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operamundi.uol.com.br A armadilha das imagens ocidentais que representam as mulheres árabes Criaturas frágeis e oprimidas que desaparecem sob o xador ou a burca. Essa é a eterna representação das mulheres árabes proposta pela mídia ocidental, misturando despreocupadamente contextos e nacionalidades É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, que não herda nada, nem sequer o nome de família, o sexo que pode trazer decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento com uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um menino. Para a infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da família, ou seja, a quinta inconveniente e, para minha mãe, a quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio, que triunfou dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher maldita. Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que minha tia (e que outras mulheres da família), todos a consideravam a menos fecunda, a que não podia trazer bons frutos ao mundo. Flickr/CC/ World Bank Photo Collecti A armadilha das imagens ocidentais que representam as mulheres árabes about:reader?url=http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/41731/... 1 de 12 23/09/2015 23:48

A Armadilha Das Imagens Ocidentais Que Representam as Mulheres Árabes

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As mulheres árabes na visão ocidental: preconceito inaceitável

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A armadilha das imagens ocidentaisque representam as mulheres árabes

Criaturas frágeis e oprimidas que desaparecem sob o xador ou a

burca. Essa é a eterna representação das mulheres árabes

proposta pela mídia ocidental, misturando despreocupadamente

contextos e nacionalidades

É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher

encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, que não herda

nada, nem sequer o nome de família, o sexo que pode trazer

decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento com

uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um

menino. Para a infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da

família, ou seja, a quinta inconveniente e, para minha mãe, a

quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio, que triunfou

dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher

maldita. Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que

minha tia (e que outras mulheres da família), todos a consideravam

a menos fecunda, a que não podia trazer bons frutos ao mundo.

Flickr/CC/World Bank Photo Collecti

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Afegã usando burca; representação da mulher árabe no ocidente é

comumente feita com burcas, xador ou Niqab

Herdei esses preconceitos e essas teorias. Desde a infância,

escuto que as mulheres – da família, do bairro, do mundo inteiro –

são impotentes, indefesas, condenadas pela natureza a

permanecerem fracas.

Há alguns meses, contudo, minha irmã menor descobriu que eu

era a única pessoa da família Khalifeh a figurar na enciclopédia

palestina. Com um suspiro de alívio, ela sublinhou: “A enciclopédia

não menciona meu pai, minha mãe, nem meu irmão ou meu tio e

seus dez filhos milagrosos, nem outro homem da família; apenas

você!”.

Como mulher árabe, já passei por diferentes fases. Fui

transformada por certas influências e contribuí em parte para

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evoluções da nossa sociedade. Mesmo as famílias árabes mais

conservadoras agora enviam suas filhas à escola. Quando

formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras,

farmacêuticas, escritoras, jornalistas, músicas ou artistas. Hoje,

muitas parecem indispensáveis, mais fortes, mais criativas e mais

importantes que os homens.

Contudo, os meios de comunicação ocidentais nos representam

como criaturas horríveis, envelopadas em xadores, escondidas sob

máscaras de couro, como cativas de um harém dissimulado atrás

dos véus. Pergunto-me por que eles nos veem dessa forma,

fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Eles realmente

acreditam que somos criaturas diferentes do resto do gênero

feminino, incapazes de mudar?

Na escola, eu tinha um professor que falava sempre em

“mudança”, usando diferentes tons e sentidos da palavra de acordo

com os aspectos da realidade árabe que abordava: a redistribuição

da riqueza, a condição das mulheres ou os regimes políticos

obsoletos. Todos ao meu redor o respeitavam e o admiravam; os

mais jovens queriam ser como ele, e os menos jovens se

mostraram dispostos a escondê-lo quando foi perseguido pela

polícia.

Esse professor maravilhoso não era o único a falar de mudança e

justiça. A maioria das pessoas instruídas acreditava nessas ideias

e as defendia. Assim como ele, milhares de homens esclarecidos

foram perseguidos pela polícia ou padeceram em prisões dos

regimes apoiados e subvencionados pelas potências inglesa,

francesa e depois norte-americana.

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O nacionalismo árabe conheceu seu auge durante os anos 1950 e

1960. Nossas ruas ferviam e transbordavam esperanças de

transformação. Adotamos uma atitude rebelde e crítica em relação

aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Os ideais de

libertação e justiça social estão em nossa literatura, nosso teatro,

nossos cantos, nossa música e até nas expressões que usamos na

vida cotidiana. A literatura do mundo inteiro irrigou nossa cultura.

Nossas bibliotecas e nossas ruas regurgitam livros que apelam à

libertação, revolução e mudança: literatura existencialista,

socialista, negra.

Esse entusiasmo chegava a todos, até aos camponeses iletrados e

às mulheres, que começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares

delas foram estudar na universidade; algumas se engajaram em

partidos políticos. Não apenas não usavam mais o véu, como

também passaram a se vestir com outras roupas, minissaia. Por

mais inacreditável que pareça, dançamos rock’n’roll e twist, apesar

de nosso ódio pelos ocidentais. Queríamos viver como eles, sem

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que para isso precisássemos ser dominados.

[Mulheres no Afeganistão em 1927| Fonte: Wikicommons]

Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo

Ocidente, conseguiu derrotar o dirigente egípcio Gamal Abdel

Nasser, em 1967. Essa derrota – momento em que os norte-

americanos e todos os seus aliados regionais aproveitaram para

enfraquecer o movimento rebelde – significou também a de nosso

movimento nacional e nossas convicções socialistas. Eles

apoiaram maciçamente o islamismo – com milhões de dólares –

como estratégia para abafar o nacionalismo progressista. A

Irmandade Muçulmana, até então vista com certa indiferença pela

população, subiu ao poder. A situação de nossa região nos anos

1970 e 1980 era similar à do Afeganistão quando os norte-

americanos apoiaram militarmente os islâmicos, em particular

Osama bin Laden, para conter os comunistas.

As instituições e os meios de comunicação ocidentais, seja a

imprensa escrita ou a televisão, o cinema ou as universidades,

apresentam a mulher árabe como uma criatura com véu dos pés à

cabeça, cujos olhos nem sequer ficam à mostra. Supõe-se que

elas não são capazes de respirar ou pensar sob o xador,

condenando-as a ser sombras ambulantes que erram pela vida

como feiticeiras ou fantasmas aterradores.

As vestes da criatura que mulheres como eu encarnam aos olhos

ocidentais são chamadas de “traje islâmico”. Contudo, estou

convencida de que esse traje não é islâmico ou árabe: trata-se de

uma criação do Ocidente, uma manifestação vergonhosa de seu

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imperialismo.

*

Minha mãe usava um véu transparente negro que cobria mais ou

menos seu rosto e seus cabelos, mas a deixava ver e respirar. O

resto de sua roupa consistia em uma saia ou vestido simples que

chegava até os joelhos, com um colete justo que desenhava seus

seios e sua cintura. Nada a ver com o que hoje é considerado

“traje islâmico” – que transforma o corpo feminino em saco informe,

massa sombria, coluna de fumaça.

No início dos anos 1950, minha mãe engajou-se no movimento

sufur (pelo desuso do véu), ao lado de muitas outras mulheres de

sua geração. Algumas eram como ela, oriundas de classes médias

de grandes cidades árabes; outras, menos privilegiadas e de

vilarejos. Basta assistir às gravações de shows da cantora egípcia

Umm Kulthum ou de outros artistas da mesma época para

constatar que nenhuma mulher da plateia veste esse “traje”.

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[Mulheres no transporte público em Kabul, Afeganistão nos anos

1950]

A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou

uma degradação da situação econômica, e isso teve um grande e

direto impacto sobre as mulheres. Milhares de famílias que

perderam suas terras, suas casas e cujos maridos morreram em

combates precisaram afastar as mulheres da esfera doméstica

para que pudessem trabalhar ou estudar.

Nessa época, milhares de jovens palestinas instruídas começaram

a ser vistas viajando sem lenço, morando sozinhas sem ser

casadas, e ainda assim conservando a honra diante de seus

próximos e da sociedade: elas ajudavam a suprir as necessidades

de famílias de baixa renda. Descrevi a condição dessas mulheres

em meu romance “A herança” (sem tradução, 1997). Com o tempo,

não somente se passou a admitir, como também a ser bem-visto,

que elas financiassem os estudos universitários de suas protegidas

no Egito, Síria ou Líbano, o que por sua vez permitia que essas

mulheres obtivessem diplomas em medicina, farmácia, engenharia,

direito ou outras disciplinas.

Viva la vulva: 'retiro sensual' para mulheres promove masturbação

como caminho para autoconhecimento

Envenenamento intencional de 600 meninas deixa escolas em

alerta no Afeganistão

Judith Butler: 'ensino de gênero nas escolas deveria ser obrigatório'

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Essas jovens mulheres qualificadas, corajosas e abertas para o

mundo lançaram uma onda de emancipação feminina e social,

ainda que nosso conhecimento do pensamento feminista se

limitasse aos artigos publicados nos jornais egípcios por algumas

pioneiras como Al-Said, Suhair al Qalamawi e Durriya Shafik —

cujos escritos não iam muito além de temas como planejamento

familiar, casamento precoce e poligamia.

[Aulas de biologia em universidade no afeganistao nos anos 1950|

Wikicommons]

No entanto, logo depois de nossa derrota para Israel em 1967,

regimes árabes ditatoriais hostis ao socialismo, apoiados pelos

Estados Unidos, aliaram-se a grupos islâmicos fundamentalistas,

generosamente financiados. Todos aqueles que vestissem o

famoso “traje islâmico”, por exemplo, receberiam um auxílio

mensal de 15 dinares jordanianos para o homem (R$ 70) e 10 para

a mulher. Os homens deveriam vestir dishdasha ou jellabiya,

sandálias de couro e manter a barba comprida; as mulheres, por

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sua vez, precisavam vestir lenço sobre a cabeça e uma longa

túnica que chegasse aos dedos dos pés. Os beneficiários desse

auxílio também ganhavam um rosário e uma linda edição do

Corão, além de um lindo tapete de reza.

*

As organizações islâmicas priorizaram como alvo as jovens já

ilustradas, pois exerceriam influência sobre as outras. Também

quiseram atingir as donas de casa. Depois, a atenção se voltou

para as mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não poderia

ter funcionado sem a ajuda (notoriamente financeira) dos regimes

árabes que manifestaram sua lealdade – ou submissão – aos

Estados Unidos ao se alinharem com sua estratégia, na esperança

de que o islamismo triunfasse sobre os socialistas e progressistas

no seio de nossas sociedades.

Contudo, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas

vestimentas, auxílios mensais e lugares de encontro (mesquitas).

Com o objetivo de conquistar os espíritos em escolas primárias e

secundárias, nomearam para os cargos-chave dessas instituições

— em vez de professores — islâmicos fundamentalistas, homens

ou mulheres, cuja missão seria imprimir a ideologia da religião na

psique e no intelecto dos estudantes. Para completar essa

educação, os adolescentes seguiram um treinamento que lhes

inculcava a disciplina militar e as artes marciais em campos

instalados nos desertos árabes, assim como no Afeganistão e no

Paquistão.

Wikicommons

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Afegãs durante aulas em Herat

Ironicamente, os Estados Unidos e seus aliados caíram na própria

armadilha: o mal já estava feito, e as organizações

fundamentalistas começaram a projetar um regime islâmico hostil

ao Ocidente.

Atualmente, passamos por uma terrível crise intelectual, social e

política. Somos ameaçados por todos os lados sem saber qual das

ameaças é mais brutal. De um lado, o Ocidente, com suas

megalomanias, exploração e colonização; de outro, o islamismo,

cujas supostas inovações nos levaram ao tempo dos haréns e da

opressão. Em outros termos, podemos escolher entre um Ocidente

sinônimo de liberdade, laicidade e ciência, mas também de

colonialismo, e um islã impiedoso, que apela para seus seguidores

resistirem ao Ocidente, mas se opõe à ciência, à modernidade,

assim como à emancipação feminina e social.

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E esse caos geral não se limita à nossa região; também toca o

próprio Ocidente. Assim, o véu e o xador tornaram-se símbolos de

temor e aversão, a ponto de certos países proibirem vestimentas

islâmicas e o uso do véu em escolas e locais públicos. Atualmente,

somos alvo de preconceitos racistas.

Wikicommons

Mulheres em fábrica de tecido em Kabul

De minha parte, declaro àqueles que compartilham dessa visão

estreita e egoísta que somos mais próximas deles do que

imaginam. Não costumamos repetir que o planeta se transformou

em uma aldeia? Como ondas humanas, desaguamos em suas

praias. Façam o que quiserem para limitar a imigração e

intensificar os controles, sempre encontraremos um meio de

chegar a vocês, superar os obstáculos e afirmar nossa presença.

Na realidade, já estamos aí. Vocês podem negar nossa presença,

mas estamos ao seu redor, somos parte do seu mundo.

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Não tenho nenhuma intenção de provocar raiva. Simplesmente

quero defender minha causa de maneira crua e concreta. Desejo

que um leitor ocidental possa sentir o que eu sinto, temer o que eu

temo; quero que tenha consciência da dor que seus governantes

colonialistas infligem a nossos povos, da dor que infligem a mim.

Seus meios de comunicação me transformam em estereótipo,

condenam-me, falsificam-me. Quando apresentam uma mulher de

burca como a encarnação da mulher árabe, eles subentendem que

a escritora que sou, assim como milhares de outras mulheres

instruídas e milhões de mulheres árabes modernas — muçulmanas

e cristãs — que vivem em países árabes são apenas aquilo: uma

sombra cabisbaixa, um corpo sem forma, incapaz de pensar e se

expressar. Mas eles se enganam. A imagem de uma mulher de

burca não me enche de medo e terror. Tenho medo, sim, de que

um dia essa imagem represente minha filha, minhas netas ou a

mim mesma em um regime árabe sinistro, mantido na ignorância e

por manobras cujo objetivo é nos conservar como somos há muito

tempo: uma jazida de petróleo a serviço do mercado ocidental.

*Sahar Khalifeh é escritora palestina e autora, entre outros livros,

de Un printemps très chaud [Uma primavera muito quente] (Seuil,

2008). Este texto foi adaptado de uma conferência pronunciada no

SOAS (Centro de Estudos Palestinos da Escola de Estudos

Orientais e Africanos), na Universidade de Londres, em 5 de março

de 2015.

** Texto publicado originalmente pelo site do Le Monde

Diplomatique Brasil

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