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As mulheres árabes na visão ocidental: preconceito inaceitável
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operamundi.uol.com.br
A armadilha das imagens ocidentaisque representam as mulheres árabes
Criaturas frágeis e oprimidas que desaparecem sob o xador ou a
burca. Essa é a eterna representação das mulheres árabes
proposta pela mídia ocidental, misturando despreocupadamente
contextos e nacionalidades
É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher
encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, que não herda
nada, nem sequer o nome de família, o sexo que pode trazer
decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento com
uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um
menino. Para a infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da
família, ou seja, a quinta inconveniente e, para minha mãe, a
quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio, que triunfou
dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher
maldita. Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que
minha tia (e que outras mulheres da família), todos a consideravam
a menos fecunda, a que não podia trazer bons frutos ao mundo.
Flickr/CC/World Bank Photo Collecti
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Afegã usando burca; representação da mulher árabe no ocidente é
comumente feita com burcas, xador ou Niqab
Herdei esses preconceitos e essas teorias. Desde a infância,
escuto que as mulheres – da família, do bairro, do mundo inteiro –
são impotentes, indefesas, condenadas pela natureza a
permanecerem fracas.
Há alguns meses, contudo, minha irmã menor descobriu que eu
era a única pessoa da família Khalifeh a figurar na enciclopédia
palestina. Com um suspiro de alívio, ela sublinhou: “A enciclopédia
não menciona meu pai, minha mãe, nem meu irmão ou meu tio e
seus dez filhos milagrosos, nem outro homem da família; apenas
você!”.
Como mulher árabe, já passei por diferentes fases. Fui
transformada por certas influências e contribuí em parte para
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evoluções da nossa sociedade. Mesmo as famílias árabes mais
conservadoras agora enviam suas filhas à escola. Quando
formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras,
farmacêuticas, escritoras, jornalistas, músicas ou artistas. Hoje,
muitas parecem indispensáveis, mais fortes, mais criativas e mais
importantes que os homens.
Contudo, os meios de comunicação ocidentais nos representam
como criaturas horríveis, envelopadas em xadores, escondidas sob
máscaras de couro, como cativas de um harém dissimulado atrás
dos véus. Pergunto-me por que eles nos veem dessa forma,
fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Eles realmente
acreditam que somos criaturas diferentes do resto do gênero
feminino, incapazes de mudar?
Na escola, eu tinha um professor que falava sempre em
“mudança”, usando diferentes tons e sentidos da palavra de acordo
com os aspectos da realidade árabe que abordava: a redistribuição
da riqueza, a condição das mulheres ou os regimes políticos
obsoletos. Todos ao meu redor o respeitavam e o admiravam; os
mais jovens queriam ser como ele, e os menos jovens se
mostraram dispostos a escondê-lo quando foi perseguido pela
polícia.
Esse professor maravilhoso não era o único a falar de mudança e
justiça. A maioria das pessoas instruídas acreditava nessas ideias
e as defendia. Assim como ele, milhares de homens esclarecidos
foram perseguidos pela polícia ou padeceram em prisões dos
regimes apoiados e subvencionados pelas potências inglesa,
francesa e depois norte-americana.
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O nacionalismo árabe conheceu seu auge durante os anos 1950 e
1960. Nossas ruas ferviam e transbordavam esperanças de
transformação. Adotamos uma atitude rebelde e crítica em relação
aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Os ideais de
libertação e justiça social estão em nossa literatura, nosso teatro,
nossos cantos, nossa música e até nas expressões que usamos na
vida cotidiana. A literatura do mundo inteiro irrigou nossa cultura.
Nossas bibliotecas e nossas ruas regurgitam livros que apelam à
libertação, revolução e mudança: literatura existencialista,
socialista, negra.
Esse entusiasmo chegava a todos, até aos camponeses iletrados e
às mulheres, que começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares
delas foram estudar na universidade; algumas se engajaram em
partidos políticos. Não apenas não usavam mais o véu, como
também passaram a se vestir com outras roupas, minissaia. Por
mais inacreditável que pareça, dançamos rock’n’roll e twist, apesar
de nosso ódio pelos ocidentais. Queríamos viver como eles, sem
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que para isso precisássemos ser dominados.
[Mulheres no Afeganistão em 1927| Fonte: Wikicommons]
Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo
Ocidente, conseguiu derrotar o dirigente egípcio Gamal Abdel
Nasser, em 1967. Essa derrota – momento em que os norte-
americanos e todos os seus aliados regionais aproveitaram para
enfraquecer o movimento rebelde – significou também a de nosso
movimento nacional e nossas convicções socialistas. Eles
apoiaram maciçamente o islamismo – com milhões de dólares –
como estratégia para abafar o nacionalismo progressista. A
Irmandade Muçulmana, até então vista com certa indiferença pela
população, subiu ao poder. A situação de nossa região nos anos
1970 e 1980 era similar à do Afeganistão quando os norte-
americanos apoiaram militarmente os islâmicos, em particular
Osama bin Laden, para conter os comunistas.
As instituições e os meios de comunicação ocidentais, seja a
imprensa escrita ou a televisão, o cinema ou as universidades,
apresentam a mulher árabe como uma criatura com véu dos pés à
cabeça, cujos olhos nem sequer ficam à mostra. Supõe-se que
elas não são capazes de respirar ou pensar sob o xador,
condenando-as a ser sombras ambulantes que erram pela vida
como feiticeiras ou fantasmas aterradores.
As vestes da criatura que mulheres como eu encarnam aos olhos
ocidentais são chamadas de “traje islâmico”. Contudo, estou
convencida de que esse traje não é islâmico ou árabe: trata-se de
uma criação do Ocidente, uma manifestação vergonhosa de seu
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imperialismo.
*
Minha mãe usava um véu transparente negro que cobria mais ou
menos seu rosto e seus cabelos, mas a deixava ver e respirar. O
resto de sua roupa consistia em uma saia ou vestido simples que
chegava até os joelhos, com um colete justo que desenhava seus
seios e sua cintura. Nada a ver com o que hoje é considerado
“traje islâmico” – que transforma o corpo feminino em saco informe,
massa sombria, coluna de fumaça.
No início dos anos 1950, minha mãe engajou-se no movimento
sufur (pelo desuso do véu), ao lado de muitas outras mulheres de
sua geração. Algumas eram como ela, oriundas de classes médias
de grandes cidades árabes; outras, menos privilegiadas e de
vilarejos. Basta assistir às gravações de shows da cantora egípcia
Umm Kulthum ou de outros artistas da mesma época para
constatar que nenhuma mulher da plateia veste esse “traje”.
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[Mulheres no transporte público em Kabul, Afeganistão nos anos
1950]
A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou
uma degradação da situação econômica, e isso teve um grande e
direto impacto sobre as mulheres. Milhares de famílias que
perderam suas terras, suas casas e cujos maridos morreram em
combates precisaram afastar as mulheres da esfera doméstica
para que pudessem trabalhar ou estudar.
Nessa época, milhares de jovens palestinas instruídas começaram
a ser vistas viajando sem lenço, morando sozinhas sem ser
casadas, e ainda assim conservando a honra diante de seus
próximos e da sociedade: elas ajudavam a suprir as necessidades
de famílias de baixa renda. Descrevi a condição dessas mulheres
em meu romance “A herança” (sem tradução, 1997). Com o tempo,
não somente se passou a admitir, como também a ser bem-visto,
que elas financiassem os estudos universitários de suas protegidas
no Egito, Síria ou Líbano, o que por sua vez permitia que essas
mulheres obtivessem diplomas em medicina, farmácia, engenharia,
direito ou outras disciplinas.
Viva la vulva: 'retiro sensual' para mulheres promove masturbação
como caminho para autoconhecimento
Envenenamento intencional de 600 meninas deixa escolas em
alerta no Afeganistão
Judith Butler: 'ensino de gênero nas escolas deveria ser obrigatório'
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Essas jovens mulheres qualificadas, corajosas e abertas para o
mundo lançaram uma onda de emancipação feminina e social,
ainda que nosso conhecimento do pensamento feminista se
limitasse aos artigos publicados nos jornais egípcios por algumas
pioneiras como Al-Said, Suhair al Qalamawi e Durriya Shafik —
cujos escritos não iam muito além de temas como planejamento
familiar, casamento precoce e poligamia.
[Aulas de biologia em universidade no afeganistao nos anos 1950|
Wikicommons]
No entanto, logo depois de nossa derrota para Israel em 1967,
regimes árabes ditatoriais hostis ao socialismo, apoiados pelos
Estados Unidos, aliaram-se a grupos islâmicos fundamentalistas,
generosamente financiados. Todos aqueles que vestissem o
famoso “traje islâmico”, por exemplo, receberiam um auxílio
mensal de 15 dinares jordanianos para o homem (R$ 70) e 10 para
a mulher. Os homens deveriam vestir dishdasha ou jellabiya,
sandálias de couro e manter a barba comprida; as mulheres, por
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sua vez, precisavam vestir lenço sobre a cabeça e uma longa
túnica que chegasse aos dedos dos pés. Os beneficiários desse
auxílio também ganhavam um rosário e uma linda edição do
Corão, além de um lindo tapete de reza.
*
As organizações islâmicas priorizaram como alvo as jovens já
ilustradas, pois exerceriam influência sobre as outras. Também
quiseram atingir as donas de casa. Depois, a atenção se voltou
para as mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não poderia
ter funcionado sem a ajuda (notoriamente financeira) dos regimes
árabes que manifestaram sua lealdade – ou submissão – aos
Estados Unidos ao se alinharem com sua estratégia, na esperança
de que o islamismo triunfasse sobre os socialistas e progressistas
no seio de nossas sociedades.
Contudo, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas
vestimentas, auxílios mensais e lugares de encontro (mesquitas).
Com o objetivo de conquistar os espíritos em escolas primárias e
secundárias, nomearam para os cargos-chave dessas instituições
— em vez de professores — islâmicos fundamentalistas, homens
ou mulheres, cuja missão seria imprimir a ideologia da religião na
psique e no intelecto dos estudantes. Para completar essa
educação, os adolescentes seguiram um treinamento que lhes
inculcava a disciplina militar e as artes marciais em campos
instalados nos desertos árabes, assim como no Afeganistão e no
Paquistão.
Wikicommons
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Afegãs durante aulas em Herat
Ironicamente, os Estados Unidos e seus aliados caíram na própria
armadilha: o mal já estava feito, e as organizações
fundamentalistas começaram a projetar um regime islâmico hostil
ao Ocidente.
Atualmente, passamos por uma terrível crise intelectual, social e
política. Somos ameaçados por todos os lados sem saber qual das
ameaças é mais brutal. De um lado, o Ocidente, com suas
megalomanias, exploração e colonização; de outro, o islamismo,
cujas supostas inovações nos levaram ao tempo dos haréns e da
opressão. Em outros termos, podemos escolher entre um Ocidente
sinônimo de liberdade, laicidade e ciência, mas também de
colonialismo, e um islã impiedoso, que apela para seus seguidores
resistirem ao Ocidente, mas se opõe à ciência, à modernidade,
assim como à emancipação feminina e social.
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E esse caos geral não se limita à nossa região; também toca o
próprio Ocidente. Assim, o véu e o xador tornaram-se símbolos de
temor e aversão, a ponto de certos países proibirem vestimentas
islâmicas e o uso do véu em escolas e locais públicos. Atualmente,
somos alvo de preconceitos racistas.
Wikicommons
Mulheres em fábrica de tecido em Kabul
De minha parte, declaro àqueles que compartilham dessa visão
estreita e egoísta que somos mais próximas deles do que
imaginam. Não costumamos repetir que o planeta se transformou
em uma aldeia? Como ondas humanas, desaguamos em suas
praias. Façam o que quiserem para limitar a imigração e
intensificar os controles, sempre encontraremos um meio de
chegar a vocês, superar os obstáculos e afirmar nossa presença.
Na realidade, já estamos aí. Vocês podem negar nossa presença,
mas estamos ao seu redor, somos parte do seu mundo.
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Não tenho nenhuma intenção de provocar raiva. Simplesmente
quero defender minha causa de maneira crua e concreta. Desejo
que um leitor ocidental possa sentir o que eu sinto, temer o que eu
temo; quero que tenha consciência da dor que seus governantes
colonialistas infligem a nossos povos, da dor que infligem a mim.
Seus meios de comunicação me transformam em estereótipo,
condenam-me, falsificam-me. Quando apresentam uma mulher de
burca como a encarnação da mulher árabe, eles subentendem que
a escritora que sou, assim como milhares de outras mulheres
instruídas e milhões de mulheres árabes modernas — muçulmanas
e cristãs — que vivem em países árabes são apenas aquilo: uma
sombra cabisbaixa, um corpo sem forma, incapaz de pensar e se
expressar. Mas eles se enganam. A imagem de uma mulher de
burca não me enche de medo e terror. Tenho medo, sim, de que
um dia essa imagem represente minha filha, minhas netas ou a
mim mesma em um regime árabe sinistro, mantido na ignorância e
por manobras cujo objetivo é nos conservar como somos há muito
tempo: uma jazida de petróleo a serviço do mercado ocidental.
*Sahar Khalifeh é escritora palestina e autora, entre outros livros,
de Un printemps très chaud [Uma primavera muito quente] (Seuil,
2008). Este texto foi adaptado de uma conferência pronunciada no
SOAS (Centro de Estudos Palestinos da Escola de Estudos
Orientais e Africanos), na Universidade de Londres, em 5 de março
de 2015.
** Texto publicado originalmente pelo site do Le Monde
Diplomatique Brasil
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