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A AUTONOMIA DO CRIME ANTECEDENTE NO CRIME DE LAVAGEM DE
DINHEIRO1
THIANA BORCHHARDT MÜLLER2
RESUMO
As operações de lavagem de dinheiro possuem dimensões transnacionais. Trata-se um processo detalhado e dinâmico, onde o agente criminoso torna aparentemente lícitos bens, direitos e valores provenientes de crimes antecedentes. Com o objetivo de combater essa atividade criminosa, em 1988, na Áustria, foi criada a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida como Convenção de Viena. O Brasil ratificou essa Convenção, tornando-se signatário, em 26 de junho de 1991, obrigando-se a tipificar, no ordenamento jurídico nacional, o crime de lavagem de dinheiro. Ao elaborar a lei, o legislador brasileiro optou por uma legislação, de lavagem de dinheiro, de segunda geração, estabelecendo um rol taxativo de crimes antecedentes, que estão elencados no artigo 1º, da Lei 9.613 de 3 de março de 1998. Este rol taxativo excluiu da lista de crimes antecedentes, inúmeros crimes considerados graves e que possuem grande retorno financeiro, exigindo uma modificação e adequação urgente da Lei, para incluir tais delitos. Outro grave problema da Lei de Lavagem de Dinheiros refere-se às questões relativas à prova dos crimes antecedentes para o recebimento da denúncia e do processo e julgamento ação penal proposta, de acordo com o artigo 2º, II, § 1º da referida Lei. Pelo que será demonstrado concluir-se-á que o crime de lavagem de dinheiro mostra-se uma ameaça à estabilidade econômica mundial, por isso a necessidade, urgente, de uma adequação e aperfeiçoamento da legislação vigente, buscando uma maior eficiência no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Crime Organizado. Crime Antecedente. Lei 9.613/98. INTRODUÇÃO
A criminalidade organizada, mantém suas raízes em épocas distantes, porém
recentemente adquiriu proporções jamais imaginadas: é capaz de produzir riquezas
e dar ensejo a uma circulação de capitais em torno da Terra maior que o produto
interno de diversos países.
1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a
obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Giovani Agostini Saavedra, pelo Prof. Elton Somensi de Oliveira, e pelo Prof. Álvaro Filipe Oxley da Rocha, em 30 de novembro de 2010. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS. E-mail: [email protected]
2
As atividades praticadas por tais organizações criminosas são diversas,
desde a produção e comercialização de drogas, exploração da prostituição, tráfico
de armas, de pessoas e de animais, pirataria, corrupção, até a exploração de jogos
de azar, comércio irregular de madeira, entre outros.
Muitas dessas atividades são apoiadas por parcelas significativas da
sociedade, que através do consumo de produtos ilícitos ou do apoio às ideologias,
acaba consentindo e fomentando tais atuações. Esse consentimento, juntamente
com a corrupção e o ingresso de integrantes dessas organizações criminosas às
estruturas políticas e administrativas governamentais dificulta extraordinariamente o
combate ao crime organizado.
A lavagem de dinheiro mostra-se como a atividade-fim destes grupos que,
após gerarem grandes volumes de bens, direitos e valores, através de suas
atividades ilícitas, dão ao dinheiro “sujo”, uma aparência legal, de forma a evitar
qualquer comprometimento com sua origem criminosa.
Diante deste cenário, tendo em vista a dificuldade em combater os crimes
praticados por tais organizações e sendo a lavagem de dinheiro a responsável pela
validação dos recursos obtidos ilicitamente, viabilizando e garantindo a
sobrevivência e o crescimento da criminalidade, chegou-se à conclusão de que este
fenômeno deve ser estudado e entendido para que possa ser efetivamente
combatido.
O legislador brasileiro optou por uma legislação de segunda geração e, ao
tipificar a conduta de lavagem de dinheiro, no artigo 1º da referida Lei, apresenta de
forma taxativa um rol de crimes antecedentes que seriam os únicos possíveis
geradores dos bens, direitos e valores, objeto da lavagem.
É neste momento que surge a grande discussão acerca da autonomia do
crime e lavagem de dinheiro frente aos crimes antecedentes, já que o inciso II, do
artigo 2º da Lei 9.613/98 dispõe que o processo e o julgamento do crime de lavagem
de dinheiro independem do processo e julgamento dos crimes precedentes. Além
disso, o § 1º do mesmo artigo refere que, para o recebimento da denúncia do crime
de lavagem de dinheiro, basta a demonstração de indícios da existência do crime
antecedente.
Assim, imperiosa faz-se uma análise do alcance destes dispositivos legais,
apreciando a autonomia do crime de lavagem de dinheiro em relação ao crime
antecedente com cautela e de forma relativa, exigindo a comprovação da
3
materialidade do crime precedente, para que reste demonstrada a origem ilícita dos
bens, direitos e valores utilizados, ainda que a autoria não seja demonstrada.
1 OS CRIMES ANTECEDENTES À LAVAGEM DE DINHEIRO
De acordo com Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003, p. 38) a lavagem de
dinheiro “consiste em ocultar ou dissimular a procedência criminosa de bens e
integrá-los à economia, com aparência de terem origem lícita”. Assim, a lavagem de
dinheiro é consequência de outro ilícito, não ocorre se não houver crime anterior, do
qual é derivado.
Segundo Alexandre Magno Fernandes Moreira (MOREIRA, 2006, p. 1) há três
gerações de legislação a respeito dos crimes antecedentes, onde a primeira define
apenas o tráfico ilícito de entorpecentes como sendo crime antecedente à lavagem
de dinheiro. A segunda seria um pouco mais ampla, abrangendo outras infrações
penais em um rol taxativo. Na terceira hipótese o sistema jurídico impõe qualquer
infração penal como precedente à lavagem de dinheiro.
Nesse sentido, a legislação brasileira faz parte da segunda geração, pois
prevê nos incisos do artigo 1º um rol taxativo de crimes precedentes à lavagem de
dinheiro, levando em consideração para tanto, a gravidade destes e sua relação
direta com a lavagem de dinheiro. Tal critério exige constante atualização da lei, eis
que a todo o momento podem surgir atividades lucrativas o suficiente para exigirem
a lavagem de ativos.3
Assim preceitua o artigo 1º da Lei 9.613/98:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo e seu financiamento; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante sequestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional; VII – praticado por organização criminosa;
3 MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. Dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro.
Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2010.
4
VIII – praticado por particular contra a administração pública;4
O tráfico ilícito de entorpecentes é um crime que atualmente está previsto no
artigo 33, da Lei n.º 11.343 de 2006, sendo esta infração penal que motivou os
acordos internacionais concernentes à lavagem de dinheiro.
Marco Antônio de Barros destaca a grandiosidade do negócio do narcotráfico
afirmando que, de acordo com cálculos de organismos internacionais, baseados em
estimativas, aproximadamente 500 bilhões de dólares circulam anualmente no
mercado do tráfico de entorpecentes.5
Nota-se que o legislador agiu adequadamente ao seguir os acordos firmados
na Convenção de Viena e tipificar o crime de lavagem de dinheiro e, ao mesmo
tempo, incluir no rol taxativo de crimes antecedentes a prática de tráfico de
entorpecentes, visto tratar-se de um delito altamente lesivo a toda sociedade.
Entretanto, a mesma habilidade não ocorre quando o legislador prevê como
crime antecedente o terrorismo e seu financiamento, visto que ambos não são
tipificados no ordenamento jurídico brasileiro, ainda que haja uma grande
preocupação mundial com o tema.
Assim, embora inserido no artigo 1º, II, da Lei 9613/98, enquanto o terrorismo
não for tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, a opinião da maioria de
doutrinadores é que a efetiva aplicação do artigo, já que estaria ferindo o princípio
da legalidade, constante no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988.
O inciso terceiro da lista de crimes antecedentes é o crime de contrabando ou
tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção.
Sobre este inciso, Rodolfo Tigre Maia (2007) afirma ser dispensável a
inclusão do crime de contrabando no rol taxativo de crimes antecedentes eis que,
não apenas o contrabando de armas, mas todas as variações deste ou de
descaminho configura crime contra a Administração Pública, prevista no inciso V, do
artigo 1º da mesma carta legal.6
4 BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 23 jul. 2010.
5 BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de Capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo por artigo, à lei 9.613/98, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 86/87.
6 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações
às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 75.
5
Contrário a este entendimento Marco Antônio de Barros (2007) afirma que
“altíssimas somas são movimentadas gerando consequências para os sistemas
financeiro e econômico7, tornando-se necessária a punição específica da ocultação
ou dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes direta ou indiretamente do
contrabando de armas, munições ou material destinado à sua produção.
A quarta espécie de crime antecedente é a extorsão mediante sequestro,
crime este previsto no artigo 159 e parágrafos do Código Penal Brasileiro, além das
Leis n.º 8.072/90 e 9.269/96, que fazem deste um crime hediondo.
Apesar da importante inclusão do crime de extorsão mediante sequestro ao
rol taxativo de crimes antecedentes, o legislador não demonstrou a mesma
habilidade ao deixar de fora crimes contra o patrimônio, tão ou mais importante,
como é o caso do latrocínio, além também da receptação e a própria extorsão
indireta.
No que tange ao inciso V, do artigo 1º, da Lei 9.613/98, entende-se que, não
tendo o legislador feito nenhuma restrição, estariam incluídos todos os crimes
previstos no Título XI do Código Penal, que abrange os artigos 312 a 359,
demonstrando uma preocupação maior com a corrupção pública.8
Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003) critica a generalidade do inciso
ao afirmar que “só alguns tipos penais, arrolados nesse mare nostrum de crimes
antecedentes, poderão dar causa ao cometimento da lavagem.” 9
Assim, a solução seria o legislador definir especificamente os crimes que
gostaria de incluir no rol taxativo de crimes antecedentes, tornando-o menos vago e
genérico e mais eficaz.
Os crimes contra o sistema financeiro nacional são essencialmente os
previstos na Lei n.º 7.492 de 16 de junho de 1986, abrangendo todas as
movimentações ilegais de valores e dinheiro originados de delitos que compreendam
o mercado financeiro.10
Willian Terra de Oliveira (1998) entende como positiva a intenção do
legislador em incluir os crimes contra o sistema financeiro nacional no rol de crimes
7 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com
comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 106-107. 8 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:
comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331. 9 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 114. 10
CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331.
6
antecedentes, porém afirma que “O legislador poderia ter incluído outras ordens de
delitos afins, como o abuso de poder econômico ou aqueles que atingem a
economia popular ou a livre concorrência”.11
Contrariamente, Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), entende que
novamente o legislador foi excessivamente genérico, ampliando em demasia o rol de
crimes antecedentes.12
No que se refere ao inciso VII, novamente o legislador inclui no rol crimes
antecedentes um crime que, assim como o terrorismo, não possui tipificação
específica na doutrina jurídica brasileira. É bem verdade que os crimes praticados
por organização criminosa contam com a Lei 9.034/95 que define e regula os meios
de prova e investigação de crimes praticados por quadrilha, bando, organização ou
associação criminosa de qualquer tipo, porém não há, em todo ordenamento, a
definição legal de organização criminosa, o que tornaria inaplicável tal inciso.13
O inciso VIII foi inserido no artigo 1º da Lei 9.613/98 através da Lei n.º 10.467,
de 11 de junho de 2002, quando o legislador resolveu incluir o crime praticado por
particular contra a Administração Pública Estrangeira no rol taxativo de crimes
antecedentes, demonstrando maior cooperação e compromisso com os estados
estrangeiros.
Vê-se que acertadamente agiu o legislador que, desta forma, contribui para a
contenção da criminalidade organizada, impedindo assim a lesividade ao
desenvolvimento social e econômico do país.
2 DA LAVAGEM DE DINHEIRO E SEU CONCEITO
Segundo Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim
(2008) a expressão “lavagem de dinheiro” foi utilizada judicialmente pela primeira
vez, em 1982, durante um tribunal nos Estados Unidos, e foi chamada money
laundering. O termo era utilizado originalmente por organizações mafiosas que
faziam uso de lavanderias automáticas para investir dinheiro de origem Ilícita. De lá
11
CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 331.
12 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 115. 13
PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 116.
7
pra cá, a expressão tomou diferentes formas de acordo com a linguagem e cultura
de cada país.14
O nomen iuris utilizado no Brasil, está aclarado na Exposição de Motivos da
Lei 9.613/98, vejamos:
A expressão „lavagem de dinheiro‟ já está consagrada no glossário das atividades financeiras e na linguagem popular, em consequência de seu emprego internacional (money laudering). Por outro lado, conforme o Ministro da Justiça teve oportunidade de sustentar em reunião com seus colegas de língua portuguesa em Maputo (Moçambique), a denominação ‘branqueamento’, além de não estar inserida no contexto da linguagem formal ou coloquial em nosso País, sugere a inferência racista do vocábulo, motivando estéreis e inoportunas discussões.
15
Importante ressaltar também, que muito embora se tenha popularizado a
expressão “lavagem de dinheiro”, o nosso ordenamento jurídico inclui, além da
lavagem da moeda em si, outros ativos, como bens, direitos e valores (BARROS,
2003, p. 45).
A lavagem dinheiro pode ser definida como “o processo composto por fases
realizadas sucessivamente, que tem por finalidade introduzir na economia ou no
sistema financeiro, bens, direitos, ou valores procedentes dos crimes previstos no rol
do artigo 1º, caput, da Lei n. 9.613/1998, ocultando essa origem delitiva”. 16
O COAF, Conselho de Controle de Atividades Financeiras17, define a lavagem
de dinheiro da seguinte forma:
O crime de lavagem de dinheiro caracteriza-se por um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita e que se desenvolvem por meio de um processo dinâmico que envolve, teoricamente, três fases independentes que, com frequência, ocorrem simultaneamente.
18
14
BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 28.
15 Exposição de Motivos n. 692, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 10 ago. 2010.
16 BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 28.
17 COAF é a Unidade de Inteligência Financeira do Brasil.
18 COAF. Sobre a lavagem de dinheiro. Disponível em:
<https://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1>. Acesso em: 13 ago. 2010.
8
De todas as formas, praticamente todos os autores que analisaram o
fenômeno da lavagem de dinheiro acabam por defini-lo de maneira semelhante,
sempre dando ênfase à ideia de processo ou conjunto de atos, onde o objetivo final
é a reintegração do objeto da lavagem no sistema econômico legal.
Percebe-se que a lavagem de dinheiro é um processo minucioso e de grande
movimentação, onde o agente criminoso, através de um conjunto de ações, torna
aparentemente lícito, o capital proveniente dos crimes elencados no artigo 1º da lei
9.613/98.
3. ETAPAS DA LAVAGEM DE DINHEIRO
Segundo Willian Terra de Oliveira (1998) “a conduta de lavagem de dinheiro
está composta por um complexo de atos, uma pluralidade de comportamentos
geralmente intrincados e fracionados, direcionados à conversão de valores e bens
ilícitos em capitais lícitos e plenamente disponíveis por seus titulares.” 19
Existem diversas denominações e fases descritas em toda doutrina,
entretanto o sistema adotado pela legislação brasileira e pelo COAF é também o
procedimento preferido dos doutrinadores, criado pelo GAFI (Grupo de Ação
Financeira Internacional) e engloba três fases ou etapas. Tais etapas podem,
inclusive, ocorrer simultaneamente já que não há uma separação rígida ou
cronologia entre elas sendo possível, portanto, que haja a consumação do crime de
lavagem de dinheiro sem que estejam concluídas as três fases.
Em suma, atualmente o procedimento da lavagem de capitais tornou-se
particularmente complexo devido à grande organização e sofisticação de seus
agentes criminosos. Assim, faz-se necessária uma análise das três fases na conduta
de lavagem de dinheiro.
A primeira etapa de um clássico processo de lavagem de dinheiro é a
ocultação que segundo André Luís Callegari (2006), “corresponde à colocação de
material proveniente do crime e pode ocorrer através de uma série de operações. É
19
CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 320.
9
nesta fase que os criminosos procuram livrar-se materialmente das importantes
somas de dinheiro que geraram suas atividades ilícitas.” 20
A segunda fase, chamada dissimulação, consiste em ocultar a origem dos
produtos ilícitos, através da realização de diversas operações financeiras. 21 Willian
Terra de Oliveira afirma que “o objetivo principal do agente é distanciar ao máximo o
dinheiro de sua origem, apagando os vestígios de sua obtenção”.22
Após a dissimulação, temos a etapa final do esquema da lavagem de
dinheiro, a chamada integração. Trata-se da fase onde, com a aparente licitude do
dinheiro, decorrente do cumprimento das etapas anteriores, este será novamente
incluído na economia legal e no sistema financeiro.23
O entendimento doutrinário em sua maioria afirma que nesta etapa seria muito
difícil distinguir o dinheiro legal do ilegal, causando maior lesão à ordem econômica.
4 CONVENÇÕES E ORGANISMOS INTERNACIONAIS
A transnacionalidade e a gravidade da lavagem de dinheiro exigiram das
autoridades internacionais uma sincronização da legislação internacional, bem como
uma cooperação no sentido de reprimir e prevenir a prática. Diante disso, a união de
esforços internacionais resultou na elaboração de diversas Convenções, Tratados,
Resoluções, Recomendações entre outros.
O primeiro destes documentos foi a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida como Convenção de Viena,
aprovada na Áustria em 1988, com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro
das organizações criminosas, principalmente aquelas ligadas ao tráfico de drogas.
A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 26 de junho de 1991, através do
Decreto n.o 154. A partir de então o país obrigou-se a tomar as medidas citadas,
tipificando as condutas ligadas ao tráfico internacional de entorpecentes, de acordo
com o artigo 3º da Convenção, que prevê também: a criação de normas processuais
referentes à jurisdição e competência; o confisco de drogas ilícitas e o dinheiro
20
CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 45.
21 CALLEGARI, André Luís. Imputação Objetiva: lavagem de dinheiro e outros temas de Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 52-53.
22 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 321.
23 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 48.
10
proveniente desta; a erradicação das plantações de substâncias psicotrópicas; a
colaboração com as investigações internacionais; etc.
Em 1989 foi criado, pelo G-7, com o objetivo de combater a lavagem de
dinheiro, o GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional que, em abril de 1990, já
com a adesão de outros Estados, publicou um documento com 40 recomendações,
que regulavam questões penais, financeiras e de cooperação internacional, todas
referentes à lavagem de dinheiro e, embora não tenha caráter obrigatório, é tido
como modelo de ações internacionais. 24
Em 1995 foi criado o Grupo de Egmont, em Bruxelas, com o objetivo de criar
uma rede internacional para congregar as unidades financeiras de inteligência de
cada país para, através do intercâmbio de informações, promover um efetivo
combate à lavagem de dinheiro, descobrindo a rota do dinheiro proveniente de
crime, principalmente o narcotráfico. Em maio de 1999 o Conselho de Controle de
Atividades Financeiras (COAF) passou a integrar o Grupo Egmont.25
5 LEI 9.613/98
Muito embora o Brasil tenha ratificado, através do Decreto n.o 154, a
Convenção de Viena, em 1991, onde se obrigou a tomar as medidas estabelecidas
para o combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro proveniente deste
crime, só cumpriu o compromisso, no âmbito interno, sete anos depois, quando em
03 de março de 1998 editou a Lei n.º 9.613, tipificando o crime de lavagem de
dinheiro.
Segundo a Exposição de Motivos n.º 692/MJ o termo “lavagem de dinheiro” foi
assim utilizado pelo legislador brasileiro por se tratar de um vocábulo que denota
limpeza, conduta caracterizada pela transformação do dinheiro sujo em dinheiro
limpo e, também, pela natureza da ação praticada. Além disso, considerou o fato de
que a expressão “lavagem de dinheiro” ser consagrada no rol de expressões das
atividades financeiras e na linguagem popular.26
24
BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 19/20.
25 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 20/21.
26 Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 6 set. 2010.
11
O artigo 1º da Lei 9.613/98 elenca o rol taxativo de crimes antecedentes.
Sobre a amplitude destes, a Exposição de Motivos n.º 692/MJ dispõe que o
legislador brasileiro optou pela legislação de segunda geração, assim como
Alemanha, Espanha e Portugal, ou seja, um rol taxativo, porém mais amplo que as
legislações de primeira geração, as quais preveem somente o tráfico de drogas
como crime antecedente, mas não tão diversificado quanto Estados Unidos, França,
Bélgica, Itália e Suíça, que admitem como crime antecedente qualquer delito,
formando as legislações de terceira geração.27
A Lei n.º 9.613/98 previu ainda a criação, no Brasil, do Conselho de Controle
de Atividades Financeiras (COAF), uma espécie de unidade de inteligência
financeira, com o objetivo de proteger a economia nacional e também de cooperar
no combate à lavagem de dinheiro a nível internacional, eis que está ligado ao
Grupo Egmont e é membro do GAFI – Grupo de Ação Financeira sobre lavagem de
dinheiro. Em 2005, o COAF elaborou, juntamente com instituições financeiras, um
conjunto de legislações referentes à lavagem de dinheiro e, na apresentação desta
coletânea, o então Presidente do COAF, Antônio Gustavo Rodrigues, coloca o
COAF como uma unidade de gestão com nível de secretaria, uma unidade de
inteligência consolidada. 28
Por fim, sem discutir o mérito de eficácia desta lei, o importante é que o Brasil
está inserido numa política internacional de combate à criminalidade organizada de
natureza econômica e, com o advento da Lei 9.613/98, está atendendo a uma
exigência mundial, tipificando a lavagem de dinheiro, o início de um caminho longo a
ser percorrido.
6 BEM JURÍDICO
6.1 O BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
27
Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 6 set. 2010.
28 Lavagem de dinheiro: legislação brasileira/[organizado por] Conselho de Controle de Atividades
Financeiras, Federação Brasileira de Bancos. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/publicacoes/downloads/LivroCoaf2005.pdf>. Acesso em: 6 set. 2010.
12
Numa concepção geral de bem jurídico, no que concerne ao crime de
lavagem de dinheiro, é importante destacar a intenção do direito penal que busca,
de alguma forma, proteger bens jurídicos supra-individuais, ou seja, de interesse
social, ainda que haja lesão ao patrimônio pessoal muitas vezes.
Nesse contexto a doutrina também se mostra confusa quanto à definição do
bem jurídico protegido especificamente no crime de lavagem de dinheiro. Entretanto,
a maioria entende que o bem juridicamente protegido pela lei é a segurança da
ordem econômico-financeira, eis que a introdução de dinheiro proveniente de crimes
no sistema financeiro nacional e internacional causaria graves consequências para o
mesmo, impondo a coibição da prática.
Na edição da Lei 9.613/98 o legislador, ao escrever sua ementa, o fez da
seguinte forma: “dispõe sobre os crimes de „lavagem‟ ou ocultação de bens, direitos
e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos
nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá
outras providências.” 29
Da leitura da lei, podemos entender que os bens jurídicos protegidos seriam a
administração da justiça, a ordem socioeconômica, os bens jurídicos tutelados pelos
crimes antecedentes, dentre outros.
Alguns doutrinadores consideram a existência de apenas um bem
juridicamente protegido, entretanto outros admitem a “pluriofensividade”, ou seja, a
lei de lavagem de dinheiro tutelaria diferentes bens jurídicos. Vamos analisar aqui,
as três principais correntes: o mesmo bem jurídico protegido pelo crime antecedente,
a administração da justiça e a ordem socioeconômica.
Na primeira delas, o objeto de proteção no crime de lavagem de dinheiro é o
mesmo tutelado pelo crime antecedente de forma que, reforçando a proteção ao
bem anteriormente vulnerado, estar-se-ia evitando a utilização dos bens.
Essa corrente, inicialmente, estaria ligada apenas ao delito de tráfico ilícito de
entorpecentes, utilizando a tipificação da lavagem de dinheiro somente como mais
29
BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 08 set. 2010.
13
uma forma de coibir a prática, onde a saúde pública seria o bem juridicamente
tutelado e assim sucessivamente quanto aos demais delitos antecedentes.30
Na opinião de Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), este
entendimento não é o mais correto, pois pretende criar um supertipo, que atuaria na
ineficácia de outro tipo penal.31
Outros doutrinadores defendem a ideia de que a administração da justiça
seria o bem atingido pela transformação do dinheiro advindo de práticas delituosas
em capital com aparência lícita, como justifica Marcelo Batlouni Mendroni (2006):
[...] na medida em que em que visa suplementar a eficiência na apuração e punição das infrações penais que, reconhecidamente pelo legislador, abalam sobremaneira a ordem pública e não conseguem encontrar, por si sós, a resposta adequada da própria administração de justiça com vistas à
defesa da sociedade.32
Contrariamente, Marco Antonio de Barros (2007) entende que embora os
tipos penais da lavagem de dinheiro contenham elementos das atividades ilícitas
para favorecimento real e pessoal, isto não seria suficiente para incluir a
administração da justiça no rol de bens juridicamente tutelados, eis que estaria a
ferir o princípio da ofensividade33, pois não havendo como mensurar a lesividade do
bem jurídico, não haveria critério delimitador à aplicação do tipo.
A maior parte da doutrina entende, porém, como sendo o bem jurídico
tutelado pela lei 9613/98, a ordem socioeconômica. É o posicionamento aceito pela
maior parte dos doutrinadores e também o mais convincente, visto que, como já
referido, a lavagem de dinheiro movimenta quantias exorbitantes de capital ilícito,
causando impactos descomunais em todas as camadas da economia mundial.
Na opinião de Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo (2003), esta também se
mostra a mais convincente das posições doutrinárias, já que o exercício da atividade
criminosa na lavagem de dinheiro atinge a livre iniciativa, a propriedade, a
concorrência, o consumidor, o meio ambiente, o patrimônio histórico, dentre outros
aspectos da ordem socioeconômica de vários países e do sistema financeiro
30
BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 30.
31 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 74.
32 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 30.
33 BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas: com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55.
14
mundial. Além disso, a lavagem de dinheiro seria um obstáculo na atração do capital
estrangeiro para os países latino-americanos, prejudicando o desenvolvimento
econômico.34
Para André Luís Callegari (2008) o problema da teoria que adota a ordem
socioeconômica como sendo o bem jurídico tutela pela lavagem de dinheiro é que
este trata-se de um bem jurídico não tangível e que muitas vezes a ordem
econômica acaba fortalecendo-se com a lavagem de dinheiro, pois os valores
advindos desta fomentariam a economia através dos mercados imobiliários,
aplicações financeiras, bolsas etc.35
Enfim, resta evidente uma dificuldade secular da definição de bem jurídico,
assim como uma situação de difícil entendimento quando o assunto é o bem jurídico
que a lei 9.613/98 pretendeu proteger ao criminalizar a lavagem de dinheiro.
Conclui-se que a maioria dos autores defende uma posição de
pluriofensividade, destacando a administração da justiça e a ordem socioeconômica
como sendo os bens jurídicos tutelados. Certo é que todas as posições têm prós e
contras e que o mais correto é, diante da forma como se apresenta a atividade
criminosa da lavagem de dinheiro, a proteção supraindividual de bens jurídicos aqui
exposta.
Entretanto, diante dos posicionamentos aqui mencionados, a ordem
socioeconômica realmente nos parece a mais afetada com a prática da lavagem de
dinheiro, sendo capaz de abalar o sistema financeiro mundial.
7. O TIPO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
Com a intenção de combater a lavagem de dinheiro e com base nas
recomendações e normas estabelecidas na Convenção de Viena em 1988, em 3 de
março de 1998 o Brasil editou a Lei 9.613, onde tipificou a lavagem de dinheiro em
seu artigo 1º, in verbis:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
34
PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 77-80.
35 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2008, p. 84.
15
I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; II – de terrorismo e seu financiamento; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV – de extorsão mediante sequestro; V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional; VII – praticado por organização criminosa. VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira; Pena: reclusão de três a dez anos e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo: I – os converte em ativos lícitos; II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. § 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo; II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei. § 3º A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal. § 4º A pena será aumentada de um a dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI do caput deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa. § 5º A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
36
Willian Terra de Oliveira (1998) afirma que a estrutura do artigo primeiro
poderia ser definida da seguinte forma:
a) em um primeiro plano está o caput, complementado pelos incs. I a VII, descrevendo a principal forma de lavagem; b) em seguida temos as formas especiais ou derivadas descritas nos §§ 1.º e 2.º; c) além disso a lei se ocupa em descrever causas ou circunstâncias relacionadas à dosimetria da pena, que irão influenciar no cômputo da resposta penal, quer por representarem institutos como o da tentativa (§ 3.º) que por descreverem situações de especial reprovabilidade (como o conceito de habitualidade - §
36
BRASIL, Presidência da República. Lei n.º 9.613 de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9613.htm>. Acesso em: 18 set. 2010.
16
4.º), ou finalmente por possibilitarem a diminuição da pena ante o reconhecimento do instituto da delação premiada (§ 5.º).
37
O caput do artigo 1º descreve as modalidades de condutas que traduzem a
ideia principal do tipo e indicam a razão do injusto, qual seja: “punir os processos de
atribuição de aparência de licitude a bens, direitos ou valores cuja origem deita
raízes em fatos ilícitos anteriores”.38
7.1 SUJEITOS DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
7.1.1 Sujeito Ativo
Certos tipos penais não indicam diretamente o sujeito ativo do delito, ou seja,
qualquer pessoa pode ser autora do crime, eis que “o legislador não dispôs uma
restrição em relação ao sujeito ativo e, tampouco, exigiu deste alguma
qualificação”.39 Tais tipos penais são chamados de crimes comuns, categoria em
que se encaixa o crime de lavagem de dinheiro.
Nesse sentido, o crime de lavagem de dinheiro pode ser cometido por
qualquer pessoa, sem qualquer condição ou qualificação pessoal ou especial, basta
que pratique qualquer das condutas previstas no caput ou incisos dos parágrafos do
artigo 1º da Lei 9.613/98.
Importante ressaltar que o autor do crime de lavagem de dinheiro não se
confunde com o autor do crime antecedente ou que para ele tenha concorrido, ainda
que não exista previsão expressa na lei, “quando o sujeito do delito prévio realiza
condutas que constituem um novo delito autônomo, tipificado numa lei especial para
penalizar precisamente condutas dirigidas a evitar o descobrimento por parte das
autoridades do delito prévio cometido, não tem aplicação o autofavorecimento
previsto no artigo 349 do Código Penal Brasileiro”.40
37
CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 318/319.
38 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:
comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 319. 39
CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 87.
40 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008, p.91.
17
Ao contrário do Brasil, que seguiu uma tendência internacional, alguns países
como Argentina, Itália, Alemanha, Áustria e Suécia proíbem que o responsável pelo
crime antecedente seja também o sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro.
7.1.2 Sujeito Passivo
O sujeito passivo de um crime, de acordo com Cezar Roberto Bitencourt
(2002), é o titular do bem juridicamente tutelado41. Como vimos, a questão do bem
jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro é bem controversa, assim sujeito
passivo varia de acordo com bem jurídico escolhido.
Marcelo Batlouni Mendroni (2006) afirma que o sujeito passivo é “a sociedade
ou a comunidade local, pelo abalo das estruturas econômicas e sociais, além da
segurança e da soberania dos Estados”.42
Rodolfo Tigre Maia (2007) entende que o sujeito passivo principal é o Estado,
pois a ele cabe a administração da justiça, bem jurídico que, na concepção do autor,
é de imediato lesado pela lavagem de dinheiro, entretanto afirma que poderão existir
outros lesados, de acordo com a natureza do crime antecedente.43
Por fim, visto que o entendimento da grande maioria doutrinária coloca a
ordem econômica como o bem jurídico protegido pela lavagem de dinheiro, conclui-
se ser a sociedade o sujeito passivo deste delito.
7.2 NÚCLEOS DO TIPO
Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2002), tipo é “o conjunto dos elementos
do fato punível descrito na lei penal”, com a função de limitar e individualizar as
condutas humanas relevantes para o direito penal, onde o legislador define
exatamente as ações que ele considera delitivas.44
O caput do artigo 1º da Lei 9.613/98 criminaliza, essencialmente, duas
condutas, que representam o núcleo do tipo, quais sejam ocultar e dissimular. De
41
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163.
42 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006, p. 33.
43 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime –
Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 90. 44
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 197.
18
acordo com Willian Terra de Oliveira (1998, p. 329) nessas condutas estão inseridas
as finalidades do agente, ou seja, a conduta tem o objetivo de “converter ou
transformar, bens direitos ou valores ilícitos em respectivos correspondentes lícitos”.
O autor refere ainda que ocultar é o processo básico do qual faz uso o autor
para converter os proventos obtidos ilicitamente, com o objetivo de esconder a
origem, natureza, localização, propriedade e movimentação ou disposição dos
ativos. Já dissimular seria o segundo passo, onde o objetivo do sujeito ativo é
garantir a ocultação através de manobras e muita atenção por parte do agente, pois
o objetivo aqui é diminuir a visibilidade dos bens ilícitos, tornando mais difícil a
investigação e a fiscalização do Estado, de forma que o agente possa dispor
tranquilamente desses bens (OLIVEIRA, 1998, p. 329).
O caput trata, então, de um tipo penal pluriofensivo misto (comissivo ou
omissivo) alternativo, ou seja, a realização de quaisquer das ações citadas no
núcleo do tipo (ocultar e dissimular), caracteriza o ilícito, sendo que, ocorrida a
subsunção dos dois núcleos do tipo, não estará configurada a pluralidade de crimes.
Isso significa que, havendo a lavagem de inúmeros bens provenientes de um único
crime, haverá apenas uma violação penal, se efetuada concomitantemente.45
O § 1º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98 apresenta formas especiais de agir na
prática da lavagem de dinheiro. No referido parágrafo constam os incisos I a III, os
quais descrevem condutas utilizadas para legalizar os bens, direitos ou valores
resultantes dos crimes antecedentes elencados nos incisos I a VIII do caput.
O inciso I do referido parágrafo, “estabelece como delito a conversão dos
ativos dos ativos ilícitos em lícitos. Essa pode ser considerada a operação mais
frequente nesse tipo de crime”.46 Entretanto, nem toda conversão será considerada
crime como, por exemplo, a simples utilização dos ativos oriundos dos crimes
antecedentes, visto que o tipo exige a consciência do agente da origem ilícita e a
sua intenção na ocultação ou dissimulação (CALLEGARI, 2008, p. 111).
Em relação ao inciso II assim refere André Luís Callegari (2008):
O inciso II pode dar a impressão de que em alguns casos ocorre o delito de favorecimento real ou de receptação, previstos no Código Penal brasileiro. O favorecimento e a receptação não estão previstos como delitos prévios ao
45
MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 65.
46 CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.110.
19
de lavagem. Assim, aquele que adquire ou recebe os bens que sabe que são produtos de crime não comete o delito de lavagem. Mas aquele que recebe bens, direito ou valores que sejam produtos dos crimes precedentes previstos na Lei de Lavagem, é dizer, aquele que os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda ou tem em depósito, move ou transfere com o objetivo de ocultar ou dissimular sua utilização, comete o delito de „receptação específica‟, previsto na Lei de Lavagem (art. 1º, § 1º, II) (CALLEGARI, 2008, p. 111, grifos originais).
O inciso III refere-se à importação ou exportação de bens com valores não
correspondentes aos verdadeiros, com objetivo de ocultar ou dissimular a utilização
de ativos provenientes dos crimes precedentes. Esta seria uma das condutas mais
utilizadas para enviar ativos ilícitos para o estrangeiro.47
Importante ressaltar que, como vimos, para que haja a consumação do
descrito no § 1º, é necessário que o agente tenha praticado as condutas dos incisos
com o dolo específico de ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores provenientes
dos crimes antecedentes previstos nos incisos do caput do artigo 1º, “pouco
importando se sucesso ou êxito econômico, ou que os valores venham a alcançar
uma efetiva situação de segurança fática ou jurídica”.48
Finalmente, o parágrafo 2º, do artigo 1º, da Lei 9.613/98, em seu inciso I,
estabelece que incorre na mesma pena quem utilizar, na atividade econômica, bens,
direitos ou valores provenientes dos delitos previstos no rol de crimes antecedentes.
Trata-se de um comportamento localizado em fases mais avançadas da lavagem de
dinheiro, onde o agente deve ter consciência da origem ilícita dos ativos, ou seja, o
tipo exige o dolo direito do sujeito ativo.49
No inciso II, do mesmo parágrafo e artigo mencionados trata de uma forma de
ampliar a participação ou autoria do delito de lavagem, ou seja, estabelece que
incorre na mesma pena quem participa de grupo, associação ou escritório, sabendo
ser local destinado à prática dos crimes previstos na lei.
7.3 OBJETO MATERIAL
47
CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro, aspectos penais da lei n. 9.613/98. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.112.
48 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:
comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 336. 49
CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 336.
20
O objeto material do delito de lavagem de dinheiro é o objeto corpóreo,
pessoa ou coisa, sobre a qual recaia ação passível de punição. Deve encontrar-se
direta ou indiretamente apontado no tipo penal, mas não pode ser confundido com o
bem juridicamente tutelado.50
O artigo 1º da Lei 9.613/98 define expressamente seus objetos materiais,
quais sejam, “bens, direitos e valores”. Tais objetos são considerados pela doutrina
como sendo genéricos.
Porém, esta definição ampla dos objetos materiais busca incluir não só o
produto imediato do delito, mas também os ativos que sofreram mutações devido
aos procedimentos da lavagem de dinheiro.51 Podemos notar esta autorização no
caput do artigo 1º da Lei 9.613/98, quando este refere “bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de crime”.
Com relação à procedência indireta do objeto material, há divergência
doutrinária, eis que haveria uma contaminação infinita do objeto.
Sobre a expressão utilizada pelo legislador no caput do artigo 1º da Lei
9.613/98, Rodolfo Tigre Maia (2007) faz uma crítica ao referir que “a utilização de
expressões desta ordem enfraquece a função de garantia do tipo penal, por remeter
a conceitos valorativos, que culturais (e.g., “mulher honesta”), quer jurídicos (e.g.,
“coisa alheia móvel”).52 O autor define ainda dois requisitos essenciais a serem
preenchidos pelos objetos materiais da lavagem de dinheiro, quais sejam: a)
caracterizar-se como produto de crime; b) ser possível sua individualização ou
especialização no caso concreto. Dessa forma, não se incluem no rol de bens
passíveis de legitimação os instrumentos utilizados na prática do crime antecedente,
eis que se trata de meios para sua efetivação e não produtos de sua prática (MAIA,
2007, p. 61-62).
7.4 O TERMO CRIME COMO ELEMENTO NORMATIVO DO DELITO DE LAVAGEM
DE DINHEIRO
50
BONFIM, Marcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edilson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 41.
51 CERVINI, Raul; OLIVEIRA, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais:
comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 325. 52
MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 61.
21
A doutrina brasileira oferece um conceito de crime entendido, pela maioria
como uma ação ou omissão típica e antijurídica, excluindo a culpabilidade,
pressuposto da aplicação da pena e não de crime.
O artigo 1º da Lei 9.613/98 prevê nos incisos I a VIII um rol taxativo de crimes
antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, que sem este não existe. Ou seja,
embora a lavagem de dinheiro seja um crime autônomo, depende de outro delito
prévio para se configurar, o que faz dele um crime acessório. Assim, o termo crime é
elemento normativo do tipo penal.
O rol de delitos antecedentes é amplamente criticado pela doutrina, visto que
não constam no catálogo de infrações prévias crimes considerados importantes.
Alguns dos crimes excluídos do rol de crimes antecedentes podem ainda ser
considerados delito se praticados por organização criminosa. Entretanto, note-se
que o termo “crime” utilizado pelo legislador exclui a possibilidade de contravenções
penais serem consideradas delito prévio, ainda que praticadas por organização
criminosa, visto que o Direito Penal brasileiro faz clara distinção entre as duas
expressões.
O tráfico internacional de seres humanos foi colocado em terceiro lugar na
lista de crimes que mais obtém lucros ilícitos. Entretanto, tal delito não se enquadra
nos crimes antecedentes elencados pela Lei 9.613/98.
Nelson Jobim, em audiência pública perante a Comissão de Finanças e
Tributação da Câmara dos Deputados, defendeu a exclusão da sonegação fiscal do
rol de crimes antecedentes, conforme informa Ela Wiecko V. de Castilho (2004),
alegando que a pessoa que sonega apenas não se desfaz do seu patrimônio para
cumprir obrigação fiscal, portanto um aumento do seu patrimônio do indivíduo, não
havendo lavagem de dinheiro.53
Em verdade, ativos considerados lícitos podem ser eticamente reprováveis. A
investigação e comprovação de ativos ilícitos tornam-se cada vez mais difíceis. A
cooperação internacional de combate à lavagem de dinheiro é complemente
antagônica aos paraísos fiscais e aos centros off shore e a proteção dos
possuidores de grandes fortunas. Ainda que a lei brasileira seja de grande
importância, ainda possui lacunas a serem preenchidas com urgência, para não
tornar-se obsoleta.
53
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Crimes antecedentes e lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 47, p. 46-59, mar./abril 2004, p. 50.
22
7.5 TIPO SUBJETIVO
O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral chamado dolo, que é a
consciência (elemento cognitivo) e a vontade (elemento volitivo) de realizar a
conduta descrita em um tipo penal.54
A Lei 9.613/98, seguindo recomendação da Convenção de Viena, admite
somente a forma dolosa nas condutas elencadas em seu artigo 1º, já que a norma
não fez referência à forma culposa (PITOMBO, 2003, p. 135).
Neste sentido, é necessário que o agente tenha consciência e intenção de
ocultar ou dissimular bens, direitos ou valores que tenham origem delitiva prevista
como crime antecedente. Somente desta forma, o agente terá aplicadas as penas
previstas no tipo.
De modo sintético, integra o dolo típico da lavagem de dinheiro: conhecer os bens; a ocorrência de crime antecedente; e a relação entre tais bens e crime antecedente (PITOMBO, 2003, p. 137-138).
A Exposição de Motivos n.º 692/MJ prevê o dolo eventual em seu artigo 40.
Vejamos:
41. O projeto também criminaliza a utilização, ‘na atividade econômica ou financeira, de bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes...’ (art. 1
o, § 2
o, I). Neste caso, a mera
utilização, sem ter por objetivo a ocultação ou a dissimulação da origem dos bens, direitos ou valores, uma vez que o agente saiba de tal origem, caracteriza a prática do ilícito. Tal hipótese o projeto buscou no direito francês (art. 324-1, 2ª alínea, introduzida pela Lei n
o 96-392, de 1996).
55
Ainda que o dolo seja eventual, é fundamental identificar se o agente possuía
uma mínima consciência da ilicitude da conduta e da origem ilícita dos ativos
movimentados. Os requisitos do crime (conhecimento da ilicitude, intenção do
agente e as finalidades do comportamento) devem ser identificados de acordo com
as circunstâncias objetivas de cada caso concreto. Assim, Willian Terra de Oliveira,
somente aceita o dolo eventual no caso de o agente estar em posição de garantidor
da evitabilidade do resultado como, por exemplo, o diretor de uma instituição
54
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207-208.
55 Exposição de Motivos n. 692/MJ, de 18.12.1996. Disponível em:
<http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/exposicao-de-motivos-da-lei-9.613>. Acesso em: 29 set. 2010.
23
financeira, que tem obrigação de comunicar operações suspeitas ao COAF, ao
saber de uma operação de lavagem de dinheiro, não cumpre com sua obrigação ou
avisa seu cliente que tomou determinada atitude (OLIVEIRA, 1998, p. 327).
8 DESDOBRAMENTOS ALUSIVOS AO ELEMENTO NORMATIVO
8.1 DESDOBRAMENTOS PROBATÓRIOS ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA:
ART. 2º, § 1º DA LEI 9.613/98
Nos crimes de lavagem de dinheiro, a denúncia deve, além de atender aos
requisitos expostos no artigo 41 do Código de Processo Penal – no que tange à
ação penal pública – atentar para as regras específicas dispostas no § 1º do artigo
2º da Lei 9.613/98, in verbis:
Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:
[...] § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência
do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.
Para o oferecimento da denúncia no crime de lavagem de dinheiro é
obrigatória a existência de um crime antecedente, assim como um suporte
probatório da ocorrência deste que possibilite o recebimento da denúncia. Para tanto
a lei exigiu somente indícios suficientes da existência de crime antecedente.
O § 1º, do artigo 2º, da Lei 9.613/98, declara expressamente que é
desnecessário o conhecimento da autoria do crime antecedente, bastando que haja
indícios suficientes da ocorrência do delito, o que será demonstrado pela
materialidade.
Alguns doutrinadores não concordam com o disposto na Lei brasileira, sob o
argumento de que a lavagem de dinheiro seria condicionada pelo crime
antecedente, motivo pelo qual a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro só
iria dar-se com a certeza da realização do crime antecedente.
8.2 DESDOBRAMENTOS PROBATÓRIOS RELATIVOS AO PROCESSO E AO
JULGAMENTO
24
O procedimento descrito na Lei 9.613/98, para a averiguação e o julgamento
dos crimes de lavagem de dinheiro, após a reforma do Código de Processo Penal,
será o procedimento comum ordinário, previsto no artigo 394, § 1º, inciso I, visto que
sua pena máxima cominada é superior a 4 anos.
O artigo 2º, inciso II da Lei 9.613/98 dispõe que o processo e julgamento do
crime de lavagem de dinheiro independe do processo e julgamento do crime
antecedente, ainda que este seja praticado no exterior.
Este inciso, juntamente com o disposto no § 1º, do artigo 2º da Lei, demonstra
a autonomia e independência dos crimes e processos de lavagem de dinheiro em
relação ao crime precedente e seu processo.
Ressalte-se que, como vimos, para o oferecimento da denúncia basta que
existam indícios suficientes da existência de crime antecedente. Entretanto, o maior
questionamento seria se tais indícios seriam suficientes para ensejar uma decisão
condenatória por crime de lavagem de dinheiro.
A Exposição de Motivos nº 692/MJ, embora não autorize a condenação
baseada somente em indícios, também não diz qual comportamento ensejaria um
juízo condenatório. Acredita-se que um “suporte probatório mínimo” da ocorrência do
crime antecedente, referido por alguns doutrinadores, seria o mecanismo utilizado,
mas, ainda assim, sem a exigibilidade da verificação de autoria.
A doutrina, quando se trata de aceitar “indícios” de crime precedente como
prova para um édito condenatório no crime de lavagem de dinheiro, defende,
substancialmente, que não se estaria admitindo uma condenação em provas frágeis,
mas sólidas e capazes de formar o convencimento do juiz.
Todavia, nos termos do artigo 2º, da Lei 9.613/98, para o julgamento do crime
de lavagem de dinheiro, não se faz necessária a condenação de agentes pela
prática do crime antecedente, bastando a prova da materialidade e da antijuricidade,
dispensando-se a demonstração da autoria, nem sendo necessário que esta esteja
aparente ou mesmo que seu agente seja culpável.
Ressalte-se que não se confunde a prova indiciária, exigida para o
recebimento da denúncia, com a desnecessidade de condenação de agentes pela
prática do crime precedente. Entende-se que, ainda que não haja condenação, a
existência de fato típico e antijurídico que originou os bens, direitos ou valores
objetos da lavagem, deve estar devidamente comprovada no processo, caso
25
contrário o agente do crime de lavagem de dinheiro deve ser absolvido por
atipicidade de conduta.
Note-se que tal comprovação não é mais a prova indiciária, suficiente para o
recebimento da denúncia, mas uma prova robusta e convincente, caso contrário
deve prevalecer o princípio do in dubio pro reu.
9 OUTRAS CONSIDERAÇÃO IMPORTANTES ACERCA DO CRIME DE
LAVAGEM DE DINHEIRO
9.1 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
O artigo 4º, § 2º da Lei 9.613/98, prevê que ao denunciado se impõe o ônus
de provar licitude da origem de seus bens que foram objeto de apreensão ou
sequestro. Tal disposição constitui alvo de diversas controvérsias na doutrina.
Como se sabe, o ônus da prova pertence a quem alega, além disso, a licitude
é presumida. Entretanto, o legislador brasileiro seguiu a recomendação prevista no
artigo 5º, número 7, da Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas56, aduzindo que seria dificultoso para o
Estado provar a origem ilícita dos bens apreendidos ou sequestrados.
9.2 A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 366 DO CPP
O artigo 2º, § 2º, da Lei de Lavagem de Dinheiro veda, expressamente, a
suspensão do processo e do curso da prescrição ocorridas quando o acusado,
citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, previsão exposta no
artigo 366 do CPP.
O artigo é considerado pela maioria dos doutrinadores inaplicável, vez que
fere o devido processo legal e os princípios do contraditório e da ampla defesa,
todos com status constitucional. Além disso, o artigo 2º, § 2º da Lei de lavagem de
capitais, contraria o disposto no artigo 4º, § 3º da mesma Lei, que dispõe que
“nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento pessoal do
56
Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/conteudo/sobre-lavagem-de-dinheiro-1/convencao-de-viena>. Acesso em: 16 out. 2010.
26
acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de
bens, direitos ou valores, nos casos do artigo 366 do Código de Processo Penal”
(Lei 9.613/98, artigo 4º, parágrafo 3º).
9.3 PROIBIÇÃO DE FIANÇA E PROIBIÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA
O artigo 3º da Lei de Lavagem de Dinheiro prevê que, nos casos de prisão em
flagrante ou preventiva, esta será mantida, visto que os crimes disciplinados na lei,
não são suscetíveis a fiança ou liberdade provisória. A intenção do legislador foi
manter uma voz firme frente à criminalidade organizada, entretanto, mais uma vez
feriu princípios constitucionais, tais como: presunção de inocência e devido processo
legal.
O referido artigo prevê ainda que caberá ao juiz decidir se o condenado
poderá recorrer em liberdade, fundamentando somente nos casos em que admitir a
liberdade para recorrer, por caracterizar a exceção, sendo que, quando decretada a
prisão, dispensa-se a fundamentação, por consubstanciar a regra. 57
9.4 DELAÇÃO PREMIADA
É permitida pelo artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/98, podendo a pena ser reduzida
de um a dois terços, além de, inicialmente, ser fixado o regime aberto. A lei prevê
ainda, nos casos de colaboração espontânea do acusado com as autoridades,
prestando esclarecimentos sobre o crime, autoria e localização dos bens, direitos ou
valores, a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de diretos,
podendo o juiz, inclusive, deixar de aplicar a pena (perdão judicial). Note-se que a
delação pode ser realizada durante o inquérito ou na fase processual, desde que
seja até a sentença, momento em que o acusado será contemplado com o benefício.
CONCLUSÃO
Desde o século XVI, por meio de diversas atividades criminosas, já se
verificavam certos procedimentos efetuados com intenção de “lavar” dinheiro com
57
MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: Lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 126-127.
27
origem ilícita. Entretanto, a preocupação com o fenômeno da lavagem de dinheiro
teve início somente na década de 1920, nos Estados Unidos da América.
A criminalidade organizada desenvolveu-se e atingiu proporções
astronômicas em um cenário socioeconômico globalizado e de expansões
tecnológicas que possibilitam uma grande facilidade e agilidade nas operações e
transações ilícitas, assim como na circulação, ocultação e reinserção dos ativos
financeiros decorrentes de tais atuações criminosas.
Some-se a isso o fato de que inúmeras das atividades ilícitas praticadas por
organizações criminosas contam com o respaldo de parte considerável da
sociedade, que compra e utiliza indistintamente os produtos dessas atividades,
como, por exemplo, produtos piratas, prostituição, drogas e até armas.
Com isso, os bens, direitos e valores obtidos através do crime organizado
acabam sendo, depois de lavados, reinseridos na economia mundial, passando a
integrar, novamente, o sistema econômico mundial.
Através destes procedimentos as organizações criminosas obtêm um grande
acúmulo de capital, o que lhes contempla um grande poder, capaz de patrocinar o
ingresso de seus agentes nas diversas camadas administrativas e estruturas dos
Estados, incluindo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Há de se levar em
consideração também, que, mundialmente, diversas empresas privatizadas
encontram-se sob o controle de organizações criminosas, além de influenciar
diretamente na produção legislativa e nas atividades de investigações criminais.
De tudo isso, o que se vê são organizações criminosas transformando-se em
um poder paralelo às estatais, acontecimento sem precedentes ou similaridades na
história da humanidade, sendo que todo e qualquer método de combate até o
momento utilizado, se tem mostrado quase ou absolutamente ineficaz.
Atualmente, o objetivo é evitar a lavagem dos bens, direitos e valores obtidos
ilicitamente pelas organizações criminosas, através da criminalização de condutas e
rastreamento, identificação e resgate dos ativos de origem delitiva.
Este tem-se mostrado o grande desafio no combate ao crime organizado em
nível mundial, visto que tais organizações criminosas não se limitam a fronteiras
geopolíticas, assim como não mantém nenhum tipo de subordinação ou mesmo
respeito às burocracias e normas estatais, utilizando recursos tecnológicos cada vez
mais modernos e mantendo uma estrutura de circulação de ativos transnacional.
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A Lei 9.613/98 foi editada com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro
e o crime organizado em território nacional e, ao mesmo tempo, colaborar com
organismos internacionais e outros países visto o caráter globalizado que assumiu a
criminalidade organizada, porém ainda necessita de ajustes e modificações em seu
texto legal.
É de suma importância que alguns dispositivos desta Lei sejam reputados
inconstitucionais. São exemplos: a vedação à fiança, à liberdade provisória e ao
direito de apelar em liberdade. A vedação à suspensão do processo, no caso do réu
revel citado por edital, o que prejudica o direito ao contraditório e à ampla defesa.
A questão do crime antecedente, tanto as discussões referentes ao rol
taxativo, quanto os debates sobre sua autonomia em relação ao crime antecedente
impõem uma análise crítica e uma solução por parte do legislador, visto que, crimes
importantes e que movimentam quantias vultosas, como o tráfico de pessoas e o
jogo do bixo, não estão foram elencados no artigo 1º da Lei e, contrariamente,
expressões vagas e demasiadamente abrangentes como “crimes contra a
administração pública” e, delitos não tipificados no ordenamento jurídico brasileiro
como “terrorismo”, são considerados crimes antecedentes.
Igualmente necessário é uma adequação da legislação em relação à
autonomia do crime antecedente frente ao crime de lavagem de dinheiro, vez que é
inaceitável qualquer condenação baseada em “indícios”, impondo-se uma maior
objetividade e fidelidade ao princípio garantista da legalidade, visto que não pode o
cidadão assumir os encargos pertencentes ao Estado e pagar pela ineficácia deste
no combate ao crime organizado e na aplicação do direito penal.
Contudo, acreditamos que somente a criação de tipos penais não é suficiente
para tornar eficaz este combate, sendo necessário o fortalecimento do sistema
punitivo estatal, além de uma ampliação e melhora dos programas sociais, evitando
a atuação social destas organizações criminosas em comunidades carentes, o que
angaria sua simpatia.
REFERÊNCIAS
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