da cidadania; um governo que aceite os confl itos

    como parte do jogo de interesses numa democracia. Portanto, o papel dos conselhos

    incide na discusso sobre as estratgias de gesto pblica de uma forma geral e sobre o

    carter das prprias polticas pblicas em particular (Borja, 2000).

    O que fazer para alterar o cenrio onde se desenvolvem os conselhos e sua reali-

    dade atual? De um lado, observa-se que a operacionalizao no plena dessas novas ins-

    tncias democratizantes se d devido falta de tradio participativa da sociedade civil

    em canais de gesto dos negcios pblicos; curta trajetria de vida desses conselhos

    e, portanto, falta de exerccio prtico (ou at a sua inexistncia); e ao desconhecimen-

    to pela maioria da populao de suas possibilidades (deixando-se espao livre para

    que eles sejam ocupados e utilizados como mais um mecanismo da poltica das velhas

    elites, e no como um canal de expresso dos setores organizados da sociedade). De

    outro lado, a existncia de concepes oportunistas, que no se baseiam em postulados

    democrticos e vem os conselhos apenas como instrumentos/ferramentas para opera-

    cionalizar objetivos pr-defi nidos, tem feito dessa rea um campo de disputa e tenses.

  • Maria da Glria Gohn24

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Acreditamos que os conselhos criam condies para um sistema de vigilncia so-

    bre a gesto pblica e implicam uma maior cobrana de prestao de contas do poder

    Executivo, principalmente no nvel municipal. Por isso, certas questes so muito relevan-

    tes no debate atual sobre a criao e implementao dos conselhos gestores, tais como

    a representatividade qualitativa dos diferentes segmentos sociais, territoriais e foras po-

    lticas organizadas em sua composio; o percentual quantitativo, em termos de parida-

    de, entre membros do governo e membros da sociedade civil organizada que o compe;

    o problema da capacitao dos conselheiros mormente os advindos da sociedade civil;

    o acesso s informaes (e sua decodifi cao) e a publicizao das aes dos conse-

    lhos; a fi scalizao e o controle sobre os prprios atos dos conselheiros; o poder e os

    mecanismos de aplicabilidade das decises do conselho pelo Executivo e outros, etc.

    As questes da representatividade e da paridade constituem problemas cruciais

    a serem melhor defi nidas nos conselhos gestores de uma forma geral. Os problemas

    decorrem da inexistncia de critrios que garantam uma efetiva igualdade de condies

    entre os participantes. Alguns analistas tm sugerido que a renovao do mandato dos

    conselheiros seja parcial, para no coincidir com o mandato dos dirigentes e alcaides mu-

    nicipais, e fi que desacoplada dos perodos dos mandatos eleitorais. O fato das decises

    dos conselhos terem carter deliberativo no garante sua implementao, pois no h

    estruturas jurdicas que dem amparo legal e obriguem o Executivo a acatar as decises

    dos conselhos (mormente nos casos em que essas decises venham a contrariar interes-

    ses dominantes). O representante que atua num conselho deve ter vnculos permanentes

    com a comunidade que o elegeu.

    Em relao paridade, ela no uma questo apenas numrica, mas de condi-

    es de uma certa igualdade no acesso informao , disponibilidade de tempo, etc. A

    disparidade de condies de participao entre os membros do governo e os advindos

    da sociedade civil grande, os primeiros trabalham nas atividades dos conselhos duran-

    te seu perodo de expediente de trabalho normal/remunerado, tm acesso aos dados e

    s informaes, tm infra-estrutura de suporte administrativo, esto habituados com a

    linguagem tecnocrtica, etc. Ou seja, eles tm o que os representantes da sociedade

    civil no tm (pela lei, os conselheiros municipais no so remunerados e nem contam

    com estrutura administrativa prpria). Faltam cursos ou capacitao aos conselheiros,

    de forma que a participao seja qualifi cada em termos, por exemplo, da elaborao e

    gesto das polticas pblicas; no h parmetros que fortaleam a interlocuo entre os

    representantes da sociedade civil e os representantes do governo. preciso entender

    o espao da poltica para que se possa fi scalizar e tambm propor polticas; preciso

    capacitao ampla, que possibilite a todos os membros do conselho uma viso geral da

    poltica e da administrao. Usualmente, eles atuam em pores fragmentadas, que no

    se articulam (em suas estruturas) sequer com as outras reas ou outras conselhos da

    administrao pblica.

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 25

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Necessidade e lacunas

    A partir do inventrio de temas e de alguns dos problemas sobre os conselhos

    gestores podemos sistematizar os seguintes pontos para serem equacionados:

    1 - Falta uma defi nio mais precisa das competncias e atribuies dos conse-

    lhos gestores e da sua relao com o poder Legislativo. Devemos lembrar de que os con-

    selhos no substituem o poder Legislativo, porque eles situam-se em reas especfi cas e

    no tm poderes sobre questes gerais, como o poder Legislativo tem;

    2 - Deve-se cuidar da elaborao de instrumentos jurdicos de apoio s suas

    deliberaes;

    3 - Deve haver uma defi nio mais precisa do que seja participao. Para o caso

    dos conselhos gestores, ns a entendemos como o processo mediante o qual as diferen-

    tes camadas sociais da populao tm acesso aos espaos de defi nir e avaliar as polti-

    cas pblicas, especialmente as de carter social.

    A participao, para ser efetiva, precisa ser qualificada, ou seja, no basta a

    presena numrica das pessoas porque o acesso est aberto. preciso dot-Ias de in-

    formaes e de conhecimentos sobre o funcionamento das estruturas estatais. No se

    trata, em absoluto, de integr-Ias, incorpor-Ias simplesmente teia burocrtica. Elas tm

    necessidade e o direito de conhecer essa teia para poderem intervir de forma qualifi cada

    e exercitar uma cidadania ativa, e no uma cidadania regulada, outorgada, passiva. Os re-

    presentantes da populao devem ter igualdade de condies para participar, tais como

    as j citadas em pargrafo anterior: acesso s informaes (que esto codifi cadas nos

    rgos pblicos) e algum tipo de remunerao para sua atividade.

    Impacto dos conselhos gestores na realidade urbana: moradia e educao

    Um ponto em comum entre os estudiosos sobre o urbano nos 1990 o novo

    papel das cidades no processo de mudana social. Como afi rmam Castells e Borja, "as

    cidades adquirem, cada dia mais, um forte protagonismo tanto na vida poltica como na

    vida econmica, social, cultural e nos meios de comunicao" (1996, p. 152). A gesto

    da cidade torna-se um ponto estratgico nos projetos polticos dos grupos sociais que lu-

    tam pelo poder, no sentido de sua transformao ou manuteno do status quo. dentro

    desse contexto que resgatamos o conceito de governana urbana, citado anteriormente,

    para analisar o papel dos conselhos gestores nas cidades.

  • Maria da Glria Gohn26

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Os conselhos gestores no urbano

    Na questo urbana, estamos propondo agrupar os conselhos gestores em qua-

    tro categorias:

    1 - Os que se relacionam diretamente chamada questo urbana, por serem parte

    integrante do locus que confi gura o espao urbano enquanto tal, ou seja: meio ambiente,

    moradia, etc.

    2 - Os que decorrem da prestao de servios urbanos por setores da administra-

    o: sade, educao, transportes, etc.

    3 - Os conselhos que abrangem as polticas focalizadas em grupos etrios da po-

    pulao: idosos, crianas e jovens/adolescentes; ou destinados a categorias especfi cas,

    como mulheres, grupos tnicos ou raciais, etc. Esses conselhos "localizam-se" no urbano

    (mas no so exclusivos deles) e atuam sobre problemas sociais que interferem direta-

    mente na qualidade de vida no meio urbano.

    4 - Uma quarta categoria formada pelos conselhos na rea da cultura. Apesar

    de a cultura ser uma das reas da administrao setorial, como uma das secretarias de

    Estado, ela mais que um servio. uma fora motriz que cria e/ou estimula a energia

    coletiva de uma comunidade e de seus cidados.

    Na primeira categoria destacam-se as iniciativas relativas questo da moradia,

    em especial a moradia popular. Na categoria dos conselhos de servios, o Conselho

    Municipal de Transportes um dos mais antigos e surgiu, no caso de So Paulo, aps as

    lutas, os movimentos por transportes coletivos no fi nal dos anos 1970 e a organizao

    de cmaras colegiadas nos anos 1980. O conselhos na rea da educao apresentam,

    aps 1996, muitas novidades algumas decorrem da nova Lei de Diretrizes e Bases da

    educao; outras decorrem de polticas sociais advindas do novo modo de gesto esta-

    tal. Os conselhos "focalistas" so os que tm tido maior repercusso na sociedade, em

    especial junto mdia, mas so tambm os mais frgeis em termos de recursos e infra-

    estrutura de apoio. Citam-se o Conselho da Criana e do Adolescente CCA, os Conse-

    lhos Tutelares tambm de crianas e adolescentes; o Conselho da Condio Feminina

    e as diversas modalidades de conselhos das mulheres.

    Organizao, participao e gesto: conselhos na rea da moradia

    Respaldado numa trajetria de mais de vinte anos de lutas iniciada pelos movimen-

    tos das favelas, dos cortios, dos loteamentos clandestinos populares, nos anos 1970;

    lutas essas acrescidas das lutas nas ocupaes urbanas pela construo de moradias

    via mutires; pelos movimentos dos muturios contra os aumentos nas prestaes do

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 27

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    antigo BNH; pelas lutas dos moradores de conjuntos precrios (Promorar, por exemplo)

    e de inquilinos pertencentes s camadas mdias nos anos 1980; at as lutas dos mo-

    radores que vivem nas ruas nos anos 1990, a questo da moradia popular acumulou o

    maior acervo de conhecimentos em termos de experincias concretas e em termos de

    conhecimento produzido, dentre todas as reas-problema demandadas pela populao.

    A moradia tem sido a luta que conta com o maior nmero de assessores e organizaes

    qualifi cadas, ou seja, com um corpo de especialistas e analistas e no apenas voluntrios

    ou militantes. A maior expresso da organizao pela moradia o Frum Nacional de

    Reforma Urbana FNRU. Ele se fortaleceu aps a Constituio de 1988, dado que essa

    Carta contm um captulo sobre a reforma urbana. A II Conferncia Internacional sobre

    Assentamentos Humanos (Habitat Il), realizada em 1996, em Estocolmo, projetou as ati-

    vidades do Frum para alm das fronteiras nacionais e deu respaldo luta pela moradia

    medida que aprovou-a como um direito humano e obrigao dos governos implementar

    esse direito progressivamente.

    O FNRU colocou as lutas pela moradia em um novo patamar. As bandeiras locali-

    zadas e as reivindicaes parciais foram substitudas

    por um iderio onde o que se pede o direito cidade como um todo; in-cluem-se no s os direitos especificamente urbanos que visam acabar com a injustia social no espao das cidades, mas tambm o direito de participao na gesto da coisa pblica. (Silva, 1991)

    Dentre os inmeros instrumentos jurdicos elaborados nos anos 1990, pelos movi-

    mentos e ONGs articulados ao FNRU para garantir a moradia populao, destacam-se

    o Estatuto da Cidade, o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de

    Moradia Popular. O Estatuto da Cidade foi elaborado em 1990 e aprovado pela Cmara

    Federal em dezembro de 1999. Vale a pena destacarmos alguns trechos do documento

    aprovado, nos itens que aludem questo da gesto urbana, pois eles remetem ao tema

    dos conselhos. Logo no seu incio, nas diretrizes gerais, preconiza-se: "gesto democr-

    tica por meio da participao da populao e de associaes representativas dos vrios

    segmentos da comunidade na formulao, execuo e acompanhamento de planos, pro-

    gramas e projetos de desenvolvimento urbano" (inciso II do captulo 1). J o captulo lI,

    que trata dos instrumentos da gesto urbana, menciona:

    Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispndio de recursos por parte do Poder Pblico municipal devem ser objeto de controle social, ga-rantida a participao de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil. (cap. lI, 3)

    O captulo todo dedicado s formas de gesto democrtica da cidade.

    No incio de dezembro de 1999 realizou-se em Braslia, no espao do Parlamento

    Nacional, ala Conferncia Nacional das Cidades, que elaborou um documento denomina-

    do "Carta das Cidades". Nesse documento podemos observar que as formas colegiadas

  • Maria da Glria Gohn28

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    e participativas da populao so reivindicadas como plataformas de uma ampla gama

    de movimentos e organizaes de lutas sobre as questes urbanas. Destacamos dois

    tpicos daquela Carta, a saber.

    Tpico VII - A cidade brasileira tambm o lugar da luta, o lugar da cons-tituio de movimentos organizados que querem transform-Ia. o lugar da construo da cidadania, conquistada a partir de experincias concretas de solidariedade e da elaborao coletiva de projetos alternativos. No obstante a atual poltica centralista, inmeros municpios tm fortalecido a democracia e o atendimento das necessidades de parcela significativa da populao, a partir da experimentao e afirmao de novas formas de planejamento e ad-ministrao pblica. Apesar da cultura da competio, os excludos da pro-duo formal vo criando laos de cooperao, articulando e estruturando na prtica a economia popular, pressionando por polticas pblicas que interfiram no mercado e que possam garantir trabalho e renda.

    Tpico X - A democratizao do planejamento e da gesto das cidades, com nfase nos mecanismos que garantam o interesse pblico, o acesso infor-mao e o controle social sobre os processos decisrios das polticas e dos recursos pblicos, nos vrios nveis, assegurando a participao popuIar em geral, mediante a realizao de oramentos participativos, entre outros instru-mentos e, em mbito nacional, a criao do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Urbano, com efetiva participao da sociedade.

    No plano legislativo, indispensvel a aprovao definitiva do Estatuto da Cidade (PL 5.788/90, do Senado), j aprovado nas comisses de mrito da Cmara dos Deputados e ainda pendente de manifestao da Comisso de Constituio e Justia e do Senado; da PEC 601/98, que introduz o direito moradia na Constituio Federal; do PL 2.710/92, de iniciativa popular, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia popular; da PEC 169/93, que trata dos recursos do SUS; (...)

    Alm das lutas do Frum Nacional de Reforma Urbana, das conquistas jurdicas/

    legislativas expressas na Carta da Cidade e das conferncias nacionais e internacionais,

    cumpre registrar tambm a maior experincia de gesto urbana com participao popular

    ocorrida no Brasil na ltima dcada: os programas e as polticas de Oramento Partici-

    pativo em vrias cidades brasileiras, destacando-se a de Porto Alegre pela sua extenso.

    Nessa cidade, os conselhos municipais com participao popular, atuando por setor da

    administrao, existem desde 1970. Entretanto, nos anos 1990, a continuidade das dire-

    trizes programticas na gesto da cidade possibilitou o avano da proposta do Oramen-

    to Participativo, tornando-se o mesmo o "modelo" para o resto do pas.

  • Conselhos gestores na poltica social urbana e participao popular 29

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

    Concluindo

    Os conselhos gestores foram conquistas dos movimentos populares e da socie-

    dade civil organizada. Eles so um instrumento de representao da sociedade civil e da

    sociedade poltica, que lutaram pela democratizao dos rgos e aparelhos estatais. Os

    conselhos so parte de um novo modo de gesto dos negcios pblicos que foi reivin-

    dicado pelos movimentos sociais nos anos 1980. Eles fazem parte de um novo modelo

    de desenvolvimento que est sendo implementado em todo o mundo da gesto pblica

    estatal, via parcerias com a sociedade civil organizada; eles representam a possibilidade

    da institucionalizao da participao via sua forma de expresso, a co-gesto; expres-

    sam a possibilidade de desenvolvimento de um espao pblico que no se resume e no

    se confunde com o espao governamental/estatal; abrem a possibilidade de a sociedade

    civil intervir na gesto pblica via parcerias com o Estado, que objetivem a formulao e o

    controle de polticas sociais. Por lei, os conselhos devem ser tambm um espao de deci-

    so. Mas, a priori, so apenas espaos virtuais. Para que eles tenham efi ccia e efetivida-

    de na rea em que atuam e na sociedade de uma forma geral, necessrio desenvolver

    algumas condies e articulaes; preciso dar peso poltico a essa representatividade

    e conseqncia luta dos segmentos sociais que acreditaram e lutaram pela democra-

    tizao dos espaos pblicos. Dentre as condies necessrias, destacamos: aumento

    efetivo de recursos pblicos nos oramentos e no apenas complementaes pontuais

    de ajustes; eles tm que ser paritrios, no apenas numericamente, mas tambm nas con-

    dies de acesso e de exerccio da participao; devem-se criar sistemas de qualifi cao

    com pr-requisitos mnimos para que um cidado se torne um conselheiro, principalmen-

    te no que se refere ao entendimento do espao que ele vai atuar, assim como um cdigo

    de tica e postura ante os negcios pblicos; deve-se ter uma forma de acompanhar as

    aes dos conselhos e de revogar e destituir qualquer membro que no cumpram com

    suas funes durante seus mandatos pertencentes sociedade civil ou ao poder esta-

    tal; portanto, o exerccio dos conselhos deve ser passvel de fi scalizao e avaliao.

    Maria da Glria Gohn

    Unicamp. E-mail: [email protected]

  • Maria da Glria Gohn30

    Cadernos Metrpole n. 7, pp. 9-31, 1 sem. 2002

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