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A Alforria Nos Termos e Limites Da Lei
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
MESTRADO
Jos Pereira de Santana Neto
A ALFORRIA NOS TERMOS E LIMITES DA LEI: O FUNDO DE EMANCIPAO NA BAHIA (1871-1888)
Orientadora: Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
SALVADOR AGOSTO DE 2012
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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Histria Social
Jos Pereira de Santana Neto
A alforria nos termos e limites da lei: o Fundo de Emancipao na Bahia (1871-1888)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social do Brasil.
Orientadora: Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
Salvador Agosto de 2012
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Jos Pereira de Santana Neto
A alforria nos termos e limites da lei: o Fundo de Emancipao na Bahia (1871-1888)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social do Brasil.
Orientadora: Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque
Aprovada em 20 de agosto de 2012
Banca examinadora:
_________________________________________________________
Prof. Dr. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque - UFBA (Orientadora)
Prof. Dr Walter Fraga Filho UFRB
Prof. Dr Elciene Rizzato Azevedo - UEFS
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Para meu pai, Nlio (Lelo), me, Carlene (Ii), irmos, Arilson
(Lico) e Samuel (Muco, antes era Muquinha, agora ele cresceu),
irms, Eliene (Dinha) e Luciana (Duda), sobrinhas, Victria (B) e
Isabela (Bel), ao Tio Amrico (Mec) pelas histrias. em razo do
incentivo e da confiana que todos vocs depositam em mim que eu
no desisto de nenhum projeto! Por ns, sempre.
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Agradecimentos
Quando leio uma dissertao, tese e livro a primeira coisa que observo aquela parte
dedicada aos agradecimentos. Famlia, amigos, colegas de curso e de trabalho geralmente fazem
parte da lista de pessoas que direta ou indiretamente contriburam com o desenvolvimento do texto.
Da mesma forma que as pessoas, um conjunto de instituies frequentemente citado,
sobretudo quelas ligadas aos rgos que financiaram o trabalho, que geralmente imprescindvel
para a realizao da pesquisa e da redao do texto. No se produz, portanto, uma dissertao de
mestrado sozinho, nem sem apoio. So a essas pessoas e instituies que me dirijo neste momento,
pedindo desculpas, desde j, por possveis e sempre presentes omisses.
Primeiramente gostaria de agradecer a Wlamyra Ribeiro de Albuquerque pela orientao
segura, bastante atenciosa e paciente comigo. Myra lia meus textos com rigor e fazia crticas e
sugestes certeiras, pontuais, com muita gentileza e respeito para com o meu trabalho e minha
pesquisa. Por tudo, meu muito obrigado.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - Capes pela concesso da
bolsa. Sem o financiamento seria impossvel cursar o mestrado em Salvador.
Sou grato aos integrantes do Grupo de Estudo Escravido nos sertes: Jacobina e Regio,
que era coordenado pelo professor Jackson Andr da Silva Ferreira na Universidade do Estado da
Bahia. Foi no grupo que conheci os autores clssicos das velhas e novas tendncias da
historiografia da escravido, como tambm tive a oportunidade de ser orientado pelo coordenador
em um projeto de Iniciao Cientfica, cujos resultados finais transformaram-se numa monografia e
no meu projeto de mestrado, que teve a sua primeira verso apresentada aos membros. Os
incentivos das pessoas daquele coletivo foram fundamentais para que eu seguisse em frente, devo-
lhes muito. A experincia foi enriquecedora para todos que participaram porque muitos
continuaram as suas pesquisas nos mestrados da Bahia.
Agradeo encarecidamente aos meus colegas de curso, pois juntos dividamos as alegrias e
tambm as dificuldades que o mestrando encontra pela Frente. Rafael Sancho, Flaviane Ribeiro
Nascimento, Renata Ferreira de Oliveira, Jorge Emanuel Luz, Rafael Portela, Carla Crte e tambm
ao pessoal do doutorado que cursaram disciplinas junto com a nossa turma, em especial para
Jackson Andr da Silva Ferreira, (amigo, ex-orientador de IC e de monografia), bem como a Paulo
Csar de Jesus, Edinaldo Oliveira, Andr Rego, Bruna Ismerin, Marcelo Souza e Denilson Lessa.
Flaviane, Renata, Marcelo, Jorge Luz, Cristian, Carla Crte e eu formvamos o grupo dos
estudantes egressos das estaduais baianas. Essa identidade comum, dentre outras coisas,
promoveu uma aproximao entre a gente. Renata Ferreira e Flaviane Ribeiro merecem um
pargrafo parte.
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Com Renata dividi muitos momentos bacanas, inesquecveis. Companhia luxuosa! Prosas
super divertidas sobre as coisas dos nossos sertes, mas tambm assuntos das disciplinas e da
pesquisa do mestrado eram dialogados com muita profundidade e rigor, mas sem perder o humor.
Ela leu meus textos, ouviu minhas ideias, sempre com bastante pacincia e carinho. E o que dizer
dos almoos aps a disciplina de Histria Social? Uma delcia. Conhec-la foi um dos melhores
presentes que ganhei do destino. Saudade.
Com Flaviane discuti de forma mais especfica as nossas fontes e a bibliografia pertinente
aos nossos trabalhos. Historiadora competente, dedicada e bastante sensvel com os problemas que
o povo negro e a classe trabalhadora como um todo enfrentam historicamente e cotidianamente para
viver com dignidade e decncia. Flaviii, a emancipao e a abolio ainda no foram completadas
no Brasil, mas esse dia chegar! Ax e luta, querida. Prolongo os agradecimentos a David, seu
companheiro, uma excelente pessoa.
Vale lembrar as sadas ao Mocambinho com Rafael Portela, Paulo de Jesus e Denilson Lessa
depois de Metodologia da pesquisa. Pois , aps a sabatina dos projetos feita por Joo Reis amos
ao bar para esfriar o juzo!
No Arquivo Pblico do Estado da Bahia fui muito bem atendido por todos aqueles
funcionrios que prestam um servio decente, apesar das pssimas condies de trabalho e de
salrio. O governo da Bahia no tem o menor respeito pela memria histrica do Pas. o que fica
evidente quando se observa o caos e os diversos problemas enfrentados pelo Arquivo Pblico do
Estado da Bahia - APEBA nesses ltimos anos. A situao de abandono. Vai um abrao forte e
um agradecimento enorme para Uiara, seu Raimundo e Djalma Mello.
Muitos historiadores me indicaram bibliografia e fontes: Joo Jos Reis, Wlamyra
Albuquerque, Rafael Sancho, Marcelo Souza, Jackson Ferreira, Flaviane Ribeiro, Tiago Arajo.
Valeu.
Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFBA pela acolhida e a ateno que sempre
me dispensou nesses dois anos e meio. Agradeo a Evergton Sales - coordenador entre 2010 e 2012
- pelo apoio, sobretudo nos momentos em que precisei de alguma informao sobre bolsas e
disciplinas. Na linha de Escravido e Inveno da Liberdade foram discutidos dois captulos dessa
dissertao. Sou grato a todos pela leitura atenciosa e na medida do possvel procurei incorporar os
comentrios de todos.
Sou muito grato aos professores Antonio Luigi Negro, o popular Gino, e Gabriela dos Reis
Sampaio pela oportunidade que me ofereceram de passar quatro meses em Campinas cursando
disciplinas e fazendo pesquisa na Unicamp, atravs do Programa Nacional de Cooperao
Acadmica - PROCAD.
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Agradeo aos professores Robert Slenes e Silvia Lara pelas dicas e contribuies que deram
ao meu projeto. quela poca a pesquisa engatinhava os seus primeiros passos e as suas
observaes foram muito importantes para o meu amadurecimento. Tambm estendo os
agradecimentos aos demais membros da linha de Histria Social da Cultura, do Programa de Ps-
Graduao em Histria da Unicamp.
Na Unicamp fiz boas amizades e vivi intensamente aquele espao. E o que dizer das
constantes sadas semanais nas festas do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, o IFCHIIII?
Tiago Araujo Leito, o terror, era o meu parceiro nessas aventuras festivas pela agitada
Universidade e tambm no Bar do Z, mas era tambm um companheiro para discutir fontes,
bibliografia e novas tendncias da historiografia brasileira e internacional. Tiago, obrigado.
Tambm vale mencionar, dizer um al para Marcelo Mac Cord, Fernando (ele conseguia pegar
todos os livros quando tinha as famosas promoes na Unicamp), Vinicius Possebon (Mosco),
Carlos, Alisson, Emlia Vasconcelos, Crislayne e Alessandra Peregrino Negro, baiana que conheci
nas terras bandeirantes.
Em Campinas, morei no Pensionato Baro. Quero agradecer a receptividade de Fernando,
Andr, Roberto (no beba, por favor) Luis Mocelin, Ed Nascimento, Joo Rivera e tantos outros
companheiros de moradia. No dia da minha partida para Salvador teve at uma farra de despedida.
Morar com eles foi muito bom e deixou saudades.
Mas se no fosse a companhia de Flaviane Ribeiro e Bruna Ismerin em Campinas no sei o
que seria deste pobre homem que vos escreve. Os almoos no Restaurante Universitrio eram
bastante divertidos, sempre regados a muitas prosas, discusses acadmicas e polticas. Que
saudade, bandejar com elas era uma resenha. Quero agradecer a preocupao dessas historiadoras
quando eu exagerava na bebida e chegava sem apetite no bandeco, sobretudo nas sextas,
resultado das festas do IFCH. O incentivo delas para que eu comesse era imensa. As idas ao bar, ao
shopping, biblioteca, feirinha da Unicamp (elas queriam comprar tudo que viam pela frente) ao
arquivo e lanchonete possuam uma urea especial quando eu estava na companhia delas. Por tudo
isso, e mais aquilo que no consigo expressar, serei eternamente grato a vocs.
Quando Baro Geraldo ficava um tanto insuportvel corria para a casa de Tia Francisca, na
Capital. L era o espao onde eu me sentia em casa. Era a minha famlia baiana em So Paulo.
Agenor, Bruna, minha prima, e o pequeno Davi meu muito obrigado pelo carinho e ateno que me
dispensavam. Ah no se pode deixar de pontuar as divertidas companhias de Buri, Emerson (Apito)
e Djalma (Ch).
Isabel Cristina Ferreira dos Reis e Elciene Azevedo participaram da minha banca de
qualificao. Ambas deram contribuies inestimveis ao trabalho e me apontaram questes que at
ento nunca tinha pensado. Na banca da defesa mais uma vez Elciene pontuou questes
8
interessantes e procurei incorpor-las nesta verso. Tambm estendo os agradecimentos ao
professor Walter Fraga Filho pelas indicaes sugeridas a mim. Muito obrigado.
Na Capit da Bahia morei mais de um ano na Casa de Estudante de Uiba em Salvador -
CEU, instituio que nessas quatro dcadas contribuiu imensamente para a formao de um
diversificado quadro de profissionais e de homens pblicos da cidade e continuar formando,
mesmo diante da situao de abandono que a Casa vem sofrendo nesses ltimos anos por parte de
seus governantes, muitos dos quais ex-residentes; Filhos ingratos. Pela excelente acolhida e pelas
resenhas, divertimentos e farras na CEU, no Toror, na Barra e nos butecos do Dois de Julho vou
ser eternamente grato a Jane, Myrla, Dudu, Nonas, George Fernandes, Dr. Z Miguel, Luciana,
Ligia, Amandinha, Nego de Grossa e Pietro (Muito hospitaleiro em seu apartamento). Um
agradecimento tambm a Rafael e a Martinha, companheiros de Presidente Dutra.
De volta a Uiba fui recepcionado com positividade por muitas pessoas. Eduardo Lopes,
Dudu, como sempre, um amigo para todas as horas. pau para toda obra. Pela amizade, boa
prosa e as cervejas bem geladas no rango de Vagner, Rangel e tantos outros. Sem essas sadas e as
novelas em grupo eu no teria conseguido. Nessa parte, estendo os agradecimentos a Muca, Brizola,
Marcelo (predador), talo e Roberto.
E os visitantes de minha casa? Amigos e parentes? Relatavam com freqncia as minhas
ausncias nas prosas do incio de noite. Tia Lurde, Dona Dlia, tia Evinha...! Minha prima
Valquiria, por exemplo, sempre fazia a seguinte pergunta quando chegava a noite para conversar e
tomar caf conosco: cad G? T estudando? E eu trancado no quarto, na frente do
computador, com uma pilha de livros me fazendo companhia. Pode ficar tranquila Valquria que
agora conversaremos com mais calma todos os dias e tomaremos vrias garrafas de caf! (risos).
Meus pais, irmos, sobrinhas e tios mais uma vez me apoiaram nessa jornada. No faltou
incentivo e financiamento. Em casa, minha me sempre ficava me chamando para comer alguma
coisa. Tinha vez que eu at me irritava, perdoe-me, era o estresse do texto. Nunca faltava uma
novidade gostosa para eu comer: petinhas, galinha caipira, doces de gergelim. Exemplo de me
cuidadosa e atenciosa, zelosa de suas crias e de toda a famlia. Por tudo que tem feito pela nossa
famlia dona do meu amor e da minha admirao. Carlene, Nlio, Arilson, Muca, Dinha, Duda,
Victtia, Isabela e Mec essa dissertao tambm de vocs. Considerem-se, como eu, Mestre em
Histria Social. Porque as suas vitrias tambm so minhas.
9
RESUMO:
Esta dissertao analisa a gesto do Fundo de Emancipao, artigo terceiro da lei 28 de setembro de
1871, na Bahia. Investiga a formao e o trabalho realizado pelas Juntas de Classificao, que eram
formadas nos municpios baianos pelo promotor pblico, o coletor das rendas e o presidente da
cmara de vereadores. Discute a interveno e as tentativas de apropriao da lei por escravos e
seus familiares, senhores e abolicionistas, durante o perodo de sua vigncia. Relatrios do
ministrio da agricultura, comrcio e obras pblicas, falas e relatrios dos presidentes de provncia
da Bahia, peties, ofcios, recursos administrativos, correspondncias de juzes e de vereadores,
listas dos escravos alforriados e jornais fazem parte do diversificado leque de documentos utilizados
na pesquisa. O trabalho influenciado pela historiografia da emancipao e da abolio de
inspirao thompsoniana, que vem investigando as reformas jurdicas do escravismo e as
apropriaes e/ou os usos diversificados da legislao emancipacionista por parte dos senhores,
escravos e demais segmentos da sociedade imperial brasileira.
Palavras - chaves: Lei de 1871, Fundo de Emancipao, Senhores e Escravos, Bahia.
10
ABASTRACT: This work analyses the managing of the Emancipation Fund, third article of the September 28th
1871 Law, in Bahia. Search the formation and the work made by Classification Committee, that It
were formed in the baianos countries by the public promoter, collector of rents and the president
City Council. It discusses the intervention and the trying of the appropriation of the law for slaves
and them parents, Sirs, and abolitionists, during the period of this occurrence. Ministrio da
Agriculturas reports, commerce and public works, speeches and reports of the president of the
Bahias province, petitions, documents, administrative recourse, letters of judges and city
councilmen, lists of the freed slaves and journals compound the diverse conjunct of documents
utilized in search. This work is influenced by emancipation historiography and the abolition
influenced by Thompson, that it is studying the juridical reconstructions of the slaving and the
appropriations and the diverse uses of the emancipationists legislation used by part of the Sirs,
slaves and others parts of the Brazilian imperial society.
Key-words: 1871s Law, Emancipation Fund, Sirs and Slaves, Bahia.
11
SUMRIO
Introduo 12
Captulo I Entre a falta de livros e de gente: as juntas classificadoras baianas 26
A matrcula dos escravos 31
A formao das juntas 38
Composio financeira do Fundo e a distribuio dos recursos 56
Captulo II - Fazendo valer os seus direitos: escravos e seus familiares na luta pela alforria atravs
do Fundo de Emancipao. 66
As Famlias 76
O Peclio dos libertandos: o preo da alforria 83
Os parcos recursos do Fundo e a onda emancipacionista 88
Um abuso de seus direitos: os infortnios de Benedito por conta da lei de 1885 e da deciso de
um juiz 91
Cap.III - A rede de aliana senhorial e a precarizao da alforria pelo Fundo de Emancipao
97
Senhores emancipacionistas: os favorveis lei 102
Contra o insciente ou no intimado no corre prazo: os senhores contrrios ao Fundo de
Emancipao 115
Captulo IV Por intermdio dos senhores: o entrega das cartas de alforria pelo Fundo de
Emancipao e a abolio no Brasil 126
A preparao da audincia em Morro do Chapu 128
O dia da Audincia 138
Os libertandos na audincia 144
Os abolicionistas no cerimonial 146
As Autoridades pblicas diante da emancipao estatal 150
Os senhores diante da derrota 154
Consideraes Finais 159
Fontes 165
Referncias Bibliogrficas 166
12
Introduo
No dia 30 de junho de 1886 o juiz de rfos da Barra do Rio de Contas enviou presidncia
da provncia a relao dos escravos que tinham sido alforriados pelo Fundo de Emancipao
naquela vila, localizada no sul da Bahia. Na verdade, no foram muitos. De acordo com o juiz
Agnelo Coutinho Oliveira, libertou-se apenas um. Seu nome era Miguel, de cor preta, jovem, pois
possua poca mais ou menos 17 anos de idade, solteiro, trabalhador do servio da lavoura e filho
da liberta Paula. Ele era escravo de Agnelo Jos Pereira.
Segundo as informaes do juiz, a alforria foi contratada entre o Administrador das Mesas
das Rendas da Vila, o Major Francisco Manoel da Silva e o senhor do escravo pela quantia de
655$300 ris. Deste valor, Miguel contribuiu com um peclio de 80$000 mil ris. Ele recebeu a sua
carta de liberdade no dia 29 de maro de 1886, aps a divulgao da audincia na localidade pelo
juiz de rfos, que era a autoridade responsvel por marcar e presidir o cerimonial de entrega das
cartas aps o recebimento da lista enviada pelo coletor, um dos integrantes das juntas
classificadoras, contendo os nomes dos escravos que poderiam ser libertos. 1
O juiz afirmou que a alforria foi passada ao libertando seguindo os rituais de prxis, de
acordo com o prescrito no artigo 42 do decreto 5.135 de 13 de Novembro de 1872: A carta fora
entregue ao senhor Agnelo Jos Pereira e este passou ao seu ex-escravo Miguel que, segundo as
informaes do juiz, ficara muito satisfeito ao receber a carta de liberdade das mos do seu
antigo proprietrio. As alforrias por meio do Fundo de Emancipao eram entregues dessa forma
aos que se libertavam: diretamente das mos dos seus ex-senhores.2
Outra questo que chama a ateno nessa alforria a contribuio de peclio, por parte de
Miguel, para se ver livre do cativeiro ao qual estava subjugado: 80$000 mil ris. No foi apenas
esse escravo que apresentou peclio aos agentes pblicos para complementar os recursos do Fundo.
Milhares de escravos na Bahia e em todo o Imprio brasileiro seguiram o mesmo caminho trilhado
por Miguel com o intuito de melhorarem as suas classificaes na ordem dos que teriam preferncia
na alforria pelo Fundo de Emancipao, como aponto mais adiante. O decreto 5.135 afirmava que
os libertandos que depositassem algum valor no juizado de rfos teriam preferncia diante das
demais categorias de escravos, no caso, os casados e depois os solteiros. Era, portanto, uma forma
do governo de estimular os escravos ao trabalho e formao de poupana.
Mas no foram apenas os escravos que tentaram se apropriar dos recursos do Fundo de
Emancipao. Interessados na indenizao de suas propriedades, muitos senhores na Bahia
procuraram apresentar e orientar os seus escravos diante da junta de classificao e ao juiz de rfos
1 APEB Seo de Arquivo Colonial e Provincial, Presidncia da Provncia, Justia (Escravos: Assuntos). 1830-1889, mao, 2898. 2 Ibidem. Decreto 5.135 de 13 de Novembro de 1872.
13
com vista nos recursos pblicos, desde os momentos iniciais em que o Fundo comeou a ser
aplicado. O movimento contrrio tambm existiu, ou seja, senhores que no desejavam que seus
escravos se libertassem e recorriam s juntas, ao juiz de rfos e ao governo da provncia para que
essas autoridades impedissem que os seus cativos se alforriassem com os recursos pblicos.
Esta dissertao aborda as diferentes formas de interveno dos escravos, senhores e dos
abolicionistas para se apropriarem do Fundo de Emancipao na Bahia nas derradeiras dcadas de
existncia da escravido no Brasil. Sero principalmente esses personagens, que amide estavam
em negociao, mas tambm em conflito com as juntas classificadoras, os principais atores dessa
dissertao. Cabe frisar que no uma pesquisa sobre a aplicao do Fundo em todos os municpios
baianos, mas apresento histrias que ocorreram em diversos lugares da Provncia em razo da
documentao ser dispersa, bastante fragmentada e difcil de ser sistematizada. Ento, procurei
arrum-la no sentido de ter uma compreenso abrangente de como o Fundo fora aplicado na
Provncia como um todo, atravs de documentos que eram endereados ao governo da Bahia pela
burocracia local responsvel por aplicar a lei.
O Imprio brasileiro possua 21 provncias nessas derradeiras dcadas da era escravista. Em
todas elas o governou alforriou escravos com os recursos do Fundo de Emancipao. Ao total, mais
de 32 mil cativos foram libertados nessas provncias e a quantidade de verbas investidas pelo
governo chegou soma de 16.259:451$109 (dezesseis mil e duzentos e cinqenta e nove contos,
quatrocentos e cinqenta e um mil e 109 ris). Na Bahia, como na maior parte das regies do Brasil,
o Fundo vigorou at os momentos finais da escravido e exatos 3.533 escravos libertaram-se por
esse meio nos 85 municpios onde o governo distribuiu quotas para serem aplicadas pelas juntas de
classificao existentes na Provncia. Os recursos destinados aos municpios baianos totalizaram
1.727:007$090 (um mil sete centos e vinte sete contos, sete mil e noventa reis). 3
Centenas de juntas de classificao foram criadas em todo o Imprio, formadas por
promotores, presidente de cmara de vereadores e coletores de rendas para classificarem os
escravos que teriam direito de se libertarem pelo Fundo, no caso, os casados e em seguida os
solteiros. Na Bahia criaram-se 85 delas, o que mobilizou direta ou indiretamente em torno de 425
autoridades pblicas, incluindo neste clculo os integrantes das juntas ou seus substitutos e os juzes
de rfos, que eram os responsveis a nvel local por fiscaliz-los. Nunca dantes o governo imperial
havia criado uma estrutura to expressiva de impostos como mostro mais adiante - para captar
recurso para libertar escravos, nem montado at aquela ocasio um aparato burocrtico daquela
envergadura com vistas na transformao das relaes sociais e de trabalho no Pas.
Apesar de ter sido um projeto governamental monumental e mais de 32 mil escravos terem
conseguido as suas alforrias por meio dele, o estudo da aplicao dos recursos do Fundo e os 3 Ver captulo I e II.
14
diversos agentes envolvidos, interessados ou no, no sucesso dos trabalhos realizados pelas juntas
no Imprio brasileiro e mais especificamente na Bahia, ainda so questes que foram muito pouco
investigadas pelos historiadores, apesar dos avanos nas pesquisas no Brasil nessas ltimas dcadas
sobre a legislao emancipacionista. Essa dissertao pretende contribuir com as pesquisas sobre o
assunto.
Com isso no afirmo que no existam trabalhos sobre o Fundo, mas que no houve uma
investida mais firme dos pesquisadores no sentido de t-lo como objeto central de pesquisa. Nos
trabalhos que existem referencias a ele, o referido instrumento libertador aparece como tema parcial
em meio a assuntos mais amplos perseguidos pelos autores. Com exceo da dissertao de Fabiano
Dauwe, em que abordou o tema para Desterro, atual Florianpolis, o Fundo aparece em meio a
discusses mais gerais sobre emancipao e abolio, transio do trabalho escravo para o livre
e famlia negra. So os casos, por exemplo, dos trabalhos de Emilia Viotti da Costa e Robert
Conrad, autores que escreveram suas obras clssicas entre as dcadas de 1960 e 1970 do sculo
passado. E tambm autores mais recentes, a exemplo de Sidney Chalhoub, Joseli Mendona e Isabel
Cristina Ferreira dos Reis.
pertinente pontuar que por conta desses autores abordarem o Fundo de Emancipao no
interior dos seus recortes no torna os seus trabalhos menos importantes e/ou menos interessantes
quando se trata de abordagens em relao ao Fundo, pelo contrrio. Esses pesquisadores foram
referncias fundamentais na construo das problemticas iniciais dessa pesquisa e por todo o
percurso aqui trilhado. Sem eles teria sido bem mais difcil nortear as anlises das fontes e
apresentar o resultado que mais adiante segue. Diante disso, so a esses autores e aos seus trabalhos,
produzidos em diferentes momentos da histria do pas e com abordagens, filiaes polticas,
acadmicas e problemticas diferenciadas, que me reporto nesse momento.
Emilia Viotti da Costa inaugurou com seu Da Senzala Colnia, nos anos de 1960, uma
vertente crtica de interpretao sobre o Fundo de Emancipao. Com base nos relatrios do
ministrio da agricultura e de presidentes de provncia de So Paulo, a autora abordou em poucas
pginas do livro a aplicao do Fundo no Imprio. Destacou a falta de empenho da burocracia
responsvel pela gesto dos recursos e as constantes fraudes ocorridas durante a vigncia do Fundo,
a exemplo da classificao de escravos doentes ou incapacitados para o trabalho e a concesso de
alforrias condicionais pelos senhores com o intuito de barrar a alforria de suas posses, pois os
libertos com clusula eram proibidos de se alforriarem pelo referido instrumento libertador.4
Segundo Costa, durante todo o processo de aplicao do Fundo prevaleciam as vontades e
interesses senhoriais e foi, em sua opinio, um dos tpicos da lei do ventre livre em que ocorreram
as maiores fraudes e abusos. Diante disso e do baixo nmero de escravos libertos, quando 4 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala colnia. 4. ed. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1998.p.456-460.
15
comparado com outras formas de libertao, a exemplo das concedidas por liberalidade particular e
a ttulo oneroso, a autora pontuou que o Fundo teve um efeito minguado como poltica pblica
que objetivava emancipao. Em sua opinio, a ao da opinio pblica, na medida em que
tomava conscincia da necessidade da abolio, foi mais eficaz do que a legislao
emancipacionista aplicada pelos governos.5
Outro autor que no se furtou de fazer duras crticas ao funcionamento do Fundo foi Robert
Conrad, no final dos anos de 1970. Com um enfoque muito parecido com o de Costa e tendo por
base as mesmas fontes, no caso, os relatrios ministeriais e de presidentes de provncia, o autor
pontuou os diversos problemas que marcaram a aplicao do Fundo. A primeira questo apontada
por ele foi a dificuldade do governo para fazer as juntas se reunirem no prazo, em razo do atraso
ou na lentido da matrcula, da falta de livros e de quorum das juntas. O autor tambm pontuou uma
srie de abusos graves cometidos pelos senhores com a convenincia das autoridades.6
Tendo por base uma fonte abolicionista, Conrad afirmou que escravos com mais de setenta
anos foram alforriados a preos suficientes para comprar meia dzia de escravos jovens. Alm
dos preos elevados, sobretudo nas reas cafeeiras, a exemplo de Campinas, o autor afirmou que os
proprietrios promoviam casamentos entre seus escravos menos valiosos, no caso, os mais idosos e
doentes, com os mais jovens para obterem prioridade na alforria. Na denncia de Conrad, o Fundo
tambm foi usado indevidamente para campanhas eleitorais e, em algumas localidades, as
distribuies anuais de Fundos iam regularmente para cinco ou seis pessoas influentes.7
Na tica de Conrad o Fundo de Emancipao no conseguiu resultados notveis por dois
motivos principais. Primeiro, o governo no disponibilizou os incentivos necessrios para que este
funcionasse de forma eficiente nas Provncias. Ademais, a proposta de libertar escravos por esse
meio no era uma ideia muito popular na dcada de 1870 e a participao, por conseguinte, era
muito lenta onde as distncias eram muito grandes, as condies eram primitivas, os proprietrios
eram poderosos senhores locais e os funcionrios pblicos precisavam mais do que a
responsabilidade legal e as ameaas oficiais para que agissem.8
Em segundo lugar, o Fundo nunca chegou a ser suficientemente importante para libertar um
grande nmero de escravos porque os preos eram arbitrados com os preos elevados nas
localidades e apesar de o governo ter criado uma quantidade nada desprezvel de impostos para
captar verbas, (loterias, taxas, doaes e legados) essas fontes no eram suficientes para montar um
arsenal expressivo de recursos. Por conta disso, o Fundo no fora capaz de alforriar uma quantidade 5 Ibidem. P. 459 6 CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.p-139-140. 7 Ibidem. P. 139. A fonte abolicionista que Conrad usa como base : O Christianismo, acivilisao e a sciencia protestando contra o captiveiro no Brasil (Bahia, 1885), de autoria desconhecida. 8 Ibidem. P. 141.
16
significante de escravos. Conrad concluiu que o Fundo no tinha a inteno de ser mais do que um
gesto humanitrio, um instrumento de libertao menor ou uma prova de boa vontade.9
Apesar da crtica, Conrad concluiu que a lei do ventre livre teve um efeito importante sobre
atitudes. Suas deficincias foram apontadas e tambm exploradas pelos abolicionistas, o que
promoveu um grande debate nacional sobre os limites dessa lei naquelas ltimas dcadas do
escravismo, apontada por homens importante do perodo, a exemplo de Joaquim Nabuco, Jos do
Patrocnio e Andr Rebouas. De acordo com Conrad, a lei fora responsvel por formar
gradualmente uma nova oposio ao trabalho servil e contribuiu para minar sutilmente a
escravido ao identificar a emancipao com os melhores sentimentos da nao.
Conrad tambm no deixou de mencionar a importncia da libertao de mais de meio
milho de crianas que estavam entrando na idade produtiva na dcada de 1880, o que daria
sobrevida escravido se no tivessem sido libertadas pela lei. Neste sentido, Conrad se distancia
de Costa, porque ele compreende que apesar dos problemas no tocante aplicao da lei do ventre
livre, ela teve um efeito positivo no sentido de condenar a escravido e de fomentar e consolidar um
sentimento pblico pr-abolio. Neste ponto sua avaliao difere da de Costa, que descartou por
completo essa legislao. 10
Inspirados pelas renovaes historiogrficas dos finais dos anos de 1980, uma gerao de
historiadores tm produzido trabalhos sobre a legislao emancipacionista, sobretudo com nfase
nas leis de 1831, 1850, 1871 e 1885. Silvia Lara, Sidney Chalhoub, Hebe Maria Mattos, Keila
Grinberg, Elciene Rizzato Azevedo, Joseli Mendona e Ricardo Tadeu Cares da Silva so
referencias centrais no assunto. As perguntas e orientaes desses historiadores no se limitam a
mensurar a quantidade de escravos que foram libertados atravs da legislao e nem s na anlise
dos problemas estruturais enfrentados pelas autoridades no tocante aplicao da lei, embora no
neguem a existncia de tais problemas ou os limites dessa legislao na vida daquelas pessoas.11
Com forte influncia da historiografia inglesa, sobretudo dos trabalhos de Edward
Thompson, mas tambm das pesquisas de Eugene Genovese para os Estados Unidos e de Rebeca
Scott para Cuba, esses historiadores tm buscado interpretar a legislao como um palco ou uma
9 Ibidem. P. p141. 10 Ibidem. P. 145-146. 11 LARA, Slvia Hunold. Campos da violncia: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro: 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade; uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil Sculo XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigidade: as aes de liberdade da Corte de Apelao do Rio de Janeiro no sculo XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994. AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos. Lutas jurdicas e abolicionismo em So Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. MENDONA, Joseli Maria Nunes. Entre a mo e os anis: a lei dos sexagenrios e os caminhos da abolio no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 1999. SILVA, Ricardo Tadeu Cares. Os escravos vo justia: a resistncia escrava atravs das aes de liberdade. Bahia, Sculo XIX. Dissertao (Mestrado). Salvador: Universidade Federal da Bahia/Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas; 2000.
17
arena de lutas e de embates, nos quais muitos e complexos interesses (de senhores, libertandos e
autoridades) estavam em jogo e as formas que os subalternos, no caso, os escravos, utilizavam para
se apropriar da lei. Na verdade, eles compreendem a legislao escravista como uma via de mo
dupla, na qual os senhores e tambm os escravos se apropriavam de acordo com seus interesses e
capacidades e no apenas como reprodutora dos ideais e das vontades dos primeiros, muito embora
no neguem que a legislao tenha como funo primordial manter a dominao e a hegemonia
senhorial.12
Neste sentido, a legislao no apenas vista como um engodo das elites para ludibriar os
escravos e retardar as mudanas reais, urgentes e necessrias na sociedade, isso tambm, como
Robert Conrad denunciou em seu trabalho. Mas o que esses historiadores procuram apontar, dando
nfase mesmo, so as formas e as estratgias construdas pelos subalternos para reverter e disputar
tal processo, pois, para esses historiadores, a lei no pode contemplar apenas os interesses dos
grupos mais poderosos e dominantes, mas ela tambm pode expressar, de alguma forma, parte das
aspiraes e dos projetos dos de baixo, se no ela no ganha legitimidade nas relaes sociais,
nem cumpre a sua funo de mediadora das relaes e dos conflitos intra e entre as classes sociais.
digno de ser lembrado que esses autores no se diferenciam de Emilia Viotti da Costa e
Robert Conrad apenas em relao a questes tericas. Os autores dos anos de 1980 em diante
utilizam em seus trabalhos um leque maior de fontes, o que, consequentemente, abriu a
possibilidade de incluir em suas abordagens um nmero diversificado de personagens. Ao lado das
antigas fontes j usadas pelos historiadores acima citados, a exemplo dos relatrios ministeriais e de
presidentes de provncia, jornais, dentre outras, acrescentou-se os inventrios, testamentos e para a
anlise dos embates jurdicos nos tribunais passou-se a utilizar exaustivamente as aes cveis de
liberdade e demais documentos do judicirio. Com elas, os autores se aproximaram das aes dos
escravos e dos abolicionistas e seus embates nos tribunais brasileiros, o que fundamentou as
recentes (re) interpretaes sobre a legislao, agora focada nos usos dos diversos indivduos e no
mais apenas em seus aspectos numricos, em termos de quantidade de alforrias que ela gerou.
Em relao ao Fundo de Emancipao, notadamente, um dos trabalhos pioneiros que o teve
como objeto central de pesquisa foi o de Fabiano Dauwe, que uma dissertao de mestrado que
sofre a influncia direta das novas tendncias da historiografia brasileira de inspirao
thompsoniana. Ancorada em uma ampla variedade de fontes, que inclui textos de poca, debates
parlamentares e a prpria documentao produzida pelas juntas de emancipao de Desterro, a
12 THOMPSON, Edward P. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Ibidem. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. Ibidem. Senhores e caadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SCOTT, Rebecca. Emancipao escrava em Cuba: A transio para o trabalho livre, 1860-1890. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Ed. Unicamp, 1991.
18
exemplo das atas, do livro de classificao dos escravos e das correspondncias endereadas ao
governo, o historiador chegou a concluses inovadoras a respeito do Fundo de Emancipao.13
Sobre o nmero de escravos, Dauwe defendeu que no era o objetivo do governo libertar
uma quantidade expressiva de escravos atravs do Fundo de Emancipao, por pelo menos trs
motivos: primeiro no havia dotao oramentria no Imprio para libertar muitos escravos, aos
milhares, de uma s vez; em segundo lugar, no portar o desejo de libertar um maior nmero de
escravos no estava ligado apenas a questes relativas insuficincia oramentria do Imprio,
como tambm pelo medo dos governantes em libertar de vez uma quantidade significativa de
pessoas, pois quais seriam as medidas para controlar esses milhares de libertos? Ser que o Estado
teria os meios coercitivos necessrios para vigiar mais de perto um alto contingente de gente
libertada atravs do Fundo? Dauwe defende que no. E, por fim, as categorias dos que teriam
prioridade nas libertaes pelo Fundo de Emancipao sugerem que o governo tinha interesse em
libertar uma categoria especfica de escravos, no caso, as famlias. Ento, a crtica feita em torno da
ineficincia do Fundo, com base na quantidade de escravos que foram libertados, no se sustenta
quando se observa esses trs argumentos.14
No tocante aos altos preos em Campinas, comentados por Conrad, Dauwe sugere outra
anlise para alm de possveis burlas, porm sem neg-las. Isto poderia estar relacionado prpria
variao de preo dos escravos nas diferentes regies brasileiras nessas ltimas dcadas. Como
ficaram estabelecidos em lei, os valores dos escravos alforriados pelo Fundo seriam os de mercado
e dever-se-ia levar em conta a idade, a sade e a profisso do escravo. Sendo assim, havia uma
tendncia de os preos serem mais altos em Campinas do que nas regies menos dependentes do
trabalho escravo.
Muito j se escreveu sobre a resistncia das provncias do Sul em relao mudana das
relaes sociais e de trabalho na poca escravista, sobretudo das reas cafeeiras, o prprio Conrad
referncia no assunto. Ento, os altos preos no seriam tambm uma forma dos senhores
campineiros resistirem s transformaes trazidas com a promulgao da lei do ventre livre? Neste
sentido, o Fundo de Emancipao no teria tido alguma importncia no desmonte do escravismo e
na perda gradual de domnio sofrida pelos senhores de escravos? O autor aposta que sim. Esse
trabalho o primeiro a abordar o fundo tratando-o como mais uma possibilidade aberta com a
promulgao da lei do ventre livre e que, de alguma forma, ele se constituiu em uma sada vivel
para os escravos, que por esse meio se libertaram.15
13 DAUWE, Fabiano. A libertao gradual e a sada vivel: os mltiplos sentidos da liberdade pelo fundo de emancipao de escravos. Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, 2004. 14 Ibidem. P.32-52-62 e 63. 15 Ibidem. P.27-33.
19
Para a Bahia, o nico trabalho que se ocupou mais detidamente de analisar o Fundo de
Emancipao foi o desenvolvido por Isabel Cristina Ferreira dos Reis sobre famlia negra na
segunda metade do sculo XIX. Sua tese aborda em dois captulos as tentativas feitas pelas famlias
negras de se apropriarem do Fundo e conseguirem as suas alforrias na Provncia. A autora destacou
muito em seu trabalho os embates entre senhores, os libertandos e os membros das juntas de
classificao, questes que realmente marcaram a aplicao e a gesto dos recursos pelas juntas
baianas.16
Tambm com base nas listas dos escravos que foram classificados e libertados pelo Fundo
em Inhambupe e Ilhus, a historiadora realizou uma avaliao densa do perfil dos escravos que
eram classificados e libertos atravs do Fundo nessas localidades: se casados ou solteiros, idade,
profisso, preo, sexo e os senhores que mais libertaram foram analisados por ela. O trabalho de
Isabel Reis foi referncia importante na realizao dessa dissertao, tanto em relao s fontes que
a autora apresentou em seu trabalho, no caso, as listas, e tambm por considerar que apesar de sua
diminuta eficincia, o Fundo de Emancipao teve alguma relevncia no sentido de alimentar a
chama da esperana negra em conquistar a prpria liberdade ou as de seus familiares.17
Machado de Assis, historiador foi outro trabalho que usei como referncia. No livro, Sidney
Chalhoub analisa o esforo e o empenho de Machado no sentido de desburocratizar e dar agilidade
ao Fundo, assim como os posicionamentos em favor da liberdade de escravos em alguns processos
ocorridos em Pernambuco e que foram parar na diretoria do Ministrio da Agricultura e obras
pblicas, dirigida pelo romancista. A diretoria era responsvel, no interior do Ministrio, pela
coordenao do Fundo no Pas e local de trabalho do bruxo de Cosme velho. Chalhoub tambm
destacou a interferncia de proprietrios, por meio das redes de poder, parentesco e favor, prticas
que parece que foram muito recorrentes em todo o Pas durante o processo de classificao e
libertao de escravos atravs do Fundo de Emancipao. 18
Cabe apontar que mesmo no abordando o Fundo de Emancipao, os trabalhos de alguns
pesquisadores me influenciaram muito no tocante interpretao dos objetivos pblicos e polticos
dessa legislao e seus argumentos e teses foram de importncia inigualvel na interpretao do
meu material de pesquisa. Sobretudo no sentido de eu no perder de vista o conservadorismo e o
elitismo da lei de 1871 que, ao mesmo tempo em que abriu possibilidades novas para os escravos
conseguirem as suas alforrias, a exemplo da libertao do ventre, atravs do peclio, do Fundo e por
meio de contratos de servios, tambm no se esqueceu da indenizao aos proprietrios e da
16 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A famlia negra no tempo da escravido: Bahia, 1850-1888. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Campinas, So Paulo, 2007. 17 Ibidem. P. 26. 18 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003. P.227-240.
20
vinculao dos libertos aos seus ex-senhores. Neste sentido, alguns trabalhos me ajudaram a pensar
a lgica senhorial e o conservadorismo estatal presentes na alforria por meio do Fundo de
Emancipao.
o caso, por exemplo, do trabalho de Eduardo Spiller Penna, no qual o autor abordou os
debates em torno da emancipao discutidos pela elite jurdica que fazia parte do Instituto dos
Advogados Brasileiros IAB, fundado no ano de 1843. Pena observou bem o conservadorismo e o
paternalismo daquela elite jurdica, formada de notveis que ocupavam cargos no executivo,
legislativo e judicirio, oriundos da nobreza imperial em boa parte. Em relao escravido, mais
detidamente, o autor apontou que o ideal jurdico daqueles homens era pautado pela tentativa de
conciliar liberdade e emancipao para os escravos em harmonia com o direito de propriedade e
com a segurana pblica do Imprio. Neste sentido, a reforma da escravido deveria conciliar esses
objetivos, um tanto contraditrio, quais sejam: liberdade para os escravos em sintonia com a
indenizao da propriedade aos senhores e a manuteno da segurana e da paz social do Imprio
atravs do controle dos futuros libertos.19
De fato, essas preocupaes dos reformadores do IAB com a indenizao da propriedade
escrava, em respeito aos direitos senhoriais, com a segurana pblica do pas, como tambm em
relao vinculao dos libertos aos seus antigos senhores foram incorporadas sabiamente na
legislao de 1871 e 1885. Investigando detidamente os debates parlamentares sobre a proposta de
lei de libertao dos escravos sexagenrios, Joseli Maria Nunes Mendona analisou essa legislao
de forma pontual. Concluiu a autora que essa assertiva foi contemplada na lei de 1871 quando
atrelou os destinos dos ingnuos at a idade de 21, idade em que os senhores teriam direito aos
servios dessas pessoas e tambm na de 1885 quando os sexagenrios foram obrigados a prestarem
servios aos seus antigos senhores. Era a mudana das relaes sociais com slidas ligaes com os
tempos que se propunham superar.20
No menos importante o trabalho da professora Regina Clia Lima Xavier Machado, no
qual analisou a vida dos libertos em Campinas na segunda metade do sculo XIX. A autora recorreu
a um arsenal amplo e diversificado de fontes para analisar a complexa e ambgua passagem da
escravido liberdade. As concluses da historiadora giram em torno da ideia de que a liberdade
no se consumava com a conquista da alforria, como se a posse da carta representasse uma
ruptura brusca com os antigos laos edificados nos tempos da escravido. A historiadora pontuou
muito bem que a nova condio (a de liberto) precisava constantemente ser afirmada nas relaes
19 PENA, Eduardo Spiller Pena. Pajens da Casa Imperial: Jurisconsultos, escravido e a lei de 1871. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 2001. 20 MENDONA, Joseli Maria Nunes. Entre a mo e os anis: a lei dos sexagenrios e os caminhos da abolio no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 1999. P. 359.
21
sociais, porque no era raro alguns senhores colocarem essa condio sob suspeio, prova
mesmo, atravs das aes de escravido na justia.21
Outra questo sugerida pela autora que mesmo com os avanos da legislao
emancipacionista e as mudanas ocorridas durante as dcadas finais do escravismo, boa parte dos
contemporneos que viviam aquelas mudanas, sobretudo os senhores, ainda compreendiam que a
superao da escravido via carta de alforria deveria ser marcada por continuidades. Dito de outro
modo, os senhores desejavam que os libertos continuassem em sua rbita de poder e de influncia;
antes como escravos, agora na condio jurdica de alforriado dependente. Percebi que essas
formulaes dos autores acima citados so vlidas para a alforria via Fundo de Emancipao e as
utilizei bastante na anlise das fontes, como mostro ao longo do trabalho.22
Por falar em fontes, vamos a elas. A maior parte dos documentos utilizados na confeco
desse trabalho fora pesquisada no Arquivo Pblico do Estado da Bahia. Usei exaustivamente
correspondncias entre autoridades e rgos pblicos da Bahia. Diversos ofcios de promotores,
juzes de rfos, dos integrantes das Juntas de Classificao endereadas ao Presidente da Provncia
e os despachos dos governantes provinciais foram analisados.
Nessas correspondncias aparecem assuntos variados sobre o estado do Fundo na Bahia.
Falta de livros para a classificao de cativos, atrasos nas reunies das juntas, esclarecimentos sobre
o regulamento, brigas entre os prprios membros da juntas, senhores que no queriam que seus
cativos fossem classificados, proprietrios reclamando que seus escravos no foram classificados e
pedindo justia, so alguns dos assuntos que aparecem de forma corriqueira. Esses ofcios so
esclarecedores da situao administrativa do Fundo na Provncia, sobretudo nos municpios, ou
seja, onde os recursos estavam sendo aplicados. Atravs deles pude fazer avaliaes sobre os
problemas e desdobramentos de ordem administrativa, bem como o empenho e tambm a
morosidade das autoridades pblicas na conduo do processo de aplicao do Fundo.
A partir deles, fiz consideraes sobre a movimentao de senhores, escravos, abolicionistas
e das juntas de classificao, uma vez que aparece nestas fontes todos esses atores que estavam
envolvidos diretamente nas questes que tratavam dos trmites administrativos relativos ao Fundo.
21 XAVIER, Regina Clia Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do sculo XIX. Campinas: Centro de Memria Unicamp, 1996.p.65. 22 Ibidem. Tambm recorri historiografia que discute abolio no Imprio. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque, Walter Fraga Filho, Elciene Rizzato Azevedo e a recende dissertao de Jac dos Santos Souza sobre o jornal abolicionista O Asteride, da cidade de Cachoeira, no reccavo, foram usados para fundamentar a anlise das fontes e perceber a diversidade de agentes que militavam em prol da abolio e euforia ou agitao poltica das duas dcadas finais da escravido. Ver, respectivamente: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulao: abolio e cidadania negra. So Paulo: Companhia das Letras, 2009; FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histrias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas/SP: Editora do Unicamp, 2006; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos. Lutas jurdicas e abolicionismo em So Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; SOUZA, Jac dos Santos. Vozes da Abolio: Escravido e Liberdade na Imprensa Cachoeirana (1887-1889). Dissertao de Mestrado apresentado ao programa de Ps-Graduao em Histria Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia Campus V. 2010.
22
Trabalhei com um nmero de mais ou menos 40 peties, ofcios e justificativas que eram enviados
por autoridades pblicas, senhores, libertandos e abolicionistas presidncia da Provncia,
originadas de diversas localidades da Bahia, como o leitor ver.
Tambm utilizei os relatrios do Ministrio da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas e os
Relatrios dos Presidentes de Provncia da Bahia, alocados no site da Universidade de Chicago. No
do Ministrio da Agricultura obtive informaes mais abrangentes em relao aos constantes
atrasos na matrcula e na classificao dos escravos para serem libertos pelo Fundo nos municpios
brasileiros. Notcias da quantidade de recursos destinados s provncias, nmeros de escravos
libertados, contribuies de peclio em todas as provncias do Imprio, regulamentos expedidos
pelo ministrio, quantidade de alforrias concedidas por liberalidade particular ou obtidas a titulo
oneroso, alm das anlises e balanos finais do Ministro da Agricultura em torno do Fundo e
demais questes concernentes ao elemento servil.
J nos relatrios de presidentes encontrei as mesmas informaes administrativas, s que
com um enfoque provincial, ou seja, tratando das questes relativas Bahia. Nos relatrios
pronunciados pelos Presidentes da Provncia encontram-se notcias da matrcula dos escravos, da
formao das juntas e da classificao dos escravos para serem libertos pelo Fundo e tambm achei
dados sobre os recursos provenientes do Ministrio da Agricultura que foram distribudos aos
municpios pelo governo da Bahia. Ainda nestes relatrios aparecem os nmeros de escravos
libertados pelo Fundo e a contribuio dos cativos baianos para se libertarem pelo Fundo mediante
apresentao de Peclio.
No foi fcil pesquisar e sistematizar essas informaes contidas nessa documentao.
Apesar de haver muito material sobre o Fundo, essas fontes no so seriadas nos diversos
municpios baianos. Foi prxis durante esse percurso encontrar informaes sobre personagens em
um determinado municpio para depois notar o seu desaparecimento por completo da
documentao. So muitas histrias narradas a seguir de pessoas lutando para obter a sua alforria - e
de indivduos tentando impedi-las - mas histrias cortadas em pedaos, muitas das quais no pude
saber o desenlace final. Ainda assim, todas elas mostram as tentativas e os objetivos dessas pessoas
de se livrarem das agruras do cativeiro no qual se encontravam subjugadas e por isso no me furtei
de narr-las exausto.
Almejo continuar com o tema, mas centrar em apenas um municpio baiano para
compreender melhor as dinmicas, os jogos de poder e os possveis abusos e trficos de
influncias que existiram durante a aplicao do Fundo na Bahia e que j foram apontadas por
outros pesquisadores para outras localidades do Imprio, questes que no deu para ser
aprofundadas com mais calma, embora tenham sido sugeridas em muitos momentos por conta dos
indcios e dos rastros deixados na documentao.
23
Dito isso, eis a estrutura dos captulos da dissertao. No primeiro, abordo a formao da
burocracia emancipacionista. Analiso a feitura da matrcula dos escravos na Bahia e no Imprio e
apresento a quantidade de cativos matriculados. Eram com os dados contidos na matrcula que as
juntas baseariam os seus trabalhos. Em seguida, analiso a montagem das juntas e as funes que
estavam sobre a responsabilidade dos membros. Tambm fao uma avaliao do trabalho
desempenhado pelos integrantes das juntas, dos escravos que tinham direito de se libertarem, ou
melhor, dos critrios de classificao e excluso dos cativos e dos recursos que eram destinados
pelos governos aos municpios baianos. , portanto, um captulo com nfase na formao e nos
primeiros passos administrativos dados pela burocracia responsvel por gerir os recursos do Fundo
de Emancipao.
No segundo captulo a nfase se desloca das juntas de classificao para as tentativas de
apropriao do Fundo de emancipao feita por escravos e tambm por abolicionistas. Notei na
documentao que os cativos baianos fiscalizaram e acompanharam detidamente a aplicao do
Fundo na Bahia, desde os momentos iniciais na segunda metade da dcada de 1870 at o ano de
1888.
Orientados ou no por abolicionistas, eles forjaram vrios tipos de estratgias para se
libertarem com os recursos do Fundo: casavam-se durante o processo de classificao feito pelas
juntas, apresentavam peclios na justia como forma de melhorarem o seu lugar na fila, a exemplo
do escravo Miguel, apresentado a pouco, acionavam alianas com abolicionistas e com seus
senhores e entravam com recursos administrativos questionando os trabalhos realizados pelas
juntas. Sugiro que essa interveno escrava foi importante no sentido de fazer presso para que as
juntas funcionassem e fizessem os seus trabalhos com mais agilidade e presteza.
Outros indivduos tambm acompanharam detidamente o andamento dos trabalhos. No
terceiro captulo abordo a interveno dos senhores baianos. Encontrei evidncias na documentao
de uma ciso que fora recorrente durante o processo de aplicao do Fundo de Emancipao, desde
a segunda metade da dcada de 1870. Havia senhores que tinham interesse que seus escravos se
alforriassem com os recursos pblicos. Outros resistiam de todas as formas possveis e cabveis para
que a alforria no se consumasse.
Sugeri que isso estava associado ao tamanho da posse em escravos, ou seja, os pequenos
interessavam-se pela alforria de seus escravos pelo Fundo, enquanto que os senhores que possuam
mais cativos resistiam, mas no aprofundei essa tese porque no tive como, nos limites de tempo
circunscrito a esse trabalho, analisar inventrios e testamentos. No entanto, procurei dar nfase no
captulo em como essa interveno senhorial precarizava o acesso alforria, pelo menos de duas
formas. No caso dos senhores que tinham interesse, transformavam um direito dos escravos em
objeto de negociao entre eles e as autoridades pblicas forjando, assim, relaes de dependncia e
24
de favor entre os ex-senhores e os futuros libertos. Era, portanto, uma mudana que conservava os
antigos laos de sujeio pessoal forjados nos tempos da escravido.
A outra forma de precarizao era em relao ao prprio acesso dos escravos alforria por
meio do Fundo de Emancipao. Est classificado no era garantia para o libertando que iria
conseguir ser alforriado. Os senhores poderiam recorrer ao juiz de rfos e presidncia da
provncia com o intuito de retirar os seus escravos da lista. Mostro casos em que eles no lograram
xito na tentativa de retirar os nomes, mas conseguiram manter os indivduos em situao de
cativeiro enquanto os recursos administrativos abertos por eles circulavam entre as instncias do
Estado. Por outro lado, narro histrias em que os senhores foram bem sucedidos e conseguiram
arrancar os seus escravos da lista dos que seriam alforriados pelo Estado.
No quarto e ltimo captulo, analiso a audincia de entrega das cartas de alforrias pelo
Fundo de Emancipao, ltima etapa do processo emancipacionista. As audincias eram
maciamente divulgadas nas localidades por meio de editais afixados nas portas das igrejas matrizes
e nas gazetas. Senhores, libertandos, autoridades pblicas e comunidade em geral eram convidados
para assistir. O Estado imperial delegava aos senhores a responsabilidade de entregarem as cartas
aos seus ex-escravos dando a entender que o governo desejava com aquele gesto que as relaes
entre libertos e ex-senhores no se rompessem.
Os abolicionistas tambm compareciam e politizavam o cerimonial, na verdade,
transformavam aquele evento em baluarte de propaganda da causa abolicionista. Tambm apresento
casos de escravos que decoraram as salas das cmaras onde a audincia iria ocorrer e depois
festejaram as suas libertaes. J o governo imperial visava com aquela audincia fazer promoo
poltica da interveno do Estado em relao emancipao do elemento servil perante essa
diversidade de indivduos que geralmente assistiam ao evento. Ento, busco entender e analisar
neste captulo os diversos significados para todas essas pessoas que compareciam ao cerimonial e as
disputas simblicas entre elas naquele evento pblico patrocinado pelo Estado imperial.
Apesar dos avanos para a aquisio da alforria com a promulgao da lei do Ventre Livre e
a euforia emancipacionista do perodo, o Fundo foi um instrumento libertador que trouxe muito
mais esperanas do que a concretizao da manumisso para a maioria dos cativos. Espero
convencer o leitor que a estrutura deficiente para a aplicao da lei, a exemplo da falta de agentes
pblicos e de livros de classificao, fizeram com que o complexo trnsito entre escravido e a
liberdade via Fundo de Emancipao fosse permeado de empecilhos e dificuldades.
Problemas relativos insuficincia oramentria e a fora da ingerncia senhorial diante de
autoridades dispostas a no contribuir para que o Pas superasse a escravido, tambm foram alguns
dos fatores que contriburam para que a esperana de muitos cativos e de seus familiares de
conquistarem a alforria no se tornasse realidade. A dissertao procura apresentar essas mudanas
25
forjadas com a criao e aplicao do Fundo, mas sem perder de vista os limites dessa
transformao na vida dos escravos.
Este o primeiro trabalho que tem o Fundo de Emancipao como objeto central de
pesquisa na Bahia. As investigaes sobre a emancipao, com nfase nesse instrumento libertador,
apenas se iniciam, no s por aqui, mas tambm em outras regies do Brasil. Espero que essa
dissertao venha a contribuir de alguma forma para que outros pesquisadores se interessem sobre o
assunto, que um tema fundamental para se compreender com maior profundidade a interferncia
do Estado imperial, atravs da legislao emancipacionista, na transformao das relaes sociais e
de trabalho nas ltimas dcadas do sculo XIX e no desmonte gradual do escravismo brasileiro.
26
Captulo I: Entre a falta de livros e de gente: as juntas classificadoras baianas
A Lei do Ventre Livre foi sancionada no dia 28 de setembro de 1871 pela Princesa Imperial
regente, em nome do Imperador Dom Pedro II, e regulamentada um ano depois atravs do Decreto
5.135 de novembro de 1872. O Ministrio da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas, encarregado
de coordenar a aplicao da lei em todo o Imprio, enviou ao governo da Bahia as cpias do decreto
para serem encaminhadas s autoridades locais para que estas ltimas cumprissem os seus
dispositivos legais, pois lhes cabia a aplicao da lei nas vilas e municpios.
Dividido em dez captulos, com um total de 102 artigos, o decreto 5.135 discorria sobre os
procedimentos que as autoridades pblicas brasileiras deveriam se basear em relao a uma
diversidade de assuntos referentes aplicao da lei de 1871, como por exemplo: o registro dos
ingnuos; a matrcula dos escravos; do peclio e do direito alforria; questes relativas aos
contratos de prestao de servios com vistas na alforria; das associaes responsveis por cuidar e
educar os libertos, caso os senhores no optassem pela continuidade dos servios dos ingnuos;
multas e penas para os envolvidos na administrao da lei, caso no cumprissem as suas funes.
Em relao ao Fundo de Emancipao, foram definidos no regulamento quais seriam as
categorias dos escravos que teriam direito de se alforriarem com os recursos do governo, as fontes
de arrecadao de verbas, as autoridades locais que formariam a junta de classificao, responsveis
por aplicarem a lei nos municpios, e os fiscalizadores dos trabalhos realizados pela junta, no caso,
o Juiz de rfos. Tambm foram elaboradas orientaes em relao negociao dos valores com
os senhores e sobre o arbitramento judicial de valor, caso no houvesse entendimento entre as
autoridades pblicas e os proprietrios de escravos, dentre outras questes que mais adiante me
ocupo. O regulamento era, portanto, uma espcie de manual administrativo/jurdico, destinado s
autoridades brasileiras com o intuito de gui-las em seus procedimentos administrativos referentes
s questes que pudessem surgir no andamento da aplicao da lei de 1871.
O repasse das cpias do decreto 5.135 foi feito no dia 23 de novembro de 1872, decorridos
apenas 10 dias de sua aprovao, na Corte. O ministro pernambucano Francisco do Rego Barros
Barreto, matemtico e engenheiro, tinha pressa e solicitava do desembargador Joo Antnio de
Arajo Freitas Henriques, membro do partido conservador e Presidente da Provncia da Bahia na
poca, urgncia na mobilizao dos funcionrios encarregados de executar a referida lei que,
segundo ele, se alcanassem um resultado satisfatrio, traria apenas melhorias ao pas. Dizia o
ministro:
27
Sendo certo que do bom desempenho desses deveres esto dependentes os benefcios que o pas auferira da reforma do elemento servil, confia o governo imperial que Vossa Excelncia empregar toda a solicitude na imediata organizao e fiel execuo do supradito (sic) regulamento.23
compreensvel a pressa do Ministro quando se observa a conjuntura interna e externa da
poca. As colnias britnicas haviam libertados seus escravos h mais de trs dcadas e, segundo
Jos Murilo de Carvalho, os ingleses faziam presso desde o perodo da Independncia para que o
Brasil fizesse reformas na escravido. 24 Em um balano historiogrfico sobre os rumos do
escravismo no sculo XIX, os historiadores Robert Conrad e Sidney Chalhoub mostraram que os
Estados Unidos, grande aliado escravista do Brasil no continente americano, haviam resolvido o
problema da escravido pela via das armas, por meio de um conflito sangrento entre os estados do
sul contra os do norte, conhecido como guerra de secesso, evento que impactou significativamente
a elite poltica brasileira. 25
A abolio da escravido nos Estados Unidos no provocou impacto apenas no Brasil.
Segundo Rebeca Scott, a abolio da escravido naquele pas no influiu apenas no trfico de
escravos para Cuba, mas tambm nas perspectivas a longo prazo de ampliao da instituio no
interior da Ilha. De acordo com Scott, depois do evento ocorrido nos Estados Unidos, foi-se
embora a esperana nutrida por alguns plantadores de que Cuba pudesse ser anexada quele pas
como um estado escravista. Senhores e administradores tambm temiam que o exemplo de abolio
norte-americana, pela via das armas, pudesse levar a uma ruptura da ordem interna da escravido
cubana. Diz Scott que os escravos cubanos cantavam corriqueiramente nos campos de Cuba o
seguinte refro: Avanza, Linconl, avanza. Tu eres nuestra esperenza.26
Pela Europa, os ventos antiescravistas tambm sopravam com bastante intensidade na poca.
Os cativos das possesses pertencentes a Portugal, Holanda, Dinamarca e os milhes de servos na
Rssia cezarista foram alforriados na dcada de 1860. Entre as potncias da poca somente a
Espanha dividia com o Brasil a condio de possuir a escravido em suas duas colnias na Amrica,
no caso, Cuba e Porto Rico. No entanto, um movimento abolicionista forte, assentado em revoltas
23 APEB Seo de Arquivo Colonial e Provincial. Presidncia da Provncia. Governo. Avisos recebidos do Ministrio da Agricultura. 1872. N. 768. P.219. Francisco do Rego tambm foi ministro dos Transportes, deputado provincial, deputado geral e senador. Mais informaes sobre o ministro, ver site do ministrio da agricultura: http://www.agricultura.gov.br/ministerio/historia/galeria-de-ministros. 24 Segundo Jos Murilo de Carvalho, o Brasil nasceu com este fardo e presso, visto que a Inglaterra exigia o fim do trfico como condio para o reconhecimento poltico e diplomtico da Independncia brasileira. Para saber mais ver o excelente balano feito por Jos Murilo em: CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro das sombras: a poltica imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relum-Dumar, 1996. Principalmente na parte II, no captulo intitulado A poltica da abolio: o rei contra os bares. 25 CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003.
26 SCOTT, Rebecca. Emancipao escrava em Cuba: A transio para o trabalho livre, 1860-1890. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Ed. Unicamp, 1991.p.51.
28
populares, liderados pelos crioulos culminara na lei Moret, que libertou os nasciturnos e os escravos
acima de 60 anos no ano de 1870, iniciando, por conseguinte, a transio lenta e gradual com
reformas na escravido na Ilha de Cuba. De acordo com Chalhoub e Conrad, esses acontecimentos
circulavam bastante nas rodas de conversas do Imprio e nas altas instncias dos poderes pblicos
nacionais, sobretudo no Parlamento, onde a discusso em torno do elemento servil havia sido
retomada. Assim sendo, os encaminhamentos da questo servil se impunham na pauta da elite
poltica da poca.27
Ento, no incio da dcada de 1870, o Brasil estava isolado politicamente, pois a maioria das
naes do globo no era mais escravista. Tanto as naes mais centrais, como por exemplo, os
Estados Unidos e os pases europeus, quanto os mais perifricos, a exemplo dos da Amrica do
Sul e Central. Portanto, o Brasil tornava-se uma ilha escravista. Segundo Chalhoub, esse isolamento
internacional foi, sem dvida, fator crucial para o incio do debate poltico sobre a emancipao.28
No se pode perder de vista esse contexto internacional extremamente emancipacionista,
pois no interior dele que as reformas no Imprio brasileiro se inserem, at porque os reformadores
brasileiros foram influenciados (tomaram de emprstimo, na verdade) por boa parte das leis que
reformaram e, posteriormente, extinguiram a escravido nas colnias inglesas, francesas e
espanholas. Sobretudo aspectos controversos como a libertao do ventre, dos escravos
sexagenrios, da indenizao da propriedade escrava aos senhores e o formato gradual e
conciliatrio, resultaram das avaliaes que os polticos reformistas brasileiros fizeram no contexto
internacional. 29
Internamente, a sociedade brasileira tambm mudara entre os finais da dcada de 1860 e
incio da de 1870. Com o fim da guerra do Paraguai (1864-1868), a questo do elemento servil entra
em cena, novamente, nos grandes sales da poltica imperial. Segundo Conrad e Chalhoub, a
emancipao j havia sido tema de longos debates durante os gabinetes do conservador marqus de
Olinda, no do liberal Zacarias de Goes e Vasconcelos e no gabinete do tambm conservador
Visconde de Itaboara. Mas foi em 07 de maro de 1871 que o Imperador atribuiu a Rio Branco a
rdua tarefa de conduzir a reforma do elemento servil no Parlamento. Tempos depois, apesar dos
27 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003; CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978. 28 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003. P.142. 29 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003. Sobretudo o captulo intitulado Escravido e cidadania: A experincia histrica de 1871. De acordo com Robert Conrad, vrios pases do mundo em que a forma de superao da escravido se deu atravs do gradualismo, libertaram-se primeiro o ventre das escravas. So exemplos os seguintes pases: Chile em 1811, Colmbia em 1821, Portugal em 1856, a Espanha em suas colnias do Caribe em 1870. No caso Cubano libertou-se o ventre e os escravos sexagenrios de uma s vez. Ver: CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978. p.112. Segundo Robert Slenes, uma cpia do projeto que originaria a Lei Moret, de Cuba, havia sido transcrita no relatrio da comisso parlamentar de 1870, que elaborou o que viria ser a Lei do Ventre Livre. SLENES, Robert W. O que Rui Barbosa no queimou: novas fontes para o estudo da escravido no sculo XIX. Estudos Econmicos, vol. 13:1 (jan./abril 1983). p.133.
29
calorosos debates contrrios reforma encabeados por uma oposio firme e tenaz dirigida pelos
deputados Paulino de Souza, Perdigo Malheiro, Jos de Alencar e tantos outros, a lei de 1871 fora
aprovada por uma margem relativamente folgada de votos: 65 a favor na Cmara, contra 45; e 33 a
favor e 7 contra, no Senado.30
Esses nmeros indicam que a elite poltica brasileira havia mudado de opinio em relao
continuidade da escravido no Pas, embora a resistncia reforma tenha persistido at os ltimos
dias do cativeiro. Por sua vez, medida que avanava a dcada de 1870, a aplicao da lei se
mostrou bastante tmida, e marcada por conflitos, mas tambm por acomodaes. Outro fator
importante a ser considerado e que indica que a sociedade brasileira estava em mudana foi a
emergncia do movimento abolicionista. Maria Helena Machado afirmou, brilhantemente, que o
movimento pode ser comparado a um grande guarda-chuva, que acolhia diferentes grupos sociais,
indivduos de lugares distintos na hierarquia da sociedade imperial brasileira. Magistrados,
advogados, mdicos, polticos, comerciantes, jornalistas, caixeiros, escrives, oficiais, libertos e os
escravos compunham o mosaico de pessoas que participavam e militavam na causa da abolio nas
cidades e nas fazendas do imenso Imprio brasileiro.31
Segundo Elciene Azevedo, as formas de interveno dos abolicionistas eram variadas e
multifacetadas. Incluam desde o incitamento e apoio para que os escravos recorressem aos
tribunais para reivindicarem as suas alforrias por meio de aes cveis de liberdade, at o apoio
fuga e a formao de Quilombos. Portanto, as velhas formas de protesto escravo agora contavam
com o apoio e orientao de homens livres e libertos, a exemplo de Luis Gama, ligados ao
movimento abolicionista que os defendiam perante os rgos da justia imperial, manifestao
flagrante de que o escravismo tinha em seus encalos contestadores distintos na sociedade. 32
Da mesma forma que em outras Provncias brasileiras, a Bahia j contava na dcada de 1870
com um sentimento pblico favorvel emancipao. De acordo com Ricardo Tadeu Cares da
Silva, nesta poca existiam na provncia quatro associaes emancipacionistas, eram elas: a
Sociedade Libertadora Sete de Setembro, fundada no mesmo dia e ms do ano de 1869; a
Sociedade Humanitria Abolicionista, fundada em 26 de setembro de 1869; e a Abolicionista
30 CONRAD, Robert Edgar. Os ltimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978. Na pgina 362 contm uma tabela na qual consta os votos dos parlamentares, especificado por Provncia. 31 MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pnico: Os movimentos sociais na dcada da abolio. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ; So Paulo: EDUSP, 1994. 32 Em O Direito dos Escravos, Elciene Azevedo contesta teses clssicas construdas pela historiografia paulista, sobretudo a que dividiu o movimento abolicionista de So Paulo em duas fases: uma legalista e outra radical. A autora aponta que no se deve desprezar a experincia adquirida pelos emancipacionistas nos tribunais, via embates atravs das aes cveis de liberdade, tidos como legalistas, com os confrontos nas fazendas da dcada de 1880, considerados radicais. Os grupos liderados por Luiz Gama e por Antonio Bento, legalista e radical, respectivamente, tm origens em comum, pois seus membros foram forjados na arena de embates que marcaram os finais da dcada de 1860 e 1870 em So Paulo, defendeu a autora. Neste sentido, o abolicionismo filho do emancipacionismo e no h como separ-los atravs do binmio legal versus radical.
30
Comercial, criada em setembro de 1870 e a Libertadora dos Lenis, na chapada diamantina. Alm
de um jornal, O Abolicionista, rgo de propaganda dos associados da Sete de Setembro. Polticos,
intelectuais, mdicos, advogados, professores, estudantes da faculdade de medicina compunham o
mosaico social dos scios dessas entidades. 33
Segundo Silva, o abolicionismo na Bahia teve dois momentos marcantes, com diferenas de
orientao e estratgia de interveno poltica. O primeiro nos idos de 1870, quando essas entidades
e os seus integrantes pautavam-se pela defesa de reformas sociais com a preservao da propriedade
escrava, ou seja, eram emancipacionistas que defendiam intervenes na posse de escravos, desde
que os proprietrios fossem devidamente indenizados.
A virada se deu na dcada de 1880, sobretudo na sua segunda metade, no momento posterior
a 1885, quando o movimento radicaliza-se. Fugas, acoitamentos, formao de quilombos, incndios
e ocupao de propriedades tornam-se mais frequentes, aliados a uma interveno nos tribunais
pautada em uma estratgia que buscava libertar escravos sem qualquer tipo de indenizao atravs
dos argumentos da filiao desconhecida e da importao ilegal. Para este ltimo argumento, por
exemplo, usava-se a lei de 1831 para fundament-lo juridicamente, da mesma forma que o grupo
liderado por Luis Gama fazia em So Paulo desde o final da dcada de 1860. 34
Foi neste clima de efervescncia poltica, favorvel emancipao do elemento servil, que o
ministrio da agricultura, comrcio e obras pblicas iniciava a tarefa de aplicao da lei de 1871 no
Pas. Num momento posterior promulgao da lei no Parlamento, enquanto emergia e se
consolidava uma opinio pblica favorvel abolio, tendo como centro as aes dos
abolicionistas, dos polticos emancipacionistas e das tentativas de apropriaes da lei de 1871 feita
pelos escravos e seus procuradores. Qualquer ato dos governantes relativos a escravos e
emancipao era fiscalizado risca pelos militantes da liberdade e poderia parar em algum jornal de
orientao emancipacionista e abolicionista. Formava-se, assim, uma opinio pblica contrria
continuao do escravismo.
Apesar deste clima mais visvel nos grandes centros urbanos, o futuro da emancipao e do
pas estaria nas vilas e municpios do Imprio. O sucesso ou o fracasso das polticas
emancipacionistas dependeria do desempenho, nas localidades, das autoridades que as aplicavam e
da capacidade de presso e barganha dos abolicionistas e escravos, maiores interessados na
mudana da sociedade. Neste sentido, os conflitos e as negociaes teriam no municpio o lcus 33 SILVA, Ricardo Tadeu Cares. As aes das sociedades abolicionistas na Bahia (1869-1888). 4 Encontro Escravido e Liberdade no Brasil Meridional. De 13 a 15 de maio de 2009, Curitiba. p.4. 34 Ibidem. P.14. Celso Castilho, analisando o processo abolicionista brasileiro, com nfase na provncia de Pernambuco, distinguiu entre anti-escravismo, quando se tratou apenas de opinies contrarias escravido. Emancipacionismo, quando se tratou de polticas de abolio gradual, e abolicionismo, quando houve a proposta de abolio completa. CASTILHO, Celso, Abolitionism Matters: The Politics of Antislavery in Pernambuco, Brazil, 1869-1888, Tese de doutorado, Universidade da Califrnia, Berkeley, 2008.. APUD: SALLES, Ricardo.Abolio no Brasil: resistncia escrava, intelectuais e poltica (1870-1888). Revista de Indias, 2011, vol. LXXI, nm. 251 Pgs. 259-284.
31
privilegiado de sua emergncia, de sua proliferao e encerramento no ano de 1888. Era o palco no
qual os embates em relao abolio seriam encenados pelos senhores, escravos, libertandos,
abolicionistas, autoridades pblicas e a sociedade em geral.
Procedimentos burocrticos a exemplo da matrcula dos escravos e a montagem das juntas
de classificao eram imprescindveis para que o fundo de emancipao pudesse ser til causa
emancipadora. Avaliar como esses trabalhos foram feitos pelos agentes pblicos baianos torna-se
fundamental no sentido de se ter uma compreenso mais sistemtica do alcance e dos limites do
Fundo de Emancipao como instrumento pblico de promoo da alforria na Bahia. Neste sentido,
cabe analisar em que medida e sentido os encaminhamentos da lei sofriam a ingerncia de grupos
de poder/prestgio ligados s elites locais e como isso dificultava a boa gesto da lei. Se o processo
emancipacionista foi gestado nas altas cpulas da Corte, foi pelas mos e aes de quem exerciam o
poder nas vilas e cidades que ela poderia ser boicotada ou, ao contrrio, efetivada.
A matrcula dos escravos
Sob forte inspirao do censo cubano realizado em janeiro de 1871, em cumprimento das
exigncias da Lei Moret, realizou-se duas matrculas de escravos no Imprio do Brasil. A primeira
entre os perodos de 1872-1873 em virtude das exigncias contidas na Lei do Ventre Livre e a outra
entre 1886-1887, por determinao da lei de 1885, mais conhecida como lei Saraiva-Cotegipe ou lei
do sexagenrio, que libertou os escravos acima de 60 anos de idade. Aqui ser abordada mais
detidamente a primeira matrcula.
O primeiro passo e enorme desafio no processo de aplicao da lei de 1871 era a realizao
da matrcula dos escravos existentes no Brasil, como ficou definido no artigo oitavo desta lei. De
acordo com Sidney Chalhoub, alegava-se no Conselho de Estado do Imprio, nos debates da dcada
de 1860, que uma das dificuldades dos legisladores brasileiros ao tratar do problema da
emancipao era a falta de dados confiveis e globais da populao escrava residente no Pas.
No existiam informaes detalhadas sobre eles, pois no havia a obrigatoriedade, antes de 1871, da
feitura do registro de posse dos escravos.35
Sendo assim, os proprietrios os adquiriam e os governavam por meio do costume, com
poucas e raras intervenes do Estado, como bem atentou Manuela Carneiro da Cunha, em texto
que aborda o silncio da lei como uma estratgia de dominao social, arquitetada pelas elites
polticas da poca.36 De fato, por conta da no obrigatoriedade do registro em cartrio, existia um
35 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. So Paulo; Companhia das Letras, 2003. 206-7. 36 CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silncios da lei. Lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do sculo XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, histria e etnicidade. So Paulo, Brasiliense/Edusp, 1986. P.123-144.
32
enorme desconhecimento da populao escrava brasileira. Ento, a feitura da matrcula, instituda
pela lei, resolveria o problema da desinformao sobre o elemento servil e, portanto, era a primeira
tarefa a ser feita no Imprio. Do bom desempenho deste servio dependeria a aplicao dos demais
tpicos da lei de 28 de setembro. Esse registro geral da populao escrava do Pas deveria conter o
nome, sexo, estado, aptido para o trabalho e filiao de cada um, se fosse conhecida.
Em relao ao Fundo de Emancipao, mais especificamente, esses dados eram
imprescindveis, pois eram com eles que as juntas de classificao escolhiam os escravos que teriam
direito de se libertarem com os recursos pblicos. Era, tambm, com essas informaes que o
governo distribuiria as quotas oramentrias, de forma proporcional, entre as Provncias do Pas,
como tambm os Presidentes de provncia usariam esses nmeros como parmetro na hora de
distribuir os valores que foram recebidos do governo central aos municpios e vilas.
Atravs do Decreto n 4.835, publicado pelo governo no dia 1 de dezembro de 1871, ficou
regulamentado os procedimentos concernentes feitura da matrcula no Imprio. No oitavo artigo
do decreto, ficou estabelecido que os responsveis por realizarem a matrcula seriam os seguintes
agentes do governo: os Coletores, Administradores de Mesas de Rendas e de Recebedorias de
Rendas gerais internas e os Inspetores das Alfndegas nos municpios, onde no houvesse aquelas
estaes fiscais.
De acordo com Robert Slenes, essas autoridades receberiam do ministrio da agricultura,
comrcio e obras pblicas trs livros especiais: o primeiro para a matrcula dos escravos; o segundo
para os ingnuos, os libertos pela lei de 1871, os quais seriam matriculados pelos procos, nas
igrejas; e, por fim, um terceiro destinado averbao dos escravos que mudavam para o municpio
depois do encerramento da matrcula. Os livros vinham numerados e rubricados pelo Inspetor da
Tesouraria de Fazenda, nas Provncias, e pelo Diretor Geral das Rendas Publicas, na do Rio de
Janeiro e Municpio Neutro, ou pelos funcionrios a quem estes encarregassem desse encargo.37
Em seu dcimo artigo, dizia que o prazo de abertura seria no dia primeiro de abril de 1872 e
seu encerramento no dia 30 de setembro de 1872. No dcimo sexto artigo, afirmava-se que depois
de expirado esse prazo estipulado no artigo dcimo, a matrcula poderia ser estendida por mais um
ano, ou seja, at o dia 30 de setembro de 1873, o que de fato ocorreu. Durante esse perodo, os
locais de registros deveriam estar abertos das 09 at s 16 horas. s autoridades pblicas
responsveis por realizarem a matrcula, caberiam fazer a divulgao na imprensa e nos lugares
mais pblicos dos municpios e vilas para a cincia dos proprietrios ou possuidores de escravos. 38
37 SLENES, Robert W. O que Rui Barbosa no queimou: novas fontes para o estudo da escravido no sculo XIX. Estudos Econmicos, vol. 13:1 (jan./abril 1983). p.133. 38 Artigo 36 do decreto de n 4.835, de 1 de Dezembro de 1871.
33
Caso no cumprissem as determinaes relativas aos seus trabalhos, essas a