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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
A APLICABILIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO DO TRABALHO
VÍVIAN DE GANN DOS SANTOS
São José, Novembro de 2007.
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
A APLICABILIDADE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO DO TRABALHO
Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau em Direito na Universidade do Vale do Itajaí.
VÍVIAN DE GANN DOS SANTOS Orientador: Professora Msc. Rosângela Laus
São José, Novembro de 2007.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me conceder paciência e resignação.
Aos meus maravilhosos pais, Amauri e Graça, por toda a educação moral e formal concedida, sempre de maneira incentivadora e carinhosa.
Ao meu amado esposo, Marcus, por todo o seu amparo durante a elaboração deste trabalho, por sua calma, compreensão, solidariedade e afeto.
À minha querida orientadora, Professora Rosângela, por estender sua mão neste caminho acadêmico, clareando minha visão crítica sobre os institutos jurídicos, e por sua amizade tão valorosa.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
São José, Novembro de 2007.
Vivian De Gann dos Santos Graduanda
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................. 6
1 INTRODUÇÃO................................................................................ 7
2 PRINCIPIOLOGIA E FUNDAMENTAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA E SUA PERSONALIDADE.................................................................. 9 2.1 ORIGEM, CONCEITUAÇÃO E PRINCÍPIOS BASILARES ............................9 2.1.1 Origem.........................................................................................................9 2.1.2 Conceituação e Princípios Basilares .........................................................11 2.2 PERSONALIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA..............................................13 2.2.1 Conseqüências da Personificação ............................................................15 2.2.1.1 Capacidade Jurídica ...............................................................................16 2.2.1.2 Autonomia Patrimonial............................................................................16 2.2.1.3 Limitação da responsabilidade dos sócios .............................................19 2.2.2 Segurança jurídica e os direitos decorrentes da personalização...............20 2.3 A EMPRESA E A SUA FUNÇÃO SOCIAL ...................................................21 2.3.1 O conceito de empresa..............................................................................21 2.3.2 A Função Social da Empresa ....................................................................24
3 EVOLUÇÃO E APLICABILIDADE DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SEUS PRESSUPOSTOS ............................................................................. 27 3.1 DIREITO ANGLO-SAXÃO E A DISREGARD DOCTRINE ...........................28 3.1.1 Conceituação da Disregard Doctrine .........................................................28 3.1.2 Precedentes históricos ..............................................................................30 3.2 CONTRIBUIÇÕES DO DIREITO ALEMÃO E ITALIANO .............................33 3.3 APLICABILIDADE DA DISREGARD DOCTRINE.........................................35 3.3.1 Recepção da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Ordenamento Jurídico Brasileiro e seus Pressupostos.........................................35 3.3.2 A Concepção da Tecnologia Jurídica ........................................................37 3.3.3 A Evolução da Positivação da Teoria no Sistema Jurídico Brasileiro ........45 3.3.4 A aplicação pelo Judiciário ........................................................................52
4 A APLICABILIDADE DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA JUSTIÇA DO TRABALHO........ 59
4.1 APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NOS ÓRGÃOS DA JURISDIÇÃO TRABALHISTA ..............................59 4.1.1 Divergências da Aplicação da Teoria pela Justiça do Trabalho ................63 4.2 REFLEXOS DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DO TRABALHO PERANTE AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS ......................................................................65 4.2.1 Conseqüências Sócio-Econômicas ...........................................................66 4.2.2 Conseqüências sob o enfoque da Segurança Jurídica ................................68
5 CONCLUSÃO............................................................................... 73
REFERÊNCIAS ................................................................................. 75
6
RESUMO
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi recepcionada e positivada pelo direito nacional no artigo 50 da Lei 10.406/2002. Grosso modo, pela teoria em questão se dá o afastamento da personalidade jurídica, nos casos de abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade social, incluindo-se a prática de fraude e a confusão patrimonial, para responsabilizar as pessoas naturais integrantes da sociedade ou os grupos de sociedades. A aplicação da desconsideração, contudo, não se faz ex officio; depende do requerimento da parte prejudicada, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Em respeito ao princípio da autonomia patrimonial e da limitação de responsabilidade, a utilização da teoria citada deve ser medida de exceção. A situação problema abordada no presente estudo decorre da maneira com que a Justiça do Trabalho interpreta e utiliza a desconsideração da personalidade jurídica nas relações laborais. Ao afastar a personalidade sem traçar exauriente análise dos requisitos legais necessários, ou aguardar requerimento da parte ou do órgão ministerial, a Justiça trabalhista estende a responsabilidade das obrigações trabalhistas sobre o patrimônio particular dos sócios da pessoa jurídica equivocadamente como regra. Esse comportamento desrespeita a segurança jurídica das sociedades empresárias, que ficam desguarnecidas da certeza do direito à limitação de responsabilidade e a autonomia patrimonial, além de fragilizar o desempenho da atividade empresária e comprometer a geração e a manutenção de empregos. Ademais, diminui a produção e a circulação de bens e serviços, o que atinge negativamente o setor econômico no qual atua, e a sociedade civil como um todo.
Palavras chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica; Pessoa Jurídica;
Segurança Jurídica.
7
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende contribuir para o melhor entendimento do
mundo jurídico acerca da Desconsideração da Personalidade Jurídica aplicada
pelos magistrados trabalhistas, além de buscar subsidiar estabilidade às relações
empresariais e auxilio ao lavor dos operadores do Direito.
Como método investigativo empregou-se o indutivo e, para sustentá-lo,
utilizou-se a técnica de pesquisa indireta, por meio de pesquisa documental e
bibliográfica. A pesquisa foi notadamente baseada em leis e acórdãos, assim
como foram consultadas obras e artigos, além de sites da Internet.
O objetivo geral deste trabalho é demonstrar a insegurança jurídica
trazida às relações empresariais por conta dos excessos na aplicação da teoria
da Desconsideração da Personalidade Jurídica pela Justiça trabalhista. Também
foram traçados objetivos específicos, perseguidos nos capítulos segundo, terceiro
e quarto deste documento, os quais compõem um caminho seguro para alcançar
o objetivo maior.
Assim, o primeiro objetivo específico é a identificação dos princípios e
fundamentos norteadores da pessoa jurídica e da personalidade jurídica, bem
como os direitos decorrentes dessa última. Para alcançá-lo tratou-se dos
entendimentos doutrinários e legais acerca da matéria.
O segundo objetivo específico é a descrição da gênese da teoria da
desconsideração da pessoa jurídica, e a sua recepção pelo direito pátrio. Os
pressupostos para a aplicação, assim como a utilização da teoria citada nas
diversas áreas do direito brasileiro servirão para comprovar a realização do
objetivo.
Por derradeiro, o terceiro objetivo específico é demonstrar a utilização da
desconsideração da personalidade jurídica na esfera do Direito do Trabalho
através de seus órgãos jurisdicionais. Para tanto, será apresentada a
argumentação da Justiça laboral para a aplicação da desconsideração,
enfrentada pelos pressupostos legais e a doutrina pertinentes. A partir da análise
dos fatores mencionados, são extraídas a divergência entre a teoria da
desconsideração e a aplicação efetuada pelos magistrados trabalhistas, além das
8
conseqüências oriundas da dissonância de sua aplicação com a teoria clássica.
Também se incluí, na análise, os reflexos negativos sócio-econômicos e,
principalmente, os danos à segurança jurídica das sociedades empresárias –
pessoas jurídicas personificadas -, causados por essa situação.
9
2 PRINCIPIOLOGIA E FUNDAMENTAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA E SUA PERSONALIDADE
2.1 ORIGEM, CONCEITUAÇÃO E PRINCÍPIOS BASILARES
2.1.1 Origem
O direito romano antigo desconhecia a existência da pessoa jurídica,
não se admitindo a vontade coletiva. No ius civille, legislação civil desta etapa
histórica, o direito apenas tratava das pessoas naturais. Somente na fase do
Império, quando a res publica1 ingressou no mundo do comércio, o direito romano
passou a tratar da pessoa jurídica, exclusivamente na esfera pública – municípios,
por exemplo2.
Em breve síntese história sobre a origem do conceito de pessoa
jurídica, FREITAS destaca que: De forma geral, é possível relatar que no período romanístico antigo não se conhecia o conceito de pessoa jurídica. Na primeira fase do Império Romano, entretanto, conheciam-se algumas associações de interesse público, como universitates, sodalitates, corpora e collegia. Assim, o conceito de pessoa jurídica começou a se desenvolver durante o Império, e quando da constituição dos municipia. Nessa época, às cidades itálicas que eram conquistadas e atraídas à órbita do Império Romano, outorgavam-se Estatutos e se lhes concedia uma espécie de autonomia. No Direito de Justiniano, a pessoa jurídica ganhou mais destaque com as fundações. Já no último estágio do Direito Romano, duas classes de pessoas eram reconhecidas: de um lado, as agrupações de indivíduos ou universitates personarum, colégios de sacerdotes, sociedades de publicanos, associações de artesãos e, de outro as universitates bonorum, estabelecimentos ou fundações, e, desde os imperadores
1 De acordo com o conceito ciceroniano, res publica serve para indicar o princípio subjacente ao povo ou a uma comunidade que habita um território comum. Assim, o "bem" ou "interesse comum" deve ser concretizado no âmbito da ação política. O bem comum representa o que é público, ou seja, pertencente a todos em comum, em contraposição aos interesses particulares próprios da vida privada ou doméstica. In CANCIAN, Renato. República deve garantir o bem comum. UOL Lição de Casa, São Paulo, Junho de 2007. Disponível em:<http://noticias.uol.com.br/licaodecasa>. Acesso em setembro de 2007. 2 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. v1. p. 348.
10
cristãos, conventos, hospitais, estabelecimentos pios e benéficos3.
Nessa linha, COELHO4 adverte que a base teórica da pessoa jurídica
tem lugar na Idade Média, no momento em que a Igreja Católica buscava a
preservação de seu patrimônio. Na época, o direito canônico previa a separação
de bens entre a Igreja e os membros que a compunham, os clérigos. Tal
afastamento patrimonial gerou uma independência da Igreja ao ponto de torná-la
transcendente à vida de seus integrantes, ou seja, a instituição “Igreja” subsistia à
morte das pessoas – homens – que a geriam. Por exemplo, na incidência de
morte de membro do clero, os bens em sua posse não podiam ser transmitidos a
sucessores, uma vez que pertenciam à instituição Igreja.
Sobre esta etapa na evolução histórica da pessoa jurídica, MIRANDA
leciona que “a Idade média criou a capacidade delitual da pessoa jurídica. A
responsabilidade da pessoa jurídica, inclusive do Estado, pelo ato do seu órgão
como tal, corresponde a momento de longa evolução técnica [...]” 5.
Após as cruzadas realizadas pela Igreja Católica, ainda na Idade Média,
surgem as corporações de ofício. Essas corporações eram ligadas diretamente à
figura de seus associados, que contribuíam com bens próprios à composição da
corporação à qual pertenciam6.
A partir da Revolução Industrial e, de acordo com a orientação de
BARRETO, “as grandes companhias organizadas para a exploração e
colonização do novo mundo também eram consideradas entidades autônomas
em relação aos fundadores e investidores que nelas aportavam capital” 7.
Contudo, é no século XIX que a pessoa jurídica passa a ser largamente
utilizada de forma similar com que é feita atualmente, ou seja, com vistas
especialmente à separação de patrimônio. Isso acontece a partir da ascensão da
burguesia, classe dominante da época, que buscava novas formas de explorar a
3 FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do Código de defesa do consumidor e do novo código civil. p. 26. 4 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v1. p. 231. 5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, v.1. p. 349. 6 Cf. LOVATO, Luiz Gustavo. Da personalidade jurídica e sua desconsideração. Jus Navegandi, Teresina,ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7522>. Acesso em: 01 mar. 2006. 7 BARRETO, Leonardo Lumack do Monte. Desconsideração da Personalidade Jurídica, aspectos gerais e processuais do instituto. p. 350.
11
economia via corporativismo8. Até então, a pessoa jurídica era conhecida como
pessoa mística ou moral e somente no mencionado século recebe o nome que
conhecemos na atualidade – pessoa jurídica –, dado pelo jurista HEISE9.
No mesmo momento, inicia-se no Brasil discussão acerca da pessoa
jurídica, uma vez que o Código Comercial – elaborado em 1850 –, nada
mencionava sobre o assunto, o que só ocorre em 1916 com o Código Civil10.
Da sua evolução história, percebe-se que a pessoa jurídica é uma
criação do direito, ficção de autoria do ser humano. Sua criação foi no intuito de
se estabelecer uma separação de patrimônio, direitos e obrigações entre a
pessoa jurídica e seus membros, com o objetivo de gerar melhores condições ao
desenvolvimento das atividades dessa pessoa ficta – a pessoa jurídica11.
2.1.2 Conceituação e Princípios Basilares
No direito brasileiro, a aptidão para adquirir titularidade de direitos e
obrigações se traduz na concepção de ser pessoa12. Tal afirmação é corroborada
pelo que prescreve a codificação civil pátria, mais especificamente em seu artigo
1º, ao ditar que “toda pessoa é capaz de direito e deveres na ordem civil”.
Portanto, ser pessoa é possuir condição de ser um sujeito de direito.
O ser pessoa é descrito por MIRANDA da seguinte forma: “sujeito de
direito é o ente que figura ativamente na relação jurídica, [...] titular do direito,
titular da pretensão, titular da ação [...]. O ser sujeito é a titularidade” 13.
A partir do conceito de pessoa, é importante demonstrar suas espécies
– natural e jurídica –, sendo a primeira, também, intitulada pessoa física por
alguns autores, e a segunda, igualmente denominada pessoa moral14.
8 Cf. OLIVEIRA, José Lamartine Correira de. A dupla crise da pessoa jurídica. p. 6. 9 Apud FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do Código de defesa do consumidor e do novo código civil. p. 29. 10 Cf. LAUS, Rosangela Barreto. Os fundamentos legais da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro: um enfoque sob a ótica da segurança jurídica. Dissertação de Mestrado. Itajaí, Nov. 2002. p.30. 11 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, v.1. p. 232. 12 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, v.1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.156. 13 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, v.1. Campinas: Bookseller, 1999. p. 215. 14 ALMEIDA, Amador Paes. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p .180.
12
Pessoa natural ou física, diz respeito a homens e mulheres, o ser
humano, sujeito de direito desde o nascimento. Em contra partida, pessoa
jurídica, objeto em estudo, é um sujeito de direito advindo da união de vontades
de pessoas naturais, ao qual a lei atribui personalidade para atuação na vida civil
– via registro em órgão competente –, sem que se confunda com as pessoas
naturais que a criaram15.
Portanto, para a pessoa natural, o ser humano, mostra-se uma
realidade física que não está condicionada à autorização legal para exercer atos
civis. De outro turno, a pessoa jurídica, ou moral, possui existência real, mas não
tátil, e seu desenvolver está condicionado a registro16.
Outra diferença entre essas pessoas é apresentada por COMPARATO: [...] no mundo jurídico, enquanto o homem pode ser considerado apenas estaticamente – pois ele vale para o Direito pelo que é, em si e por si (o seu ser já é valer) – as chamadas pessoas jurídicas só podem ser consideradas dinamicamente, ou seja, pela função que exercem 17.
Acerca da distinção dos tipos de pessoas, assevera OLIVEIRA:
Ao contrário da pessoa humana, realidade substancial, a pessoa moral é uma realidade acidental. Trata-se, portanto, de uma pessoa. [...] Apóia-se sobre os caracteres comuns à pessoa humana e ao ser social. Uma e outra diferenciam-se pelo valor de ser. Precisamente a noção de ser humano é substancial; mas cada qual, a seu modo, realiza os outros caracteres da personalidade18.
Interessante a lição de GAGLIANO e PAMPLONA FILHO em relação à
pessoa jurídica: A vontade humana traduz o elemento anímico para a formação de uma pessoa jurídica. Quer se trate de uma associação ou sociedade, resultante da reunião de pessoas, quer se trate de uma fundação, fruto da dotação patrimonial afetada a uma finalidade, a manifestação da vontade é imprescindível. Não se pode conceber, no campo do direito privado, a formação de uma
15 BARRETO, Leonardo Lumack do Monte. Desconsideração da Personalidade Jurídica, aspectos gerais e processuais do instituto. Revista da ESMAPE – Escola Superior da Magistratura de Pernambuco, Recife, n. 10, janeiro/junho, 2005. p. 351. 16 FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do Código de defesa do consumidor e do novo código civil. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 40. 17 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle da sociedade anônima. 3 ed. Rio de janeiro: Forense, 1983. p.283. 18 OLIVEIRA, José Lamartine Correira de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p.17.
13
pessoa jurídica por simples imposição estatal, em prejuízo da autonomia negocial e da livre iniciativa. A unidade do ente coletivo decorre exatamente desse elemento imaterial19.
Sobre o assunto, DINIZ leciona que a pessoa jurídica é uma
construção dos cientistas do direito que, embora não possua vida psíquica, possui
autonomia à prática de atos jurídicos e está sujeita a direitos e obrigações20.
Uma vez conceituada a pessoa jurídica, é válido buscar os princípios
que a regem, posto que as condições de desempenho das funções da pessoa
jurídica através da dissociação do patrimônio próprio do de seus componentes
remetem ao princípio que a norteia, a autonomia patrimonial e, em decorrência, a
limitação de responsabilidade de seus membros pelas obrigações sociais21.
A autonomia patrimonial, reconhecida como princípio fundamental do
direito societário, se traduz na separação do patrimônio entre a pessoa jurídica e
as pessoas naturais que a formam.
Nas palavras de MARTINS, a pessoa jurídica é “o ente incorpóreo que,
como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direito. Não se confundem, assim,
as pessoas jurídicas com as pessoas físicas que deram lugar ao seu nascimento;
pelo contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo
direitos em nome próprio” 22.
Tal princípio gera reflexos à pessoa jurídica quando esta adquire
personalidade23, matéria tratada em pormenores a seguir.
2.2 PERSONALIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
Como já exposto, a pessoa jurídica é um sujeito de direito que advém
da união da vontade de pessoas naturais, que a criam com o intuito de
desenvolver uma atividade econômica. A essa união dá-se o nome de sociedade,
19 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. v1. São Paulo: Saraiva, 2002. p.196. 20 DINIZ, Gustavo Saad. Direito das fundações privadas. 2 ed. Porto Alegre: Síntese, 2003. p.137. 21 Cf. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos Empresariais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 2. 22 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, sociedades comerciais, fundo de comércio. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 148. 23Cf. NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. 1.3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003 p. 178.
14
a qual adquire personalidade jurídica com o registro do seu ato de constituição no
órgão competente.
Segundo conceito de MIRANDA, a personalidade da pessoa jurídica
pode ser compreendida como “qualidade, é o ser capaz de direitos, o ser possível
de estar nas relações jurídicas como sujeito de direito” 24.
Sendo assim, a concessão da personalidade à sociedade lhe acarreta
existência jurídica, tornando-a um “sujeito de direito personalizado, e poderá, por
isso, praticar todo e qualquer ato ou negócio jurídico em relação ao qual inexista
proibição expressa” 25.
Vale frisar que é necessária a inscrição da pessoa jurídica em órgão
próprio para que ela adquira personalidade jurídica. Tal assertiva se pauta nas
disposições do artigo 985 e do artigo 1.150, ambos da legislação civil pátria: Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos construtivos (arts. 45 e 1.150).
E, ao estabelecer a distinção entre os órgãos próprios de inscrição do
ato de constituição (contrato ou estatuto social), dita a regra: Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.
Além do registro, dar publicidade aos atos jurídicos das sociedades faz
com que nasça para o “mundo jurídico como pessoa jurídica”. É o que leciona
NOGUEIRA: [...] O homem natural, a pessoa individual, o comerciante individual já possui, desde o nascimento, personalidade e não há razão para obter uma outra personalidade. [...] Assim, desde o registro, por concessão da lei, as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica [...] 26.
A pessoa jurídica, da espécie sociedade empresária, reveste-se de
personalidade ao inscrever-se no Registro Público de Empresas, a cargo das
24 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, v.1. p. 216. 25 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 113. 26 NOGUEIRA, Ricardo José Negrão. Manual de direito comercial. Campinas: Bookseller, 2001. p. 82.
15
Juntas Comerciais. A partir daí, adquire existência legal; capacidade de exercício
de direitos e obrigações, patrimônio e nome próprios, entre outras prerrogativas.
Em suma, após o devido registro, a sociedade personificada passa a ser uma
realidade jurídica27.
A personalidade dada à pessoa jurídica é o que lhe dá a capacidade
para desempenhar atos jurídicos, pois são executados por um sujeito de direito.
Desse modo, dotada de personalidade jurídica passa a ser capaz de figurar como
parte nas relações jurídicas28.
Nas palavras de KOURY, “uma vez personificado, o ente passa a ter
existência jurídica, adquire personalidade e atua no mundo jurídico de mesma
forma que as demais pessoas jurídicas, não podendo o ordenamento que o
personificou ignorar esta nova realidade [...]” 29.
A aquisição da personalidade jurídica acarreta, assim, a concessão de
capacidade jurídica à sociedade para a prática de atos jurídicos dentro da mesma,
ou externamente, perante terceiros. Ademais, a pessoa jurídica recebe do direito
a incidência real da limitação e da autonomia de patrimônio – princípio norteador
da pessoa jurídica – como se verá a seguir.
2.2.1 Conseqüências da Personificação
Em decorrência da personificação das sociedades, a atribuição desse
artifício jurídico gera determinados efeitos, que são: (a) personalidade jurídica
própria da sociedade, distinta da personalidade de seus sócios; (b) patrimônio
jurídico, econômico e moral próprio da sociedade, distinto do patrimônio jurídico
de seus sócios; e (c) existência jurídica própria da sociedade, distinta da
existência jurídica de seus sócios30. É o que se verá a seguir.
27 Cf. ALMEIDA, Amador Paes. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p . 181. 28 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. v1. p. 216. 29 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos Empresariais. p. 8. 30 Cf. MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. São Paulo: Atlas, 2004. p. 241.
16
2.2.1.1 Capacidade Jurídica
A sociedade, pessoa jurídica que é, ao efetuar registro no órgão
competente, adquire personalidade e, assim, também, capacidade jurídica31. Esta
conseqüência, que emana da personificação, significa que a pessoa jurídica com
personalidade possui autorização para a prática de atos jurídicos de forma
genérica, salvo os expressamente proibidos32.
Nesse sentido, pontifica MIRANDA: “a capacidade de direito é
capacidade de ter direitos, a possibilidade de ser titular de direitos” 33.
A prerrogativa da capacidade jurídica encontra-se expressa no próprio
Código Civil, o qual dispõe no artigo 5234 que a pessoa jurídica recebe proteção
de seus direitos relativos à personalidade. Há, ainda, reflexo legislativo da
capacidade jurídica no Código de Processo Civil ao prever, no artigo 12, a
possibilidade das pessoas jurídicas responderem, quando demandadas em juízo,
através de representação.
Portanto, no momento em que o ordenamento jurídico reconhece a
personalidade da pessoa jurídica, de igual modo concede-lhe capacidade. Ou
seja, a pessoa jurídica torna-se apta ao exercício dos diretos e obrigações das
quais titulariza35.
2.2.1.2 Autonomia Patrimonial
A sociedade – pessoa jurídica personificada – possui direitos e deveres
distintos daqueles que têm seus membros, as pessoas naturais. Nas palavras de
REQUIÃO, “a sociedade transforma-se em um novo ser, estranho à
individualidade das pessoas que participaram de sua constituição” 36.
31 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, v.1. 33 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 93. 32 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v.2. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 11. 33 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. v1. p. 211. 34 Código Civil. “Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos de personalidade”. 35 Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, v. 1. p.93. 36 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v.1. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.373.
17
O Código Civil de 1916, revogado pela Lei 10.406/02, asseverava na
regra contida no artigo 20 que “as pessoas jurídicas têm existência distinta dos
seus membros”. Mas, conforme pontifica MAMEDE, a ausência de repetição
dessa regra no Código Civil de 2002, em nada prejudica a condição de que a
sociedade é uma pessoa, “absolutamente distinta das pessoas de seus sócios” 37.
A distinção das pessoas naturais para a pessoa jurídica que foi
constituída, abrange, também, o campo patrimonial e obrigacional. Portanto, a
pessoa jurídica é possuidora de patrimônio próprio, os seus bens sociais. Como
estes restam absolutamente segregados do patrimônio de seus componentes, a
sociedade detém autonomia patrimonial.
Nesse sentido, anota COELHO: Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não de seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios, encontra-se a participação societária, representada pelas cotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem com uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade. [...] Sócio e sociedade não são a mesma pessoa [...] 38.
Em consonância, encontra-se o entendimento de DINIZ ao asseverar
que, em relação às pessoas jurídicas, seus “bens e relações jurídicas agrupados
voltam-se, por sua vez, para a consecução de determinados fins e organizam-se
ou são organizados de modo a possuírem vontade própria, direitos e interesses
(morais, patrimoniais) distintos da vontade dos direitos e interesses individuais de
seus dirigentes” 39.
Acerca da matéria, leciona KOURY: Parece-nos, assim, bem clara a idéia de personalidade jurídica como instrumento para atender às necessidades do mundo jurídico, ou melhor, aos objetivos da realidade social para a qual
37 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedades simples e empresárias, v.2. p.76. 38 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v22. p. 15. 39 DINIZ, Gustavo Saad. Direito das fundações privadas. 2 ed. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 136.
18
foi criada. [...] A personificação atende também ao objetivo de limitação e, até mesmo, supressão de responsabilidades individuais, além de garantir a separação do patrimônio das pessoas jurídicas daquele das pessoas físicas que a constituem40.
Como conseqüência dessa distinção, os direitos, assim como as
obrigações da pessoa jurídica, não mantêm relação com as pessoas naturais. Isto
é válido mesmo se for levado em conta que o exercício da atividade econômica é
explorado em conjunto pela sociedade e seus sócios41.
Nesse sentido, colhe-se das palavras de COELHO que: Da personalização das sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um dos elementos fundamentais do direito societário. Em razão desse princípio, os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade. [...] Esse é o princípio da autonomia patrimonial, alicerces do direito societário. Sua importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção de circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores de empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. No final, o potencial econômico do País não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços. O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica42.
Pelo até aqui exposto, não há dúvida quanto à importância do princípio
da autonomia patrimonial para o desenvolvimento da atividade econômica.
Contudo, há que se ressaltar que não é um princípio de valor absoluto, pois a
personificação só se legitima enquanto a pessoa jurídica for utilizada para os
propósitos para os quais foi concebida.
40 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos Empresariais. p. 12. 41 Cf. LAUS, Rosangela Barreto. Os fundamentos legais da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro: um enfoque sob a ótica da segurança jurídica. p. 32. 42 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v.2. p. 16.
19
2.2.1.3 Limitação da responsabilidade dos sócios
Nunca é demais relembrar que a sociedade realiza atos jurídicos,
inclusive perante terceiros, uma vez que possui capacidade jurídica para tanto.
Nessas relações, o que garante o cumprimento das obrigações que contrai, são
os seus bens sociais, posto existir autonomia patrimonial.
Assim, são os bens da pessoa jurídica que respondem pelas
obrigações assumidas, e pelo cumprimento dessas obrigações responde com
todo o seu patrimônio social. Desse modo, pode-se afirmar que a
responsabilidade da sociedade pelas suas dívidas é ilimitada.
De maneira diversa ocorre com o patrimônio dos sócios, pois este, em
regra, somente será alcançado em determinadas situações, tendo em vista a
regra da responsabilidade subsidiária. A lei, tutelando a integridade do patrimônio
dos sócios, apresenta a regra da subsidiariedade, como um valor a ser
respeitado.
Nesse sentido, preceitua o artigo 596 do Códex processual civil
brasileiro: Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas das sociedades senão nos casos previstos em lei; o sócio demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.
De igual teor tem-se a regra do Código Civil:
Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.
Em relação à responsabilidade da pessoa jurídica e a limitação da
responsabilidade dos sócios, é interessante ressaltar a colocação de COELHO: Respondem pelas obrigações da sociedade, em princípio, apenas os bens sociais. Sócio e sociedade não são a mesma pessoa, e, como não cabe, em regra, responsabilizar alguém (o sócio) por dívida de outrem (a pessoa jurídica da sociedade), a responsabilidade patrimonial pelas obrigações da sociedade empresária não é dos seus sócios. Em outros termos, a garantia do credor é representada pelo patrimônio do devedor; se devedora é a sociedade empresária, então será o patrimônio social (e não o dos sócios) que garantirá a satisfação dos direitos creditícios existentes contra ela. Somente em hipóteses que excepcionam a regra da autonomia da pessoa jurídica poder-se-á
20
executar o patrimônio do sócio em busca do atendimento de dívida da sociedade43.
Portanto, sob o aspecto patrimonial, a responsabilidade pelas relações
jurídicas está relacionada à sociedade, embora em alguns tipos societários,
possam ser os membros chamados para responder, não como obrigados diretos,
mas subsidiariamente.
2.2.2 Segurança jurídica e os direitos decorrentes da personalização
Em qualquer ordenamento jurídico, a segurança jurídica é concebida
como base indispensável ao Direito. Tal assertiva encontra respaldo na
declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, momento em que a
segurança jurídica recebeu titulação de direito natural e imprescritível44.
Entende-se a segurança jurídica como um dos pilares do Estado de
Direito, ocupando espaço ao lado da justiça e do bem-estar social. Na legislação
brasileira, a Constituição de 1988, reconhece no caput do artigo 5º, a segurança
como direito do indivíduo, posto ao lado do direito à liberdade45.
A interpretação de segurança jurídica pode ser feita em amplo ou
estreito sentido. Em sentido amplo, diz SILVA, ela é uma garantia, uma
constância de uma situação fática; enquanto que em sentido restrito “consiste na
garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as
pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação
jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se
estabeleceu” 46.
As sociedades, pessoas jurídicas com personalidade, são afetas à
segurança jurídica; em especial à segurança jurídica como proteção de direitos 43 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v2. p. 15. 44 Cf. BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e o novo código civil. In ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (coord). Constituição e Segurança Jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 139. 45 Cf. BARROSO, Luis Roberto. Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e o novo código civil, p. 139. 46 SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (coord). Constituição e Segurança Jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 17.
21
objetivos. Esta modalidade de segurança garante o exercício de um direito
individual47.
Como supra mencionado, a autonomia patrimonial, a capacidade
jurídica e a limitação de responsabilidade dos sócios são direitos objetivos e
individuais das pessoas jurídicas personificadas. E estes direitos são essenciais à
própria existência de uma sociedade.
Dessa forma, é perceptível a importância da segurança jurídica à
garantia da exploração de uma atividade econômica voltada à produção e
circulação de bens e serviços, posto que eventual lacuna de proteção pode
ocasionar conseqüências indevidas às sociedades – fragilidade no desempenho
de sua atividade econômica, comprometimento na geração de emprego/trabalho e
o risco da manutenção daqueles que a empresa já disponibiliza. Ademais, diminui
a produção e a circulação de bens e serviços, o que atinge negativamente o setor
econômico no qual atua, atingindo também, de forma indireta a comunidade.
2.3 A EMPRESA E A SUA FUNÇÃO SOCIAL
2.3.1 O conceito de empresa
A idéia de empresa nasce no código francês de 1807, relacionada com
a prática de atos de comércio. Esses foram objetos de estudo da Association
Henri Capitant pour la Culture Juridique em 1947, e o resultado deste trabalho
gerou uma nova percepção acerca do significado de comércio e comerciante,
passando-se a entender que “comerciante não é mais quem faz a prática de atos
de comércio profissão habitual, mas aquele que é chefe de uma empresa, coletiva
ou individual, organizada para determinado fim lucrativo” 48.
Mas é do direito italiano que vem um enorme avanço no estudo da
empresa, quando os doutrinadores Asquini e Vivante, citados por REQUIÃO,
analisaram o tema. Segundo o autor, Vivante ligou o conceito jurídico ao
econômico, ditando que a dinâmica entre capital, riqueza e trabalho que gera um
47 Cf. SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica, p. 18. 48 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v.1. p. 52.
22
produto, é a atividade da empresa – organismo econômico –, que a desempenha
por seu próprio risco49. De outro turno, Asquini desenvolve a concepção de
empresa através de vários perfis – funcional, patrimonial, subjetivo e corporativo.
KOURY adverte que Asquini traduz empresa como “um fenômeno
poliédrico, o qual apresenta perante o direito não um, mas vários perfis” 50.
Assim, a idéia de empresa sob o aspecto funcional, também chamado
de dinâmico, reflete que a empresa se apresenta em movimento, direcionando
suas atividades à finalidade de produção. Já o perfil patrimonial, ou objetivo,
pauta-se na distinção do patrimônio da empresa em relação ao patrimônio do
empresário51.
REQUIÃO defende que “o perfil patrimonial ou objetivo, ou a empresa
como estabelecimento52, resulta da projeção do fenômeno econômico sobre o
terreno patrimonial [...]” 53.
Todavia, segundo KOURY, Asquini entende que o complexo de
relações jurídicas relacionadas à pessoa do empresário para o exercício de sua
atividade é o patrimônio, enquanto o complexo de bens que o empresário
organiza para desempenhar sua atividade é o estabelecimento54.
Sendo assim, é cristalina a existência de um aspecto patrimonial da
empresa que engloba tanto bens – o estabelecimento –, como direitos – relações
jurídicas.
Ainda há o perfil subjetivo traçado por Asquini, relacionado diretamente
com o profissional, exercente da atividade da empresa, que é o empresário –
pessoa natural ou jurídica, que desenvolve pessoalmente, de forma profissional,
atividade econômica organizada com objetivo de operar para o mercado e não
para seu próprio consumo55.
49 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v.1. p. 53. 50 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine) e os Grupos Empresariais. p. 28. 51 NOGUEIRA, Ricardo José Negrão. Manual de direito comercial. p. 76. 52 Estabelecimento de uma empresa é entendido como a reunião dos bens indispensáveis ao exercício da atividade econômica. Estes bens que compõe o estabelecimento são os corpóreos como os insumos, utensílios, veículos, e os incorpóreos como patentes e marcas. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. p. 59. 53 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, v.1. p. 55. 54 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 32. 55 Apud NOGUEIRA, Ricardo José Negrão. Manual de direito comercial. p. 75.
23
Esse é o perfil adotado pelo direito civil pátrio, ao estabelecer no artigo
966 do Código Civil de 2002, que: “Considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para produção ou a circulação
de bens ou de serviços”.
Por derradeiro, deve-se mencionar o perfil corporativo, pelo qual a
empresa é vista como a soma do empresário e de seus colaboradores na forma
de um centro social com objetivo comum, não apenas como um conglomerado de
pessoas ligadas por relações de trabalho com escopo individual56. Nas palavras
de KOURY, “pelo perfil corporativo, a empresa é considerada como um núcleo
social organizado, formado pelo empresário e seus colaboradores” 57.
De todos os perfis traçados por Asquini para conceituar empresa,
REQUIÃO ensina que Ferrara sustenta a tese de que “a empresa supõe uma
organização por meio da qual se exercita a atividade; todavia, o conceito de
empresa não tem para ele, relevância jurídica, pois os efeitos da empresa não
são senão efeitos a cargo do sujeito que a exercita, isto é, do empresário” 58.
Com relação à distinção da idéia de comerciante, traçada pela
codificação comercial brasileira de 1850, revogada pelo atual Código Civil, e a
noção contemporânea de empresa, tem-se o conceito de comerciante vinculado à
prática de atos com exploração de trabalho alheio com vistas a lucro59. Enquanto
que empresa, de acordo com Mendonça, citado por REQUIÃO, significa a
organização econômica que tem por insumos a natureza, o trabalho, e o capital,
para desenvolver atividade produtiva que gere bens ou serviços, destinados à
troca ou venda, com a finalidade de auferir lucro60.
Esse também é o entendimento de BULGARELLI, ao reconhecer a
empresa como “atividade econômica organizada de produção e circulação de
bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter
profissional, através de um complexo de bens” 61.
56 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v.1. p. 55. 57 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante.A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais.p. 36. 58 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v.1. p. 56. 59 Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v.1. p. 56. 60 Cf. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v.1. p. 57. 61 BULGARELLI, Waldirio.Tratado de direito empresarial. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1995. p. 100.
24
Como pode-se perceber, na essência do conceito de empresa está a
idéia de organização62, diretamente ligada a do empresário, pois empresa nada
mais é senão a atividade por este exercida.
É, segundo BERTOLDI: […] a materialização da iniciativa criadora do empresário, da projeção patrimonial de seu trabalho de organização dos distintos fatores produtivos63.
Para dar apoio a relevância da empresa, independentemente de sua
conceituação, encontra-se nas palavras de COMPARATO a seguinte assertiva: Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação, sirva como elemento de explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a empresa64.
Resulta então, inquestionável o objetivo de se dar à empresa um maior
alcance social, mesmo que se considere o seu caráter primário que é o lucro,
porque os benefícios decorrentes da atividade empresarial devem proporcionar a
todos uma melhor condição de vida. Razão pela qual o direito privado imprime
força à função social da empresa. Tema que se passa a abordar.
2.3.2 A Função Social da Empresa
Questão de grande relevância para o ordenamento jurídico brasileiro é a
função social. Na verdade, inexiste definição legal para o termo função, trata-se
de uma “expressão genérica, plena de significado moral e social” 65. Enquanto
que a expressão “função social” figura nos textos legais, como um conceito
aberto, o qual quando interpretado em conjunto com outros dispositivos, pretende
conferir às relações um caráter justo.
62 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2, p.42. 63 BERTOLDI, Marcelo M. Curso avançado de direito comercial, v.1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 56. 64 COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. São Paulo: Saraiva, 1990. p.3. 65 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. Revista dos Tribunais, mai/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 71.
25
De forma explícita é tratada na Constituição Federal de 1988, no que
diz respeito à função social da propriedade66; no Código Civil, quanto à função
social do contrato67; na Lei n° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005/05, que dispõe
sobre a falência e recuperação de empresas e, preceitua na regra do artigo 47: Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
De igual modo, estende-se ao acionista controlador de sociedade
anônima o dever de usar seu poder em prol da função social da empresa,
conforme dispõe, também de forma explícita, o parágrafo único do artigo 116,
nesses termos: Art. 116. [omissis] Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidade para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Na verdade, a função social está em todos os âmbitos do direito, daí extrai-
se do pensamento de ARAÚJO68, em artigo no qual discute direito e justiça, que
“o adequado funcionamento do Direito no controle social permite a paz, estimula
as transformações em harmonia. Mas o segredo do bom ajustamento social está
no profícuo relacionamento entre o social e o individual” de maneira que se atinja
o bem comum para a sociedade.
SALOMÃO FILHO69 trata a função social da empresa como o princípio
norteador da “regulamentação externa” dos interesses envolvidos pela empresa.
Daí, a necessidade de se impor obrigações positivas às empresas, para que
possa, enfim, atingir o equilíbrio das relações sociais, o bem-comum.
66 Constituição Federal. “Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; […]”. 67 Código Civil. “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 68 ARAÚJO, Fernando. Direito: Função Social. Revista Jurídica Consulex. Ano I, nº10, 1997. p.50. 69 SALOMÃO FILHO, Calixto. A função social do contrato: primeiras anotações. p. 68.
26
Contudo, em razão do exercício de empresa há um conjunto de fatores,
ou interesses, que se inter-relacionam; os trabalhadores garantem seu emprego,
o Estado arrecada os tributos correspondentes e os consumidores, para quem é
destinado o produto final da empresa, podem adquirir bens ou ter acesso ao
serviço prestado por estas70.
Por todas essas razões, a partir de 1960 começou a ser construído pela
doutrina e pela jurisprudência o princípio da preservação da empresa, segundo o
qual “em seus fundamentos valorativos, encontra-se a percepção de que, em
torno da exploração da atividade econômica, gravitam muitos interesses, não
apenas o dos capitalistas” 71.
É de se notar, portanto, que o princípio da preservação da empresa
encontra-se alicerçado na garantia da continuidade da organização econômica,
da atividade empresarial desenvolvida, da manutenção de postos de trabalho, na
arrecadação dos impostos que revertem em favor do desenvolvimento econômico
e social, dentre outros interesses que justificam, a priori, o respeito à pessoa
jurídica.
70 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2, p. 460. 71 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. p. 460.
27
3 EVOLUÇÃO E APLICABILIDADE DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SEUS PRESSUPOSTOS
Compete reafirmar que a pessoa jurídica é um sujeito de direito que
advém da união da vontade de pessoas naturais, que a criam com o intuito de
desenvolver uma atividade. A essa união dá-se o nome de sociedade, que
adquire personalidade jurídica com o registro do seu ato de constituição no órgão
competente, que é a Junta Comercial para as sociedades empresárias – objeto do
presente trabalho.
A aquisição da personalidade jurídica, como já foi dito, acarreta a
concessão de capacidade jurídica à sociedade para a prática de atos jurídicos no
plano interno e externo. Da personificação, também advém a autonomia
patrimonial, o que a torna possuidora de patrimônio próprio – bens sociais –
absolutamente segregado do patrimônio das pessoas naturais que a compõem.
Ademais, limitação da responsabilidade dos sócios, como decorrência da
separação patrimonial, pois prioritariamente, são os bens sociais que garantem o
cumprimento das obrigações contraídas pela pessoa jurídica72.
No entanto, em virtude da autonomia patrimonial e limitação da
responsabilidade, os sócios, em determinadas situações, passaram a utilizar a
pessoa jurídica para a prática de ilícitos e fraudes, sob o amparo da
personalidade jurídica, acarretando não só prejuízo a terceiros, como também, o
abuso do direito que lhe foi concedido73.
Em razão dessas práticas, desenvolveu-se a doutrina da
desconsideração da personalidade jurídica, pois “não se pode admitir que a
pessoa jurídica tenha como causa de sua constituição e funcionamento, servir de
veículo à perpetração de fraude, de qualquer outro ato ilícito ou meio de evitar a
72 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 12. 73 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 243.
28
aplicação de determinada norma jurídica” 74, sob o amparo das benesses que a
personalidade jurídica proporciona à sociedade.
3.1 DIREITO ANGLO-SAXÃO E A DISREGARD DOCTRINE
O direito anglo-saxão, no século XIX, em razão da má utilização da
pessoa jurídica, desenvolveu a disregard doctrine ou disregard of legal entity,
intitulada no Brasil de teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
A conceituação, assim como os precedentes históricos da teoria em
exame serão aventados, com detalhamento, a seguir.
3.1.1 Conceituação da Disregard Doctrine
Justificado no fato de que o sistema jurídico anglo-saxão pertence à
common law75, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundou-se
em decisões jurisprudenciais. Depois de sedimentado o entendimento
jurisprudencial da necessidade de se desconsiderar a personalidade jurídica, a
doutrina desenvolveu a disregard doctrine como meio de combate ao uso da
personalidade jurídica para práticas abusivas e fraudulentas.
Ressalte-se que na disregard doctrine a pessoa jurídica não deixa de
existir, somente os atos efetuados com desvio de finalidade ou em desrespeito a
lei, ou prejuízo de credores, “é que terão sua ineficácia declarada em juízo, como
salvaguarda de interesses maiores, incluindo o próprio desenvolvimento das
74 MORAES, Luiza Rangel de. Considerações sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicação na apuração de responsabilidade dos sócios e administradores de sociedades limitadas e anônimas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, n. 25, julho/setembro, 2004. p. 32. 75 A common law é um sistema jurídico onde os litígios se resolvem com auxílio dos princípios obtidos com base na experiência jurídica anterior, não através de dedução de regras estabelecidas arbitrariamente por uma vontade soberana – leis, por exemplo. É, portanto, um sistema eminentemente consuetudinário, no qual as normas se revelam pelos órgãos judiciais, em decisões com preponderância às exigências do caso concreto, em detrimento daquelas fundadas em norma escrita, a qual é muito mais rígida do que o costume, em razão de sua própria natureza. PALERMO, Fernanda Kellner de Oliveira. Elementos de comparação entre copyright e direito do autor. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: setembro de 2007.
29
relações comerciais, e a manutenção de postos de trabalho, visto que a pessoa
jurídica, por si só, não será desconstituída” 76.
Um dos principais juristas norte-americanos a tratar da desconsideração
foi Wormser que, a partir de 1912, buscou delinear conceito à disregard doctrine.
O mencionado jurista chegou ao posicionamento de que, na incidência do uso da
pessoa jurídica para frustrar credores, inadimplir obrigações existentes, abster-se
da correta aplicação de uma lei, constituir ou conservar um monopólio “[...] os
tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a
sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e
farão justiça entre pessoas reais” 77.
A teoria anglo-saxão, resta bem conceituada na lição de KOURY. [...] a Disregard Doctrine consiste em subestimar os efeitos da personificação jurídica, em casos concretos, mas ao mesmo tempo, penetrar na estrutura formal, verificando-lhe o substrato, a fim de impedir que, dela se utilizando, simulações e fraudes, alcancem suas finalidades, como também para solucionar todos os outros casos em que o respeito à forma societária levaria a soluções contrárias à sua função social e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico78.
Interessante também é a doutrina de CEOLIN:
A teoria da desconsideração, que se solidificou através da incidência reiterada de julgados norte-americanos, nos quais a doutrina ficou conhecida pelas expressões disregard of legal entity ou lifting the corporate veil, que se significam, respectivamente, desconsideração da personalidade jurídica de levantamento do véu corporativo. A expressão “levantamento do véu” surgiu de uma construção figurativa, segundo a qual a pessoa jurídica nada mais é do que um véu inatingível sob o qual, vez por outra, escondem-se pessoas e bens para fins contrários ao Direito. Diante deste quadro imaginário, a teoria da desconsideração apresenta-se como o super-herói, que consegue ultrapassar esta barreira intransponível – a pessoa jurídica –, penetrado em seu âmago e atingindo, portanto, a pessoa dos seus membros. Em suma, tem-se que, ao aplicar essa teoria, “o juiz pode, em casos concretos, desconsiderar a pessoa jurídica em relação a pessoa de quem se oculta sob ela e que a utiliza fraudulentamente”. Em outras palavras, aplicação da teoria da
76 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2005.p. 79. 77 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 803, 2002. p. 751 – 764. 78 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 86.
30
desconsideração possibilita aos juízes prescindirem da estrutura formal da pessoa jurídica para, dessa forma, imputar aos seus membros a responsabilidade por abusos e fraudes perpetrados79.
Dessa forma, tem-se claro que para fazer frente aos desmandos dos
sócios, a tecnologia jurídica procurou soluções e, as encontrou na teoria da
desconsideração da personalidade jurídica ou do disregard of legal entity. Assim,
a teoria é de base essencialmente jurisprudencial, posto advir de sistema jurídico
anglo-saxão – common law – e, portanto, analisa a incidência da aplicação do
afastamento episódico da personalidade jurídica de acordo com cada caso
concreto.
Também é de se observar que tal teoria tem por escopo retirar
benesses concedidas à pessoa jurídica através de sua personalização,
especialmente, a autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade dos
sócios, além de permitir que as conseqüências das obrigações da sociedade
empresária se estendam aos seus componentes, nas hipóteses do mau uso da
pessoa jurídica80.
3.1.2 Precedentes históricos
Acerca da teoria anglo-saxônica, há registro de dois principais
precedentes históricos. Um em 1809, em decisão do Juiz Marshall, nos Estados
Unidos da América que julgou o caso Bank of United States v. Deveaux, no qual a
personalidade jurídica da sociedade restou afastada. A doutrina majoritária é
enfática ao afirmar que este precedente não é o leading case (caso precursor) da
teoria da desconsideração, posto que não foi discutida a autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, pois se tinha como cerne da questão a competência da justiça
federal americana81.
79 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 3. 80 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 243. 81 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 434.
31
Nas palavras de KOURY: Com efeito, no ano de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux, o Juiz Marshall, com a intenção de preservar a jurisdição das cortes federais e sobre as corporations, já que a Constituição Federal Americana, no seu artigo 3º, seção 2ª, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados, conheceu da causa. Como bem assinala WORMSER, não cabe aqui discutir a decisão em si, a qual, na verdade, é repudiada por toda doutrina, e sim ressaltar o fato de que já em 1809 ‘... as cortes levantaram o véu e consideraram as características dos sócios individuais’82.
Outro julgado, este considerado como o real precursor da teoria tratada,
ocorreu na Inglaterra, em 1897, com o julgamento do caso Salomon vs. Salomon
and Co83 .
Para que não se percam detalhes sobre o ocorrido, transcreve-se na
íntegra REQUIÃO: O comerciante Aron Salomon havia constituído uma “Company”, em conjunto com outros seis componentes de sua família, cedido o seu fundo de comércio sociedade assim formada, recebendo 20.000 ações e representativas de sua contribuição ao capital, enquanto para cada um dos outros membros foi distribuída uma ação apenas; para a integralização do valor do aporte efetuado, Salomon recebeu ainda obrigações garantidas de dez mil libras esterlinas. A companhia logo em seguida começou a atrasar os pagamentos, e um ano após, entrando em liquidação, verificou-se que seus bens eram insuficientes para satisfazer as obrigações garantidas, sem que nada sobrasse para os credores quirografários. O liquidante, no interesse desses últimos credores sem garantia, sustentou que a atividade da “company” era ainda a atividade pessoal de Salomon para limitar a própria responsabilidade; em conseqüência Aron Salomon devia ser condenado ao pagamento dos débitos da “company”, vindo pagamento de seu crédito após a satisfação dos demais credores quirografários. O magistrado que conheceu do caso em primeira instância, secundado depois pela Corte de Apelação, acolheu essa solicitação, julgando que a “company” era exatamente apenas uma fiduciária de Salomon, ou melhor, um seu “agent” ou “trustee”, que permanecera na verdade o efetivo proprietário do fundo de comércio. Nisto ficou a inauguração da doutrina da “disregard”, pois a Casa dos Lordes, acolheu o recurso de Aron Salomon, para reformar aquele entendimento das instâncias inferiores, na consideração de que a “company” tinha sido validamente constituída, pois a lei simplesmente requeria a participação de 7 pessoas, que o caso não haviam perseguido nenhum intuito fraudulento. Esses acionistas, segundo os “Lords”,
82KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 64. 83REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764.
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haviam dado vida a um sujeito diverso de si mesmos, e em última análise não podia julgar-se que a “company” fosse um “agent” de Salomon. Em conseqüência não existia responsabilidade de Salomon para a “company”, e seus credores e era, conseqüentemente, válido o seu crédito privilegiado84.
De outro turno, KOURY discorda que o mencionado julgado tenha sido
o leading case da disregard doctrine. Entende a doutrinadora que o julgado, além
de ser posterior ao caso Bank of United States v. Deveaux, que data de 1809,
encerrou-se de maneira prejudicial à teoria da desconsideração, uma vez que a
reforma da Corte dos Lordes desconstruiu por completo a aplicação da tratada
teoria. Além de considerar que a “company” de Aron Salomon estava regular e
havia sido constituída de forma válida, a Corte declarou, que este era “seu credor
privilegiado por ter-lhe vendido o estabelecimento e recebido, por isso, obrigações
garantidas por hipoteca” 85.
Somando-se às mencionadas jurisprudências, outra demonstra
relevante importância à disregard doctrine. Trata-se do caso que julgou a
acusação de repressão ao truste praticado pela companhia norte-americana
Standard Oil Co. Neste caso, os acionistas da referida “company” perpetuaram
um acordo fiduciário com acionistas de outras petrolíferas, no qual administraram
todas as empresas envolvidas sob diretrizes de um monopólio; embora existisse
“uma união monopolista das sociedades” 86 estas continuavam formalmente
apartadas entre si. Como decisão ao processo instaurado por prática de truste, o
tribunal, a princípio confirmou a separação entre sociedade empresária – no caso
“company” – e seus integrantes – pessoas naturais, porém, completou
asseverando que tal situação não deve prevalecer quando o uso da sociedade
empresária choca-se com a ordem pública87.
Outro julgado que contribuiu ao desenvolvimento da teoria da
desconsideração foi o de Booth vs. Bunce. Nele, empresas limitadas, da América
do Norte, se uniram para formar uma única corporação, para onde foi transferido
o patrimônio das sociedades limitadas. Ocorreu que os credores das sociedades
84 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764. 85KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 64. 86REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764. 87 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764.
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limitadas não tiveram seus créditos satisfeitos, e, ao recorrer à via judicial, foi-lhes
permitido que avançassem sobre o patrimônio da corporação88.
Por derradeiro, interessante colacionar a jurisprudência americana do
caso First National Bank of Chicago vs. F. C. Trebien Company.
Nas palavras de REQUIÃO: Trebien, um devedor insolvente, fundou uma pessoa jurídica com sua esposa, sua filha, seu genro e seu cunhado, e nela integrou todo seu patrimônio. De 600 ações da “corporation”, somente 4 não pertenciam a Trebien. Seus credores investiram judicialmente contra o patrimônio social, sendo-lhe oposta a objeção de que a pessoa jurídica e os acionistas eram diferentes sujeitos de direito: A fraude não venceu, e a “corporation” foi penetrada, para se fazer valer contra ela o direito dos credores particulares de Trebien89.
Portanto, clara está a disseminação do uso da disregard doctrine no
direito anglo-saxão. Todavia, deve-se ressaltar que os julgados expostos deixam
transparecer a cautela no uso da dita teoria, devendo ser utilizada como um
recurso excepcional.
3.2 CONTRIBUIÇÕES DO DIREITO ALEMÃO E ITALIANO
Contemporaneamente à disregard doctrine, a doutrina e jurisprudência
alemã e italiana, mostraram preocupação com os desvios do uso da pessoa
jurídica para fins ilícitos e fraudulentos. KOURY90 relata que Haussmann,
doutrinador alemão, desenvolveu a teoria da soberania, que visava
responsabilizar o controlador de uma sociedade de capitais pelas obrigações
assumidas pela sociedade controlada, e não adimplidas. Essa teoria foi
recepcionada na Itália por Mossa e, embora tenha representado vultoso avanço,
não obteve grande repercussão no plano da aplicação prática, uma vez que, em
princípio, o direito romano-germânico – ou germano-romano – não se coaduna
com práxis não positivada.
Em 1920 a disregard doctrine, intitulada de Durchgriff der juristichen
Person, é adotada, doutrinária e jurisprudencialmente, o Direito Alemão. De igual
88 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764. 89 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764. 90 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 63.
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modo, a Itália, dentre outros países, recepcionou a teoria em seu sistema jurídico
no mesmo período temporal91.
Todavia, frente ao fato de que a teoria da desconsideração da pessoa
jurídica deriva da common law, que apresenta correlação aos casos concretos e
suas jurisprudências, restou novamente ao direito positivo romano-germânico
dificuldade relacionada à sua aplicabilidade jurisdicional92. Como leciona KOURY,
“a família romano-germânica, por sua vez, reconhece à lei função primordial,
considerado que a melhor maneira de chegar-se a soluções de justiça está em
procurar apoio em suas disposições, relegando, assim, a jurisprudência a um
papel secundário” 93.
Desta forma, após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1950,
Serik, Muller-Frienfels, Reinhart e Wolff, doutrinadores alemães, contribuíram
fortemente à disregard doctrine através dos estudos que desenvolveram,
concedendo-lhe enfoques diversos quanto à constatação da conduta que dava
azo à sua aplicação94.
Dentre os doutrinadores alemães mencionados, Rolf Serik merece
destaque especial, pois foi o responsável por sistematizar como causas
ensejadoras da desconsideração a fraude à lei, fraude à obrigações contratuais,
fraude contra credores através de migração de bens patrimoniais do devedor –
pessoa natural – para o patrimônio da sociedade a qual pertence e, por
derradeiro, fraudes entre sociedades coligadas ou dependentes95.
91 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 87. 92 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 13. 93 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 79. 94 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 87. 95 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 14.
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3.3 APLICABILIDADE DA DISREGARD DOCTRINE
3.3.1 Recepção da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no
Ordenamento Jurídico Brasileiro e seus Pressupostos
No Brasil, o Código Civil de 191696 explicitava em seu artigo 20 a
distinção entre a pessoa jurídica e seus componentes de forma cristalina.
Entendendo-se, à época, que a autonomia patrimonial e a limitação da
responsabilidade dos sócios eram matérias não sujeitas à discussão, o que
dificultou a aplicação da teoria, no Brasil.
O obstáculo à inserção da desconsideração no campo jurídico brasileiro
justificou-se frente à amplitude e abstração do direito positivado, “cuja
aplicabilidade se faz a partir de raciocínio dedutivo, a regra geral do art. 20, do
Código Civil, rigorosamente não poderia ser excepcionada a partir de uma mera
construção doutrinária e jurisprudencial, que viesse a afastar a aplicabilidade e a
eficácia do seu conteúdo normativo” 97.
Neste norte, destaca KOURY: É fácil perceber, então, que a disregard é um procedimento normal na common law, onde é a análise do problema concreto que conduz a um princípio específico, sendo, ao contrário, de difícil aplicação em sistemas jurídicos fechados, pertencentes à ‘família’ romano-germânica, como o brasileiro, em que se procura fixar um princípio de alcance geral que seja aplicável ao caso em exame98.
Entretanto, na década de 1950, ainda sob a égide do Código Civil de
1916, em Vara Cível do Distrito Federal, prolatou-se sentença em que se
reconheceu a utilização de fraude por intermédio da pessoa jurídica. O
magistrado afastou a personalidade jurídica com base na Durchgriff der juristichen
96 BRASIL. Lei 3.071/16. Instituiu o Código Civil de 1916. Código Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em maio de 2007. 97 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 101. 98 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 80.
36
Person, teoria da desconsideração da pessoa jurídica, sob o enfoque do
doutrinador alemão Rolf Serik99.
Entretanto, os estudos acerca da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, no Brasil, foram impulsionados em 1969, através de artigo
científico de autoria de Rubens Requião, publicado na Revista dos Tribunais.
No referido trabalho científico, o comercialista paranaense trouxe à
baila o assunto, apresentando à comunidade jurídica brasileira a doutrina e a
jurisprudência desenvolvida sobre a disregard doctrine100. Explicita, mencionado
doutrinador, que a lei brasileira ao tempo criava situação onde a segregação entre
a pessoa jurídica e as pessoas naturais que a criaram era intangível, e em
conjunto com a autonomia patrimonial acabava por possibilitar frustração de
credores pessoais dos sócios, uma vez que estes poderiam assegurar seus bens
integrando-os à sociedade101.
Nas palavras de REQUIÃO: Quando nos iniciávamos no estudo sistemático do direito comercial, nos foi proposto o seguinte problema: Se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a compõem, pois são personalidades radicalmente distintas; se o patrimônio da sociedade personalizada é autônomo, não se identificando com o dos sócios, tanto que a cota social de cada um deles não pode ser penhorado em execução por dívidas pessoais, seria então fácil burlar o direito dos credores, transferindo previamente para a sociedade comercial todos os seus bens. Desde que a sociedade permanecesse sob o controle desse sócio, não haveria inconveniente ou prejuízo para ele que o seu patrimônio fosse administrado pela sociedade, que assim estaria imune à investidas judiciais de seus credores. [...] Se por um lado propendíamos para a solução ética, repugnando-nos retornando que o instituto da personalidade jurídica fosse usado para fins tão condenáveis, por outro lado estávamos condicionados pela lição corrente, de que c direito da personalidade jurídica é absoluto, não se podendo superar a distinção entre ela e seus componentes, nem negar a sua autonomia patrimonial. Todos percebem que a personalidade jurídica pode vir a ser usada como anteparo de fraudes, sobretudo para contornar as proibições estatutárias do exercício de comércio ou outras vedações legais102.
99 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 102. 100 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v.1. p. 379. 101 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. pp. 751 – 764. 102 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. pp. 751 – 764.
37
Complementa asseverando que a doutrina norte-americana “não visa a
anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso
concreto, dentro dos seus limites, pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens
que atrás dela se escondem”. 103 Contudo, ressalta que tal afastamento só deve
ocorrer na incidência de fraude ou abuso de direito na gestão da pessoa jurídica,
do descumprimento de lei para construir ou preservar monopólio, ou ainda para
proteger infratores104.
Após a introdução da teoria da desconsideração, mostrada por Rubens
Requião aos demais aos juristas brasileiros, passou-se a trabalhá-la em diversos
segmentos do direito nacional, como se verá a seguir.
3.3.2 A Concepção da Tecnologia Jurídica
No ordenamento jurídico brasileiro atual há positivação da disregard
doctrine, qual seja o dispositivo 50 do Código Civil de 2002105. Em que pese não
existir menção direta a teoria em comento, a norma buscou atender os anseios
dessa doutrina106.
Nesse sentido, o Código Civil, no artigo 50, adotou o princípio: “Em
caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade,
ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de
certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores e sócios da pessoa jurídica” 107.
Há no dispositivo, é fato, a restrição da desconsideração ao caso de
abuso de personalidade, “atribuindo-se ao juiz o poder subjetivo de decidir”, as
103 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. pp. 751 – 764. 104 MORAES, Luiza Rangel de. Considerações sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicação na apuração de responsabilidade dos sócios e administradores de sociedades limitadas e anônimas. p. 33. 105 BRASIL. Lei 10.406/02, Código Civil. Código Civil. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em maio de 2007. 106 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2. p. 54. 107 BRASIL. Lei 10.406/02, Código Civil. Código Civil. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em maio de 2007.
38
situações em que poderá estender aos bens particulares dos administradores,
sócios ou não, a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações108.
Note-se que a estrutura do texto normativo do dispositivo mencionado,
abrange os objetivos da disregard doctrine, que são: abuso de direito,
caracterizado por desvio de finalidade e confusão patrimonial. Constata-se, assim,
que as premissas utilizadas para afastar a autonomia patrimonial e atingir a
pessoa jurídica, basearam-se nas contribuições de Requião, devido ao fato de
que o estudo apresentado em 1969 influiu no anteprojeto da atual codificação civil
brasileira, uma vez que “mereceu atenção da Comissão Revisora do Código Civil,
presidida pelo Prof. Reale [...]” 109.
Com efeito, as possibilidades à aplicação da desconsideração, no
Brasil, residem em abuso da personalidade jurídica, ou seja, abuso de direito, em
especial na situação do desvio de finalidade da pessoa jurídica e de confusão
patrimonial.
O abuso de direito, significa se utilizar das benesses legais, de maneira
a atentar contra a finalidade da própria lei. Nas palavras de KOURY, “o abuso de
direito corresponde a um “mau-uso” do direito, ou seja, um exercício anormal de
um direito, estando seu titular, todavia, desviado do fim econômico-social para o
qual aquele direito foi criado” 110.
Nesse sentido leciona REQUIÃO: O direito, enfim, foi criado em atenção ao indivíduo, tendo por objetivo ordenar sua convivência com os outros indivíduos. O exercício de seus direitos, embora privados, deve atender a uma finalidade social. A função social do direito que se referem sobretudo os contratos à propriedade, deve, pelo indivíduo ser atendida. Assim o sujeito não exercitará seus direitos egoisticamente, mas tendo em vista a função deles, a finalidade social que objetivam. O ato, embora conforme a lei, se for contrário a essa finalidade, é abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direito. [...] o titular de um direito que, entre vários meios de realizá-lo escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, comete, sem dúvida, um ato abusivo;
108Cf. RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 1122. 109REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v.1. p. 379. 110KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 70.
39
atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio das relações jurídicas111.
Diante disso, ninguém pode negar que a empresa deve exercer sua
função social, não deixando prevalecer o interesse individual da própria pessoa
jurídica, manifestada pela vontade dos sócios, com prevalência aos interesses
coletivos.
No que diz respeito ao desvio da finalidade da sociedade empresária,
vale ressaltar, que é o desrespeito “às regras ajustadas para sua existência e
funcionamento, devidamente atermadas no instrumento de sua constituição
(contrato ou estatuto), levadas ao registro respectivo” 112.
Como ensina KOURY: […] todo instituto jurídico corre o risco de ter sua função desviada, ou seja, utilizada contrariamente às suas finalidades. Esse desvio de função consiste na falta de correspondência entre o fim perseguido pelas partes e o conteúdo que, segundo ordenamento jurídico, é próprio da forma utilizada. [...] Ora, a utilização do instituto da pessoa jurídica na busca dessas finalidades, consideradas em contradição com princípios básicos e formadores do ordenamento jurídico, cria para este necessidade protegê-lo [...]. Um dos meios mais frequentemente utilizados pelo ordenamento jurídico para reagir contra desvio de função desse instituto é exatamente a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, através da qual se supera forma da pessoa jurídica, desvalorizando se a distinção entre ela e seus componentes, no caso particular, ou seja, sem negar a sua personalidade maneira geral113.
Sem dúvida, a pessoa jurídica deve “ficar atrelada ao objeto social do
contrato, não podendo extrapolar ao que se propôs realizar” 114, sob pena de estar
desviando-se da finalidade para a qual foi constituída.
A confusão patrimonial caracteriza-se pela ausência de distinção entre
o patrimônio pessoal dos sócios e o patrimônio da sociedade empresária, em
detrimento da distinção natural entre a pessoa jurídica personificada e as pessoas
naturais que a criaram.
111REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 751 – 764. 112 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 243. 113 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais. p. 67. 114 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. p. 1122.
40
Assim, entende-se a confusão patrimonial como a ruptura do princípio
da autonomia patrimonial que é obtida através da personalidade jurídica115.
Reafirma MAMEDE que na ocorrência desta “promiscuidade jurídica”, cabe a
utilização do artigo 50 do Código Civil para afastar a personalidade da sociedade
e salvaguardar a correta utilização da lei116.
COELHO apresenta duas vertentes à aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica: a Teoria Menor e a Teoria Maior117. A primeira é a adotada
pelo regime jurídico civil nacional – artigo 50 do Código Civil – enquanto a
segunda, é de validade discutida118.
A teoria maior da desconsideração, positivada na legislação civil, tem
como pressupostos à sua aplicabilidade, o uso fraudulento ou abusivo da pessoa
jurídica – critérios de cunho subjetivo –, bem como a confusão patrimonial –
critério objetivo.
A fraude caracteriza-se “como um vício social que macula a emissão da
vontade, que é pressuposto do negócio jurídico. Nela o querer do agente não se
encontra em consonância com as prescrições legais em vigor, fazendo que o
negócio jurídico exista, porém, de modo defeituoso” 119.
Nesse norte, comenta CLAMBER: A fraude, ou seja, o manejo de artifícios para prejudicar terceiros, revela a distorção imposta à pessoa jurídica, pois ela não foi feita para permitir que seus integrantes se protejam de obrigações que teriam de cumprir, nem para fazer o que a lei lhes proíbe. [...] Tem de ocorrer fraude à lei, na qual, além do artifício ou desvio, está principalmente presente sua ilicitude, ensejando, portanto, a desconsideração. Ademais, é preciso sempre, para que isso ocorra, que a fraude tenha a ver com a manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, porque se esta comete fraude que
115 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 146. 116 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 250. 117 A utilização das expressões Teoria Maior e Teoria Menor é explicada da seguinte forma: “A teoria maior, nasce do esforço doutrinário, realizado a partir de decisões judiciais […]”. Contudo, “cabe falar em formulação menor, e não em desconhecimento dos exatos pressupostos da teoria da desconsideração, por uma questão de método. […] não seria propositado apenas dizer que os juízes brasileiros, em momentos de descuido, não se dedicaram ao prévio e suficiente estudo da matéria e passaram a fazer apressado e inadequado uso da expressão ‘desconsideração’”. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 47 118 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2. p. 35. 119 SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. p. 139.
41
não guarda relação com tal questão – v.g., emitindo uma “nota fria” –, não se pode proceder a superação da personalidade120.
O entendimento acima reforça a necessidade de comprovação da
existência da ilicitude com o objetivo de lesar os credores. Além do mais, a fraude
perpetrada deve guardar relação com a manipulação da autonomia patrimonial.
De outro turno, pela teoria menor, não se considera o requisito fraude
ou abuso de direito essencial para o afastamento da autonomia patrimonial. O
simples inadimplemento de crédito constituído junto à sociedade, ou, a sua
insolvência ou falência121, impõe a superação da personalidade jurídica com o
atingimento do patrimônio do sócio ou administrador, na incidência de ausência
de patrimônio da sociedade para solver crédito de terceiro.
Contudo, há que se ter cuidado redobrado com a aplicação do instituto;
é o que diz MAMEDE. Comprove-se: Um grande equívoco tornou-se endêmico no Direito Brasileiro, encontrando-se diversas decisões que afirmam a desconsideração da personalidade jurídica como é feito diretamente decorrente da inadimplência pela sociedade suas obrigações, no que se distanciam, e muito, da teoria que sustenta o instituto jurídico e, igualmente, das normas que hodiernamente lhe dão existência positiva122.
Merece atenção o entendimento do autor em destaque, pois a simples
falta de recursos da sociedade não justifica alcançar o patrimônio dos sócios para
fazer frente às obrigações assumidas pela pessoa jurídica. O que, efetivamente,
justifica a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica são
os atos praticados com fraude a interesses de credores e com prova de abuso de
direito.
Isso é o que demonstra a teoria maior, a qual requer a ocorrência dos
requisitos específicos - fraude e abuso de direito -, para justificar a medida
excepcional de romper “com a regra da separação do patrimônio da pessoa
jurídica com relação ao patrimônio dos entes que a compõem” 123. Por isso, a
120 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. p. 446. 121 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 43. 122 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 243. 123 KOCK, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. Florianópolis: Momento Atual, 2005. p. 58.
42
teoria maior exige que se demonstrem, de maneira inconteste, os critérios
subjetivos mencionados, apoiados no critério objetivo. Requer-se demonstração
do animus da pessoa natural que compõe a sociedade em frustrar o interesse do
credor dessa. É exemplo claro desta vertente o artigo 50 do Código Civil.
Assim, síntese elucidativa entre a aplicação da teoria maior ou menor é
apresentada por COELHO nos seguintes termos: A teoria maior da desconsideração elegeu como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária e uso fraudulento abusivo do instituto. Cuida esse, deste modo, de uma formulação subjetiva, que dar destaque ao intuito do sócio ou administrador, voltado a frustração de legítimo interesse de credor. [...] No campo da teoria da desconsideração, essa preocupação revela-se na formulação objetiva [...]. Segundo a formulação objetiva, o pressuposto da desconsideração se encontra, fundamentalmente, na confusão patrimonial. [...] Entendo que a formação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la [...]. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. [...] A teoria menor da desconsideração é, por evidente, bem menos elaborada que a maior. [...] O seu pressuposto é simplesmente desatendimento de crédito titularizados perante a sociedade, em razão da em sua insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo pelas obrigações daquela. A formação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma124.
Contudo, é de se salientar que o magistrado pode ultrapassar as
previsões positivadas à aplicação da desconsideração da personalidade. O juiz
“está autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que
ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo de credor”,
sem existência de restrições às hipóteses legais125 .
Todavia, necessário se faz ao magistrado apresentar correta e
inequívoca motivação, com análise exauriente do desrespeito ao instituto da
pessoa jurídica, através do devido processo legal. Isto, pois conduta diversa do
124 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 43. 125 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 54.
43
Poder Judiciário pode acarretar prejuízo à segurança jurídica do instituto da
pessoa jurídica126.
Leciona COELHO: […] qualquer que seja o pressuposto adotado para a desconsideração, isso não altera em nada a discussão dos aspectos processuais da aplicação da teoria. Quer dizer, será sempre inafastável a exigência de processo de conhecimento de que participe, no pólo passivo, aquele cuja responsabilização se pretende, seja para demonstrar sua conduta fraudulenta (se prestigiada a formulação maior da teoria), seja para condená-lo, tendo em vista a insolvabilidade da pessoa jurídica (quando adotada a teoria menor).127
Cabe frisar, ainda, que não se pode esquecer que a aplicabilidade da
desconsideração da personalidade jurídica está condicionada à inexistência de
responsabilização direta dos sócios ou gestores – administradores – da sociedade
empresária. Isto porque há lei específica que gera a punição – responsabilização
– direta de tais figuras na incidência de uso abusivo de poder que se desvirtue do
fim social ou gere fato ilícito128. Nessa hipótese, não há motivo para se falar em
desconsideração da personalidade jurídica porque a lei prescreve
responsabilização pessoal, subsidiária ou solidária, retirando a responsabilidade
pelo mau uso da personalidade da sociedade para outro ente, como por exemplo,
sócio ou administrador.
Extrai-se da lição de CEOLIN a distinção entre responsabilidade dos
sócios pelas obrigações da sociedade e a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica. Transcreve-se, na íntegra, o esclarecimento do autor: Diferente do que ocorre na teoria da desconsideração, os casos de responsabilidade pessoal do administrador não representam uma quebra do princípio da separação entre a pessoa jurídica e os seus membros. Para se aplicar o instituto da responsabilidade, portanto, não é necessário ignorar a personalidade do ente abstrato. [...] Como se vê, o instituto da responsabilidade não implica a quebra do princípio da separação. Ao contrário reafirma-o na medida em que seu fundamento repousa na exata distinção entre a sociedade e os seus sócios-gerentes, firmada nos estatutos sociais. Para responsabilizar os dirigentes da sociedade, basta prova de que eles não agiram em conformidade
126SITTA, André Luiz Rodrigues. Penhora de bens do sócio quotista execução trabalhista, um estudo de caso. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 135. 127 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 56. 128 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v.1. p. 447.
44
aos seus deveres e encargos, causando prejuízo a terceiros, ou até mesmo à sociedade. Esta responsabilidade, entretanto, não prescinde da sociedade, permanecendo ilesa a sua personalidade, diversamente do que ocorre com a teoria da desconsideração129.
Assim, quando há expressa previsão legal para responsabilizar os
sócios ou administradores por atos praticados, em prejuízo a terceiros ou à
sociedade, com excesso de poder, infração à lei, ao contrato ou estatuto social,
não há que se falar de desconsideração da personalidade jurídica. A aplicação do
instituto da desconsideração da personalidade jurídica, só se justifica quando não
for possível, num primeiro momento, identificar que houve o mau uso da pessoa
jurídica para encobrir a fraude ou o abuso de direito com a intenção de a
sociedade auferir vantagem em detrimento do credor.
São, dentre outras, hipóteses de exceções válidas à responsabilização
ilimitada dos sócios pelas obrigações sociais, porque previstas em lei, as
referentes a regra contida no inciso III, do artigo 135 do Código Tributário
Nacional, no artigo 1.080 do Código Civil, no artigo 158 da Lei das Sociedades
por Ações (Lei n° 6.404/76) e, artigo 13 da Lei n° 8.620/93. Disposições legais,
que cabe transcrever:
Quanto aos créditos tributários, dispõe o inciso III, do artigo 135, do
Código Tributário Nacional, in verbis: Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: […] III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
Os créditos relativos à Seguridade Social, são protegidos pelo disposto
no art. 13, da Lei n° 8.620/93, conforme se transcreve: Art. 13. O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social. Parágrafo único. Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores, respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao
129 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica.p. 37.
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inadimplemento das obrigações para com a Seguridade Social, por dolo ou culpa.
Na sanção às irregularidades praticas pelos sócio na sociedade
limitada, a responsabilização não depende da situação patrimonial da sociedade,
isto é, no caso de deliberações contrárias à lei ou ao contrato social, a
responsabilidade daqueles que assim deliberaram, passa a ser ilimitada. É o teor
da regra expressa no Código Civil e abaixo transcrita: Art. 1.080. As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram.
Por fim, cabe examinar a regra que tutela os credores, atribuindo
responsabilidade direta e ilimitada aos diretores de sociedade anônima, por
desrespeito à lei ou ao estatuto social, ou, quando proceder com culpa ou dolo no
desempenho de suas funções. Nesses termos dispõe a Lei n° 6.404/76: Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto.
Possível, portanto, perceber a distinção entre a responsabilização
ilimitada dos sócios por dívidas da sociedade, por expressa previsão legal, e, a
desconsideração da personalidade jurídica. No primeiro caso, o ilícito praticado
pelo sócio ou administrador é manifesto, “não se oculta pela imputação do ato”. Já
na hipótese da desconsideração da personalidade jurídica, a ilicitude, diz
COELHO, “é acobertada pela autonomia patrimonial” 130.
3.3.3 A Evolução da Positivação da Teoria no Sistema Jurídico Brasileiro
O Código Civil de 1916, como dito, preceituava que a pessoa jurídica e
os membros que a compõem têm existência absolutamente distinta131. Dessa
forma, à época, entendia-se impossível aceitar a superação da personalidade
130 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 410. 131 BRASIL. Lei 3.071/16. Institui o Código Civil de 1916. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. acesso em maio de 2007.
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jurídica. Todavia, a partir dos estudos de Rubens Requião em 1969 os juristas
brasileiros passaram a dar mais atenção ao tema132.
Na doutrina nacional, há quem afirme que a primeira disposição legal a
versar sobre a desconsideração foi o Decreto n. 3.708 de 1919, lei das
sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Todavia, o mencionado texto
legal não era compatível com a disregard doctrine, posto que se referia “apenas a
uma forma de responsabilização de pessoas que agem com excesso de poderes,
sem a manipulação da pessoa jurídica” 133.
O primeiro dispositivo legal pátrio a tratar da desconsideração da
personalidade jurídica surge no Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90,
na tutela dos direitos dos consumidores.
O artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor prescreve: “O juiz
poderá desconsiderar a personalidade jurídica quando houver abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos e
contratos sociais, além de falência ou insolvência resultante de má administração”
134.
COELHO critica as hipóteses inseridas no artigo supramencionado.
Justifica que excetuado o abuso de direito, as demais possibilidades elencadas
dizem respeito a atitudes diretamente relacionadas ao sócio, administrador ou
representante legal da sociedade e, “se a imputação pode ser direta, se a
existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer
que seja, não há porque cogitar superamento de sua autonomia” 135.
Na mesma vertente caminha CAMBLER, ao pontificar: [...] o pior defeito que se aponta no art. 28 do CDC é o fato de que, quando os administradores agem assim (extrapolando os poderes que têm, e portanto, violando o estatuto , o contrato social ou a lei, incidindo portanto em fatos ou atos praticando atos ilícitos) podem ser responsabilizados por imputação direta, sem a necessidade de desconsideração alguma, justamente em face das multidimencionadas normas do CTN e das leis societárias, e até mesmo, isso na vigência do Código Civil de 1916, de alguns dispositivos ali constantes, relativos à responsabilidade pessoal dos sócios ou administradores.
132BOTTAN, Antonio Carlos. A desconsideração da personalidade jurídica, disregard doctrine. Jurisprudência Catarinense, Florianópolis, n. 89, 2000. p. 25-32. 133 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p. 61. 134 BRASIL. Lei 8.078/90, Dispõe sobre a proteção ao consumidor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em maio de 2007. 135 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2. p. 50.
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Não fosse o bastante, a estatuição em referência fala ainda em falência, insolvência e encerramento das atividades, provocadas por má administração, como situações capazes de permitir a aplicação da disseminação da personalidade jurídica da entidade. 136
De outro turno, RIGON FILHO demonstra posicionamento diverso.
Considera positiva a inserção desses elementos, pela Lei Consumerista, à
desconsideração da pessoa jurídica, uma vez que alarga a base clássica da
doutrina para afastar a personalidade de uma sociedade “e atinge em cheio a
própria má administração” 137.
Depois do Código de Defesa do Consumidor de 1990, a Lei Antitruste –
Lei 8.884/94138 se apresenta como a segunda positivação do sistema jurídico
brasileiro a mencionar o afastamento da personalidade jurídica. A redação da
norma contida no artigo 18 da lei antitruste139, quanto aos pressupostos para
desconsiderar a pessoa jurídica, é notoriamente similar à contida na lei
consumerista.
Por entender que falta consistência técnica à redação do ditame legal
antitruste, COELHO argumenta que “a redação infeliz do dispositivo equivalente
ao Código de Defesa do Consumidor, acabou incorrendo nos mesmos
desacertos. [...] Não aproveitou as contribuições da formulação doutrinária,
perdendo consistência técnica” 140 .
136CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. p. 448. 137RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil – Análise Comparativa. Jurisprudência Catarinense, n. 103, 3º trimestre, Florianópolis, 2003.p. 209. 138 BRASIL. Lei 8.884/94. Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cadê) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão sobre as ingrações contra a ordem econômica e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>.Acesso em maio de 2007. 139 Lei 8.884/94. “Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. 140 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. p. 53.
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O terceiro diploma legal brasileiro a tratar da desconsideração da
personalidade jurídica foi a Lei 9.605/98141, que versa sobre as lesões ao meio
ambiente.
Quanto a este dispositivo legal, a doutrina é pacífica ao afirmar que a
teoria do afastamento da personalidade jurídica foi bem utilizada em sua redação,
mais especificamente ao ditar, em seu artigo 4º, que “[...] poderá ser
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente” 142.
Em relação à Justiça do Trabalho, “mesmo sem previsão legal que a
autorize, tem executado”, indistintamente, os bens do patrimônio dos sócios.
Segundo COELHO, deveria a lei também dispensar aos créditos trabalhistas
atenção especial143.
Alguns doutrinadores, a exemplo de KOURY, vêem nas disposições do
parágrafo 2° do artigo 2°, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, o
permissivo legal para desconsiderar a personalidade jurídica. Todavia, entende-se
que o teor dessa norma legal cuida da responsabilidade solidária dos grupos de
sociedade, e, que se traduz nos seguintes termos: Art. 2º [...] § 2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
Porém, na visão de KOURY a norma jurídica não trata apenas da
solidariedade passiva de empresas do mesmo grupo, mas também de um formato
de desconsideração da personalidade jurídica. É o que se extrai do
posicionamento da autora: [...] a aplicação da Disregard Doctrine visa a evitar exatamente que a personalidade jurídica da empresa contratante seja abusivamente utilizada para encobrir a real vinculação do empregado ao grupo. Daí por que discordamos da idéia,
141 BRASIL, Lei 9.605/98. Dispõe sobre as sansões penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>.acesso em maio de 2007. 142 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. p 53. 143 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. p. 406.
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defendida por uma parte da doutrina e da jurisprudência, de que a solidariedade prevista na CLT seria meramente passiva. Com efeito, a própria noção unitária do grupo empresário implica a existência de solidariedade ativa e passiva. [...] Configura-se, portanto, a existência de grupo, dentro da linha do §2º do artigo 2º da CLT, desconsiderando-se a personalidade jurídica das empresas agrupadas, para reputá-las como empregador único144.
Filiando-se a corrente dos que defendem a falta de previsão legal que
autorize a desconsideração da personalidade jurídica na área do direito do
trabalho e, que também a norma do parágrafo 2 º do artigo 2 º da CLT, aponta
para a responsabilidade solidária do grupo, sem que se rompa a autonomia de
cada uma das empresas, KOCH pondera: Em nossa avaliação, filiamo-nos à corrente que não reconhece na lei laboral os fundamentos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se simplesmente do estabelecimento de uma responsabilidade solidária entre as empresas pertencentes ao mesmo grupo. A tônica é garantir o direito do trabalhador, considerado a parte mais fraca ou hipossuficiente da relação trabalhista. Parte-se da idéia que o trabalhador não deve compartilhar os riscos inerentes às atividades empresariais [...]. Na responsabilidade aqui proposta as pessoas jurídicas das empresas permanecem inatacadas na sua autonomia. A distinção das pessoas jurídicas não se desfaz ou não se desconsidera. Apenas estende-se a responsabilidade a todas elas, de forma solidária, de modo que o trabalhador não venha a sofrer prejuízo em função de que a empresa à qual prestava seus serviços venha a apresentar insuficiência de fundos para a verba trabalhista. Aciona-se então outra empresa do grupo para a quitação do débito trabalhista, sem que com isso se rompa a autonomia das diversas pessoas jurídicas, sem que para isso haja necessidade de ignorar a personalidade jurídica das empresas envolvidas 145.
Compartilha-se do pensamento exposto por Deonísio Koch, porque o
que se está a aplicar é uma norma expressa de responsabilização e não de
afastamento da autonomia patrimonial com fulcro na desconsideração da
personalidade jurídica.
Assim também entende NAHAS: Quando a Consolidação das Leis do Trabalho diz que as empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico serão, para efeito da relação de emprego, solidariamente responsáveis
144 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos empresariais, p. 170. 145 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. 162.
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pelas obrigações trabalhistas assumidas por uma delas, não está estabelecendo uma situação de desconsideração da personalidade jurídica. Ao contrário, está criando uma situação de responsabilidade solidária. Somente é cabível falar em desconsideração da personalidade jurídica quando a responsabilidade pelo ato não puder ser imputada diretamente ao sócio, administrador, ou qualquer outra pessoa jurídica. Ou seja, somente terá pertinência falarmos em se desconsiderar a pessoa jurídica quando a personalidade que a lei lhe atribui é obstáculo à consecução dos fins a que se destina, ou essa personalização desviar-se dos fins sociais para o qual foi suportada e aceita pelo direito. Caso contrário, não há razão para aplicar o instituto da desconsideração, pelo simples fato de que a própria lei permite a responsabilização direta do sócio ou administrador, sem qualquer necessidade de se comprovar desvio, fraude ou qualquer das situações previstas nas disposições legais acima citadas.146
Na área do direito financeiro, também se passou a utilizar a teoria da
desconsideração da pessoa jurídica para responsabilizar solidariamente
controladores de instituições financeiras, empresas de auditoria contábil ou
auditores contábeis independentes, com base na Lei n° 9.447/97147.
Contudo, entende-se que é mais uma das situações em que se
confunde responsabilidade objetiva com desconsideração da personalidade
jurídica.
Mas, é no Direito Civil que ocorre a mais completa positivação da teoria
tratada, ajustada aos parâmetros conceituais da teoria clássica da
desconsideração da personalidade jurídica, conforme se depreende do disposto
no artigo 50 do Código Civil, já transcrito.
Nesse sentido, leciona ANDRADE FILHO: Antes do advento do art. 50 do Código Civil de 2002, a idéia da desconsideração da personalidade jurídica’’ fora recebida pela ordem jurídica positiva por intermédio da jurisprudência e de regras específicas. [...] Parece não haver dúvida de que o art. 50 do Código Civil de 2002 trata, mesmo, da velha figura da desconsideração da personalidade jurídica. [...] Com a introdução da referida regra, o Código Civil de 2002 recebeu, em seu
146 NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica, reflexos civis e empresariais nas relações de trabalho. São Paulo: Atlas, 2004. p. 153. 147 BRASIL. Lei 9.447/97. Dispõe sobre a responsabilidade solidária de controladores de instituições submetidas aos regimes de que tratam a Lei n° 6.024, de 13 de março de 1974, e o Decreto-lei n° 2.321, de 25 de fevereiro de 1987; sobre a indisponibilidade de seus bens; sobre a responsabilização das empresas de auditoria contábil ou dos auditores contábeis independentes; sobre privatização de instituições cujas ações sejam desapropriadas, na forma do Decreto-lei n° 2.321, de 1987, e dá outras providências. <http://www.bcb.gov.br>. Acesso em maio de 2007.
51
escopo, uma idéia que há pouco tempo era ainda considerada uma teoria148.
Contudo, há que se observar que alguns dos dispositivos legais já
mencionados e, que inseriram em seu contexto a desconsideração da pessoa
jurídica, não primaram por reproduzir os fundamentos básicos para a aplicação do
instituto. Demonstram, apenas, a receptividade que o tema aqui obteve, bem
como a disseminação de sua aceitação pela comunidade jurídica do Brasil.
Alguns, inclusive, teimam em avocá-la para simples forma de responsabilização já
previstas em lei, visando “ampliar a garantia de um segmento da sociedade” 149.
Entretanto, a maior parte dos doutrinadores nacionais entende que a
desconsideração da personalidade jurídica é necessária, vez que não se pode
privilegiar o abuso da pessoa jurídica em detrimento da autonomia patrimonial.
Está pacificado, portanto, que a aplicação do instituto é método eficaz para coibir
abusos praticados sob o manto da pessoa jurídica, via do uso de benesses
concedidas por lei – autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade dos
sócios. Todavia, resta a preocupação da corrente doutrinária majoritária, tendo
como defensores Fábio Ulhoa Coelho, Gladston Mamede, Edmar Oliveira de
Andrade Filho, dentre outros, acerca da incorreta aplicação da desconsideração,
visto que não se pode desprestigiar o caráter social da pessoa jurídica, como
também a importância desta para a sociedade no desenvolvimento das atividades
econômicas, de forma a obrigar o afastamento da personalidade jurídica,
sujeitando-as à insegurança jurídica150.
Dessa forma, compreende a doutrina predominante que a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica deve respeitar os pressupostos
prescritos na teoria clássica. Por isso, necessária é a análise da incidência de
fraude, desvio de finalidade, ou confusão patrimonial na sociedade.
Por todo o exposto, concorda-se que a superação da personalidade
jurídica “não pode ser encarada como panacéia para atender a toda e qualquer
situação” 151; não pode ser banalizada a ponto de colocar em risco o instituto da
148 ANDRADE FILHO. Edmar Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no novo código civil. São Paulo: MP, 2005. p. 65. 149 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p.164. 150 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 54. 151MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 246.
52
pessoa jurídica. E, por fim, registra-se: o afastamento da autonomia patrimonial
deve ser utilizado como uma medida de exceção.
3.3.4 A aplicação pelo Judiciário
Presente não só no direito civil, mas em diversos ordenamentos
nacionais, como visto, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
mostra-se de larga aplicação pelos órgãos jurisdicionais brasileiros.
A atuação dos magistrados, em sua maioria, espelha a doutrina
dominante acerca da matéria – teoria maior da desconsideração, positivada no
artigo 50 do Códex Civil. É possível identificar em seus julgados análise
exauriente do caso concreto frente às hipóteses de aplicabilidade da teoria em
comento.
É o que se infere no julgado do egrégio Tribunal de Justiça de Santa
Catarina.
Processual civil - execução de sentença - desconsideração da personalidade jurídica - inexistência de provas nos autos acerca de eventual abuso de personalidade jurídica ou confusão patrimonial perpetrada pela empresa agravada - exegese do art. 50 do código civil - pressupostos autorizadores da medida não configurados - interlocutório mantido - recurso desprovido. A desconsideração da personalidade jurídica é instituto de excepcionalidade aplicável apenas quando for demonstrado que houve excesso na administração ou que a pessoa jurídica foi manipulada com o intuito de fraudar direito de terceiros. Desta forma, o simples fato de a empresa executada estar sendo demandada em uma série de ações judiciais, por si só, não autoriza sua despersonificação152.
No mesmo sentido é a decisão em Agravo de Instrumento do mesmo
órgão jurisdicional: Agravo de instrumento - sociedade limitada - desconsideração da personalidade jurídica decretada - responsabilização pessoal dos sócios pelas dívidas da empresa - possibilidade apenas mediante comprovação de que tenham agido no intuito de prejudicar credores, praticado fraude na administração ou abuso de poder, ou, ainda, violado o contrato ou estatutos da sociedade
152 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento, n. 2006.022398-1. Rel. Dês. Marcus Túlio Sartorato, j. 27 de março de 2007. Disponível em <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em setembro de 2007.
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- fatos não provados - recurso desprovido. [...] A pretendida responsabilização dos sócios da empresa recorrida só pode ocorrer se for efetivamente demonstrado que eles agiram de forma ilícita no intuito de prejudicar credores, praticando alguma fraude na administração ou infringindo a legislação, o contrato social ou os estatutos da sociedade. Tal não sucedeu na espécie porquanto em nenhum momento da peça recursal o agravante trouxe elementos hábeis ou concretos a comprovar que os sócios da agravada incorreram em alguma das faltas acima elencadas, a fim de ver deferido o pedido de continuidade da execução contra eles. [...] Enfim, a medida almejada pela recorrente é deveras excepcional e extrema, e só diante de prova irretorquível da atuação dolosa ou fraudulenta, visando prejudicar seus credores, é que os bens dos sócios e/ou administradores responderão conjuntamente com os da empresa pelas dívidas sociais. Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso. 153
Ainda neste norte, é importante destacar posicionamento do
magistrado Alexandre Guimarães Gavião Pinto, do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro: A Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica da Empresa possui fundamento nos princípios gerais de proibição do abuso de direito, autorizando o Poder Judiciário, em casos excepcionais, desconsiderar, episodicamente, a personificação societária [...]. A excepcionalidade marca fortemente a aplicação da teoria, eis que exige do Magistrado extrema cautela e parcimônia, de modo a evitar a indevida investida no patrimônio do sócio [...] Por fim, revela-se indispensável anotar que, a teoria em explanação apenas pode ser aplicada na hipótese de robusta prova de fraude ou abuso de direito praticados [...], sob pena de se acabar destruindo o sólido instituto da pessoa jurídica, que se mostra de suma importância no desenvolvimento das atividades econômicas nas nações civilizadas. 154
Todavia, em relação ao direito de família, o entendimento dos togados
acerca da teoria difere. Justifica-se então, a aplicação da desconsideração em
razão de prática de ato ilícito, qual seja fraude contra credores ou fraude contra a
execução, por membro de sociedade empresária. Isto, nada mais é, senão causa
153 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento, n. 2003.029523-2, ação de execução de título extrajudicial. Wal Color Produtos Têxteis Ltda. e Comercial Braga Vieira Ltda. Rel. Dês. Alcides Aguiar, j. 01 de julho de 2004. Disponível em <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 154 PINTO, Alexandre Guimarães Gavião. A teoria da superação da personalidade jurídica da empresa. AMB. Brasília, 05 de maio de 2006, AMB debate. Disponível em <www.amb.com.br/portal/ambdebate/artigo>. Acesso em setembro de 2007.
54
ensejadora de utilização do instituto da responsabilização dos sócios155, não de
desconsideração.
É o que se infere da argumentação do juiz de direito BEBER, em artigo
de sua autoria. O problema surge quando o sócio, demandado em ação alimentar, busca, sob mando da personalidade jurídica, turvar a sua realidade financeira e seu acervo patrimonial, procurando, mediante as fraudes antes referidas, obnubilar dados que deveriam transparecer claros e precisos [...]. Na seara familiar, em especial no tocante aos alimentos, estimo ser perfeitamente viável o uso da teoria ora em exame, tanto na fase de cognição, como na de execução, sobretudo nesta última [...] 156.
Ainda a respeito de execução de alimentos, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Embargos de terceiro. Execução de alimentos. Descabe escudar-se o devedor na personalidade jurídica da sociedade comercial, em que está investido todo o seu patrimônio, para esquivar-se do pagamento da dívida alimentar. Impõe-se a adoção da "disregard doctrine", admitindo-se a constrição de bens titulados em nome da pessoa jurídica para satisfazer o débito. Apelo improvido. [...] Deve ser desconsiderada a personalidade de sociedade jurídica por cotas formada por dois sócios, concubinos casados pelo religioso, rejeitando-se pedido de liminar em embargos de terceiro promovidos pela sociedade, visando obstar arrolamento de bens promovido pela mulher. Possibilidade de fraude do varão, ocultado sob o manto da pessoa jurídica. Este, em realidade, age em nome próprio e não da sociedade157.
No que tange o direito do consumidor é, em parte, diferente a realidade
jurisdicional. A aplicação da teoria em exame demonstra tendência de
155 Diferente do que ocorre na teoria da desconsideração, os casos de responsabilidade pessoal do administrador não representam uma quebra do princípio da separação entre a pessoa jurídica e os seus membros. Para se aplicar o instituto da responsabilidade, portanto, não é necessário ignorar a personalidade do ente abstrato. [...] Como se vê, o instituto da responsabilidade não implica a quebra do princípio da separação. Ao contrário reafirma-o na medida em que seu fundamento repousa na exata distinção entre a sociedade e os seus sócios-gerentes, firmada nos estatutos sociais. Para responsabilizar os dirigentes da sociedade, basta prova de que eles não agiram em conformidade aos seus deveres e encargos, causando prejuízo a terceiros, ou até mesmo à sociedade. Esta responsabilidade, entretanto, não prescinde da sociedade, permanecendo ilesa a sua personalidade, diversamente do que ocorre com a teoria da desconsideração. CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 37. 156 BEBER, Jorge Luiz Costa. Alimentos e desconsideração da pessoa jurídica. Cejur. Florianópolis. Disponível em <http://tjweb.tj.sc.gov.br/cejur/artigos/direitofamilia.html>. Acesso em setembro de 2007. 157 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 598082162. Rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 24 de junho de 1998. Disponível em <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em setembro de 2007.
55
afastamento da prescrição legal do caput do artigo 28 do Código de Defesa do
Consumidor, já transcrito. Dessa forma, os julgadores ao provocar a superação da
personalidade da sociedade empresária tendem a invocar as hipóteses de
incidência do códex civil, não mais utilizando, o rol da lei consumerista. 158
Em relação ao direito tributário, é de se perceber que parte das
decisões segue a vertente da teoria maior da desconsideração. É o caso da
decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Apelação
Cível, onde se justifica o superamento da personalidade jurídica pela comprovada
fraude promovida pela sociedade empresária em seu benefício: Processo Civil. Execução Fiscal. Embargos de Terceiro. Extinção de uma empresa e constituição de outra. Desconsideração da pessoa jurídica. [...] caracterizado que a constituição da pessoa jurídica se deu para substituir pessoa jurídica que se extinguiu com o fim de fraudar credores, desvirtuada a finalidade do instituto, que seria agregar vontades e meios para a consecução de um fim societário, é o caso de desconsiderar a pessoa jurídica nova e considerar todos os atos praticados, seja face da pessoa jurídica anterior seja da nova, como praticados perante a mesma pessoa, prosseguindo-se na execução com a penhora sobre bem da nova empresa. 159
Entretanto, outra parcela dos julgadores fundamenta suas decisões de
forma diversa. Fazem uso das disposições do artigo 135, inciso III, do Código 158 Como exemplo há o julgado do Tribunal de Justiça Catarinense: Agravo de instrumento. Execução. Dívida afeta a sociedade limitada. Ambicionada a desconsideração da personalidade jurídica. Art. 28, § 5º, do CDC. Interpretação literal insuficiente. Tutela da boa-fé e da garantia do desenvolvimento nacional. Necessidade de comprovação do uso deturpado do ente moral. Providência não implementada pelos exeqüentes. Recurso desprovido. A desconsideração da personalidade jurídica somente se admite quando o escudo da separação patrimonial é utilizado para fins destoantes do Direito. Não se pode conceber, diante do princípio da boa-fé, que, mesmo agindo os sócios nos estreitos limites da legalidade e da honestidade, tenham seu patrimônio desfalcado para cobrir dívidas da respectiva sociedade. É bastante justo que a empresa arque, objetivamente, com os danos que causar ao consumidor; agora, impor este ônus diretamente e incondicionalmente aos sócios, é medida de todo desproporcional, que compromete o desenvolvimento da nação, um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, II, da CF). [...] A personificação societária, separando o patrimônio do grupo do de seus componentes, consiste em importante instrumento de incentivo à atividade econômica, motivando o empreendedorismo, e, portanto, desde que utilizada para finalidades legítimas, deve ser tutelada pela ordem jurídica de maneira eficaz. In SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 2004.034501-6, execução de sentença. Elizabeth Regina Alves de Faria, Airton José de Faria e Beiramar Informática Ltda. Rel. Desa. Maria do Roccio Luz Santa Ritta. J. 23 de agosto de 2005. Disponível em <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 159 PARANÁ, SANTA CATARINA, RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível, n. 97.04.39581-7/SC, ação de execução fiscal. Disper Comércio e Indústria de Produtos Ltda. e Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Rel. Juiz Guilherme Beltrami. J. 03 de agosto de 2000. Disponível em <www.trf4.gov.br>. Acesso em setembro de 2007.
56
Tributário Nacional, que reflete o instituto da responsabilização ao atingir
diretamente o sócio, ou o administrador, sem que necessite superar a
personalidade da sociedade empresária160.
A Justiça do Trabalho, por sua vez, defende o posicionamento de que,
para a aplicação da teoria da desconsideração apenas é necessária a análise de
um único critério para redirecionar a execução contra os sócios da pessoa
jurídica, qual seja, a insuficiência de bens sociais para solver o crédito trabalhista.
O que demonstra com clareza sua filiação a teoria menor da desconsideração161,
conforme alhures descrito.
É da jurisprudência trabalhista: Teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Sociedade anônima. Ausência de pagamento de créditos de natureza alimentar. Infração à lei. Responsabilidade subsidiária de acionistas administradores. [...] deve-se atentar para a natureza alimentar dos créditos trabalhistas, o que, no fundo, bastaria para legitimar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. [...] tem-se que constatada a infração à lei, in casu, inadimplência dos débitos trabalhistas, a exemplo de retenção de salários, débitos fiscais e previdenciários, dentre outros, o Juiz pode determinar que os efeitos de certas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica162.
Em se tratando da aplicação da desconsideração pelo Poder Judiciário
brasileiro, como se vê, não há que se falar em unanimidade de posicionamento.
Cristalina está a discrepância de interpretação dos julgadores acerca do instituto
sob análise.
Consta-se que parte dos magistrados fundamentam suas decisões de
acordo com a teoria maior, “de maior consistência e abstração, que condiciona o
160 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 447. 161 Nesse sentido têm-se decisão proferida em sede de Embargos de Terceiro: [...] Nada obstante, a execução que se processava revelou-se infrutífera, restando já demonstrado que a executada não possuía idoneidade financeira para satisfazer os créditos do autor. Embora seja certo que a pessoa jurídica tem existência distinta da de seus membros, não menos certo é que a pessoa jurídica é uma ficção criada para atingir objetivos legais, não podendo ser utilizada como um escudo para não pagar. In RIO DE JANEIRO. 64ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro/RJ. Embargos de Terceiro n. 00866-2007-064-01-00-9, ação trabalhista. Carlos Alberto de Branco e First Line Comércio e Distribuição Ltda. Juiz Marcelo José Duarte Raphael. J. 21 de agosto de 2007. Disponível em <www.trt1.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 162 SERGIPE. Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região. Recurso Ordinário, n. 00010-2005-004-20-00-4. Rel. Dês. Carlos de Menezes Faro Filho. J. 30 de maio de 2006. Disponível em <www.trt20.gov.br>. Acesso em setembro de 2007.
57
afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à
caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto” 163, a qual
melhor engloba os objetivos e pressupostos da disregard doctrine, além de restar
incorporada e positivada pela legislação brasileira através do art. 50 do Código
Civil.
Já a outra vertente se apega a teoria menor, que em muito se confunde
com outros institutos do direito brasileiro tais como fraude a credor ou a execução,
e “o seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado
perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta“, ou, “se a
sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isto basta para
responsabilizá-lo por obrigação daquela” 164.
Repisa-se que a desconsideração da personalidade jurídica, ou
disregard doctrine, é resultado de construção jurisprudencial e doutrinária, até
porque advém do sistema jurídico da common law. Porém, mesmo que prescinda
à lei para sua aplicação prática, deve estar sujeita aos pressupostos da teoria –
tratando-se aqui da teoria clássica, intitulada por Fábio Ulhoa COELHO de “teoria
maior”. O que, como mencionado, não é reflexo da prática jurisdicional maciça no
Judiciário brasileiro, que banaliza o instituto, e o afasta de seu conceito basilar,
qual seja, aplicá-la nas situações de mau uso da pessoa jurídica através de
prática de fraude e abuso de direito165.
Nesse diapasão é o posicionamento de CEOLIN: [...] os magistrados brasileiros estão transformando a teoria da desconsideração da pessoa jurídica em um instrumento de ressarcimento, quando, na verdade seu escopo maior é coibir os abusos e as fraudes praticados através do ente personificado, para conferir-lhe maior credibilidade e segurança no meio socio-jurídico. Diversamente do que se vem observando nos foros brasileiros, a teoria da desconsideração não foi concebida como técnica processual para agilizar ou facilitar a defesa dos interesses dos credores sociais. Sua sistematização revela importantes fundamentos jurídicos e critérios próprios de aplicabilidade, que a individualizam e diferenciam-na dos demais institutos jurídicos166.
163 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v.2. p. 35. 164 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v.2. p. 35. 165 NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica, reflexos civis e empresariais nas relações de trabalho. São Paulo: Atlas, 2004. p. 151. 166 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 92.
58
O que transpira, da análise da aplicabilidade jurisdicional brasileira, em
suma, é o protecionismo legislativo à parte hipossuficiente das relações jurídicas,
em detrimento de norma legal específica à desconsideração – artigo 50 do Código
Civil, e a própria segurança jurídica. É a descaracterização dos fundamentos da
desconsideração, pelo Judiciário – em especial a Justiça do Trabalho –, que visa
permitir a superação da personalidade jurídica sempre que a autonomia da
pessoa jurídica prejudicar terceiro, sem preocupação com a real incidência de
abuso de direito ou fraude167.
167 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p. 186.
59
4 A APLICABILIDADE DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA JUSTIÇA DO TRABALHO
Como tratado no capítulo anterior, a aplicação do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica é medida necessária à boa prática do
direito. A afirmação se justifica na importância de se coibir o mau uso da pessoa
jurídica e os direitos decorrentes da personalização desta. Com o advento do art.
50 do Código Civil, a desconsideração passou a possuir regramento próprio, sem
ter, entretanto, rol taxativo de possibilidades à sua aplicação168.
Todavia, como também mencionado, é instrumento de utilidade estrita,
em situações excetuadas. Isto, face às conseqüências que a aplicação da teoria
em tratada acarreta para as sociedades empresárias às quais afasta a
personalidade, como se verá posteriormente neste capítulo.
4.1 APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA NOS ÓRGÃOS DA JURISDIÇÃO TRABALHISTA
A Justiça do Trabalho entende que a mera inexistência de bens sociais
capazes a assegurar satisfação dos débitos trabalhistas autoriza o uso da
desconsideração da pessoa jurídica, sem analise exauriente dos pressupostos
objetivos ou subjetivos. Dessa forma, como já se disse, essa justiça especializada
faz uso da teoria menor da desconsideração169.
Destaca CEOLIN. Se nos tribunais de Direito comum, os magistrados, vez por outra, ainda se lembram de que a insuficiência de patrimônio, por si só, não significa fraude nem abuso, no Direito trabalhista, a ausência de bens é o único critério considerado. Assim, havendo débito trabalhista a ser satisfeito, prescinde-se da pessoa jurídica para alcançar patrimônio dos seus sócios, tenham esses praticado fraude ou não170.
168 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica.p. 186. 169 NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica, reflexos civis e empresariais nas relações de trabalho. p. 160. 170 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 92.
60
Os argumentos utilizados rotineiramente para essa prática residem na
hipossuficiência do empregado na relação de trabalho e no caráter alimentar das
verbas trabalhistas, bem como no risco do empreendimento, que deve ser
suportado pela sociedade e seus componentes. Além dos magistrados traçarem
analogia à amplitude de possibilidades de desconsiderar-se a personalidade
jurídica do Código Consumerista171, com a aplicação da teoria no universo do
Direito do Trabalho172.
Para esse órgão jurisdicional, a premissa maior a justificar a aplicação
da desconsideração reside na própria finalidade da Justiça do Trabalho, qual seja
a proteção ao trabalhador, considerando-o a parte hipossuficiente da relação de
trabalho ou emprego. Em razão deste fato, assegura-se que a utilização da
desconsideração deve ser efetivada através da vertente da teoria menor. E, desta
forma, se privilegia a parte desfavorecida da relação “entre o homem que trabalha
e as fontes que o comandam” 173 para que a satisfação dos seus anseios se
processe eficazmente174.
Cabe relembrar que a teoria menor da desconsideração indica como
pressuposto apenas o inadimplemento de crédito constituído junto à sociedade
empresária pela ausência de bens sociais a solvê-lo, e dispensa análise
aprofundada do caso concreto como pressuposto à desconsideração175.
Extrai-se do Recurso de Revista n° 572.516/99, da 3ª Turma do TST, j.
em 17.10.2001, o entendimento de que: Em sede de direito do trabalho, em que os créditos trabalhistas não podem ficar a descoberto, bem se abrindo uma exceção ao princípio da responsabilidade limitada do sócio, ao se aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entitu) para que o empregado possa, verificada a insuficiência do patrimônio societário, sujeitar à execução dos bens dos sócios individualmente considerados, porém solidária e
171 BRASIL. Lei 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção ao consumidor e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em maio de 2007. 172 ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios, obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 194. 173 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria geral do direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1998. p. 59. 174 NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica, reflexos civis e empresariais nas relações de trabalho. São Paulo: Atlas, 2004. p. 160. 175 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial.v.2. p. 43.
61
ilimitadamente, até o pagamento integral dos créditos dos empregados […] 176.
Nesse sentido, importante alerta é feito por Eduardo Viana PINTO,
citado por KOCH, sobre a postura adotada pela magistratura trabalhista, para
desconsiderar a personalidade jurídica: O que é inaceitável e deveria ser banido é o entendimento vigorante em relação a essa dualidade simultânea de responsabilidade: uma limitada, vigente no campo do direito comum, e outra subsidiária, em relação às obrigações laborais. Trata-se de um juízo inadmissível e que deve ser, urgentemente, revisto, porque torna letra morta o limite de responsabilidade estabelecida a favor do quotista partícipe de sociedade limitada, o que acabará por extinguir esse pólo social de extrema importância para o nosso desenvolvimento socioeconômico, diante dessa escandalizante proteção a favor do empregado. 177
Constata-se, assim, que na visão dos magistrados trabalhistas, se a
sociedade empresária encontra-se desprovida de patrimônio suficiente para
adimplir os créditos trabalhistas, resta aos sócios, ou, até ex-sócios, arcar com
tais verbas, independente de qualquer atitude abusiva ou fraudulenta por parte da
pessoa jurídica178.
Nesse sentido, extrai-se parte da decisão da Quarta Turma do Tribunal
Superior de Justiça, decidindo o Recurso de Revista 2.549/2000: […] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, autoriza o juiz a responsabilizar qualquer dos sócios pelo pagamento da dívida, pela falta de bens da executada179.
O Ac. n. 02980294602, da 4ª Turma do TRT de São Paulo, j. em
02.06.1998, também demonstra a falta de critério adotado pela justiça laboral na
aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, indo buscar
no patrimônio de ex-sócio a satisfação do crédito do empregado.
É desse teor: Execução. Bens de ex-sócio. Em seara trabalhista, a execução invade o patrimônio particular do sócio e também daquele que já
176 Apud RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.1126. 177 Apud KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica.p.164-165. 178 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 37. 179 Apud MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 259.
62
se retirou da sociedade, ante a aplicação do princípio da não-imputação dos riscos do empreendimento ao empregado180.
Outro equívoco, que rompe com a lógica do sistema jurídico vigente, em
que a decisão foi proferida antes da vigência do Código Civil, mas sob a égide do
Código de Defesa do Consumidor é a do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª.
Região: Desconsideração da personalidade jurídica do empregador. Responsabilidade do sócio-quotista. Na esteira trilhada pelo Direito Tributário, nos artigos 134 e 135 do CTN, e pelo Direito Comum, no Código do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu artigo 28, que acolheram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com muito maior razão, considerando-se o privilégio dos créditos laboristas, firmou a jurisprudência trabalhista o entendimento consubstanciado na ampliação da responsabilidade do sócio-quotista das sociedades constituídas por quotas de responsabilidade limitada, pelos créditos inadimplidos do empregado, além das hipóteses previstas no Decreto 3.708/19, para condená-los em responsabilidade subsidiária à satisfação dos referidos créditos181.
É de se ressaltar do julgado acima colacionado a interpretação
extensiva feita pela Justiça especializada com base no código consumerista. Tal
alargamento interpretativo tem por justificativa as semelhanças entre as leis
trabalhistas e de proteção ao consumidor. Segundo os órgãos judiciais do
trabalho e parte da doutrina, a finalidade das normas legais citadas é o fator que
as aproxima, qual seja a busca por diminuir a hipossuficiência do trabalhador ou
vulnerabilidade do consumidor, na relação de trabalho ou consumo,
respectivamente.
Acerca do assunto, assevera NAHAS: O Código de Defesa do Consumidor e a Consolidação das Leis do Trabalho têm por base de princípio a proteção ao direito da parte mais fraca da relação jurídica. Assim, o legislador traça normas que vão desigualar a parte na relação a fim de mantê-las iguais no plano da negociação. Portanto, os princípios protetivos dos dois institutos acabam por serem idênticos, guardadas
180 Apud RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.1127. 181 MINAS GERAIS. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Recurso Ordinário n. 2982. Juíza Denise Alves Horta. J. 24 de agosto de 1996. Disponível em <www.trt3.gov.br>. Acesso em setembro de 2007.
63
evidentemente as diferenças relacionadas ao objeto da relação jurídica, uma de consumo e outra de trabalho. Todavia, ambas tidas pelo legislador constitucional como necessárias e suficientes ao desenvolvimento da ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal) 182.
Em relação ao caráter alimentar das verbas trabalhistas, reflete, a lição
de SANTOS, o posicionamento dos togados da Justiça do Trabalho: A importância social do crédito trabalhista, decorre de sua natureza alimentar, justifica a imperiosa necessidade de privilegiar sua execução pelo emprego te todos os meios processualmente lícitos e capazes de tornar efetiva e concreta a prestação jurisdicional, como uma responsabilidade indelegável do Poder Judiciário183.
Desse modo, é possível concluir que para a Justiça do Trabalho, os
princípios da separação patrimonial e da limitação de responsabilidade não
passam de meras estruturas formais, de minúscula relevância frente à satisfação
de créditos alimentares do trabalhador. Essa justiça especializada desconsidera
que tais princípios são necessários à atividade empresária, e à sociedade civil –
principalmente enquanto fonte de emprego, geração de riqueza e circulação da
economia – como se detalhará posteriormente184.
4.1.1 Divergências da Aplicação da Teoria pela Justiça do Trabalho
Notoriamente há choque entre a doutrina da desconsideração e a
aplicação no âmbito jurisdicional trabalhista. Por óbvio, a Justiça Trabalhista, deve
resguardar o direito do empregado, mesmo porque é sua finalidade maior. Porém,
não pode cegar-se às conseqüências que acarreta à pessoa jurídica diretamente,
e à sociedade civil de maneira indireta.
Na busca de satisfazer os créditos do trabalhador junto ao empregador,
os magistrados da justiça trabalhista abstraem o fato de que a sociedade
empresária exerce uma função social e que o desempenho de sua atividade, por 182 NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica, reflexos civis e empresariais nas relações de trabalho. p. 160. 183 SANTOS, Hermelino de Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho; diretrizes à execução trabalhista, artigo 50 do novo código civil e sua aplicabilidade trabalhista. São Paulo: LTR, 2003. p. 164 184 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 94.
64
si só, gera riscos que são diuturnamente suportados pelos sócios. Esquecem-se,
os togados, que a proteção dada por lei às pessoas jurídicas através de sua
personificação deriva dos fatores mencionados, entre outros, a separação
patrimonial.
Neste sentido, leciona MAMEDE: No plano de créditos oriundos de relações de trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica tem sido reiteradamente utilizada. [...] A Justiça do Trabalho fez uma interpretação excessivamente larga da teoria da desconsideração para criar um contexto jurídico no qual a simples inadimplência da pessoa jurídica para com o crédito trabalhista caracteriza situação bastante para a despersonalização, no que rompe completamente com a lógica da personificação, da limitação da responsabilidade subsidiária e, somente como contraponto para hipóteses bem determinadas, a lógica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica185.
Percebe-se que a Justiça do Trabalho, apegou-se a teoria da
desconsideração nos moldes das hipóteses elencadas no Código de Defesa do
Consumidor, que tem como pressuposto a vulnerabilidade do consumidor (teoria
menor), contrária à positivação específica da legislação civilista. Assim, dualiza
conceito clarividente do direito pátrio, a limitação de responsabilidade dos sócios
como regra. É de se notar que segundo a visão do Judiciário Trabalhista, deve-se
entender tal limitação de uma forma para o direito comum “e outra subsidiária, em
face das obrigações trabalhistas” 186.
Tece crítica a esse respeito COLEHO, ao mencionar que “a Justiça do
Trabalho tem protegido o empregado deixando de aplicar as regras de limitação
de responsabilidade dos sócios. Tal orientação não tem base legal e deriva,
exclusivamente, da intenção de favorecer o hipossuficiente, na relação de
emprego” 187.
Dessa maneira, a Justiça do Trabalho surpreende as sociedades
empresárias com o afastamento da limitação da responsabilidade de seus sócios
e de sua autonomia patrimonial, as desguarnecendo de segurança jurídica.
Conseqüentemente, esta ausência de proteção à pessoa jurídica criada por essa
185 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 258 186 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 93. 187 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2. 5 ed. p. 55.
65
vertente jurisdicional desestimula sua continuidade, o que acarreta prejuízos
sócio-econômicos à sociedade civil188.
4.2 REFLEXOS DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DO TRABALHO PERANTE
AS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS
Ao constituir uma sociedade empresária, busca-se a proteção legal da
limitação de responsabilidade e autonomia patrimonial, uma vez que, a própria
atividade empresária, por si só, é de risco. Por isso, o ordenamento pátrio entrega
àqueles que pretendem investir valores pecuniários, esforço e tempo na atividade
empresária, além dos benefícios supracitados, também segurança jurídica. Ou
seja, busca assegurar uma constância da realidade social e jurídica para o
saudável desenvolvimento da atividade empresária.
O doutrinador SILVA conceitua a segurança jurídica: Consiste na garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu189.
Por isso, o ordenamento jurídico pátrio, confere personalidade jurídica à
pessoa jurídica e, no que concerne às sociedades, notadamente, às empresárias,
cujo escopo é o desenvolvimento de atividade econômica para a produção ou
circulação de bens e serviços, atribui o postulado jurídico de que o patrimônio dos
sócios, em regra, não responde por dívidas da sociedade190.
Ora, a aplicação desmedida, pelos magistrados trabalhistas, da teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, sem a verificação dos seus
pressupostos básicos, pode colocar em risco o instituto da pessoa jurídica, e,
mais, pode levar à desmotivação de investimento.
188Cf. RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil. p. 215. 189 SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In Constituição e Segurança Jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 17. 190 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p. 55.
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Segundo COELHO, a regra de que o patrimônio dos sócios não
responde por dívidas da sociedade, motiva “investidores e empreendedores a
aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco” 191.
A idéia esposada por Fábio Ulhoa Coelho encontra respaldo na doutrina
de CEOLIN, ao afirmar que: As atividades socieconomicas, via de regra, implicam riscos constantes mormente nos dias atuais, com a globalização da economia mundial, daí a relevância e utilidade do direito à limitação de responsabilidade. Esse direito constitui um dos mecanismos jurídicos encontrados pela sociedade, para fomentar o desenvolvimento econômico e tecnológico, que tem na iniciativa privada o seu principal fator impulsionador192.
Portanto, ao ter sua personalidade afastada, a pessoa jurídica não
deixa de existir, mas a relação entre si e seus componentes – pessoas naturais –
se modifica, uma vez que a responsabilidade que era limitada passa a também
lhes caber, assim como seu patrimônio próprio, poderá responder por negócios da
pessoa jurídica193. Com isso, a certeza da segurança jurídica se finda e, com ela,
por vezes, a própria pessoa jurídica, o que ocasiona, além de perdas de cunho
social e econômico, também a manutenção de emprego.
4.2.1 Conseqüências Sócio-Econômicas
Como dito, a separação patrimonial e a limitação da responsabilidade
dos sócios, são estímulos à exploração da atividade empresária que, por sua vez,
instigam a atividade econômica, já que ela dinamiza a economia ao fazer circular
bens e serviços, além de gerar trabalho e emprego194.
Merece destaque, portanto, a função fomentadora do desenvolvimento
social atinente às sociedades empresárias, “na medida em que criam riquezas,
empregos, bens e serviços de consumo. São elas que reúnem os meios de
191 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2. p.16. 192 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica.p. 173. 193 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no novo código civil. São Paulo: MP, 2005. p. 79. 194 RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil. p. 215.
67
produção, capital, trabalho e tecnologia para que o fenômeno do desenvolvimento
ocorra” 195.
Muito bem anotou a Desembargadora do egrégio Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, Maria do Roccio Luz Santa Ritta em decisão de sua lavra: A personificação societária, separando o patrimônio do grupo do de seus componentes, consiste em importante instrumento de incentivo à atividade econômica, motivando o empreendedorismo e, portanto, desde que utilizada para finalidades legítimas, deve ser tutelada pela ordem jurídica de maneira eficaz.196
Como leciona KOCH, “este é o grande feito da pessoa jurídica: permitir
que uma pessoa invista um certo valor no capital de uma empresa, sabendo que,
na pior da hipóteses, perderá esse valor em caso de insucesso do
empreendimento, mas seu patrimônio particular estará a salvo [...]” 197.
Contudo, o posicionamento da Justiça do Trabalho frente à teoria da
desconsideração, agiganta o desestímulo à atividade empresária. Pois, insiste tal
justiça especializada no afastamento da personalidade jurídica de forma
banalizada198. Baseia sua motivação para tanto na hipossuficiência do empregado
e no caráter alimentar de seu crédito junto à sociedade empresária, sem
questionar se existiu, no caso concreto, prova robusta no sentido de efetivamente
confirmar a houve fraude ou abuso de direito199.
Nesse norte, assevera KOCH. Basta lembrar que a existência da pessoa jurídica traz como conseqüência benéfica a motivação para que recursos populares e esparsos se aglutinem numa sociedade que ganha vida própria com a formação da pessoa jurídica, criando estruturas econômicas necessárias para enfrentar os desafios da humanidade, especialmente com a criação de empregos, serviços, produtos e bem-estar sócia. Ninguém irá mais investir em empresas, sabendo que, independente do valor aplicado, o seu patrimônio particular estará comprometido diante de um eventual insucesso do empreendimento. [...] Conduzir o processo para um posicionamento diverso, no sentido de simplesmente
195 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p. 185. 196 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 2004.034501-6, execução de sentença. Elizabeth Regina Alves de Faria, Airton José de Faria e Beiramar Informática Ltda. Rel. Desa. Maria do Roccio Luz Santa Ritta. J. 23 de agosto de 2005. Disponível em <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 197 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p. 186. 198 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 95. 199 ALMEIDA, Amador Paes de. Execução de bens dos sócios, obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência). p. 194.
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não reconhecer a autonomia da pessoa jurídica, mantendo sua desconsideração de forma permanente e indiscriminada, é afrontar todos os princípios que regem o instituto, o que certamente terá reflexos trágicos na economia popular200.
A linha de raciocínio do judiciário trabalhista, como muito bem anota
CEOLIN201, em curto prazo demonstra-se admissível, enquanto “a médio e longo
prazo, na conjuntura socieconômica por que vem atravessando o país, onde o
nível de desemprego alcança significativos patamares, ele se afigura como
grande equívoco, sendo mesmo insustentável”. Em decorrência desse uso
indiscriminado da desconsideração, argumenta a autora, tem-se desestímulo a
atividade empresária, o que se traduz em redução significativa de postos de
trabalho e emprego.
É de se salientar, igualmente, os prejuízos à economia. O empresário,
“um dos ativadores do sistema econômico” 202, que fomenta a circulação da
riqueza, encontra-se desguarnecido de qualquer regularidade ou previsibilidade
em relação a atividade que desenvolve203.
Assim, sem confiança na realidade jurídica, em especial no instituto da
pessoa jurídica, os investidores desinteressam-se em desenvolver a atividade
empresária, diminuindo, portanto, a circulação e produção de bens e serviços e,
por lógica, enfraquecendo a economia204.
4.2.2 Conseqüências sob o enfoque da Segurança Jurídica
O posicionamento contratualista de Kant, Locke e Rousseau, conforme
leciona LUÑO205, já expressava a imprescindibilidade da segurança jurídica ao
Direito e ao Estado de Direito.
Nesse sentido, interessante o posicionamento de DELGADO, Ministro
do Superior Tribunal de Justiça: 200 KOCH, Deonísio. Desconsideração da personalidade jurídica. p. 186. 201 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 95. 202 RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil, p. 215. 203 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. p. 455. 204 RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil, p. 214. 205 LUÑO, Antônio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel Editorial. 1994. p. 26.
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A concepção pregada por todos os cientistas políticos dirige-se para a afirmação de que o homem necessita de um grau de segurança para poder conduzir, planificar e desenvolver os seus atos da vida civil, familiar e profissional. Ao Estado cabe a responsabilidade de assegurar esse estado de sentimento através da conformação dos seus atos administrativos, legislativos e judiciais com os ditames da segurança jurídica. [...] o Estado de Direito está sustentado em dois fundamentos: a segurança e a certeza jurídica. Esses princípios são absolutamente necessários para que a função estabilizadora do Poder Judiciário, a quem a Constituição Federal lhe concede a competência para de julgar os litígios, seja desenvolvida com estabilidade e credibilidade206.
E mais, ao citar Carlos Aurélio Mota de Souza, DELGADO207 assegura
que não é possível à existência de justiça materializada se aos jurisdicionados
não restarem garantidos seus direitos subjetivos. Para o crescimento da pessoa
natural ou jurídica é indispensável que ela tenha ciência dos ditames jurídicos que
lhe são imperativos; impossível é ter conhecimento do regramento jurídico se nele
não se encontra estabilidade.
As sociedades empresárias, pessoas jurídicas que são, estão afetas à
segurança jurídica, em especial à segurança jurídica como proteção de direitos
objetivos208.
Ao intentar o desenvolvimento de atividade empresária, a pessoa
jurídica é compelida pelo ordenamento jurídico a proceder registro junto ao órgão
competente – neste caso a Junta Comercial – e, após a obediência a tal requisito,
a lei lhe assegura proteções para promover seu objeto fim209.
Assim, as mencionadas proteções, que consistem principalmente na
autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade, são “mecanismos jurídicos
206 DELGADO, José Augusto. O princípio da segurança jurídica, supremacia constitucional. Biblioteca Virtual Jurídica do Tribunal Superior de Justiça. Brasília, 21 de maio de 2005, artigos. Disponível em <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 207 DELGADO, José Augusto. O princípio da segurança jurídica, supremacia constitucional. Biblioteca Virtual Jurídica do Tribunal Superior de Justiça. Disponível em <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em setembro de 2007. 208 SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In Constituição e Segurança Jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. p. 18. 209 ALMEIDA, Amador Paes. Execução de bens dos sócios: obrigações mercantis, tributárias, trabalhistas: da desconsideração da personalidade jurídica (doutrina e jurisprudência), p. 181.
70
encontrados pela sociedade, para fomentar o desenvolvimento econômico e
tecnológico, que tem na iniciativa privada o seu principal fator impulsionador”.210
As benesses legais são contrapesos ao “risco de mercado” 211
suportado pelas sociedades empresárias. Pois, em que pese o risco ser critério
intrínseco a atividade em foco, a autonomia patrimonial e a limitação de
responsabilidade têm por escopo impedir que mais incertezas prejudiquem o
desenvolvimento empresarial. Quer dizer, tem por fim garantir segurança jurídica
às sociedades empresárias.
Todavia, a utilização desses benefícios, concedidos pelo ordenamento
jurídico, ao desempenho da atividade empresária tem levado a prática de ilícitos e
fraudes sob o amparo da personalidade jurídica, o que acaba por originar prejuízo
a terceiros. Essa é uma situação fática212.
Em face dessas práticas, sabe-se que se faz justa e necessária à
aplicação do mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica, visto ser
inconcebível a existência de pessoa jurídica voltada à fraude, à prática de
qualquer ato ilícito, ou, demais formas de se escusar do cumprimento de
obrigações assumidas213.
Como visto anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro, prevê a
aplicação da desconsideração nas hipóteses de abuso de direito, confusão
patrimonial ou desvio de finalidade. No entanto, é bem verdade, não há previsão
legal de aplicação direta pelo julgador, pois requer motivação da parte adversa,
ou, excepcionalmente, por pedido do Ministério Público.
Observados pelos magistrados, os pressupostos de aplicação do
instituto da desconsideração, além da impossibilidade de ser decretada ex-officio,
a segurança jurídica não é afetada, posto existir ditame legal de fácil
compreensão para os sujeitos passivos da norma. 210 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 173. 211 “Risco de mercado consiste em análise das regras de comportamento do sistema econômico baseada na segurança, previsibilidade e funcionamento que ele está a oferecer”. RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil. p. 212. 212 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias,v.2. p. 243. 213 MORAES, Luiza Rangel de. Considerações sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicação na apuração de responsabilidade dos sócios e administradores de sociedades limitadas e anônimas. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, n. 25, julho/setembro, 2004. p. 32.
71
Entretanto, o posicionamento majoritário da justiça laboral gera situação
fática diversa à segurança jurídica. Os magistrados trabalhistas aplicam, a maior
parte das vezes, larga e extensiva interpretação à teoria da desconsideração, e
permitem a aplicação do afastamento da personalidade jurídica por mera
inadimplência da sociedade empresária frente a crédito trabalhista – o que em
nada se coaduna com as previsões legais de aplicação da desconsideração e
com a própria lógica e conteúdo da teoria214.
Para CEOLIN215, esse comportamento da Justiça do Trabalho quebra a
estabilidade do direito à autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade
dos sócios; viola, ainda, as disposições legais acerca da desconsideração por
aplicar de ofício o afastamento da personalidade, o que gera insegurança jurídica,
pois, para viabilizar a utilização da desconsideração, não se observa que ela é
medida de exceção.
O patente descompasso entre o entendimento da magistratura
trabalhista e a norma legal que prescreve a desconsideração, como dito, retira a
constância dos direitos relacionados à personalidade jurídica, fundamentais à
preservação da empresa. Assim, frente ao alargamento de possibilidades à
aplicação da desconsideração, sem base legal que as afirme, é de se concluir que
ferida está a segurança jurídica216.
RIZZARDO, referindo-se que as decisões na área trabalhista têm se
mostrado incisivas na preservação dos direitos ofendidos, pontifica: “As decisões
revelam-se radicais. Responsabilizam-se os sócios, ingressando o patrimônio
particular na satisfação dos créditos” 217.
Com efeito, é indiscutível que a aplicação da teoria da desconsideração
é necessária para a devida manutenção do instituto da pessoa jurídica, quando
aplicada em conformidade com a norma legal pertinente, que tão bem recebeu a
disregard doctrine no ordenamento jurídico nacional.
214 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias, v.2. p. 259. 215 CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. p. 94. 216 RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil, p. 216. 217 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. p.1124.
72
Mas, o risco de mercado, associado à insegurança jurídica quebra a
confiabilidade no instituto da pessoa jurídica e desestimula sua continuidade218.
Por lógica, compromete as funções institucionais que ela desenvolve de forma
negativamente, e enfraquece os nichos da sociedade civil afetos por ela – a
pessoa jurídica219.
Portanto, a discricionariedade jurisdicional exacerbadamente utilizada
pela Justiça do Trabalho causa temor, ao passo que não considera todas as
disposições específicas da matéria. Com isso, desestrutura a segurança conferida
às pessoas jurídicas em prol, única e exclusivamente, da satisfação de débitos
trabalhistas e, não sopesa o dano que sua ação causa a toda a sociedade civil.
Por fim, deve-se ressaltar, que a prevalecer essa postura dos
magistrados trabalhistas, estar-se-á diante de uma ameaça a continuidade de um
instituto que é responsável pela geração de emprego, renda, riqueza, circulação
da economia, dentre outros fatores atinentes à esfera socioeconômica.
218 RIGON FILHO, Olavo. Desconsideração da personalidade jurídica, o perigo do eventual abrandamento na apreciação dos pressupostos específicos do artigo 50 do Código Civil, p. 216. 219 CAMBLER, Everaldo Augusto et alii. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. (coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, parte geral. v. 1. p. 443.
73
5 CONCLUSÃO
O fruto da união de vontades comuns de pessoas naturais – em especial
de desenvolver a atividade empresária, foco do presente estudo – é o surgimento
da pessoa jurídica. A essa união dá-se o nome de sociedade, que adquire
personalidade jurídica com o registro do seu ato de constituição no órgão
competente que é o Registro de Empresas a cargo das Juntas Comerciais. Sobre
as sociedades empresárias recaem os direitos da personalidade jurídica –
sobretudo de autonomia patrimonial e limitação da responsabilidade dos sócios
pelas obrigações sociais – a fim de viabilizar o desenvolvimento de suas
atividades, visto que desempenham função social, gerando emprego, renda,
circulação de riquezas e, portanto, interferindo na seara econômica e social.
Entretanto, fato que não passa despercebido aos olhos do Direito é o mau
uso dos direitos advindos da personalidade jurídica, o que tem gerado práticas de
atos ilícitos e de fraudes. Em razão desse desvirtuamento do instituto da pessoa
jurídica e de sua personalização, criou-se mecanismo hábil a afastar,
excepcionalmente, a personalidade das sociedades com o escopo de atingir o
patrimônio dos sócios, pautando-se os magistrados no instituto da
desconsideração da personalidade jurídica.
A citada ferramenta adveio do direito anglo-saxão, intitulada de “disregard
doctrine”, isso nas primeiras décadas do século XIX. No Brasil a teoria da
desconsideração foi introduzida pelo doutrinador Rubens REQUIÃO na década de
60, e restou regulada apenas no ano de 2002 pelo artigo 50 do Código Civil
Brasileiro. A teoria anglo-saxônica ingressou no ordenamento pátrio contendo
pressupostos à sua aplicação baseados na existência de abuso da personalidade
via desvio de finalidade da sociedade ou confusão patrimonial.
A larga utilização da teoria em comento no direito nacional, todavia, não
ocorre em absoluto nos moldes prescritos na lei, ou em consonância com a
doutrina acerca da desconsideração. Em especial na Justiça do Trabalho, a
aplicação da desconsideração se processa sem argüição do mau uso do instituto
da personalidade jurídica, muito menos com a feitura de análise exauriente das
circunstâncias de cada caso concreto. De acordo com a pesquisa realizada que
74
resultou neste trabalho, a incidência da desconsideração é justificada sob o
argumento da insuficiência de bens capazes de adimplir crédito trabalhista por
parte da pessoa jurídica, do caráter alimentar de tais verbas, e da hipossuficiência
do credor dos débitos apurados sob a égide da justiça laboral.
Ao sopesar a disregard doctrine em conjunto com a doutrina que versa
sobre a normativa legal pertinente, frente aos argumentos da mencionada justiça
especializada, nota-se com clareza a ausência de respeito aos requisitos
essenciais da desconsideração da personalidade jurídica. Desta forma, a partir da
conduta contumaz da Justiça do Trabalho sobre o tema, conclui-se que os direitos
concedidos às pessoas jurídicas personalizadas não mais possuem estabilidade,
ou seja, há uma grande lacuna de segurança nas regras impostas pela lei àqueles
que desenvolvem a atividade empresária.
Portanto, considera-se alcançado o objetivo geral deste trabalho ao
mostrar a insegurança jurídica trazida às relações empresariais por conta dos
excessos na aplicação da teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica
no Direito do Trabalho.
Por derradeiro, é fundamental trazer à baila a grande importância das
pessoas jurídicas no desenvolvimento sócio-econômico de qualquer país. A se
considerar que o Brasil possui economia de mercado, a geração de emprego e
trabalho é irrefutavelmente uma das principais vocações das sociedades
empresariais. Portanto, fundamental que haja segurança jurídica para que as
empresas, juntamente com o trabalho das pessoas físicas, promovam o
desenvolvimento da nação a partir da distribuição de renda realizada
principalmente pelo pagamento de salários. Ao desrespeitar a estabilidade da
segurança jurídica garantida por lei às sociedades empresariais, a partir do uso
descabido e inábil da desconsideração da personalidade jurídica, a Justiça
Laboral vem a criar uma situação de desestímulo ao desenvolvimento das
sociedades empresárias, causando grandes prejuízos ao país.
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