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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Tecnologia e Ciências
Instituto de Geografia
Jorge Paulo Pereira dos Santos
A busca por reconhecimento na favela do Morro da Mangueira
Rio de Janeiro
2017
Jorge Paulo Pereira dos Santos
A busca por reconhecimento na favela do Morro da Mangueira
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção de aprovação em exame de
qualificação de doutorado, ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Gestão e Reestruturação do Espaço Geográfico.
Orientadora Profa. Dr
a. Mônica Sampaio Machado
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/C
Bibliotecária responsável: Fernanda Lobo CRB7 : 5265
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
______________________________________ ______________________
Assinatura Data
S237 Santos, Jorge Paulo Pereira dos.
A busca por reconhecimento na favela do Morro da Mangueira / Jorge Paulo
Pereira dos Santos. – 2017.
165 f. : il.
Orientadora: Mônica Sampaio Machado.
Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Geografia.
Bibliografia.
1. Geografia humana – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Samba - Cultura popular -
– Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 3. Espaço urbano – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 4.
Favelas – Mangueira (Rio de Janeiro, RJ) - Teses. 5. Estação Primeira de
Mangueira (Escola de samba) – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. I. Machado, Mônica
Sampaio. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. III.
Título.
CDU 911.37(815.3)
Jorge Paulo Pereira dos Santos
A busca por reconhecimento na favela do Morro da Mangueira
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Geografia, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Gestão e Reestruturação do
Espaço Geográfico.
Aprovada em 31 de agosto de 2017.
Banca Examinadora:
___________________________________________________
Prof.ª Drª Mônica Sampaio Machado (Orientadora)
Departamento de Geografia Humana /UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. André Reyes Novaes
Departamento de Geografia Humana/UERJ
___________________________________________________
Prof.ª Drª Cristina Lontra Nacif
Escola de Arquitetura e Urbanismo/Universidade Federal
Fluminense
___________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Luiz Barbosa
Departamento de Geografia/Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________
Prof. Dr. Nilson Cesar Fraga
Departamento de Geociências/Universidade Estadual de
Londrina
Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA
Dedico este estudo aos moradores da Favela do Morro da Mangueira, em particular aos meus
avós Olga e Ludgero (in memorian) que participaram da construção da história deste solo
cultural.
AGRADECIMENTO
A Profa. Monica Sampaio Machado, cuja orientação me honra, por ter exercido seu
papel com base na liberdade de expressão, nas ricas discussões e crescimento intelectual.
Aos professores do Curso de Doutorado em Geografia do Instituto de Geografia da
UERJ pelo ambiente de crítica e desenvolvimento e aprofundamento acadêmico.
A meus amados pais Jorge (in memorian) e Ana Maria, vidas dedicadas ao trabalho e
ao cuidado com minha formação, possibilitaram-me galgar caminhos maiores.
A minha querida avó D. Olga por manter viva em minha memória e no meu coração as
histórias do Morro de Mangueira, que na consulta à literatura desta pesquisa pude encontrar a
comprovação da existência dos fatos por ela contados.
Agradeço ao amigo Alexandre Luis da Silva Coutinho pela ajuda e por partilhar
comigo desses momentos de dúvidas e reflexões.
Aos meus amigos do curso de doutorado Ciro Marques Reis, Andrea Mendes, Graziela
pelas conversas e companheirismo.
Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram para execução deste trabalho.
RESUMO
SANTOS, Jorge Paulo Pereira dos. A busca por reconhecimento na favela do Morro da
Mangueira. 2017. 172 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geografia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
Este trabalho tem por objetivo analisar a busca por reconhecimento no Morro da
Mangueira através das mediações simbólicas favorecidas pelo samba. Com isso, será
mostrado como o samba gerou um ponto de ruptura no tipo de reconhecimento buscado pelos
moradores da favela. A base conceitual deste estudo inicialmente encontrou suporte nos
trabalhos iniciais de Hegel, que influenciou outros pesquisadores no século XX como Charles
Taylor, Nancy Fraser, Alex Honneth, Paul Ricouer. Sob o ponto de vista geográfico
analisamos o tipo de reconhecimento que um território historicamente segregado poderia
alcançar. Assim, alguns elementos da cultura popular originados a partir do samba são
apresentados como contribuição empírica para esta pesquisa. Os aspectos relacionados ao
reconhecimento como ações afirmativa e transformativa, e a estima social tem como exemplo
as relações sociais construídas e materializadas a partir da fundação do G.R.E.S Estação
Primeira de Mangueira. O estreitamento dos laços sociais e de convivência em torno da
Escola de Samba, os compositores da favela do Morro da Mangueira e de fora dela, criaram
músicas que retratam parcialmente a realidade da vida na favela. Talvez isso tenha favorecido
a mediação entre as diferentes classes sociais, que independentes de sua posição hierárquica
na sociedade, deslocam-se para um território de cultura em busca de divertimento e lazer ou
até mesmo como evasão da exigente vida capitalista.
Palavras-chaves: Busca por reconhecimento. Mediações simbólicas. Favela. Morro da
Mangueira. Samba.
ABSTRACT
SANTOS, Jorge Paulo Pereira dos. The search for recognition in the Morro da Mangueira
favela. 2017. 172 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
This work aims to analyze the search for recognition in Mangrove Hill through
symbolic mediations favored by samba. With this, it will be shown how the samba generated
a breaking point in the kind of recognition sought by the residents of the favela. The
conceptual basis of this study initially found support in Hegel's early works, which influenced
other 20th century researchers such as Charles Taylor, Nancy Fraser, Alex Honneth, Paul
Ricouer. From the geographical point of view, we analyze the kind of recognition that a
historically segregated territory could achieve. Thus, some elements of popular culture
originated from samba are presented as an empirical contribution to this research. The aspects
related to recognition as affirmative and transformative actions and social esteem have as an
example the social relations built and materialized from the foundation of G.R.E.S Estação
Primeira de Mangueira. The narrowing of social ties and coexistence around the Samba
School, the composers of the Morro da Mangueira favela and beyond, created songs that
partially portray the reality of life in the favela. Perhaps this has favored mediation between
different social classes, which, independent of their hierarchical position in society, move to a
territory of culture in search of fun and leisure or even as an escape from demanding capitalist
life.
Keywords: Search for recognition. Symbolic mediations. Favela. Morro da Mangueira.
Samba.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapa 1 - Localização do Morro de Mangueira, na Área de Planejamento 1............. 87
Figura 1 - Decreto de Criação da Freguesia de São Cristóvão – Século XIX ............ 89
Figura 2 - Planta das obras da rua Visconde de Niterói e documento ........................ 91
Mapa 2 - Localização das terras da família real e as do Visconde de Niterói .......... 94
Figura 3 - Vias do século XIX em direção ao cume do Morro dos Telégrafos .......... 95
Mapa 3 - Traçado da rua Visconde de Niteroi século XIX/XX ................................ 97
Figura 4 - Inauguração da Escola Municipal Humberto de Campos em 1935, na
prefeitura de Pedro Ernesto ........................................................................
100
Mapa 4 - ―Bairros‖ na favela do Morro da Mangueira ............................................. 104
Figura 5 - Edições do Jornal ―A voz do morro‖.......................................................... 110
Figura 6 - Editorial da Edição nº.1 do Jornal ―A voz do Morro ................................ 111
Figura 7 - Primeira formação da ala dos compositores da Estação Primeira de
Mangueira em 1939 ...................................................................................
118
Figura 8 - Compositores Cartola e Padeirinho ........................................................... 119
Figura 9 - Moradores do Morro de Mangueira, desde jovens participando dos
desfiles da Estação Primeira ......................................................................
135
Figura 10 - Carteira de sócio da Estação Primeira ....................................................... 137
Figura 11 - Site do GRES Estação Primeira de Mangueira – Programas Sociais ........ 139
Figura 12 - Cursos profissionalizantes oferecidos no GRES Estação Primeira de
Mangueira ..................................................................................................
142
Figura 13 - Projeto de apoio escolar ............................................................................. 142
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9
1 O DISCURSO E A BUSCA POR RECONHECIMENTO ................................ 19
1.1 Hegel e o discurso do reconhecimento: notas preliminares ............................... 21
1.2 O reconhecimento e a sua relevância ................................................................... 22
1.3 O reconhecimento em nossos dias ........................................................................ 24
2 UMA LEITURA GEOGRÁFICA DO RECONHECIMENTO......................... 41
3 O AUTORRECONHECIMENTO: DA ORIGEM DA FAVELA AOS DIAS
ATUAIS...................................................................................................................
64
3.1 Do menosprezo ao auto reconhecimento............................................................... 65
3.2 Favela: um território visível................................................................................... 74
4 MANGUEIRA E A BUSCA DO RECONHECIMENTO, UM EXEMPLO..... 85
4.1 A freguesia de São Cristovão: do Morro dos Telégrafos ao Morro da
Mangueira................................................................................................................
88
4.2 As mediações simbólicas e o reconhecimento pacífico......................................... 108
4.3 A importância dos compositores na construção do reconhecimento da favela
do Morro da Mangueira.........................................................................................
114
4.4 Estimas social e o reconhecimento em Mangueira............................................... 128
CONSIDERAÇÕES................................................................................................ 144
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 150
ANEXO A - Peça do Teatro do Revista – história ambientada no Morro da
Mangueira década de 1920.......................................................................................
158
ANEXO B - Disco com a gravação da música Morro da Mangueira, 1926............ 154
ANEXO C - Na década de 1930 a Escola de Samba Estação Primeira de
Mangueira participa das peças do teatro de revista..................................................
160
ANEXO D - Primeiro exemplar do Jornal ―A voz do Morro, 1935‖....................... 162
ANEXO E - Primeira sede do G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira –
localizada no Buraco Quente....................................................................................
165
9
INTRODUÇÃO
A busca por reconhecimento constitui-se em perceber a intencionalidade na construção
do espaço, objetivando a inclusão de grupos de indivíduos historicamente marginalizados,
menosprezados e alvo da repressão das classes dominantes. A diferença cultural tem sido
usada como instrumento de diálogo para reivindicações de grupos excluídos. Muitas posturas
cotidianas das pessoas na cidade fortalecem as atitudes segregadora do Estado e da sociedade
em geral. Reconhecer um lugar como área perigosa está na raiz dos estereótipos construídos
sobre um grupo segregado, por exemplo.
Segundo Charles Taylor (2000) a nossa identidade é moldada em parte pelo
reconhecimento ou por sua ausência, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode
sofrer reais danos. O não-reconhecimento pode ser uma forma de opressão, aprisionando
alguém numa modalidade falsa, distorcida e redutora. Por exemplo, algumas feministas
alegam que as mulheres foram induzidas nas sociedades patriarcais a adotarem uma imagem
depreciativa de si mesmas. Elas internalizaram um quadro de sua própria inferioridade, razão
por que, ainda quando alguns dos obstáculos objetivos ao seu avanço caem por terra, elas
podem ser incapazes de aproveitar as novas oportunidades.
Para Nancy Fraser (2001) a busca por reconhecimento cultural substituiu a luta de
classes, assim o reconhecimento cultural é a pauta das reivindicações no lugar da
redistribuição econômica, como remédio para injustiça socioeconômica. O desejo dos
indivíduos e grupos em serem reconhecidos está presente em todo mundo, consequência da
desigualdade de renda e propriedade, acesso ao trabalho remunerado, educação, saúde e lazer.
Enfim, a procura em ver-se atendido em suas necessidades cria ações afirmativas localizadas
contrárias a ações transformativas dos agentes hegemônicos.
Para Axel Honneth (2015) a experiência do desrespeito social impele atitudes que
visam restaurar as relações de reconhecimento mútuo. Atualmente, os conflitos sociais
requerem o reconhecimento da dignidade humana, até mais que a redistribuição econômica. O
indivíduo e o grupo social têm em mente salvaguardar a integridade física além de busca da
valorização da cultura e dos diversos modos de vida.
O ―percurso do reconhecimento‖ de Paul Ricouer (2016) advém de ações
organizacionais ou institucionais, no sentido de obter prestígio, consideração e aceitação. A
vida em grupo caracteriza-se por contínua busca em que o outro reconheça as propriedade e
capacidades do grupo menosprezado.
10
Nos territórios excluídos na Cidade do Rio de Janeiro os moradores da favela foram
induzidos a aceitarem uma imagem estereotipada de si mesmos. Há com isso uma
aquiescência, mesmo que camuflada, de sua condição excluída, por que motivo, quando as
dificuldades se dissipam, os moradores das favelas se sentem incapazes em aproveitar novas
oportunidades, reforçando os estigmas quanto ao seu território, que originou-se devido à crise
da habitação urbana. Negros libertos e alforriados, mestiços e brancos pobres, formaram as
chamadas classes perigosas, ou seja, eram os sujeitos despossuídos, agentes sociais que
constituíram alternativas informais para resolver a questão da moradia. A exclusão
socioespacial impulsionou-os a construírem modos de vida particulares, que
momentaneamente resolveu o problema da falta de moradia e do lazer. (ABREU, 1987;
VALLADARES, 2005)
A comparação das formas de exclusão históricas no Brasil mostra o crescimento do
desejo de transformar o contexto de não reconhecimento, revertendo este quadro e visando o
direito à cidadania e à valorização da cultura da periferia. A produção cultural de um grupo
parece indicar a possibilidade de busca por reconhecimento, e sendo assim constituiria um
elemento de mediação simbólica pacifica. Nesse sentido o reconhecimento da cultura passaria
ter um antídoto a exclusão da população das áreas periféricas.
A demanda por símbolos da nacionalidade da nação encontrou na cultura brasileira a
circunstância para o reconhecimento parcial do segmento pobre da sociedade. A
intelectualidade brasileira impulsionou a valorização das manifestações culturais nacionais.
Para Flavia Martins Constant (2009) a herança negra contribuiu para a identidade nacional
brasileiro fruto de vontade política do Governo Vargas1. Talvez consequência dos
movimentos em busca do símbolo da nacionalidade do Brasil, debatido na década de 1920. Os
anos de 1930 apresentou-se como momento propício para o estabelecimento do samba, pois
1O nacionalismo foi um tema bastante discutido, de acordo com Octavio Ianni (1992) em três momentos da
História do Brasil: Abolição da Escravatura, Proclamação da República e na Revolução de 1930. Entretanto, a
construção de um Brasil Moderno fora forjada em circunstância de valorização dos elementos humanos
existentes no país. O movimento modernista em São Paulo desempenhou papel fundamental para este
momento ao deslocar o debate a respeito da raça para outro patamar, o cultural. Pelo prisma da cultura a
miscigenação foi apresentada como um legado rico deixado pelo período colonial. Daí o samba no caso do Rio
de Janeiro, já na década de 1920, ter aceitação maior pelas classes mais abastadas. Nesse sentido, as
articulações culturais entre membros de diferentes classes sociais, terem contribuído, em seguida para dar
relevância ao discurso nacionalista da Era Vargas (1930-1945). Apesar disso, não houve a uniformidade do na
cionalismo getulista, sabe-se que em cada unidade da federação houve movimentos contrários a administração
Vargas e, mesmo o movimento separatista em São Paulo. Porém, o objetivo é destacar o momento da história
do Brasil em que a cultura afro-brasileira e mestiça deixa a marginalização e exclusão.
11
serviria ao controle da massa. O reconhecimento da cultura popular criou a autoestima social
capaz de ressignificar os espaços periféricos da cidade do Rio de Janeiro, durante o período
varguista. Os elementos da cultura de matriz africana, indígena e da mestiçagem foram vistos
como mediação simbólica, pois as classes mais abastadas da sociedade consomem tais
produções populares, havendo a aproximação entre os brasileiros, que por muito tempo
copiaram os costumes europeus tidos como os legítimos, então, o reconhecimento das classes
pobres e segregadas racialmente parece ter tido lugar mediante a este contexto.
As músicas de matriz africana, apesar de muito obstáculo para serem aceitas no início
do século XX, pouco a pouco ganharam o gosto das diferentes classes sociais, o chorinho
primeiro, e a seguir o samba. Desse modo a cultura afro-brasileira ganhou, gradativamente, o
status de símbolos da nação ao participar do projeto de construção da unidade nacional
pensada pela elite intelectual a partir do final da década de 1910, porém a condição social de
miserabilidade do grande contingente de negros, mestiços e brancos despossuídos se
avolumou no espaço urbano carioca (IANNI, 1992).
O reconhecimento aconteceu lentamente ao retirar a cultura popular, de matriz
africana, da marginalidade, porém desviou a discussão dos problemas sociais, porque o
objetivo era pensar as matrizes históricas para dar o sentido de unidade nacional e de nação2,
isto é, a construção da história nacional com elementos que o povo pudesse se identificar.
Parece que o atraso da sociedade brasileira seria atenuado através das medições simbólicas,
via cultura popular: o samba, a comida, a popularização do futebol, a propaganda
governamental por meio do rádio etc.
Para a população residente na periferia o reconhecimento do seu meio próprio de
produzir cultura teve conotação positiva e elevou a auto estima social, servindo-se como
mediação simbólica na medida que a elite intelectual e política procurou atender as
necessidades imediatas dos agentes sociais da periferia urbana carioca – a estima social
materializada por sua construção musical aliada a dança. Este processo contribuiu para retirar
do anonimato e da marginalização formas de organização da cultura popular, além de
transformarem homens simples em referências do ritmo que deu identidade cultural a nação
2O modelo europeu de nação tentou ser aplicado no Brasil e chamado a participar da elaboração do sentido de
nação brasileira e como não houve fatos equivalentes culturalmente, então reforçou-se os estereótipos
aplicados a cultura popular, copiou-se em fins do século XIX o padrão de cultura francesa. Entretanto, a
identidade nacional foi forjada por uma nova geração de intelectuais, por volta do final de década de 1910, que
culminou no Modernismo, movimento cultural em São Paulo que pôs em relevo a cultural resultante do
encontro das três matrizes étnicas, o índio, o branco e o negro.
12
brasileira, o samba3.
Nessas circunstâncias, a criação das escolas de samba funcionou como elemento
integrador entre os pobres, o poder estatal, o mercado de bens culturais e os meios de
comunicação. Houve, assim, um pacto de cavaleiros a fim de compensar socialmente, o que
economicamente não era, e ainda não é possível. O reconhecimento pacífico como estamos
falando, acontece, no sentido de enaltecer parcialmente as propriedades e capacidades dos
indivíduos ou grupos sociais.
No momento do rito, como o ensaio de ―Escola de Samba‖, há uma troca de papéis, ou
uma inversão. O negro, pobre, favelado se torna o professor e por sua vez o branco letrado, o
aprendiz. Porém, essa relação acontece perante um acordo não explícito. Com isso, na
temporada pré-carnavalesca ou mesmo carnavalesca há mudança na estrutura social. O lugar,
apesar de favela, ganha status quase de um santuário4, no qual grandes nomes da história do
samba, pisaram e no momento atual a classe abastada pode pisar também. Sob esta
perspectiva que acontece a territorialidade a partir do reconhecer-se mediante a aquiescência
do outro (DAMATTA,1997). Contudo, o processo de reconhecimento do sambista, favela e
3O samba assumiu ares de música vinculada a imagem do Brasil até no exterior, mas ressalta-se que o
reconhecimento do ritmo e da dança de matriz africana, associada aos antepassados escravizados, não foi
cantado por negros, mas sim por brancos: Mario Reis, gravou ―Jura‖ composta por Sinhô; o Rei da Voz,
Francisco Alves, gravou ―se você jurar‖ composta pelo negro Ismael Silva entre tantos outros compositores de
samba. (NETO, 2017)
4Nesse contexto, a favela é um local sagrado porque nela é venerada as situações cotidianas em que a memória
cultural poderá ser deixada como herança para gerações futuras. Assim, a reverência as personalidades do
ambiente do samba, simbolizam esta ação afirmativa.
13
negro esteve condicionado aos ditames da elite. Os precursores5 da ―escola de samba‖
(cucumbis6, cordões
7, ranchos
8, blocos
9, etc.) atenderam as determinações da esfera pública,
paulatinamente mudaram seu formato e assim puderam participar da vida carnavalesca no Rio
de Janeiro. (FERNANDES, 2012)
5Os ranchos, os cordões e os blocos descendem de festas religiosas do mundo colonial escravista, com forte
presença de negros e africanos (FERNANDES, 2001).
6Os Cucumbis Carnavalescos não representam apenas uma reprodução de antigas festas coloniais. Eles eram
uma manifestação mais ampla, uma elaboração criativa de seus participantes estabelecendo um diálogo entre as
novas formas de se brincar o carnaval da década de 1880 com os elementos culturais presentes entre as culturas
negras da cidade. Elementos das congadas, dos reisados, das festas das irmandades religiosas, dos cortejos
fúnebres, de embaixadas africanas, e também referências a Calunga, um cristianismo africano) e a história da
África (o reino do Congo, a rainha Ginga, a travessia do Atlântico) entravam em contato com as formas
europeizadas de se brincar o carnaval (os préstitos com pela Rua do Ouvidor). Um indício bastante interessante
das diferenças entre os Cucumbis Carnavalescos e grupos majoritariamente compostos por baianos pode ser
encontrado em relatos de Donga e Vagalume sobre o início do século XX. Um Afoxé criado em 1900, por
baianos residentes no Rio, ―fazia a crítica dos Cucumbis‖, segundo Donga. Vagalume completa que tal[...] as
críticas consistiam em reproduzir o tipo deste ou daquele africano. Parodiavam canções, vestimentas, trejeitos
e hábitos dos Cucumbis Carnavalescos e seus membros. Segundo Maria Clementina Pereira Cunha, ―esses
grupos [afoxés de baianos] colocavam--se como contraposição carnavalesca aos ‗africanismos‘ cariocas e
até‗antigas‘‖.31 Ou seja, grupos explicitamente ligados a imigrantes baianos não se reconheciam na tradição
dos Cucumbis cariocas, manifestando tal postura publicamente. Os Cucumbis tinham a figura do índio
guerreiro com seu tacape, do caboclo, do rei e da rainha e o feiticeiro com sua cobra e amuleto (BRASIL,
2014)
7A linha evolutiva dos cordões encontra suas origens nos cucumbis, aquelas manifestações carnavalescas de
negros que Debret viu ao lado do entrudo no Rio de Janeiro do princípio do século XIX. Segundo Morais Filho
(op. cit.: 109), os cucumbis na Bahia, que nas demais províncias se chamavam de congos, eram formados por
negros de distintas nações que se reuniam nas festas do Natal e na época do entrudo em certas casas e também
em tablados, construídos em praças ou ao lado das igrejas para as apresentações tradicionais de ―chegança dos
mouros e marujadas‖. Os congos ou cucumbis também participavam de cerimônias sagradas como cortejos
fúnebres de escravos ou pretos forros membros de dinastias africanas, marchavam em desfiles que chegavam a
centenas de pessoas, sacudiam chocalhos, cantavam e dançavam. A princípio entoavam hinos em línguas
africanas, com o tempo foram intercalando versos em português e toadas produzidas localmente, ―o que em
nada alterava a índole do baleto selvagem dos congos, com o seu enredo e evoluções guerreiras, seus reis e
princesas de forma correta e altivos, seus tamborins e canzás, que desenvolvem lhes em torno de uma
atmosfera tempestuosa e imitativa‖. Como concluiu Eneida (op. cit.: 123), muito daquele vestuário e das
personagens dos cucumbis existia nos cordões que continuavam a sair nas primeiras décadas do século XX,
―mesmo quando parte deles se transformaram em ranchos‖. Os cordões, diferente dos ranchos, possuem
origem urbana, e rementem as manifestações derivadas dos zé-pereira e dos cucumbis, mantendo as mesmas
fantasias de animais, piratas etc (FERNANDES, p 24, 2001).
8Os cordões quando se transformaram em ranchos depois de 1908, abandonaram a orquestra exclusiva de
instrumentos africanos de percussão, incorporando cordas e metais, trocando assim o ritmo de suas músicas
pela marcha-rancho, que por sua vez era uma derivação da marcha, peça musical utilizada em paradas militares
e procissões religiosas, que inclusive foram assimiladas pela música clássica no século XVIII. Não por acaso
tanto Eneida como Soihet admitem que ―os ranchos eram cordões mais civilizados‖ (FERNANDES, p. 23,
2001).
9Parece que a renomeação dos cordões constituiu um diversionismo que procurou deslocar a onda repressora
desencadeada contra as manifestações populares, bastante reanimada com o triunfalismo que se seguiu à
Reforma Passos. Através deste artifício, seus membros procuravam fugir de um processo de satanização que
sempre os associava a violência e bestialidades, como hoje se faz com os funkeiros e também se fez com os
sambistas e macumbeiros (FERNANDES, p. 34, 2001).
14
A manutenção do agir no carnaval, herdado do século XIX, persistiu no início do
século seguinte. Os cordões, por exemplo, caracterizam-se por formas agressivas de atuar nos
festejos carnavalescos, destoando do carnaval dos corsos, referência europeia, desejada
organização ―civilizada ―da elite intelectual e política da Cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro. A exclusão social feita pela ausência de programas de habitação popular, oferta de
emprego, acesso a saúde e educação associadas a repressão à manifestação cultural do povo
representou o menosprezo, consequente exclusão ao acesso aos bens elementares
(FERNANDES, 2001).
A modernização do centro do Rio de Janeiro gradativamente deslocou a população de
negros, mestiços, branco pobres para áreas menos valorizadas da cidade. O bota abaixo
protagonizado pelo Governo de Pereira Passos10
exerceu papel importante ao dar novo valor
de uso às muitas áreas centrais e, a requalificação urbana de áreas centrais em períodos
posteriores, este constituiu-se modelo seguido por muitos administradores públicos ao longo
da história da cidade. A modernização do Centro, com a abertura de novas artérias, serviu ao
proposito de esconder a proliferação da pobreza e, assim a população pobre com hábitos
coloniais foi empurrada11
para sítios sem interesse pelos empreendedores imobiliários, como
as áreas ao longo da linha férrea e as encostas dos morros.
10
O crescimento populacional da Cidade de São Sebastiao do Rio de Janeiro deveu-se pela liberação de negros
das fazendas com a Abolição em 1888 e a imigração europeia. Este conjunto de fatos foram os responsáveis
por problemas, tais como, falta de moradia, saneamento básico. Pereira Passos assumiu o governo (1902-1906)
da prefeitura do então Distrito Federal numa cidade que se distanciava em muito do desejo de europeização da
elite brasileira. A estrutura urbana herdada do período colonial estava impressa na paisagem. Questões básicas
de saneamento e abastecimento de água eram um entre muitos problemas da Capital Federal. Na área central
de habitação antiga, eclodiam habitações coletivas e insalubres, os cortiços. Na ocasião, a Cidade da Morte,
como foi conhecida a Cidade do Rio de Janeiro enfrentava as epidemias de cólera e febre amarela, dando
também ao Rio, a alcunha de Porto Sujo. Então o Prefeito Pereira Passos promoveu em sua administração o
projeto de modernização da cidade, derrubou cortiços, abriu ruas mais largas em oposição as estreitas ruelas
coloniais, dando ares cosmopolita e moderno a Cidade do Rio de Janeiro (ABREU, 1987)
11
Maurício Abreu (1987) e Lícia Valladares (2013) destacam que a Reforma Passos, como ficou conhecido o
processo de modernização da Cidade do Rio de Janeiro, foi o pivô do processo de periferização da cidade,
quando as obras públicas valorizaram o solo urbano da área central, implicou, como isso, em alto custo de
moradia para a grande parcela de pobres que residiram no Centro da Cidade. Em torno de 1.500 prédios velhos
residências foram postos no chão. Houve, então, duas opções de deslocamento para população de baixa renda,
já que não conseguiam pagar pelo alto valor dos aluguéis após as obras de modernização do centro da cidade.
A opção foi o afluxo de pessoas para os bairros dos subúrbios, principalmente servidos pela linha de trem e
aqueles que ainda precisavam ficar próximo ao centro, em decorrência do trabalho, permaneceram no entorno,
ocupando a encosta do Morro da Providência, de Santo Antônio entre outros, iniciou-se, nesse contexto, o
crescimento das favelas no Rio de Janeiro.
15
O contexto em que as favelas cariocas ganham maior expressão no tecido urbano tem
a ver com o contingente de pessoas se deslocando para os subúrbios ligados a expansão da
estrada de ferro e a proximidade a área central, onde estavam concentrados os postos de
trabalho. Sob tal aspecto, o Morro dos Telégrafos (depois conhecidos como Morro da
Mangueira) inseriu-se nessa estratégia da população de baixa renda que havia chegada ao
Cidade em fins do século XIX. A cultura de matriz africana foi utilizada em Mangueira em
trocas solidárias entre pessoas com o mesmo referencial cultural, resistindo em morar no
Centro do Rio de Janeiro. Isto constitui-se em forma de reconhecimento mútuo, permitiu-se,
contudo, aos moradores de Mangueira sentirem a valorização de sua estima social, que recaiu
em formas de associativismo para alcançar, em certa medida, a condição de vida boa.
Esta representa a mediação dos valores compartilhados como descrevemos acima. O
advento do fenômeno escola de samba, para a Favela do Morro da Mangueira, colocou-se
como símbolo do reconhecimento pacífico e tornou-se o elemento que deu chances para os
seus moradores pudessem refletir sobre suas capacidades e propriedades concretas.
Nas áreas periféricas, inicialmente os cortiços e depois as favelas, o samba encontrou
abrigo, além de constituir elemento simbólico de busca por reconhecimento. O samba
estimulou trocas entre pessoas de diferentes pontos da cidade, criando uma circulação
incentivada pelo valor simbólico da cultura de matriz africana. A favela do Morro de
Mangueira é um exemplo em que a busca por reconhecimento tem no samba elemento de
coesão entre seus moradores e os sujeitos externos. A cultura do carnaval talvez, não
aconteceu sem intencionalidade de conquistar o espaço da cidade como um todo, houve a
intenção de imprimir os traços de uma identidade de bairro12
.
O desejo de luta pacífica terá na ação afirmativa13
de seus moradores estratégias que
podem ter contribuído para a busca do reconhecimento para o Morro de Mangueira. O samba
elemento cultural, originado a partir de reuniões de indivíduos excluídos na periferia, servirá
como símbolo de mediação pacífica entre os moradores da Mangueira e outros atores sociais
12
Observam-se alguns elementos das composições das Escola de Samba de Mangueira e Portela na década de
1920 e 1930, o quanto são diferentes indicando uma identidade local.
13
A ação afirmativa é pensada aqui na medida que os potenciais crescimentos dos vínculos de comunidade e o
aumento da liberdade individual, acontecem com o entrelaçamento da socialização e individualização ao
reconhecer na sociedade um tipo de coesão entre as pessoas. O exemplo disso e a cultura popular que tem
ações ressignificações ao ser absorvida pelo grande capital, foi o que aconteceu como samba, e hoje ocorre
com o funk comercial que recebe uma leitura mais de acordo com a lente dos proprietários dos meios de
produção de entretimento.
16
de classes sociais economicamente mais bem posicionadas. Todavia, o samba teve papel
importante para o reconhecimento entre os próprios moradores do Morro de Mangueira,
fortalecendo os laços de solidariedade em torno do GRES14
Estação Primeira15
. O
reconhecimento mútuo na favela do Morro da Mangueira estabeleceu certo tipo de
apropriação que projetará o lugar de tal maneira que representará um símbolo de mediação
pacífica entre espaços distintos da cidade.
O tema é relevante porque apresenta as iniciativas de grupos excluídos visando o
reconhecimento dos segmentos dominantes. As estratégias dos sujeitos não reconhecidos é
um panorama mundial, em que a luta de classes vem sendo substituídas pela luta dos grupos
minoritariamente representados politicamente. Quando as iniciativas de grupos excluídos pelo
Estado, tomam a dianteira e reivindicam soluções para atender suas demandas, desperta o
interesse para a ciência. Então, entender como essa busca acontece no território da favela do
Morro da Mangueira é nosso propósito, já que este lugar é reconhecido pelo samba e o modo
que tal manifestação cultural serve como um canal de alívio das tensões, pois as políticas
públicas são excludentes. Este trabalho tem por objetivo analisar a busca por reconhecimento
no Morro da Mangueira através das mediações simbólicas favorecidas pelo samba. Com isso,
será mostrado como o samba gerou um ponto de ruptura no tipo de reconhecimento buscado
pelos moradores da favela. A temática em tela, também, é importante pois permite o diálogo
da Geografia com outros campos do saber. Além de apresentar o tema sob a perspectiva
geográfica.
A análise e construção teórica seguiram como procedimento metodológico a pesquisa
bibliográfica, sistematização do conteúdo consultado sobre o tema Reconhecimento. Para isso
a obra o filósofo Hegel16
é o ponto de partida ao construir sua teoria a partir do entendimento
que o contrato entre homens não esgota a luta de todos contra todos, a luta para Hegel era
social, abordagem inovadora, pois na sua reflexão considerou o conflito entre homens. Os
14
Sigla que significa Grêmio Recreativo de Escola de Samba
15
Segundo Cartola, no livro Fala Mangueira de 1980, o nome deveu-se a Mangueira a ser a primeira parada
desde a Central do Brasil, em que havia samba.
16
O pensamento hegeliano sobre o reconhecimento desenvolveu-se a partir da crítica o pensamento de Fichte,
que explica o reconhecimento por meio da mediação jurídica entre os homens. Entretanto, para Hegel o
reconhecimento é um projeto intersubjetivo dentro de formas comunicativas de vida, em que o vinculo
complementário e, com isso, a comunidade necessária dos sujeitos contrapondos-se entre si são assegurados
por um movimento de reconhecimento. O reconhecimento recíproco foi analisado pelo perspectiva hegeliana e
ele assim considera
17
cientista atuais, como Charles Taylor, Axel Honneth, Nancy Fraser e Paul Ricouer, em
fins do século XX atualizam a reflexão proposta por Hegel. Então, algumas noções
desenvolvidas a partir do tema do reconhecimento são lidas, nesta pesquisa, à luz da história
do samba na favela do Morro da Mangueira. A luta social ,percebida na ação dos sujeitos
celebrantes e nos objetos celebrados, como descrito por Nelson Fernandes (2001), remete a
estrutura da relação de reconhecimento recíproco, isto é, quando um sujeito se sabe
reconhecido por outro sujeito em algumas de suas capacidades e propriedades, ele terá
condições de auto reconhecer as partes de sua identidade que é única, além de estar
contraposto ao outro, como um particular. Parafraseando Fernandes (2001), a população de
baixa renda da urbe carioca, reconheceu que a sua música e sua dança estabeleceria o ponto
de contato com outras classe da sociedade na luta social pelo reconhecimento. Em outras
palavras, os sujeitos celebrantes, os sambistas, e os objetos celebrados, o samba – dança e
música, são os símbolos de mediação pacífica que encaminharam as buscas por
reconhecimento da população de baixa renda e de sua cultura popular.
O exemplo apresentado nesta pesquisa inclui o papel do samba para a luta social do
reconhecimento no Morro da Mangueira, que seguiu o seguinte caminho metodológico:
conversas informais com moradores antigos, participantes dos desfiles antigos do G.R.E.S
Estação Primeira de Mangueira. Somou-se a isto a consulta aos jornais desde a década de
1920 até os dias atuais. Nestes periódicos além das matérias acerca do Morro da Mangueira,
encontrou-se fotos de antigas personalidades, contribuidoras com a construção do movimento
de reconhecimento do samba como identidade local, em comunhão com outros grupos de
sambistas da Cidade do Rio de Janeiro.
A construção do arcabouço teórico da luta social pelo reconhecimento, remontou a
pesquisa aos escritos de Hegel e a sua análise atenta ao tema do reconhecimento desenvolvida
por Ficthe. A revisão bibliográfica não ficou restrita a estes iniciadores da análise do tema,
estende-se pela atualidade em trabalhos publicados por cientistas de renome, tais como,
Charles Taylor, Axel Honneth, Nancy Fraser e Paul Ricouer dão prosseguimento ao esforço
de aprofundar esse assunto. A análise da busca por reconhecimento num território excluído
como a favela, não nos permite generalizar porque cada lugar possui uma realidade como suas
particularidades.
Fez-se consultas ao Arquivo Nacional e ao Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro
foram feitas, além da pesquisa em documentários antigos sobre a favela da Mangueira,
visando manter-se fiel ao relato dos moradores mais antigos e, confrontando as informações
obtidas em pesquisa bibliográfica sobre o lugar. Não foram feitas entrevistas formais, com
18
aplicação de questionários e perguntas pré-estabelecidas, optou-se em propor o tema a história
da favela do Morro da Mangueira, que as lembranças afloraram e que deu suporte a pesquisa
aqui desenvolvida.
Este trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo apresenta a origem
da reflexão acerca do reconhecimento no pensamento de Hegel. A partir do século XX esta
discussão foi recuperada por Charles Taylor e abordada por quatro principais cientistas
sociais: Axel Honneth, Nancy Fraser e Paul Ricouer, que apontam os tipos de ações e
reconhecimentos praticados atualmente.
O capítulo 2 tem como objetivo apresentar uma leitura geográfica do reconhecimento.
Isto se dará no diálogo dos autores do ―reconhecimento‖ com os principais estudos
geográficos de Milton Santos, Rogério Haesbaert e Marcelo Lopes de Sousa que apresentam
os conceitos da Geografia. Nesse sentido, o nome com o qual denomina-se as áreas periféricas
e segregadas revelam o tipo de reconhecimento, merecendo destaque a abordagem dos
vocábulos morro, favela e comunidade.
No capítulo 3 a recuperação da história da favela apresenta fatos que evidenciam um
percurso caracterizado pelo não reconhecimento, manifestado nas formas de exclusão,
menosprezo. Em contrapartida, as ações afirmativas dos favelados construíram símbolos
expressão da busca por mediações pacíficas com outros segmentos da sociedade.
O Capítulo 4 apresenta o exemplo da favela do Morro da Mangueira como possiblidade
de ações afirmativas no tocante ao reconhecimento. Esta parte do trabalho está subdividido
em outras três partes que apresentam a história da formação espacial do da favela do Morro da
Mangueira e a importância do GRES Estação Primeira constituindo-se como símbolo que liga
o local ao reconhecimento externo. Dessa maneira esse território cultural consegue articular-
se com outros níveis hierárquicos em busca do reconhecimento.
Este estudo se alinha com a linha de pesquisa coordenado pela professora Monica
Sampaio Machado, Expressões Territoriais Contemporâneas, que analisam como as
manifestações culturais associadas as diversas formas de associativismo contribuem para a
busca do reconhecimento.
19
1 A BUSCA POR DO RECONHECIMENTO
A luta por reconhecimento foi um tema desenvolvido por Hegel em sua passagem
como jovem docente universitário em Jena. A teoria social desenvolvida por Hegel foi
Naquela época a convicção de que resulta de uma luta dos sujeitos pelo
reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intrassocial para o
estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade; trata-se
da pretensão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade,
inerente à vida social desde o começo na qualidade de uma tensão moral que volta a
impelir para além da respectiva medida institucionalizada de progresso social e,
desse modo, conduz pouco a pouco a um estado de liberdade comunicativamente
vivida, pelo caminho negativo de um conflito a se repetir de maneira gradativa.
(HONNETH, p.33, 2015)
A luta social já identificada em escritos de Maquiavel e Hobbes teve no esforço do
jovem docente de Jena um avanço teórico, pois a razão dos conflitos entre os homens esteve
assentada na moral, isto é, manutenção da honra e, não mais a necessidade de
autoconservação17
. Em Argumentos filosóficos, Charles Taylor (2000) apresenta Hegel como
precursor do entendimento da pessoa em sua subjetividade, identidade dissociada do
coletivo18
. Ao mesmo tempo, sua teoria da vida moderna, distinguindo-se da dos antigos,
voltou-se para o desenvolvimento diferenciado dessa esfera pública não-política, que
relaciona os indivíduos em suas identidades separadas (TAYLOR, p. 222, 2000).
De acordo com Honneth (2015) esta premissa auxilia na descrição que Hegel fez da
estrutura interna das formas de relação ética, que ele quis pressupor fundamentalmente a título
de um primeiro estágio da socialização humana. O reconhecimento, no pensamento do jovem
17
Segundo Thomas Hobbes (1588-1679) o corpo e o movimento local explicam todas as coisas e, o
desenvolvimento de tal pensamento conclui afirmando que no homem não pode ser encontrada a liberdade,
tudo nele depende do princípio da necessidade. Então, não há no homem espaço para o bem ou para mal
morais. ―se fugimos de alguma coisa ou procuramos outra, nem todos o fazemos em relação às mesmas coisas.
Daí o relativismo moral. A condição natural de vida do homem é a violência e sua maior expressão, a guerra,
põe-se em questão, o risco de perder-se a vida. As alternativas para fugir da morte é a recorrer a razão e ao
instinto. Este faz o homem evitar a guerra e lutar por aquilo que é requisito para sua sobrevivência. Da razão
originam-se as leis da natureza, que nada mais são que racionalização do egoísmo. Tais regras materializam o
instinto de auto conservação. As leis da natureza, a partir desse contexto, são criações da razão, no campo do
desejo de auto conservação (HRYNIEWICZ, p.375-376, 2001)
18
Honneth esclarece com minúcias os sistema de eticidade estabelecido por Hegel. A postura de singularização
do sujeito tem início no seio familiar, onde o filho após criado pelos pais rompe com as relações de carência e
se torna independente porque possui uma identidade definida e única, reconhece-se assim como singular em
meio a totalidade. O segundo momento é quando o sujeito reconhece que seus direitos são infringidos, por
exemplo num furto, onde a sua condição de pessoa humana é violada, o outro ( o criminoso) não o reconhece
como pessoa em sua totalidade. A terceira etapa corresponde ao sujeito em sua relação com o Estado.
20
Hegel – por volta de 1802 – é a relação ética entre os sujeitos, subjacente ao processo de
etapas de reconciliação e de conflito ao mesmo tempo, as quais substituem umas às outras.
Então, Hegel identificou no mundo concreto o ponto de partida da fragmentação e da
diversidade nas relações sociais de convivência no amago do sistema político. O que deve se
ater, então, não é a uma vida exterior ao sistema político, mas o modo como se comunicam a
ele e a capacidade de influencia-lo.
O estudo das etapas do reconhecimento desenvolvido por Hegel é atual, porque
vivemos em mundo indicativo de da emergência de uma nova história (SANTOS, p.20,
2013). Muitas são as situações demandadas para esta realização, o mundo de hoje não tem
explicações no uso da honra, ligada a ética como na época que viveu Hegel. O contingente de
pessoas circulando em todas as direções nos cinco continentes, o fluxo de informações, as
mudanças rápidas ocorridas desde os fim do século XIX, pensam a luta de classes em outras
nuances, e é isso que se apresenta com a leitura espacial do reconhecimento. Em particular, o
Rio de Janeiro desde o fim da escravidão constitui-se em objeto de estudo a ser olhado sob a
ótica do pensamento hegeliano. Nesta cidade a mistura de culturas, pode ser entendida como o
conflito e reconciliações inseridas no contexto de maior de busca da unidade territorial e
nacional. Honneth (2015) faz referência ao amadurecimento da perspectiva do
reconhecimento em um Hegel com mais experiencia em sua fase adulta.
Porém, a análise do tema do reconhecimento não deve ser entendida restrita ao
contexto da urbe carioca, pois é uma discussão ligada aos conflitos sociais existentes no
mundo atual. Tais como, os preconceitos quanto aos grupos LGBTQ, ao racismo e a
segregação sofrida por negros em países que mantiveram durante séculos a economia agrária
alicerçada numa economia escravocrata, aos imigrantes em várias partes do mundo etc. A
proposta de apontar um saber no qual a discussão quanto ao reconhecimento, encontrou o
empenho e o pioneirismo de Charles Taylor o conflito canadense entre os francófonos e
anglo-saxões do Quebec e a luta por respeito e direito a cidadania no Canadá.
Outros autores como Honneth, Ricouer, Fraser entre outros utilizam a mesma linha de
raciocínio para mostrar como os demais grupos excluídos criam mecanismos para lutarem por
reconhecimento. Esta etapa do trabalho está dividida em três partes a saber: os estudos de
Hegel, a importância dos estudos sobre o reconhecimento e o desenvolvimento dos estudos do
reconhecimento em nossos dias.
A apresentação deste tema contribui para reflexão dos grupos sociais no Rio de
Janeiro, que a seu modo empreendem a luta social pelo reconhecimento.
21
1.1 Hegel e o discurso do reconhecimento: contexto histórico
Para compreender melhor o que é o discurso do reconhecimento, propomos uma
breve contextualização à época de Hegel, filósofo alemão. Ele viveu entre os séculos XVIII e
XIX, auge do Liberalismo, doutrina em defesa da liberdade política e econômica sem a
intervenção do Estado. Nesse aspecto o poder estatal somente agiria como mediador, atuando
em situações para proteger o indivíduo do dano. De modo geral os indivíduos atuariam de
acordo com as regras do livre mercado.
O liberalismo19
é anterior ao nascimento de Hegel, séculos XVII e XVIII. O sistema
econômico decorrente do comércio marítimo requereu uma nova forma de governar que
reduzisse o poder das monarquias absolutistas da Europa. O rei legítimo representante de
Deus na Terra determinava o destino da nação e de seus súditos. Em contrapartida, as ideias
dos iluministas permearam a sociedade e questionando a excessiva intervenção estatal em
todos os aspectos do cotidiano. Aliou-se a isso, o viés empreendedor e autônomo da burguesia
que contribuiu para ser pensado outro tipo de relação entre o indivíduo e o mundo. A
empreitada comercial pelo mundo alicerçou-se na iniciativa e nos objetivos almejados pelo
burguês, em contrariedade com o Absolutismo e com o poder imanente de Deus.
(SAAVEDRA; SOBOTTKA, 2009)
A nova visão de mundo inaugurada pelo Iluminismo e pela modernidade tinha na
presença do homem á base do pensamento. Assim, o valor cultivado pelo indivíduo
previamente era a vivência em sociedade. Em suma, numa sociedade liberalista, a pessoa
experiência os seus valores junto ao grupo social. (VERITAS, 2005)
Com o liberalismo solidificou-se a proposta de sociedade baseada nas atividades
comerciais, mais intensivas entres os diferentes e distantes lugares do mundo. Além do
antropocentrismo e da ideia de igualdade entre todos, o mundo testemunhou a concorrência
disso entre as nações. (VENTURA, 2011)
19
No pensamento do inglês John Locke (1632-1704) destacam-se três temas: o gnosiológico, o ético-político e o
religioso. O pensamento político é o mais conhecido, de modo geral, considerado a base para o pensamento
liberal. Para o filosofo o Estado surgiu de um acordo entre os homens, em Estado natural, diferente de Hobbes,
os homens não são violentos, porém livres. Ao Estado compete o poder de elaborar as leis(pode legislativo) e
as impõe, exigindo o seu cumprimento. Os limites impostos a ação do Estado são estabelecidos pelos próprios
cidadãos. Nessa circunstância, o pensamento de Hegel contribuiu para análise social porque considera as
relações entre os sujeitos, o reconhecimento a partir dos conflitos e da reconciliação, que em muitos casos está
longe do alcance a ação vigilante do poder executivo e legislativo do Estado.
22
No plano político, o liberalismo mostrou-se contrário ao Absolutismo, porque o
interesse social não deveria subjugar-se ao interesse individual do rei. O pensamento liberal
perdurou como sistema filosófico até o início do século XX, ruindo com a quebra da Bolsa de
Valores de Nova Iorque em 1929. Desse sistema filosófico a ideia de vontade do indivíduo e
de liberdade, parece mostrar o conjunto de situações que influenciaram o pensamento de
Hegel acerca do discurso do reconhecimento. (HONNETH, 2015)
1.2 A relevância de Hegel e do seu pensamento acerca do reconhecimento
As transformações mundiais da modernidade gradativamente reduziram as distancias e
o tempo. Mais e mais terras foram apropriadas e povos subjugados desde o início das grandes
navegações. Na Europa a expansão do ambiente urbano fez surgir novas realidades. O auge
do sistema capitalista fez aparecer uma categoria nova, os despossuídos. Se no ambiente rural
a pessoa detinha a posse dos bens de produção, no contexto urbano o indivíduo passou a ser
mais uma peça da engrenagem partícipe da economia capitalista. Pensar o reconhecimento
dos sujeitos, em meio a rápida transformação do sistema econômico, tornou-se a preocupação
de muitos pensadores.
Hegel como jovem docente de filosofia em Jena buscou mediar a doutrina da
liberdade, proveniente do liberalismo, e o entendimento da moralidade, eticidade e da política
antiga. Com essa postura, Hegel argumentou a respeito da luta dos sujeitos pelo
reconhecimento recíproco de sua identidade frente ao seu meio social.
A base da filosofia política de Hegel remonta aos escritos de Maquiavel. A concepção
maquiavélica propõe a ideia na qual os sujeitos individuais possuem interesses distintos e,
bem como, cada coletividade política possui demandas diferentes e divergentes. Podemos
afirmar então, que há desejos particulares que não estão inseridos em projetos políticos
maiores. Por exemplo, o fim do tráfico de drogas pode ser o desejo da comunidade, mas pode
não fazer parte do projeto político e econômico maior, determinada em outro nível do espaço
geográfico. Como o conflito constante entre os indivíduos poderia ser influenciado em favor
daqueles que estão no poder? E como acontece a luta constante dos sujeitos pela conservação
de sua identidade? (HONNETH, 2015)
O percurso iniciado por Hegel teve como ponto de partida a teoria fichtiana do
reconhecimento a fim de descrever a estrutura ―interna das formas de relação ética‖. Ele
23
percebeu que em Fichte20
a noção de reconhecimento é ―a ação recíproca‖ entre indivíduos,
implícita à relação jurídica: no apelo recíproco à ação livre e na limitação simultânea da
própria esfera de ação a favor do outro, constitui-se entre os sujeitos a consciência comum,
que depois alcança validade objetiva na relação jurídica. No sentido mais estrito, as regras
determinadas pela convivência social acabam por tomar valor jurídico em dada sociedade
(HONETH, 2015, p. 46).
A ideia de Fichte serviu de ponto de partida para Hegel que, no entanto, subtrai a
abordagem de fundo transcendental, apontando para aplica-la dentro das formas
comunicativas de vida. O reconhecimento recíproco é o mesmo em qualquer aspecto das
relações sociais, isto é,
na medida em que sabe reconhecido por um outro sujeito em algumas de suas
capacidades e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá
a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse
modo, também estará contraposto ao outro novamente como um particular. [...] os
sujeitos, no quadro de uma relação já estabelecida eticamente, vêm sempre a saber
algo mais acerca de sua identidade particular, pois trata-se em cada caso até mesmo
de uma nova dimensão de seu Eu que veem confirmada, eles abandonam novamente
a etapa da eticidade alcançada, também de modo conflituoso, para chegar de certa
maneira ao reconhecimento de uma forma mais exigente de individualidade; nesse
sentido, o movimento de reconhecimento que subjaz a uma relação ética ente
sujeitos consiste num processo de etapas de reconciliação e de conflito ao mesmo
tempo, as quais substituem umas às outras. (HONNETH, 2015, p. 47)
Hegel ao ampliar a perspectiva de reconhecimento, desenvolvida por Fichte insere a
questão do conflito implícito para explicar a relação social. A noção de ―reconhecimento‖
remonta à filosofia Hegeliana, desenvolvida a fim de descrever a estrutura íntima da relação
ética entre dois sujeitos, como o nexo com a sociedade. Hegel percebeu que com a
modernidade configurou-se variadas perspectivas e estilos de vida, exigindo renovadas
20
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) Filosofo alemão nasceu em Rammenau. Compreendeu bem a obra de
Kant. Lecionou na Universidade de Jena e na Universidade de Erlangen. Sua obra costuma ser dividida em
duas fases: Período de Jena e o Período de Berlim. O desenvolvimento do conceito de conhecimento e de
moral foram as influências de Hegel. O Eu em Fichte se delimita e torna possível os objetos (não-eu), enquanto
objetos do conhecimento. Se do ponto de vista do senso comum, tendemos a reconhecer que os objetos
determinam o nosso conhecimento, do ponto de vista da filosofia idealista, notamos que, no processo de
fundamentação do conhecimento, é a própria consciência que torna possível o conhecimento, isto, tanto no que
diz respeito à sua prua atividade cognoscitiva, quanto no que tange à possiblidade da realidade do objeto que se
põe para a consciência. Na atividade cognoscitiva, o Eu, ainda que seja responsável pela oposição das coisas
enquanto objetos do conhecimento, é delimitado por eles, neste caso, conhecer é, também, reconhecer as
características do objeto. Na atividade moral, ao contrário, o sujeito encontra espaço para a realização plena de
sua liberdade. Se, no caso do conhecimento, o objeto para ser conhecido deve ser reconhecido em sua
característica, no caso do agir moral, as coisas apresentam-se como limites a serem superados pelo Eu. Assim,
ser livre é sobretudo, ―tornar-se livre‖. Ao pôr o Não-Eu, o Eu colocou a condição indispensável para o
exercício da liberdade: a de superar os limites postos pelas coisas. Num certo sentido, na história humana, a
liberdade torna-se infinita, na medida em que o Não-Eu é um limite a ser permanentemente superado
(HRYNIEWICZ, 2001).
24
categorias teóricas que embasem os anseios individuais por uma vida melhor. Em outras
palavras, para Hegel a identidade parte do princípio do reconhecimento recíproco entre os
sujeitos, então quando a autonomia de um indivíduo é reconhecida por outros, ele possui
condições de chegar a uma compreensão completa dele mesmo como sujeito social em busca
do estabelecimento prático e político de instituições que assegurem a liberdade. Honneth
(2015) assim contextualiza a postura de Hegel:
é só porque havia conferido ao processo da ação de luta o significado específico do
distúrbio e de uma lesão nas relações sociais de reconhecimento que Hegel pôde em
seguida reconhecer nele também o médium central de um processo de formação do
espirito humano. (HONNETH, 2015, p. 30)
O conflito entre os diferentes segmentos sociais fez Hegel perceber que entre aqueles
que lutam havia uma experiência compartilhada de restrição a vivência de sua liberdade
individual. Então, os conflitos sociais atentam na direção de perceber a necessidade de
reconhecimento como parte da formação humana como um todo. Mas, até que ponto pode-se
transpor o estudo de Hegel para a contemporaneidade?
1.3 O reconhecimento em nossos dias
A retomada do discurso do reconhecimento e suas implicações têm a ver com o
processo de globalização caracterizado por relações instáveis e pela pluralidade de visão de
mundo desconstruindo a tradicional hierarquia social. Em fins do século XX a demanda por
reconhecimento teve como pano de fundo a crise do Estado-Nação e das formas clássicas de
democracia representativa impelindo a formação de identidades coletivas em busca da
transformação, como os ecologistas, ou a defesa do conservadorismo, mantenedora das
relações sociais tradicionais, como por exemplo, o Orgulho Branco.
Uma pessoa pode ter mais de uma identidade: homem, negro, professor,
heterossexual, cristão etc. com isso o indivíduo poderá definir quais destas identidades terão
maior ou menor peso no seu dia a dia e na sua procura por reconhecimento (FRASER, 2001).
O pensamento hegeliano serviu como ponto de partida para discussão proposta por
autores contemporâneos, entre eles Axel Honneth; Charles Taylor; Nancy Fraser; Judith
Butler, Paul Ricouer etc. Esses autores elaboraram teorias críticas que combinam o
25
reconhecimento das individualidades com as necessidades materiais de cada grupo. Em outras
palavras, cada um desses estudiosos desenvolveu seus trabalhos buscando perspectivas
próprias a fim de expandir o pensamento delineado originalmente por Hegel, quanto ao
discurso do Reconhecimento.
Os pensadores Charles Taylor e Alex Honneth, no tocante ao exame do discurso do
reconhecimento contemporâneo, ressaltam duas possibilidades de caminhos: uma em que o
indivíduo integrado com outras pessoas produz a capacidade de agir de forma favorável e a
outra postura que pode ser desfavorável mediante as pretensões possíveis em seu meio social.
Entretanto, Ricouer (2016) em seu percurso do reconhecimento chama atenção para
três áreas do direito: civil, político e social mediando as relações igualitárias da sociedade.
Estes três aspectos possuem elementos próprios e que se desdobram em outros conjuntos de
circunstâncias. No primeiro, a proteção da pessoa e da sua liberdade, da sua vida e da sua
propriedade, diante das usurpações ilegítimas do Estado. Quanto à dimensão política,
assegura ao indivíduo a participação nos processos de formação da vontade pública. E por
último garante a cada um a parte igual na distribuição de bens elementares. Dentre os tipos de
direito apresentados, o mais conflituoso atualmente é o social, porque protagoniza o dilema da
divisão equitativa dos bens mercantis e não mercantis, aparecendo como uma das bandeiras
da luta por reconhecimento:
Atribuição desigual de direitos e a distribuição desigual dos bens. Uma teoria da
justiça como a de John Rawls encontra uma de suas razões de ser na formulação das
regras de divisão equitativa nas sociedades não-igualitárias que são as únicas que
conhecemos. Embora esses direitos sociais se referiram principalmente à ação
educativa, à saúde e à garantia de um nível de vida decente, a segurança econômica
aparece doravante como o meio material de exercer todos os outros direitos.
(RICOUER, 2016, p. 123)
Na realidade, o indivíduo em suas relações espaciais produz normas no seu contato
com o outro, e isso acontece naturalmente através dos vínculos sociais, sendo consagrado com
status jurídico na forma de lei. Na contemporaneidade vigente, os estudiosos do pensamento
de Hegel buscam e pretendem mostrar as raízes das discussões sobre identidade e autoridade
embasadas nos estudos pretéritos sobre o reconhecimento.
Cesar Augusto Ramos (2005) ressalta que, as teses apresentadas por Hegel sobre o
Estado, a sociedade e a liberdade individual provocam certa hesitação, se lida a luz dos
clássicos do pensamento liberal, tem como marco para isso os estudos de J. Rawls. Ao
atualizarem o pensamento hegeliano, os estudiosos, segundo Verita (2005) devem se
questionar quanto a sensibilidade dele ao princípio liberal da liberdade do indivíduo e dos
26
direitos individuais, ou verificar se ele negou esse princípio em benefício do Estado. Ante a
esse questionamento, há duas possibilidades de interpretações. Uma em que Hegel figura
como antiliberal, cunhador de uma filosofia política autoritária e conservadora e, a outra em
que avalia o hegelialismo político como uma doutrina da liberdade.
Os trabalhos atuais contestam as acusações acerca da obra política de Hegel, em que
o filósofo aparentemente refutou a liberdade individual e o direito da pessoa. Hoje os
defensores de Hegel, sustentam a tese na qual a filosofia política hegeliana aparece como uma
teoria cuja preocupação é com a liberdade, tanto no sentido institucional quanto no sentido
individual.
A liberdade em Hegel é um tema que nos direciona para pensar o indivíduo e sua
conexão com o mundo. A título de compreensão J. Rawls apud Veritas (2005) analisou o
pensamento hegeliano sob a perspectiva liberal com viés reformista e moderadamente
progressista, inserida na história da filosofia política e moral do liberalismo da liberdade. O
liberalismo em tela segue os princípios definidos pela liberdade, pela política e pelo civismo.
Estes podem ser compreendidos em seu desdobramento como: liberdade de consciência,
liberdade de pensamento, liberdade das pessoas entre outras formas de liberdades relativas à
escolha da pessoa consonantes aos interesses da política vigente.
Segundo Rawls (1993) o liberalismo da liberdade de cunho hegeliano, permite
entender o nexo entre as instituições sociais e políticas, fundamento do papel do Estado e a
liberdade dos cidadãos, quando e tão somente o sujeito experimentaria a vivência de ser
livre21
. A justificação, uma das peças dessa engrenagem, sustenta a noção em que o Estado
tem importância porque assegura a igualdade e a justiça entre os cidadãos que compartilham
da mesma vontade política.
As situações de justificação são próprias de sociedades como as nossas, que se
deixam definir em termos de distribuição de bens mercantis e de bens não-mercantis
(papéis, tarefas, direitos e deveres, vantagens e desvantagens, benefícios e
encargos); os indivíduos não teriam existência social sem as regras de distribuição
que lhes conferem um lugar dentro do conjunto. É aqui que intervém a justiça,
enquanto justiça distributiva, como virtude das virtudes que presidem todas as
operações da partilha. ―Dar a cada pessoa o que lhe é devido‖, esta é, em uma
situação qualquer de distribuição, a fórmula mais geral da justiça. (RICOUER, 2016,
p. 234)
Logo, a justiça e a igualdade, na dimensão urbana, se apresentam como possibilidades
21
Ser livre no sentido do desenvolvimento do pensamento de Hegel, durante a juventude, está no contexto que as
leis prescritas pelo Estado e as convicções morais dos sujeitos isolados são dão conta de justificar uma
liberdade ampliada. Para ele, tao somente, os comportamentos praticados intersubjetivamente seriam o
caminho da liberdade. (HONNETH, 2015)
27
de menor impacto aos conflitos na cidade. Em termos práticos a busca pelo reconhecimento
minimizaria as distorções espaciais. Entretanto, quando suas satisfações não fossem
plenamente atendidas, o revés então, se daria pelo não reconhecimento apresentando-se na
forma de crime, pormenorizados em ações contrárias as regras adquiridas com as normas de
convivência, a lei.
As situações nas quais a ausência de harmonia social se apresenta podem ser
encaradas como crime Ricouer (2016) apud Hegel, menosprezo para Honneth (2003) ou
desacordo segundo Boltanski e Thevenot apud Ricouer (2016), estas são formas desses
autores explicarem a razão dos conflitos entre as pessoas ou grupo, como por exemplo, talvez
como a oposição entre asfalto e favela, em nossa pesquisa. Assim, o que é legitimo para um
grupo social para outro pode não ser.
Os aspectos negativos desdobram-se a partir das demandas não atendidas pelo direito
frente a mais variadas necessidades do indivíduo e do meio circundante. A consequência disso
é incorrer em menosprezo daquele que vê o seu direito se esvair frente ao de outras pessoas,
isto é, alguns são privilegiados em detrimento de outros. O não reconhecimento
consequentemente conduz a frustração, porque houve a recusa dos bens elementares a pessoa,
resultando em sentimento de exclusão e privação.
O despertar dos sentimentos negativos sugerem certa cautela na luta por direitos
individuais ou de grupos. Se não estiver clara a razão pela qual se busca o reconhecimento,
este não sendo contemplado implica em menosprezo, nesse contexto, poderá trazer à tona a
indignação, a revolta originando os conflitos. Essa parte da ruptura entre a atribuição igual de
direitos e a distribuição injusta de bens concedidos a sociedade, nos orienta a identificar três
movimentos bastante interessantes, em que a mola propulsora é a indignação.
Desse ponto de vista, a ideia de responsabilidade extrai uma de suas significações
dessa passagem da humilhação, experimentada como lesão do respeito de si,
passando pela indignação como resposta moral a esse ataque, para a vontade de
participação no processo de ampliação da esfera dos direitos subjetivos. (RICOUER,
2016, p. 214)
Conforme dito, os três movimentos – responsabilidade, indignação e vontade de
participação tem origem no menosprezo. O confronto com a percepção do indivíduo que
compartilha do mesmo ideal, isto é, que busca a afirmação da identidade e consequente
reconhecimento social. Para se afastar da situação de menosprezo e alcançar êxito, o
indivíduo e o grupo dependem do movimento da pessoa e igualmente das instituições
privadas e públicas. Então, podemos afirmar que a responsabilidade emana de sujeito e da
28
sociedade. Enquanto a luta provém do indivíduo, a discussão racional para ampliação dos
direitos acontece em três níveis, a saber – o político, o civil e o social – e assim contribui para
o avanço do ―direito dos direitos‖ (RICOUER, 2016).
O discurso do reconhecimento coloca em pauta as relações políticas da vida em
sociedade. Todavia, as instituições privadas e públicas possuem maior ou menor grau de
importância na luta dos indivíduos. Assim, sobre a estrutura de aceitação da pessoa por outros
indivíduos acontece no âmbito privado, via amor e amizade, componente relevante no decurso
do reconhecimento da diferença, em âmbito particular. Por outro lado, a igualdade entre os
grupos diferentes adviria por respeito mútuo, em acordo entre as partes pacificamente. Por
fim, no contexto público, o indivíduo deve ter reconhecimento mediante a ação da justiça,
pois somente ele poderá proporcionar a igualdade, minimizando ou até mesmo corrigindo as
injustiças pretéritas. Nessa acepção, o equilíbrio se faz presente por intermédio da força do
Estado.
As percepções distintas tanto de Honneth, quanto de Fraser mesmo tendo ambos
escritos para realidades dos países centrais abre-nos a possibilidade para identificar os
processos de luta por reconhecimento no Brasil. (FRASER, 1997, 2003; AVRITZER, 2007).
Todavia, esse caminho configura de certa maneira a espacialidade, em suas várias
nuances do cotidiano, nas mais distintas sociedades ao redor do mundo. Por exemplo, na
dimensão urbana, os conflitos da cidade acontecem pelo desejo dos distintos estilos de vida
buscar em certa medida a sua legitimação.
A luta por reconhecimento tem seu mérito ao reconstruir as relações e os conflitos
sociais, a partir de novos acordos no qual as normas propiciam a cada indivíduo perceber as
estruturas diferenciadas para o reconhecimento, associando as particularidades de cada forma
de vida às condições universais do conceito de dignidade humana (HONNETH, 2015).
Entretanto, Habermas critica a luta por reconhecimento das minorias politicamente
representadas por não considerarem os pressupostos jurídicos, que por sua vez, segundo ele,
acaba por confundir-se, então com paternalismo. O que Habermas pretende é mostrar que a
luta por reconhecimento não deve conduzir o grupo ou o indivíduo a ser privilegiado em
detrimento de outro, mas sim ser reconhecido enquanto cidadão pleno dos seus direitos
inserido no contexto social que favoreça a coletividade.
A solução para a luta por reconhecimento, para o referido autor, está no interior do
Estado de Direito, no enfrentamento de questões sociais direcionadas a consolidação dos
direitos constitucionalmente legítimos. Na realidade, o caminho é o de superar as carências
individuais publicamente desfavoráveis, assim será maior o nível das discussões, alcançarão
29
maiores chances de reconhecimento. A condução do debate defendida por esta vertente, vê no
espaço público de direito o caminho lícito para o debate de conteúdos concernentes à
segregação de minorias e à distribuição desigual de renda.
Segundo, Charles Taylor (2000) o colapso das hierarquias sociais, baseadas na noção
de honra e privilégio de poucos, durante o absolutismo. Contemporaneamente é a noção de
dignidade própria a todo cidadão, que é o anseio do sujeito. Todavia, a proposta de
reconhecimento só poderá acontecer em sociedades democráticas. Torna-se desse modo claro
que, a pertinência do reconhecimento destacou-se com maior clareza com o termo identidade
individual em fins do século XVIII.
Então, relação social em outros tempos, segundo Taylor (2000), funcionou como o
―pano de fundo que explicou o que as pessoas reconheciam como importante para si mesmas,
e em larga medida determinou o papel e a posição do sujeito na sociedade. A sociedade
democrática não extingue esse tipo de relação, visto que as pessoas possuem sua função
prefixadas socioespacialmente, e disso emerge a sua autenticidade
A linguagem nessa ótica existe porque mantém o nexo entre identidade e
reconhecimento. Segundo Taylor (2000) duas consideráveis concepções para a vida humana,
cuja realização acontece por meio do diálogo. Em outras palavras, a definição do indivíduo e
a compreensão do mundo é possível pela aquisição da linguagem humana, abrangendo além
da palavra dita, difusas maneiras de expressão: a arte, o gesto, o amor, entre outras,
assimilado no intercâmbio entre as pessoas, constituindo para nós outros significativos,
Não é que simplesmente aprendamos as linguagens no diálogo e passemos depois a
usá-las para nossos próprios propósitos. Claro que se espera que desenvolvamos
nossas próprias opiniões, perspectivas, atitudes com relação às coisas e, em
considerável medida, pela reflexão solitária. Mas não é assim que as coisas
funcionam no caso de questões importantes como a definição de nossa identidade.
Definimos nossa identidade sempre em diálogo com as coisas que nossos outros
significativos desejam ver em nós — e por vezes em luta contra essas coisas.
Mesmo depois que ultrapassamos alguns desses outros — nossos pais, por exemplo
— e de eles desaparecerem de nossa vida, a conversação com eles continua dentro
de nós enquanto vivermos. (TAYLOR, 2000, p. 312)
A construção da identidade inicia-se com o relacionamento familiar, no decorrer da
vida tentamos nos distanciar do elo que os prende aos nossos pais, por exemplo. Mesmo
assim, a formação que nos é dada em família nos perseguirá no decorrer de nossa existência,
nos servindo de referencial. A identidade do indivíduo não se constrói desconectada do
mundo, ao contrário, ela se molda a partir do diálogo com outro e assim são negociadas as
intervenções externas, leva-se em consideração a bagagem que o sujeito possui. Até o
30
menosprezo revela-se estimulante pelo fato de levar o indivíduo a reflexão e por perseverança
dialogar revertendo o quadro de exclusão ou levando-o a práxis do crime. Por isso a
constituição de um ideal de identidade estabelecida interiormente dá uma nova importância ao
reconhecimento, ou seja, a construção da identidade requer as relações dialógicas com os
outros (HONNETH, 2015).
Além da linguagem, da habilidade do discurso, de maneira contraditória o
reconhecimento rastreia a motivação moral substituindo a rivalidade, a desconfiança e a glória
sublinhadas no Leviatã22
. O reconhecimento coletivo conduz o indivíduo ao próprio
reconhecimento, ao se perceber membro de um grupo, a pessoa identifica os elementos que
fazem parte da sua trajetória de vida e que o relaciona a outros círculos sociais com os
mesmos traços comuns. Axel Honneth (2015) ajusta vários mecanismos para dar conta disso,
entre eles destaca três modelos de reconhecimento intersubjetivo apoiados sobre o amor, o
direito e a estima social. A vantagem, ao considerar esse tripé, embasa-se em estruturas que
antecedem ou excedem o jurídico. Os sentimentos negativos adequam-se, pois, dão à luta por
reconhecimento a dignidade mediada por meio da autoestima social (RICOUER, 2016, p.
203).
Porém devemos tomar cuidado para não irmos em direção a uma sociedade utópica,
típica ao do amor ágape, baseada só em sentimentos e ações nobres. Salientamos que de fato a
lei não é o instrumento primordial utilizado nos ajustes sociais, em que as minorias
historicamente prejudicadas alcançam a possibilidade de ter direito ao espaço. Outras regras
que não constam nos códigos dos países devem integrar essas relações favorecendo as
relações sociais e a liberdade de uso da terra pelos diferentes segmentos da sociedade.
O discurso da ágape é sobretudo um discurso de louvor: no louvor, o homem se
compraz com a visão de seu objeto reinando acima de todos os outros objetos de sua
preocupação. O louvor é, no vocabulário de Charles Taylor, uma ―avaliação forte‖
emitida sob o modo do canto: o hino ao amor da Epístola de Paulo ao Coríntios
(capítulo 13) é o seu paradigma (RICOUER, 2016, p. 237).
A ágape se declara, se proclama, enquanto que a justiça argumenta até atingirem os
ajustes sociais necessários. Em outras palavras, o reconhecimento assenta-se em duas
possibilidades: a primeira ocorre a partir do momento em que indivíduos relacionados se
reconhecem reciprocamente através do amor, e a segunda pode se dar quando distintos estilos
de boa vida se estabelecem reconhecendo a universalidade do direito ao espaço (RICOUER,
22
Na obra Thomas Hobbes defende a importância dos indivíduos se reunirem e formar um Estado em torno de
um soberano absoluto. O filosofo afirma que um estado de todos contra todos so pode ser evitado pela
existência de um governo centralizado e forte (HRYNIEWICZ, 2001).
31
2016).
o reconhecimento das pretensões de identidade distintas é fundado na própria luta
social por reconhecimento, mas, (...) Honneth é obrigado a distinguir as lutas
fundadas em intenções de reconhecimento das lutas baseadas em pretensões de
distribuição. (LAURENTIS, 2011, p.9)
Então, a formação da identidade pessoal resulta de experiências de reconhecimento
imanentes ao próprio indivíduo. Esta depende do encorajamento ou assentimento do outro e
tem como fruto a autorrealização positiva num crescente, com cada nova forma de
reconhecimento. Há com isso, o desdobramento em outros reconhecimentos: autoconfiança,
autorrespeito, solidariedade e autoestima.
Axel Honneth (2015) propõe uma teoria explicativa da inserção do sujeito e do grupo
na sociedade contemporânea. A identidade, então é feita reciprocamente entre as pessoas nas
suas relações sociais. O desejo do indivíduo nas lutas, isto é, conflitos não é autopreservação
ou aumento do poder, como dizem Maquiavel e Hobbes, porém o autorreconhecimento. A
luta por reconhecimento é uma resposta ao desrespeito, que provoca os levantes ou
manifestações coletivas. Honneth (2015) critica a sociologia por não considerar o elemento
moral em suas apreciações. Para o autor, a luta entre o senhor e o escravo constitui uma busca
em que este deseja ver sua identidade reconhecida. Todavia, uma luta só pode ser social,
quando ela deixa de ser uma reivindicação particular e passa ser um desejo da coletividade.
Os conflitos em sua maioria não se fundamentam na redistribuição econômica, este elemento
entra na pauta a partir do reconhecimento externo, como forma de compensação.
O amor é a primeira das formas de reconhecimento, e somente ele impede a origem
dos conflitos sociais. Apesar de haver um confronto de egos numa relação amorosa, esta se
restringe ao ambiente imediato, não se tornando algo público e coletivo. Entretanto, ao
contrário ocorre com o direito e autoestima social, pois vinculam-se aos conflitos sociais
(RICOUER, 2004).
A agressão particular a um indivíduo causa no grupo a repulsa e indignação, mobiliza-
se, dessa maneira, todo o grupo requerendo relações mais justas no meio social. O desrespeito
ou a afronta sofrida por um ou mais de seus membros contribui para que o grupo organize
uma pauta de reivindicações. Uma vez o menosprezo ou agressão sofrida por uma pessoa ou
mais, acaba ferindo elementos identitários de uma coletividade. Logo, a demanda pela luta
por reconhecimento se instaura (TAYLOR, 2000).
Quando a atitude de desrespeito acontece seguidas vezes, a coletividade percebe que o
fato é uma questão social e não mais pessoal, ocasião em que a resistência coletiva acontece.
32
Disso, resulta a participação política com vistas a reverter a situação de não representação.
Além do que, o indivíduo, vítima, recupera a autoestima social coletiva e particular das
pessoas, isto é, a dignidade humana (TAYLOR, 2000; RICOUER, 2016).
De acordo com o texto de Honneth (2015) nas lutas de reconhecimento estão
incluídas a distribuição de riquezas, porque os movimentos sociais sob seu ponto de vista
lutam pela reafirmação do fator cultural e identitário, além de não deixam de lado os anseios
materiais,
na medida que se sabe reconhecido por um outro sujeito em algum de sua
capacidade e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá
a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse
modo, também estará contraposto ao outro novamente como particular.‖
(HONNETH, 2015, p. 257)
Segundo Honneth (2015), nem todo desrespeito gera conflito ou manifestação. A
maioria das lutas acaba resultando em briga econômica a fim de salvaguardar sua reprodução.
O sentimento coletivo de injustiça surge quando bens culturais e simbólicos peculiares de
grupo não são reconhecidos por outro grupo, depreende-se, então uma luta por
reconhecimento jurídico.
Em outras palavras, a harmonia social se mantém em estado de permanência, na
medida em que as classes abastadas mantiverem os níveis econômicos capazes de manter a
sobrevivência do grupo dominado. Essa postura traduz-se em respeito à cultura das minorias
representadas. Disso decorre a autoestima, autoconfiança e o autorrespeito tornando possível
ao indivíduo a autonomia e capacidade de identificação frente aos‘ seus objetivos e desejos.
Novas relações se estabelecem a partir de então, direcionadas a atitudes de reconhecimento
mútuo. Como consequência temos, então, o respeito entre os sujeitos em convívio coletivo.
Por outro lado, Charles Taylor (1993) propõe que as lutas pelo reconhecimento não
fiquem no âmbito das relações quase que familiares entres os indivíduos em sua busca por
reconhecimento. Ele propõe um conceito renovado de Liberalismo, no qual pretende
compatibilizar os direitos fundamentais com a valorização de metas coletivas, alicerçadas em
determinações morais ou na valorização e igualdade entre as culturas. O autor chama atenção
para o fato que as mais variadas culturas oportunizam uma gama de significados para um
grande número de seres humanos, e com isso, contêm sempre alguma coisa que é digno de
respeito e admiração.
A proposta de estudo de Honneth (2015) apresenta a expansão das relações
intersubjetivas de reconhecimento assimiladas ao processo de individuação, que por sinal
33
advém das lutas sociais, e estas sinalizam para as mudanças sociais de ordem normativa. A
luta por reconhecimento é entendida na medida em que,
Os indivíduos trazem para a sociedade expectativas normativas e reivindicações de
caráter moral com que buscam garantir meios de expressão da identidade e da
autorrealização. A subjetividade moral do ser humano e do agente social constitui-se
dentro de relações intersubjetivas de luta por reconhecimento por meio do cuidado
afetivo, do respeito e da estima social. Tais relações exteriorizam conflitos por meio
de experiências e situações vividas como injustas. Essas experiências encontram-se
localizadas em contextos históricos que revelam o estágio de desenvolvimento
normativo das relações de reconhecimento recíproco (VENTURA, 2011, p.17)
A reivindicação para ser reconhecido contribui para chamar atenção do papel de
referência quanto à identidade individual ou do grupo. Em contrapartida a busca pela
valorização de aspectos correlacionados ao modo de vida de uma população local apresentará
possíveis caminhos carregados de contradição e que podem evoluir para o conflito. Pois, a
quebra das estruturas hierarquizantes abre chances de despertar nos grupos hegemônicos o
sentimento de perda do poder, e logo do controle do espaço. A ideia de justiça ou de
igualdade incorrerá em situações de sentimento de privação, culminando em oposição entre os
variados segmentos sociais, assim,
Além das rivalidades criadas pelas provas de justificação em cada um dos mundos
ligados às economias da grandeza, o conhecimento dos outros mundos tende a
estender o desacordo para as próprias provas, até mesmo para contestar sua
contribuição para a realização do bem comum. A acusação pode chegar até a
invalidação resultante da confrontação entre dois mundos. A contestação assume
então a forma da discórdia, na ausência de uma base de argumentação vinculada ao
mesmo sistema de justificação – discórdia que afeta não apenas os critérios de
grandeza em um mundo dado, mas também a própria noção de grandeza: o que é
um grande chefe da indústria aos olhos de um grande maestro de orquestra? A
capacidade de se tornar grande em um outro mundo pode ser elipsada pelo sucesso
de determinada ordem de grandeza ( RICOUER, 2016, p. 223)
Com a desigualdade na escala de reconhecimento poderá haver a denúncia e críticas
dirigidas de um lugar/mundo ao outro. Também pode gerar em cada um dos atores o interesse
por aquilo que ele critica em outro ator ou outro lugar. É o caso do morador do asfalto23
que
critica a produção de cultura na favela, mas que tempos depois acaba absorvendo essa cultura
popular, que no primeiro momento ele recusa. Temos como outro exemplo, a trajetória das
Escolas de Sambas, criticadas no início, mas, que posteriormente teve no morador do asfalto
um figurante nos desfiles de carnaval. Com isso, vem à tona outra percepção da realidade, o
23
É um ―carioquismo‖, é uma gíria utilizada para designar aquele que não mora na favela, então gera a oposição
entre asfalto e favela, tratada adiante nesta pesquisa.
34
indivíduo compreende o que difere ao conjunto de elementos por ele conhecidos e se põe à
disposição para apreender novas situações. Como diz Ricouer (2016) a tradução de um texto é
―tornar comparável os incomparáveis‖.
A luta pela igualdade e a busca pela harmonia social, assume o compromisso como
uma estratégia adotada pelo reconhecimento mútuo para apaziguar conflitos e disputas
consequência das multifaces da economia de grandeza gerada pelo liberalismo.
As relações desiguais originadas, historicamente no espaço brasileiro, desembocaram
na injustiça de reconhecimento, que atingem variados grupos socialmente vulneráveis. Como
ilustração dessa situação, temos o fim da escravidão no Brasil até os nossos dias, em que
construiu-se no imaginário social, o estereótipo do negro. As interações negativas, próximas
do menosprezo, a que se refere Ricouer (2016), vinculam a sua imagem ao do criminoso, do
malandro, do trabalhador braçal, e quanto a mulher negra é representada pelos seus atributos
físicos, pela imagem da empregada doméstica, da mulher fértil etc. A relação social originada
na sociedade escravocrata não terminou com a Abolição da Escravidão, em 1888, ela está na
pauta da busca por reconhecimento no século XXI. O preconceito quanto ao negro, ao
mestiço pobre imprimiram no espaço as suas marcas.
A mudança na forma de governo no Brasil de 1889, não implicou em novos arranjos
espaciais e muito menos em novas formas de relações sociais. O analfabetismo, a estrutura
rural, por exemplo, manteve o abismo entre pobres (independentemente da cor da pele) e dos
proprietários dos meios de produção.
Estes por seu turno ignoraram a longo prazo as demandas da população por melhores
condições de vida, o que resultou nos redutos de pobreza. Especificamente ao Rio de Janeiro,
a ruptura com o legado colonial transformou a área central e a zona sul em ambientes
predominantes modernos, nos quais não caberia a presença dos pobres da cidade. Sem um
pensamento voltado para o reconhecimento das necessidades dos habitantes menos
favorecidos da cidade que surgiu a primeira favela, no Morro da Providência. A composição
populacional da ―Favela‖ eram os combatentes da Guerra de Canudos e os moradores
expulsos durante o processo de extinção dos cortiços do Centro da Cidade (ABREU, 1987;
CONIFF, 2006; VALLADARES, 2013).
35
Outros aspectos do reconhecimento
O elemento que poderá pôr em evidencia o não reconhecimento é o crime, uma
variante da alteração de comportamento de uma pessoa ou de uma coletividade delas. No
dizer que Paul Ricouer (2016) podemos nesse contexto falar em início da busca por
reconhecimento.
Como dito alhures, o reconhecimento tem como referência o pensamento
desenvolvido por três pensadores na atualidade: Robert Alex, Talcott e Axel Honneth
defensores da tripartição do direito: (a) o civil, vincula-se a proteção da pessoa em sua
liberdade, sua vida, sua propriedade, diante das usurpações ilegítimas do Estado. (b) o
político, assegura ao indivíduo a participação nos processos de formação da vontade pública.
(c) social, garante a cada um a parte igual na distribuição de bens elementares. Dentre os tipos
de direito apresentados, o mais conflituoso atualmente é o social, porque protagoniza o dilema
da divisão equitativa dos bens mercantis e não mercantis, aparecendo como uma das lutas por
reconhecimento (RICOUER, 2016):
Atribuição desigual de direitos e a distribuição desigual dos bens. Uma teoria da
justiça como a de John Rawls encontra uma de suas razões de ser na formulação das
regras de divisão equitativa nas sociedades não-igualitárias que são as únicas que
conhecemos. Embora esses direitos sociais se referiram principalmente à ação
educativa, à saúde e à garantia de um nível de vida decente, a segurança econômica
aparece doravante como o meio material de exercer todos os outros direitos.
(RICOUER, 2016, p. 87)
Aspectos negativos desdobram-se da divisão do direito porque acarretará em
menosprezo daquele que requer o seu direito frente a outras pessoas. Dessa forma, a
consequência para aqueles que querem os direitos civis, a humilhação; a dificuldade ou
mesmo ausência de participação da vontade pública, acarreta em frustração; a recusa aos bens
elementares resultará em sentimento de exclusão (RICOUER, 2016),
Por outro lado, os sentimentos negativos sugerem a luta por direitos individuais ou de
grupos. O menosprezo, nesse contexto, poderá trazer à tona a indignação, e com ela o desejo
de lutar por reconhecimento. Essa parte da ruptura entre a atribuição igual de direitos e a
distribuição injusta de bens concedidos a sociedade. Podemos, dessa forma, identificar três
movimentos bastante interessantes, no qual a mola propulsora é a indignação.
Desse ponto de vista, a ideia de responsabilidade extrai uma de suas significações
dessa passagem da humilhação, experimentada como lesão do respeito de si,
36
passando pela indignação como resposta moral a esse ataque, para a vontade de
participação no processo de ampliação da esfera dos direitos subjetivos. (RICOUER,
2016, p. 214)
A qualidade da habitação, bem como do trabalho da classe pobre, decorre do
menosprezo do Estado, na medida em que ele não está disposto a criar mecanismos para
satisfazer as necessidades da população. Um exemplo de não reconhecimento é a exclusão
dos cortiços em fins do século XIX da área central carioca. O resultado dessa prática estatal
consistiu na procura por moradia nas encostas dos morros. Entretanto, como dito antes, o
menosprezo do Estado no trato com o pobre gerou e perpetua-se no tempo o não
reconhecimento do direito em três níveis, a saber, o político, o civil e o social, e assim
contribui para que cada vez o direito e dos direitos, esteja longe de se realizar.
No tocante ao espaço de socialização, os negros são pouco visíveis em revistas de
beleza, lugares frequentados pela elite, entre outros. Não se trata aqui de vitimização e nem
muito menos de levantar uma bandeira ortodoxa da causa do negro no Brasil, mas sim
exemplificar e problematizar a questão do reconhecimento dos descendentes de escravo, que
tudo tem a ver com a história do negro em nosso país. Poderíamos citar muitos outros
exemplos de grupos sociais que lutam pelo reconhecimento das identidades em movimentos
específicos como o orgulho gay, a marcha das vadias e as territorialidades dos nordestinos do
Brasil, fora de sua região de origem, os italianos nos USA etc.
Em particular, quanto a favela a busca do reconhecimento precisa considerar suas
diferenciações internas. Desde a sua origem até hoje, muitas mudanças ocorreram, por
exemplo, se no início a população era majoritariamente negra e mestiça, no decorrer de
décadas nordestinos também compuseram a sua estrutura populacional. Com isso, outras
buscas por reconhecimento integraram a questão, visto que há na atualidade uma
complexidade relacionada a outras forças hierarquizantes do mundo capitalista.
Entretanto, o uso do conceito de reconhecimento tem gerado ambiguidades não
resolvidas e desdobram-se em alguns questionamentos: O que significa reconhecimento
quando se discutem políticas públicas não universalistas focadas nas minorias politicamente
representadas. Quem seriam os detentores do hipotético direito ao reconhecimento, indivíduos
ou coletividades? Quais estratégias devem ser pensadas para solucionar esse problema?
Para responde a essas questões, talvez deve-se pensar nos sistemas que são
considerados os grandes paradigmas do mundo social e integrados à atividade comunicativa:
a) o complexo socioeconômico (incluindo o sistema técnico, os sistemas monetários e
fiscais); o complexo sociopolítico (que inclui o sistema jurídico, o sistema burocrático, o
37
sistema democrático e a organização paralela da opinião pública). Complexo sociocultural
(que coloca frente a frente o sistema midiático, e seu impacto sobre a reprodução cultural das
sociedades e o sistema científico do ponto de vista de sua organização institucional).
O impasse quanto ao grupo possuidor do direito a representatividade poderá ser
solucionado, de acordo com Nancy Fraser (2001), a partir de estratégias diferenciadas:
―afirmativas‖ e ―transformativas‖. As estratégias afirmativas relacionam-se a reavaliação
positiva das identidades estereotipadas, e não valorizadas pelo coletivo social, no entanto a
essência delas permanecem como o orgulho gay, o feminismo entre outros. Em contrapartida,
as estratégias transformativas estão vinculadas a desconstrução das identidades sociais porque
questionam os critérios para gerar a diferença.
Por conta desse questionamento, o reconhecimento, para Nancy Fraser (2001) é
compreendido no âmbito do Estado Democrático de Direito, pois institucionalmente emana
dele o poder de fazer justiça, dentre as muitas modalidades a redistribuição de renda, cuja a
realização acarretaria em uma sociedade mais igualitária.
O desafio da política do reconhecimento é, ao mesmo tempo, trabalhar com o
indivíduo e com o coletivo, inserido em determinado contexto social. No âmbito jurídico a
discussão pelo reconhecimento impõe outra questão, a da redistribuição. O dilema se
estabelece porque as diferenças presentes no estilo de vida individual e suas peculiaridades
em sistema político baseado em direitos individuais, como a propriedade e a liberdade, não
atendem as necessidades dos grupos sociais minoritariamente representados.
O discurso de muitos movimentos sociais tem sua sustentação no conceito de
reconhecimento, assim questionam a condição de subordinação a padrões de interpretação e
comunicação associados a cultura do dominador. Outros dois questionamentos são propostos
como o não reconhecimento, entendido como ser invisível as práticas de interpretação e
comunicação de uma cultura, e também, o desrespeito que consiste em estereotipar
publicamente padrões culturais de um grupo. (SUIAMA, 2007)
Laurentis (2011) ressalta que os conceitos devem ser usados com a finalidade de
analisar os limites e as características fundamentais dos direitos individuais, no escopo de
reconhecer a diferença entre os cidadãos a fim de haver distribuição mais equitativa dos bens,
e ao mesmo tempo assegurar os direitos individuais. Esta é uma proposta que não pode
defender um estilo de vida em detrimento de outro. A redistribuição deverá compatibilizar os
Direitos Fundamentais e os preceitos que sustentam o Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, que os direitos subjetivos devem ir além dos direitos das classes,
abarcando um número maior de pessoas, deixando de lado o conteúdo do direito, e partindo
38
para a sua aplicação. Pensemos como isso, que os direitos conquistados por determinada
pessoa ou grupo, estende-se àqueles que não estiveram envolvidos na luta por
reconhecimento. O sucesso da luta por reconhecimento, e consequentemente por direitos
desperta em diferentes gêneros de vida distintos, o desejo de satisfação de suas necessidades,
espalhando essa vontade em outros lugares (HONNETH, 2015).
Existem também, outras modalidades de reconhecimento, que não necessariamente
acontecem por meio de um estatuto formal, como ocorrem com os grupos representantes das
minorias políticas. Há comportamentos e formas de expressão que servem de amostragens
dessa situação. Como o ligamento entre os dois lugares põe o símbolo associado ao lugar num
patamar em que ele é capaz de gerar pelo prazo de horas a confiança baseada na solicitude
reciproca, como o ensaio das ―Escolas de Samba da Mangueira‖. Ela recebe pessoas
provenientes de outros lugares completamente distintos e há mesmo que momentaneamente o
reconhecimento do rito e dos símbolos presentes nas reuniões de samba. Quando o
desligamento desse nexo ocorre a ausência e a distância voltam a existir por meio da tensão
contínua, ao que a favela representa no senso comum: perigosa, sem infraestrutura, antro de
criminosos entre outros significados.
Há algum tempo os movimentos sociais vêm reforçando as identidades das minorias
reconhecidas e positivando aspectos de sua cultura, transmitida geração após geração, como
um bem não mercantil. O fenômeno escola de samba é ilustração dessa ocorrência. Se
tratando de Mangueira, nos anos de 1920, não houve um movimento social como conhecemos
atualmente, mas uma reunião de um grupo social com a finalidade de serem reconhecidos pela
sua atuação no universo do samba.
Os sujeitos estabelecidos em áreas periféricas reavaliaram de modo positivo as
expressões territoriais de matriz africana, responsável por reunir pessoa ligadas pela música e
dança em comum. As manifestações carnavalescas (o zé-pereira, os cordões, os ranchos etc)
injustamente desvalorizadas adaptaram-se as diversas modalidades de repressão do Estado.
Na conjuntura de valorização da cultura popular nacional, criou-se em fins da década de 1920,
as Escolas de Samba , conseguiu se contrapor as manifestações carnavalescas antigas,
representações do não reconhecimento, isto é, a desvalorização e esvaziamento do conteúdo
da cultura popular estimulou a construção de estratégias dos grupos marginalizados a fim de
lutarem pelo direito de uso do espaço urbano, ao menos no carnaval.
O Grêmio Recreativo Escola de Samba criou uma identidade que se perpetua ao
longo do ano, diferente do bloco que reúne pessoas nos períodos pré-carnavalescos e não
conseguiram tem uma extensão maior de atuação. Esta diferença não é tão grosso modo
39
simples. O surgimento das Escolas de Samba aconteceu no momento histórico propicio de
valorização da cultura popular, as manifestações carnavalescas anterior ao advento do
G.R.E.S sofreram o menosprezo e a criminalização porque incluíam a esteriotipização e a
invisibilidade do negro, do mestiço e de outras parcelas da população de despossuídos da
cidade. A participação de elementos étnicos diferentes do europeu, na construção da história
do País era tida como protagonista, relegando a relevância cultural dos demais grupos na
construção do sentido de nação. Então, todo o tipo de forma de expressão popular era
reprimido, modalidade de ação com menor peso durante o processo de organização das
Escolas de Samba.
Como bem colocado por Ricouer (2016), o menosprezo, por exemplo, no caso das
favelas resultou em ausências, entendidas na forma de desinteresse do Estado em assumir a
sua população pobre na agenda administrativa. As experiências negativas como o sentimento
de exclusão, de alienação, de opressão e de indignação deram maior peso às lutas sociais em
guerra por libertação ou descolonização. A superação dos conflitos se dá em modalidade
diversa de reconciliação, a cultura popular aceita pelos sujeitos mais bem posicionados na
hierarquia social, é uma forma de mediação simbólica e pacífica. Singularmente, o orgulho de
ser mangueirense, resolve as insatisfações pessoais, atenua a rigidez da oposição entre
espaços tão antagônicos como a favela e o asfalto, isto porque houve a valorização identitária
e como ela a estima social.
Há de perceber que o conceito de estima social vai adiante do que o autorrespeito.
Quanto a estima social as interseções devem ser percebidas, pois tal noção é passível de
variação. Com tal característica, a solidariedade torna-se uma leitura passível para a estima
social, a luz do caráter simbólico das mediações sociais. Nelas levamos em conta o conteúdo
do direito e o número de beneficiados.
De acordo com Taylor (2000), a luta por reconhecimento realça a ―política da
diferença‖ divergente ao princípio da igualdade universal. Para Taylor não há entre tais
posicionamentos um confronto ou oposição, mas sim um deslocamento fruto da modificação
de definição do estatuto igualitário, isto é, incorre-se em discriminação invertida entendida
como compensação pelos prejuízos históricos causados as minorias. Esse ainda é um desafio
para as sociedades liberais do mundo, onde os Estado-Nações não enfrentam e nem
contemplam as diferenças culturais objetivando uma sociedade mais igualitária,
onde se singulariza enquanto tal pelo modo pelo qual ela trata suas minorias,
inclusive aquelas que não partilham as definições públicas do bem, e acima de tudo
pelos direitos que ela concede a todos os seus membros (TAYLOR, 2000, p. 81)
40
O reconhecimento não circunscrever-se-ia a um indivíduo ou comunidade, ante a
sociedade abarcaria a todos. Ricouer nos propõe a seguinte reflexão:
A exigência de reconhecimento afetivo, jurídico e social, por seu estilo militante e
conflituoso, não se resolve em uma exigência indefinida, figura de um ―mau
infinito‖? A questão não diz respeito apenas aos sentimentos negativos de falta de
reconhecimento, mas também às capacidades conquistadas, assim entregues a uma
busca insaciável. Há aqui a tentação de uma nova forma de ―consciência infeliz‖,
sob a forma seja de um sentimento incurável de vitimização, seja de uma incansável
postulação de ideias inatingíveis. (RICOUER, 2016, p. 231)
A luta pelo reconhecimento da identidade coletiva ou individual é marcada por
períodos de paz, no qual as melhorias da qualidade de vida são alcançadas. Assim, Ricouer
(2016) desenvolve a tentativa de associar a luta por reconhecimento ao estado de paz. ―Abrir-
se-á assim o terreno para uma interpretação da mutualidade do dom fundamentada na ideia de
reconhecimento simbólico ( p. 234) ‖.
Na realidade a luta por reconhecimento não é sinônimo de justiça, pois podemos ter
variados anseios distintos do cumprimento das leis. Muito menos a boa ação
descompromissada, poderá requerer algo em troca e isso não conduzirá a uma luta por
reconhecimento. O percurso do reconhecimento direcionará ao caminho da igualdade possível
denominador comum dos equilíbrios em sociedade.
A partir dos anos de 1960 colocou-se em cheque as hierarquias seculares como a
honra que até então esteve no topo de valores, atualmente é o reconhecimento igualitário a
noção moderna de dignidade. Porém há de se alertar para o tipo de reivindicação por
reconhecimento, para não partir ao extremo da busca individual. Assim o tema em tela nos
conduz há inúmeros caminhos, expectativas ou anseios. Essa reflexão propõe o referencial de
representatividade que parcela da população almeja, dessa maneira consideraremos alguns
aspectos dessa discussão nesse trabalho, no qual pretendemos explicar o caminho possível
para o reconhecimento dos moradores da favela do Morro da Mangueira.
41
2 UMA LEITURA GEOGRÁFICA DO RECONHECIMENTO
A transformação do espaço depende da intencionalidade dos sujeitos e corresponde a
maneira conforme o indivíduo enxerga o mundo em sua empreitada na busca por
reconhecimento. Por conseguinte, o espaço é modificado por três movimentos dos sujeitos: a
distinção, a separação e a contradição responsável pela tensão permanente entre os grupos
sociais. Os sujeitos em busca por reconhecimento necessitam do diálogo, um elemento
fundamental nas diferentes modalidades de narrações sobre a realidade e o outro.
A leitura geográfica do reconhecimento é uma proposta de análise que considera as
ações dos sujeitos com vistas à apropriação do espaço. Os grupos excluídos formulam
procedimentos a terem seus direitos reconhecidos pelos grupos dominantes. As construções
simbólicas, nesse sentido, se materializam no espaço e demonstram a territorialidade de um
grupo determinado. Dependendo da sociedade, os sujeitos atingidos pelo menosprezo são
estereotipados segundo o seu modo de vida e, por conseguinte, o seu espaço é segregado.
Assim, nomenclaturas lhes são direcionadas, criando no imaginário as reações de preconceito
e exclusão (HONNETH, 2015; RICOUER, 2016).
Como exemplo, citamos a condição de ser favelado e não ser favelado, ter cidadania e
não ter cidadania entre outras que refletem no espaço geográfico a problemática do
reconhecimento. Assim, o conjunto de ações humanas carregado de intencionalidade gera as
rupturas socioespaciais. No âmbito da cidade, as divisões em zonas vivificam a distinção, a
separação e a contradição entre os sujeitos: o rico e o pobre, asfalto e favela, lugar violento e
não violento etc.
A diferenciação espacial é sublinhada pela apropriação e dominação dos sujeitos. A
predominância político-econômica e social de um grupo sobre a outra marca a supremacia de
um território sobre o outro, pondo em evidência as contradições e os conflitos entre os grupos
sociais. No espaço urbano são constituídos diferentes territórios apropriados pelos mais
variados grupos sociais. A intencionalidade destes cria constantes objetivos que também
variam no tempo. Há com isso uma projeção do agente social excluído segundo a sua intenção
de alcançar a igualdade. Ao reivindicar o reconhecimento para si ou para o seu grupo social, o
indivíduo pratica um determinado tipo de apropriação mediante as suas necessidades de busca
por reconhecimento que passam também pelas rupturas com os estereótipos formulados
acerca de si e do seu território.
42
O reconhecimento externo à favela, por exemplo, apresenta alguns sinônimos que
escondem a tensão e o conflito presentes neste espaço ou que reforçam a sua segregação. Por
outro lado, estas denominações podem contribuir para o reconhecimento ou não do morador
da favela. Sabemos que este espaço é fonte de transformação, movimento constante e
contínuo, e de muitas formas de expressão cultural.
A intencionalidade da ação se torna bipartida mediante os objetivos de diferentes
grupos sociais. De um lado, o favelado tem a intenção de ser e ter o reconhecimento, por
outro, a sociedade de modo geral intenciona um reconhecimento incompleto, pois absorve a
favela de modo fracionado, relegando os seus problemas. A consequência para o território da
favela é a organização em formas particulares de apropriação espacial, gerando territórios de
contradição e de oposição ao padrão comportamental imposto pela cidade dita formal.
O objetivo da ação governamental, por exemplo, em militarizar a questão da favela
teve uma intencionalidade bastante clara em tratá-la como um problema social a ser contido,
mas que não dependeu somente da racionalidade da administração pública para ter sucesso.
Houve muitos outros pontos a serem considerados como a gerência dos recursos econômicos,
o tráfico de drogas, a opinião pública, o questionamento sobre o tipo de reconhecimento que
os moradores da favela desejam.
O não reconhecimento é baseado em formas de menosprezo que acontecem com uso
de nomenclaturas variadas para esconder a segregação do território da favela. Apesar das
variadas nomenclaturas: morro, favela, comunidade, complexo são a face de uma mesma
moeda em termos territoriais. Mas a busca por reconhecimento desse território, acarreta em
percursos diferenciados, seja através da produção de cultura popular, seja para reivindicar
maior atenção das autoridades.
O objetivo da tese é reafirmado neste capítulo, ao apresentar uma leitura geográfica
para a busca por reconhecimento territorial. A exclusão do território de um grupo no espaço
intra-urbano requer ações afirmativas no sentido de busca por reconhecimento. As
experiências pacificadas que se baseiam em mediações simbólicas, (o samba, o funk, o
charme, o forró, etc.) são estratégias para alcançar o direito ao uso do espaço. A cidade é o
cenário de movimento permanente de transformações, pois, está conectada aos diferentes
sistemas de troca de informação em nível global. Assim, minorias políticas são excluídas do
jogo de relações dos agentes internacionais hegemônicos, implicando em exclusão e
menosprezo.
Nesse sentido, existem direitos não contemplados pelas leis e que devem ser ajustados
por acordos no convívio entre os indivíduos. Particularmente a favela é um territorial em
43
ininterrupta e constante busca por reconhecimento. As ações afirmativas a começar neste
espaço têm na nuance no uso de termos diferenciados – favela, morro e comunidade – o
caminho para distintos reconhecimentos territoriais como veremos.
O território e a busca por reconhecimento
Os estudos do reconhecimento na contemporaneidade têm no trabalho de Charles
Taylor24
o seu marco inicial, seguido por outros estudiosos como Axel Honneth, Nancy
Fraser, Paul Ricouer. As duas obras de Taylor, O multiculturalismo e a política do
reconhecimento (1993) e os Argumentos filosóficos (2000) discorrem sobre a importância de
as instituições públicas legitimarem o reconhecimento das diferenças culturais, apoiando a
existência das comunidades com pequena representação política. Mas o filósofo destaca a
importância em caminharem juntos os direitos fundamentais da sociedade em geral e àqueles
restritos ao grupo que se pretende assegurar-lhe maior participação social e política.
Relacionamos assim território e reconhecimento nesse estudo, pois as minorias tem a
afirmação da sua identidade ligada ao espaço. Rogerio Haesbaert (2004) explica o conceito de
território que,
Desde a origem, o território nasce com dupla conotação, material e simbólica, pois
epistemologicamente aparece tão próximo a terra-territorium quanto de terreo-
territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídica-política) da
terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com
esta dominação, ficam alijados da terra, ou no ―territorium‖ são impedidos de entrar.
Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o
privilégio de usufruí-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva
―apropriação‖.(p.1)
No tocante ao reconhecimento e a suas implicações territoriais, tem-se como exemplo,
a questão dos canadenses de Quebec (falantes do francês) e a relação com o dominante grupo
de origem anglo-saxão. Taylor, (2000) analisa a situação dos canadenses de língua francesa
que, impedidos de matricular seus filhos em escolas de língua inglesa, sofrem a restrição
espacial. Por isso, as formas de sobrevivência de grupos sociais como os francófonos do
24
É um filósofo canadense nascido em 1931. Sua área de interesse é a filosofia política, social e a história da
filosofia. Lecionou filosofia e ciência política na Universidade de McGill, onde atualmente é professor emérito.
44
Quebec e os povos do norte do Canadá podem requerer tratamento diferente frente a
uma sociedade predominantemente saxônica. À primeira vista parece-nos uma segregação
imposta pela minoria que fala francês, mas não é. Trata-se de um esforço de apropriação
territorial de parte do país a fim de salvaguardar o direito ao uso dessa língua pelas gerações
futuras e preservação cultural, bem como a afirmação identitária.
Assim, os dispositivos sobre o sistema escolar da Lei 101 proíbe (grosso modo) os
francófonos e os imigrantes de enviarem os filhos a escolas de língua inglesa, mas
permite que os anglófonos canadenses o façam. Esse sentido de que a Carta entra em
choque com a política básica de Quebec foi um dos fundamentos da oposição, no
restante do Canadá, ao acordo de Meech Lake. A causa de preocupação foi a
cláusula da sociedade distinta, e a exigência comum de emenda foi a de "proteger" a
Carta dessa cláusula ou fazê-la ter precedência sobre ela. Havia sem dúvida nessa
oposição certa quantidade de preconceito anti-Québec ao estilo antigo, mas havia
também uma séria questão filosófica. Quem segue a ideia de que os direitos
individuais têm sempre de vir antes, e ao lado de dispositivos antidiscriminatórios,
tem de tomar precedência sobre metas coletivas, fala com frequência de uma
perspectiva liberal que se disseminou cada vez mais no mundo anglo-americano.
(TAYLOR, 2000, p. 261)
Tal fato nos revela o tipo de pensamento em que considera que o ponto de vista das
minorias politicamente representadas, mesmo que numerosa, não seja importante para o grupo
dominante, apesar de numericamente menor, mas representativamente maior. Em termos
espaciais, o que se passa no espaço das minorias, as tensões e os conflitos sociais não
interferem no modo de olhar o mundo dos majoritariamente representados politicamente. Em
outras palavras, os dramas sociais das comunidades historicamente excluídas não impactam a
vida dos grupos dominantes a ponto de haver um (re)arranjo espaço-territorial significativo
em ambos os lados. Geralmente, o espaço das minorias é que sofre as mudanças.
No caso da política da diferença, também poderíamos dizer que há em sua base um
potencial universal, a saber, o de formar e definir a própria identidade, tanto como
indivíduo quanto como cultura. Essa potencialidade tem de ser respeitada
igualmente em todos. Todavia, ao menos no contexto intercultural, surgiu
recentemente uma exigência mais forte, a de que concedamos igual respeito a
culturas atualmente evoluídas. Críticos da dominação europeia ou branca, tendo em
vista que estas não somente suprimiram, mas não conseguiram apreciar outras
culturas, consideram esses juízos depreciatórios não só factualmente errôneos como
também, de alguma maneira, moralmente errados (TAYLOR, 2000, p. 252)
A cultura dominante, ao questionar o reconhecimento da cultura dominada, esquece
que é ela quem discrimina e segrega o espaço vivido pela minoria. O que se reivindica é o
respeito à cultura diferente e à identidade local, que não é universalmente compartilhada.
Assim, por exemplo, não se pode exigir que o mesmo padrão de elegância estabelecido em
45
países de clima frio ocorra em países de clima tropical, pois as condições ambientais irão
determinar o tipo de vestimenta de ambos e isso não quer dizer que a cultura do vestuário seja
superior em um povo e inferior em outro. Nesse contexto, podemos falar sobre a
intencionalidade no uso do território. As construções da hierarquia social refletem as ações
com vistas ao domínio do território e dos sujeitos com baixa força política.
De acordo com Nancy Fraser (2001) a lógica do não reconhecimento ocorre
igualmente no mundo do trabalho. A dimensão cultural-valorativa segundo as ocupações são
representadas pelo trabalhado mal pago, doméstico e insalubre que são executadas por
mestiços, imigrantes e negros. Por outro lado, as funções técnicas, administrativas, ―White
Collor”, de prestígio e melhor remuneradas destinam-se aos brancos. Isto é o legado histórico
da colonização e do colonialismo concebidos com o intuito de hierarquizar racialmente para
explorar e apropriar diferentes territórios.
Com o fim da colonização e do colonialismo material, seguem as formas de
subalternização dos povos. O mercado de trabalho mundial é um exemplo de não
reconhecimento das desigualdades. A busca por reconhecimento nesse sentido deverá
vislumbrar o desenvolvimento territorial para maior acesso a vida boa, reflexo da autonomia,
restrita à pequena parcela da sociedade mundial. E assim, o espaço organizado pelo homem é
como as demais estruturas sociais, uma estrutura subordinada-subordinante. É como as outras
instâncias, o espaço, embora submetido à lei da totalidade, dispõe de uma certa autonomia.
(SANTOS, 1978, p. 145).
Os interesses políticos dos grupos que detém o poder impõem sua racionalidade a
todos os espaços por ele dominados e com ele um cotidiano obediente e disciplinado, dando
forma às verticalidades. As horizontalidades são relacionadas com a intencionalidade dos
grupos dominados em se fazerem representar, além de afirmarem sua identidade. (SANTOS,
2012)
A busca por reconhecimento visa contemplar as demandas socioespaciais ainda não
atingidas pela justiça civil, porque a mudança da legislação acontece mais lentamente do que
as transformações sociais. Segundo a Constituição brasileira de 1988 em seu artigo 5º, caput:
―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade‖ (Constituição Federal, 2007).
A lei brasileira é clara quando afirma o princípio de isonomia ao dizer-nos que todo
cidadão tem direito à saúde, transporte, educação etc. Mas, nos é sabido que na prática tais
direitos não se dão de modo justo para os cidadãos. Disto decorre a necessidade de as políticas
46
de assistência social fazerem os ajustes para população a fim de dar a condição de vida boa,
isto é, dignidade e autonomia. Quanto ao território, o reconhecimento implica em
acessibilidade e circulação igual à toda população, sem distinção entre o tipo de transporte
para a área periférica e a área central. Também, a mesma assistência no campo da saúde e
educação para ricos e pobres, evitando a discrepância entre situação socioeconômica e
espacial dos sujeitos.
Os exemplos apresentados diferenciam o princípio da isonomia da igualdade. A
primeira mostra que todos são iguais perante a lei, enquanto que a igualdade considera outros
aspectos do cotidiano para dar aos indivíduos condições justas de acessibilidade e satisfação
às necessidades para se alcançar a igualdade social.
O território nacional brasileiro é de livre acesso a todos os cidadãos; porém,
dependendo das condições financeiras, nem todos tem essa possibilidade de deslocamento. No
caso de uma cidade, os moradores da periferia não possuem as mesmas condições daqueles
que moram nas áreas centrais e nobres. Numa cidade, como a do Rio de Janeiro, a separação
em território de acordo com as condições socioeconômicas dos indivíduos gera status sociais
de um grupo em detrimento do outro. Porém, a busca por reconhecimento contribui para que
não haja a sobreposição de valores de um território sobre o outro, mas ao contrário, que as
diferenças sejam respeitadas com vistas à redistribuição.
O território visto sobre dupla conotação material e simbólica reflete os distintos tipos
de uso. O primeiro é associado ao domínio político-jurídico, e o segundo, ao processo de
apropriação simbólica, um espaço-tempo-vivido que é múltiplo, diverso e complexo. A favela
possui tais atributos, logo a abordagem geográfica do reconhecimento há de considerar esse
prisma em seus estudos do reconhecimento.
Para o mesmo modo de habitar, diferentes terminologias do senso comum: morro e
favela
Segundo Valladares (2005) as palavras morro e favela são sinônimas e indicam o
conjunto de casas construídas sem planejamento e em terra de proprietários particulares.
Entretanto, nas músicas esses dois vocábulos no território gozam de caráter simbólico
diferentes. A palavra favela a valores negativos, enquanto que o morro remete aos aspectos
culturais.
47
Na época em que surgiu a Escola de Samba Estação Primeira muitas favelas
ocupavam as encostas dos morros da cidade. Talvez esse seja o motivo de favela e morro
serem quase que sinônimas. Porém, a tendência política na década de 1930 era enaltecer as
qualidades das classes populares e, ao que parece, o termo favela estava bastante
estigmatizado pelas resistências de seus moradores em buscar o reconhecimento ao direito de
morar. (VALLADARES, 2005; CARVALHO, V., 2015)
A palavra favela poderia favorecer a bandeira da luta dos descendentes de negros,
mestiços e brancos pobres no escopo de reconhecimento ao seu espaço na cidade. Por sua vez,
o morro geograficamente falando é de difícil acessibilidade e circulação e, em nossos dias,
ainda paira esse pensamento de sua quase inatingibilidade, mas em condições favoráveis de
santuário do samba. O vocábulo ―morro‖ em si não tem a carga de tanta luta e resistência,
uma nova territorialidade se constrói com novas apropriações advindas das zonas excluídas da
área central da cidade do Rio de Janeiro. Além do que, os fatos cotidianos de dificuldades
sociais e econômicas, quase não eram revelados nas letras de músicas. Seus principais
personagens eram o malandro e a cabrocha envolvidos por um amor impossível, sob os
auspícios do luar, do violão e do barraco de zinco. (DAMATTA, 1997; GOMES, T., 2004;
BITTENCOURT, 2012; CAETANO, 2015)
Apesar das variadas nomenclaturas para a favela, há a inseparabilidade da realidade
que ela representa, independente da palavra a ela associada: morro, favela, comunidade etc.
são a face de uma mesma moeda em termos territoriais, sociais, políticos e econômicos.
Em outras palavras, o território excluído do espaço urbano – favela – é caracterizado
por uma apropriação incerta e conflitante, marcada por rupturas associadas com a forma que é
analisada e orienta os tipos de reconhecimento. O dia a dia da favela é produtor de novas
realidades culturais; porém, sobre ela ainda pousa o olhar segregador, e impõe a este local
segregado diferentes territorialidades relacionadas à nomenclatura utilizada.
Dois movimentos, quanto a atitude dos indivíduos, são percebidos: (a) o olhar
externo, que cria conceitos e definições para explicar a realidade da favela; (b) olhar interno,
que vivencia o lugar, cria símbolos próprios experimentando as situações cotidianas, que
ajuda no diálogo com o asfalto, através de sua cultura, gerando territórios de transformações,
mudanças e continuidades.
O percurso do reconhecimento obrigatoriamente deverá considerar a sutileza do uso
do vocabulário aplicado às áreas periféricas e habitada pelos pobres. Todavia, as palavras
empregadas para se referir às áreas segregadas reafirmam estigmas ou ignoram os problemas
sociais do espaço urbano. Para muitos a cidade é dividida em duas áreas: a primeira, um lugar
48
impregnado de elementos negativos: a criminalidade e a violência e de outro, a cidade,
planejada e organizada. Isto implica na oposição entre a favela e o asfalto, escapando ao pobre
favelado o direito à cidade.
O morro e as músicas
Nos trinta primeiros anos de República, a imagem do malandro25
teve grande
destaque, pois mostrava uma estratégia, mesmo que marginal, de sobrevivência e não uma
escolha pessoal. Para outros, esse tipo social urbano representou uma crítica ao mundo do
trabalho. A cultura popular contribuiu para atenuar o rótulo negativo de estilos de vida que
não se enquadrava ao padrão vigente. A música serviu como elemento de aproximação entre
os diferentes atores sociais. (BEATO; PEIXOTO, 2005)
O autorreconhecimento do morador da favela como residente do morro atenuava o
estigma associado ao território. Com a intenção de fugir do menosprezo e do estigma de
vadiagem, vagabundagem, malandragem os moradores do Morro da Mangueira, buscaram dar
visibilidade ao seu lado artístico e cultural e, afastando do estereótipo relacionado à
criminalidade e ao caráter de exclusão da favela. O jornal A voz do morro (1935), editado
pelos moradores do Morro da Mangueira, publicava matérias direcionadas a cultura e a
música local, o samba e a organização do desfile da Estação Primeira. Neste exemplo, morar
no morro favoreceu a autoestima, a autoconfiança e o reconhecimento externo.
A contribuição para a busca por reconhecimento da favela aconteceu por meio da
música nacional, incentivada pelas gravadoras norte-americanas que devido à Crise de 1929
buscaram novos mercados fonográficos, bem como novos ritmos musicais. Em paralelo,
ideologicamente o nacionalismo varguista procurava sustentar politicamente o governo.
Portanto, o samba, um ritmo altamente dançante e tipicamente nacional serviu a tal propósito.
(CONSTANT, 2007; BITTENCOURT, 2012)
Segundo Tiago Melo Gomes (2004) não é mérito da Era Vargas a valorização da
cultura nacional; esta preocupação esteve presente nos primeiros anos da República
25
O trabalho de Tiago Melo Gomes (2004) recorda que as músicas de sucesso nos anos de 1920 e 1930 tiveram
origem no teatro de revista, no qual as personagens estereotipadas da mulata, do caipira, do português ainda
hoje marcam presença em programas de TV. O samba-malandro (que enaltecia o estilo de vida levado pelo
malandro) não era uma oposição a vida capitalista, mas antes um suporte para a apresentação deste nos
espetáculos do teatro de revista.
49
Brasileira. A exaltação às riquezas nacionais era o ápice das apresentações no teatro de
revista. Nessas apresentações alguns personagens recorrentes do tipo brasileiro eram
encenados (malandro, prostituta, caipira, mulata, português etc.). Na procura de um tipo social
que sintetizasse o que representaria a brasilidade, o malandro acabou por receber tal status.
Então, a malandragem foi símbolo de um país que tinha orgulho de suas classes populares
(p.181). Ressalta-se que os intelectuais das primeiras décadas do século XX esforçaram-se
para identificar um ritmo musical símbolo da identidade nacional. Nessa época, o maxixe e a
música sertaneja eram de gosto popular. O samba ainda não era um gênero definido, o termo
servia para designar vários tipos de canção.
Para Daniele Lopes Bittencourt (2012) o ambiente político da Era Vargas primou pela
conciliação com todas as classes sociais. A convivência do Partido Comunista com os
trabalhadores que moravam nas periferias impeliu o Presidente Getúlio a criar um contexto de
valorização do trabalhador. O slogan da época era ―devemos subir o morro antes que ele
desça comunista‖. Parece-nos que a maneira de gerar a ruptura entre os seus moradores
baseou-se na inculcação de termos diferentes da favela enquanto símbolo de luta e resistência,
pertinente às suas origens.
A ideia do malandro dado a serestas e à boêmia muito parece ter auxiliado ao
propósito governamental na busca da melodia e da personagem genuinamente brasileira,
aumentando a estima social dos pobres da favela. Antes da vinculação do samba à favela, os
casebres de zinco eram apontados como antro de marginalidade e de insalubridade. Assim, as
músicas que buscavam retratar a favela dos anos da administração Vargas cantaram o morro
com todo romantismo alienante, distraindo-se das questões sociais. (LIMA, 2009)
As canções de sucesso nos anos de 1930 e 1940 foram criadas, também, por
compositores que não moravam em favelas. A licença poética, o lirismo e o romantismo
contribuíram para descrever um morro diferente do real, isto é, a velha favela sem
eletricidade, sem água e esgoto, desprovida de pavimentação em suas ruas e becos não
caberiam, pois seriam censuradas e acusadas de subversivas. Há então, no caminho da busca
por reconhecimento, uma ruptura no sentido da identidade e da realidade da favela. (SILVA,
E., 1939)
As músicas nas quais o tema é o morro apresentam um cenário em que o luar, o
barraco, a cabrocha são aspectos capazes de superar todos os problemas decorrentes da
ausência de redistribuição econômica e social. A cisão no tipo de reconhecimento construído
no imaginário da população da cidade se estabelece: a favela associada às mazelas dos pobres
da cidade, enquanto o morro é o lugar da superação, da evasão da vida capitalista, de
50
permanentes rodas de samba e festas. (DAMATTA, 1997)
O violão e os instrumentos de percussão deixam a marginalidade e foram considerados
instrumentos de onde saíram poesias e belas canções. As ações transformativas26
dos
dirigentes da indústria fonográfica intencionou torná-lo uma referência musical. Se nos anos
anteriores da República Velha o samba era proibido, no Governo Vargas foi oficializado e até
apoiado com recursos da prefeitura, parecendo ser uma das estratégias populistas (TROTTA,
2011).
O samba incorporou diversos elementos da musicalidade carioca e em parceria com o
choro e o maxixe ganhou a simpatia da população de classes sociais abastadas. Os sambistas
deixaram o fundo do quintal das casas das tias baianas e ganharam destaque no plano da
propaganda do governo Vargas. As letras dos sambas, principalmente os sambas-enredos,
descrevem o Brasil como uma ilha de felicidade e as grandiosas orquestrações deram ao
samba exaltação de maior status, representante da influência política na musicalidade nacional
(CAETANO, 2015).
O samba, gênero musical genuinamente brasileiro valoriza a figura do homem simples
trabalhador. O malandro27
é absorvido nesse cenário político, porém a sua postura é
reormulada, é ele quem comanda as batucadas, genuína criação da cultura popular brasileira.
A centralidade da cidade do Rio de Janeiro, a Capital Federal, talvez tenha sido decisivo para
a escolha do tipo brasileiro símbolo da identidade nacional. Entretanto, durante a era Vargas a
propaganda de sua política consistia no reconhecimento das camadas populares como
potencial agente da revolução, sendo necessário contê-la. O ―pai dos pobres‖ difundiu a ideia
de que nos morros cariocas estaria a alma da identidade nacional. A favela problema,
miserável e triste, apresentou-se como o morro das noites enluaradas, dos amores impossíveis,
dos talentosos compositores que em meio às dificuldades que a ―vida‖ lhe impunha
conseguiam retirar dos violões lindas canções. (CAETANO, 2015)
Os estigmas trazidos desde a origem das favelas não poderiam ser cantados na nova
etapa da república a partir de 1930, haveria de ter uma roupagem condizente com a
26
São ações externas ao grupo com a finalidade de mudar alguns aspectos do símbolo ou do grupo social.
27
O bairro do Estácio encravado entre o morro de São Carlos e as ruas, que parecem não ter fim, do baixo
meretrício. De um lado, o crime, de outro, a carne, e no meio, o malandro sonhando. É entre estes dois
mundos, imensos e lúgubres, negregados de misérias, que ele, visionário romântico, ama idealmente, às vezes,
e vive no jardim maravilhoso dos seus sonhos. E as noites, aquelas noites lactescentes e liriais, nas quais se
intumes cenas paixões dos poetas incompreendidos sobe ao ar, como um perfume, como indefinida aspiração,
uma toada longínqua, cheia de langores, triste como uma saudade que se vai perder, desmancham-se no
murmúrio de febres e fatalismo que se alevanta do bairro das mulheres. Um coro, que se sobreleva, acompanha
o cantador, que talvez seja um Nilton ou Ismael pondo à mostra os conflitos do seu coração amoroso (GOMES,
2004, p. 188)
51
propaganda de enaltecimento do mundo do trabalho. Mas, a vivência no lugar, desdobrada em
atividades do dia-a-dia como lazer, a religião, a cultura e muitas outras práticas sociais,
distancia-se do tipo de reconhecimento direcionado pelas músicas. (GONÇALVES, R., 2015)
A Era Vargas contribuiu para a fundação de uma nova territorialidade nas favelas. O
reconhecimento externo reconstrói o espaço excluído em novas base simbólicas. Assim, o
malandro e o samba foram deslocados de sua área original, o centro da cidade para os
tortuosos e íngremes caminhos dos morros cariocas.
Apesar de o samba e o sambista sofrerem repressão no período anterior ao Governo de
Vargas, o samba resistiu nas áreas periféricas. Na favela o samba foi apropriado, delimitando
o território da diferença. A tradição do samba foi reconstruída, assim
o termo ―malandro‖ aparece em um contexto inteiramente diverso, servindo como
sinônimo para ―gente do samba‖. Já se percebe aqui que samba e malandro são os
referenciais básicos de um mundo à parte denominado ―morro‖, onde a vida é regida
por um conjunto de valores inteiramente diversos da sociedade burguesa, um mundo
de sonho, prazer e constante diversão (GOMES, 2004, p. 187)
Mas, nem sempre o malandro e o morro estiveram em alta, até a década de 1920 a
relação com a criminalidade, falta de higiene, moral baixa eram algumas de muitas descrições
usuais para relacionar esta figura ao seu espaço.
Hontem, á noite, quando se encontrava de serviço na delegacia do 18º Districto
Policial, foi o commissário Carlos Oliveira scientificado que um grupo de
vagabundos promovia desordens no morro da Mangueira, estação de Mangueira.
Uma vez chegados ao morro, foram os policiais recebidos a bala pelos desordeiros,
que, repelidos com energia tentaram fugir (Jornal Correio da Manhã, 27/11/1930, p.
3).
O estigma em relação à favela se manteve em situações corriqueiras do cotidiano; o
morro é favela sim, como assevera Valladares (2005). O trecho acima da reportagem
evidencia a vadiagem como qualificativo principal do morro. No entanto, a inserção das
camadas pobres e o seu reconhecimento se daria pela readequação do olhar sobre a favela,
reelaborada como morro. A vida boa, fruto da autonomia e da dignidade, tem neste espaço
referenciais simbólicos de sua apropriação.
Quando diretores e associados do Centro Chronistas Carnavalescos, chegaram ante-
hontem á sede do glorioso bloco ―De língua não se vence‖, na estação de Madureira,
o baile estava no apogeu. Lindas e elegantes senhoritas ao lado de distintos
cavalheiros, entregaram-se aos devaneios da dança, orientadas por excellente
orchestra de professores. Demos pela falta de alguns diretores, sendo dada a
informação, de que haviam ido, em romaria á Estação Primeira, escola de samba do
52
morro de Mangueira, a quem levaram linda ―corbelie‖ de lindas flores vivas28
.
(Jornal Correio da Manhã, 21/3/1933, p.7)
A organização dos ensaios e preparativos para o carnaval marcam a busca por
reconhecimento da identidade do favelado e os vínculos com a matriz africana dos
antepassados, sua cultura e história, subalternizadas no tempo através das relações de
dominação. O morro não era um território fechado em si, as trocas de experiências e vivências
com outros espaços oportunizavam aos compositores exibirem as novas canções.
A intencionalidade do reconhecimento externo elege o morro como o espaço de
oposição à vida pautada nas normas do indivíduo do asfalto. A lógica capitalista e as normas
para cidade em que o operário é disciplinado tem o morro como o seu contrário. O sujeito do
asfalto está subordinado às verticalidades do mundo ligado ao meio técnico científico.
Lá em Mangueira
Aprendi a sapatear
Lá em Mangueira
É que o samba tem seu lugar
Foi lá no morro
Um luar e um barracão
Lá eu gostei de alguém
Que me tratou bem
Eu dei meu coração (x2)
No morro a gente
leva a vida que quer
No morro a gente
gosta de uma mulher
E quando a gente
deixa o morro e vai embora
Quase sempre chora
Chora, chora
Lá em Mangueira
Aprendi a sapatear
Lá em Mangueira
É que o samba tem seu lugar
Foi lá no morro
Um luar e um barracão
Lá eu gostei de alguém
Que me tratou bem
Eu dei meu coração29
O cotidiano do morro é distinto, nele o modo de vida constrói-se pelas
horizontalidades, nas trocas de conhecimentos localmente avessas ao da sociedade burguesa
industrial. O morro é o espaço da evasão, no qual se vive com pouco, mas proporciona lazer,
28
A matéria fala sobre a visita do bloco carnavalesco de Madureira ao morro da Mangueira.
29
Música de Herivelto Martins cantada no carnaval de 1943 pelo Trio de Ouro.
53
diversão, sonho e prazer.
Aos compositores do asfalto, externos à favela, coube a reflexão sobre a importância
do trabalho. As ocupações de lavadeira, faxineira, cozinheira encontradas como reserva de
mão de obra do morro, ganharam incentivo na música. A composição lata d‟água (Luís
Antonio; Jota Jr.) descreve o trabalho de sua personagem Maria, moradora do morro, lutando
com dignidade para alcançar a vida boa e sua dignidade por meio do trabalho. Nesse caso, o
morro não é o lugar ideal para sobrevivência, pois a personagem sonha em uma vida fora
dele. A favela não é capaz de satisfazer a autoestima social, porque a personagem quer uma
vida melhor, a condição para atingi-la é a inserção no mundo do trabalho.
Lata d'água na cabeça30
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Lata d'água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Maria lava roupa lá no alto
Lutando pelo pão de cada dia
Sonhando com a vida do asfalto
Que acaba onde o morro principia
Sob esse prisma, as verticalidades das relações espaciais se impõem na condição de
busca por reconhecimento, a identidade e a dignidade seriam somente alcançadas através da
participação no mundo do trabalho, embora informal.
A perspectiva do morro, segundo o olhar interno revela outros significados e
reivindicações para o reconhecimento. O enaltecimento da cultura do morro e do sambista não
gerou a justiça social. Honneth (2015) sublinha que nem todo desrespeito gera conflito ou
manifestação. Todavia, a exclusão socioespacial dos moradores da favela corroborou com o
sentimento coletivo de injustiça. O respeito à cultura das minorias representadas não é
suficiente para o reconhecimento territorial. A autoestima social do ―morro‖ não supre outras
necessidades dos grupos sociais excluídos.
O compositor interno ao morro reflete acerca de sua condição no contexto
30
A música referência algo bastante comum no segmento pobre: o trabalho feminino responsável por levar o
sustento para família. A liderança da mulher é reconhecida como situação corriqueira no morro.
54
socioeconômico da cidade. O samba Pena de Mim (Ciro de Sousa / Babaú31
) externaliza a
preocupação do compositor com sua realidade e com as dificuldades cotidianas.
Ai.. ai.. meu Deus! Tenha pena de mim
Todos vivem muito bem só eu que vivo assim.
Trabalho e não tenho nada, não saio do "miserê"
Ai.. ai.. meu Deus! Isso é pra lá de sofrer.
Sem nunca ter, nem conhecer felicidade,
Sem um afeto, um carinho ou amizade
Eu vivo tão tristonho fingindo-me contente
Tenho feito força pra viver honestamente
(estribilho)
O dia inteiro eu trabalho com afinco
E à noite volto pro meu barracão de zinco
E pra matar o tempo e não falar sozinho
Amarro essa tristeza com as cordas do meu pinho.
Os compositores do morro foram os responsáveis quanto o questionamento da eficácia
do trabalho em transformar a vida da população. A redistribuição econômica não se efetivou,
apesar do morro e seus personagens serem o símbolo da cultura nacional. O menosprezo da
política pública, diverso à busca por reconhecimento, aliciava grande a marginalidade32
ao
crime como forma de assegurar a própria sobrevivência. O morro cantado com a cabrocha, o
violão, o luar e todo o lirismo e romantizado transparecem em mais uma ruptura evidenciada
pelas composições. Não era novidade este tipo de questionamento nos sambas. A canção Eu
quero nota (1929), de Arturzinho33
, igualmente critica a diferença social.
Eu quero é nota, carinho e sossego
Para viver descansado
Cheio de alegria, meu bem
Com uma cabrocha ao meu lado
Eu queria ter dinheiro
Que fosse em grande porção
Eu comprava um automóvel
E ia morar no Leblon
Eu, como sou operário
E não posso ser barão
Vou morar lá em Mangueira
Num modesto barracão
31
Em depoimento Cartola diz que tal compositor se arrependeu em ter vendido este samba, que foi gravado por
Aracy de Almeida. Cartola relata que Babaú tinha facilidade para fazer composições, era só aparecer alguma
dificuldade, que uma música surgia.
32
Consideramos marginalidade as atividades criminosas, como o trabalho mal remunerados, o ―bico‖.
33
Arturzinho foi compositor da Estação Primeira. Seu samba juntamente com o de Cartola animaram o desfile da
agremiação no concurso de sambas em 20 de janeiro de 1929, na casa do Pai de santo Zé Espinguela, no bairro
do Engenho de Dentro.
55
Os anos do governo do presidente Getúlio Vargas reorganizou o espaço urbano carioca
não somente em seu aspecto físico. Os territórios de cultura popular na área central foram
gradativamente extinguidos e novos arranjos espaciais estabelecidos. O samba e o malandro
territorialmente vinculados com a inexistente Praça XI (Pequena África), os bairros do Estácio
de Sá e Cidade Nova modificados em sua aparência, não comportavam mais seus símbolos:
samba e malandros. Estes representavam as camadas pobres que deveriam ser retiradas da
área central e ganhar a periferia dos morros.
A instituição Escola de Samba originou-se no bairro boêmio do Estácio. Entretanto, a
aceitação da nova estrutura carnavalesca encontrou acolhida nos morros. Na década de 1930,
os morros da Favella, da Mangueira, do Salgueiro e do Borel estavam representados por suas
Escolas de Samba. O direito ao uso do espaço urbano no carnaval era vigiado como assunto
policial; os cordões, os ranchos e os blocos compostos pela camada popular rigorosamente
estiveram vigiados e controlados. Também, estas formas carnavalescas não eram capazes de
reunir grande contingente em torno de um símbolo que lhes desse unidade e identidade. A
congregação de todas estas formas carnavalescas que deram origem à Escola de Samba
habilitou as relações locais afirmando suas identidades. (BARBOZA, M.; OLIVEIRA
FILHO, 1980; FERNANDES, 20010)
O deslocamento espacial do samba representou também a descentralidade da figura do
―malandro‖, que destoava da cultura estrangeira absorvida pelas classes dominantes. Na
periferia, o samba-enredo e o samba de terreiro se afirmam como identidade local e em certa
medida foram fatores de resistência e luta na busca por reconhecimento.
O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar
Morro pede passagem
O morro que se mostrar
Abram alas para o morro
Tamborim vai falar
É 1, é 2, é 3, é 100
É 1000 a batucar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
Toda cidade vai cantar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
Toda cidade vai cantar
56
Morro pede passagem
O morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
É 1, é 2, é 3, é 100
É 100 a batucar
A circulação dos sambistas entres os bairros do Estácio, os morros da Mangueira, do
Salgueiro, as festas da Penha e o bairro de Osvaldo Cruz inscrevem no tecido urbano a
autêntica teia cultural impulsionada pelo samba. Mas, no morro é que o samba encontrou o
seu refúgio. Para os compositores do morro, o preconceito e a exclusão permaneceram.
Diversas composições eram vendidas a valores irrisórios a grandes cantores, e ao negro autor
dos sambas restou-lhe o anonimato e o impedimento de gravar suas próprias canções. Quando
um artista negro gravava uma de suas composições era raridade. (FERNANDES, 2001; 2012)
O menosprezo herdado das relações preconceituosas da subalternização do negro
durante a escravidão determinou as funções de cantor e de compositor. Ao ouvinte,
consumidor da música pouco importou a vida desses artistas. O reconhecimento do morro, do
samba e do malandro como legítimos símbolos da identidade nacional não resultou em
redistribuição econômica.
O uso durante os anos de ufanismo da era Vargas tratou a favela (ou morro) de forma
superficial, onde tomou para o projeto de nação parte do que seria necessário para dar
evidência da cultura nacional. A boêmia e a malandragem parcialmente incorporadas a
sociedade, fulguram enquanto exótica, mas capazes de sobreviver da idiossincrasia brasileira.
Em termos urbanísticos, as palavras Morro e favela são concomitantes, sinônimas. Porém, no
imaginário popular, ambos vocábulos nos anestesiam a mente. Nos meses de ensaios de
escola de samba ou nas famosas feijoadas mensais muitos frequentadores não se preocupam
com a violência ao irem ao Morro da Mangueira para algum desses eventos, mas ficam de
sobreaviso ao irem a qualquer outro momento à favela da Mangueira.
A ideia de que o morador do morro possui uma vida simples, dado ao ócio criativo,
sustentou o não reconhecimento das necessidades básicas do pobre. O imaginário popular
vinculou o morro ao lazer. O convite para ir à festa no morro da Mangueira não tem o mesmo
valor simbólico de um evento na favela do Chapadão. Em certa medida, atribuir ao morro
relevância artística aumentou a estima social de seus moradores, porque mostra que eles
também são produtores de cultura popular de qualidade e propõe a reflexão do valor
afirmativo do cotidiano das favelas. O símbolo para a favela favoreceu o diálogo com o
57
asfalto. O fenômeno Escola de Samba serviu como mediação simbólica, pois assim a classe
média passa a frequentar as favelas cariocas para conhecerem e se inserirem no mundo do
ritmo genuinamente brasileiro, sinônimo da identidade nacional.
A favela é comunidade?
A autonomia constitui, no entender do autor do presente artigo, a base do
desenvolvimento, este encarado como processo de auto-instituição da sociedade
rumo a mais liberdade e menos desigualdade; num processo, não raro-doloroso, mas
fértil, de discussão livre e ―racional‖ por parte de cada um dos membros da
coletividade acerca do sentido e dos fins do viver em sociedade; dos erros e acertos
do passado; das metas materiais e espirituais; da verdade e da justiça (SOUZA,
1995, p. 105)
A favela é um território em que a busca por condições de vida boa implica em esforço
perseverante de afirmar continuamente a existência e permanência de seus moradores no
espaço intra-urbano. A busca por reconhecimento tem estreita relação com as práticas
espaciais no sentido, em que constituem ações espacialmente localizadas, engendradas por
agentes sociais concretos, visando a objetivar seus projetos específicos. (CORREA, 2007:68)
Entre os anos de 1950 e de 1960 houve a produção de estudos34
e o reconhecimento
das más condições de vida nas favelas. Segundo Valladares (2013) dois foram os aspectos
significativos: a valorização da favela na condição de comunidade e o intenso esforço para a
realização dos trabalhos de campo in lócus. O contexto da época favoreceu o trabalho em
conjunto com a cooperação internacional para ajuda à pobreza, abrindo as portas para os
cientistas estrangeiros proponentes de soluções aos problemas sociais brasileiros.
A Igreja Católica a fim de amenizar os estigmas ligados ao termo favela o substituiu
por comunidade, a intenção de minimizar o caráter de subnormalidade, miséria e
subalternidade dos indivíduos. A ideia de comunidade pode ter surgido no intuito de tentar
reproduzir um sentido religioso, onde os religiosos têm tudo em comum. A interseção dos
moradores da favela consistia no interesse perante a melhoria das condições sociais e urbanas.
Porém, os nexos de solidariedade não acontecem desinteressadamente entre os vizinhos, mas
34
A favela como objeto de estudo interessou o Padre francês Lebret na década de 1940 houve seu primeiro
contato com as favelas cariocas. O movimento internacional Économie et Humanisme do CNRS. O objetivo de
Lebret foi de formar especialistas técnicos para promover o desenvolvimento harmonioso e uma civilização
solidária. Lebret acompanhou as ações da Cruzada São Sebastião e da Fundação Leão XIII. (VALLADARES,
2013)
58
há uma relação de troca35
, de pagamento por um tipo de serviço prestado, por exemplo entre
aquele que toma conta das crianças para outro trabalhar, e produz-se assim vertentes do
mercado informal de trabalho.
A Igreja Católica contribuiu para o reconhecimento da problemática no campo social
inerente as favelas, criando o estatuto da comunidade. A interação com a favela já acontecia
por meio de paróquias católicas desde os idos dos anos de 1940. Em 1947 criou-se a
Fundação Leão XIII e 1955 a Cruzada São Sebastião, fruto da ação de Dom Helder Câmara,
principal responsável por uma grande campanha em defesa dos favelados do Rio de Janeiro.
35
A identificação das redes de serviços dentro da favela possibilitou a identificação de potencial mão de obra. As
creches construídas em favelas empregaram muitas pessoas moradoras do local.
59
O protagonismo em atitude de autoconhecimento, fortalecendo a estima social, visou
favorecer a participação dos próprios moradores como sujeitos ativos políticos. Os objetivos
das duas instituições eram distintos. A Fundação Leão XIII teve como incumbência a oferta
de cantinas, creches, dispensários, maternidades e conjuntos habitacionais populares,
enquanto que a Cruzada destinou-se à construção de moradias novas e equipamentos de
infraestrutura, à urbanização de favelas. O Bispo-Auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Helder,
considerava importante a participação dos moradores de favela em todas as ações
intervencionistas; para ele esse era o princípio do desenvolvimento comunitário.
(VALLADARES, 2013)
A Cruzada São Sebastião e a Fundação Leão XIII cooperaram para aumentar a
autoestima social do morador da favela. A mediação da Igreja Católica proporcionou-lhe o
reconhecimento político e a promoção social. A autonomia dos indivíduos não restringiu-se
apenas a redistribuição socioeconômica, mas para reverter a ideia de favela como mal a ser
erradicado e rompeu com o clientelismo da era Vargas.
As favelas deveriam ter direito a uma representação política, deixando de ser um
simples espaço de intervenções administrativas (posição defendida pelos adeptos de
sua eliminação) para se transformar em uma comunidade de base, nas quais a
família seria a célula fundamental, e a vizinhança uma garantia de coesão social.
Além disto, a ideia de comunidade permitia que os indivíduos isolados fossem
associados ao grupo, visão bem próxima daquela proposta pelo Économie et
Humanisme: ―Concebida para inserir e proteger os indivíduos entre si, ela [a
comunidade] aparece em um segundo momento como forma intermediária de
representação coletiva (...) a noção de comunidade tem tudo para descrever os níveis
de responsabilidade e os estados de desenvolvimento da democracia participativa.
(ASTIER & LAÉ, 1991;94 apud VALLADARES, 2013, p.85)
Talvez a sinergia da Igreja e dos moradores de favela tenha favorecido a transposição
do sentido de vida em comum do ambiente religioso para o cotidiano urbano. A ideia de
comunidade nos parece atraente, pois conduz a tentativa de apagar os aspectos negativos dos
períodos anteriores. Como por exemplo, a Cruzada conseguiu levar a luz elétrica a 51 favelas,
desfazendo os currais eleitorais. Além disso, Dom Helder incentivou no seio da ideia de
comunidade o surgimento de representações próprias. As ciências sociais prolongaram ou
completaram as ações políticas sobre as favelas, em paralelo à presença da intervenção
católica. (SILVA, M., 2005)
Se a Igreja Católica36
serviu aos interesses do Estado, atualizando seu papel durante o
36
Nessa ocasião a Igreja do Brasil esteve sob o regime do Padroado. Assim, o Estado assegurou a manutenção a
estrutura hierarquia católica no país.
60
Império37
no qual cuidava dos desvalidos da cidade, agora cuida dos desprezados da urbe
carioca republicana laica. As atitudes afirmativas serviram para amenizar o caráter de
extinção e exclusão das favelas nos anos de 1960/70, pois capacitou-lhes para ação no campo
da interlocução política. (CONIFF, 2006)
Todavia, a ação católica nas favelas reforçou-se a partir da expansão da Teologia da
Libertação nos anos de 1970/80, resultando no ativismo das lideranças dentre os moradores.
Na favela identificamos o que Milton Santos (2012) chama de horizontalidade porque ela é o
lugar do objetivo pensando fora, de longe e de cima e também dos desafios específicos do
local. A favela não está à parte das verticalidades, pensadas como as decisões tomadas em
níveis superiores, sem o objetivo de integração desse território à racionalidade e à disciplina
presente no espaço urbano da formalidade.
Segundo os sociólogos franceses, no período 1940-1950, o sentido de grupo local se
opunha ao local de trabalho, a fábrica. Mas, na família salvaguardam-se os laços sociais e de
solidariedade, uma forma de representação coletiva, comunitária. O benefício exclusivo
atribuído aos indivíduos fere o direito universal a igualdade, dessa forma, a ideia de
comunidade de valores anuncia como o horizonte presumido de uma inevitável diversidade
axiológica que contrasta com a universidade presumida dos direitos subjetivos de ordem
jurídica (RICOUER, 2016, p. 215).
As lideranças atuais da favela discordam do uso da palavra comunidade associada ao
seu espaço vivido. Segundo eles, há com este vocábulo o esvaziamento de conteúdo de
resistência, luta por reconhecimento dos negros ex-escravos e primeiros habitantes da favela.
À vista disso os símbolos de mediação pacífica reduzem seu poder de comunicação porque o
termo comunidade dá ideia de homogeneidade.
Em biologia, comunidade é o conjunto de todos os organismos vivos, de todos os
tipos, que habitam em um dado ecossistema. Qualquer parte da cidade é uma
comunidade. Favela foi a primeira moradia de ex escravos, o nome favela surge de
uma planta, da natureza. Somos favela e lutamos pelo fim do estigma negativo que
as classes sociais mais privilegiadas estabeleceram como certo. Favela não é ruim,
não é negativo. Apenas um lugar que por muito tempo o Estado não assistiu, não
atendeu, não se fez presente. Porém, instituições como o Descolando Ideias, a
CUFA e o Afro reggae usaram sua força e capacidade de mobilização para buscar
ações transformadoras38
do Estado nesses territórios então esquecidos." (Ricardo
Fernandes ator, Disponível em:
<http://descolandoideias.blogspot.com.br/2011/08/comunidade-x-favela-qual-e-o-
certo.html>. Acesso em: 30/03/2017 as 20:23)
37
Durante o Império Brasileiro, o imperador assumia o poder máximo da Igreja Católica, nomeando os clérigos e
determinando a ações da instituição no Brasil.
38
Esta expressão está sendo usada no sentido de inserção social dos moradores da favela. Neste trabalho as ações
transformadoras referem-se à ação externa em modificar as estruturas sociais que dão identidade a um grupo.
61
O significado de autonomia decorrente da ligação à palavra comunidade, fruto do
ativismo da época de Dom Helder, na atualidade está a serviço do preconceito, do
menosprezo.
Certo dia, fui conversar com uma pessoa de um excelente poder aquisitivo, que
falou que gostaria de investir na Agência de Notícias das Favelas. Em nossa
conversa ela falou que adoraria investir, porém o nome de nossa organização não
deveria ser esse, pois ela achava pejorativa a palavra FAVELA. Lógico que neguei a
possibilidade de mudarmos o nome de nossa organização e explicamos que essa
palavra é utilizada mundialmente, que havia morado e trabalhado por quase duas
décadas em várias favelas no Rio e que tínhamos a missão de democratizar a
informação das favelas e seguiríamos em frente. (André Fernandes, Jornalista,
fundador e diretor da ANF – Agência de Notícias das Favelas,
http://www.anf.org.br/favelas-ou-comunidades)
A favela possui força na luta dos movimentos sociais, no sentido de resistência, bem
como de reconhecimento interno dos seus moradores. Como em toda grande cidade, ela se
relaciona a outras instâncias sociais, políticas e econômicas.
Talvez em nossos dias o termo comunidade seja a atenuação do reconhecimento
negativo que contém a palavra favela. As minorias politicamente representadas são apontadas
como comunidade: comunidade gay, comunidade quilombola etc., e erroneamente a favela é
enxergada como espaço homogêneo, no qual os sujeitos de qualquer favela possuem os
mesmo interesses, objetivos e expectativas.
Segundo Leticia Luna Freire (2017) a alternância de uso de palavras diferentes
indicando a mesma realidade, consiste em estratégia das classes dominantes a fim de revelar
os aspectos negativos ou positivos da favela. No seu estudo de caso da favela de Acari, o
vocábulo comunidade salienta a condição carente de diversos moradores. Assim, denuncia a
pobreza e a falta dos bens básicos, que poderia o poder público ofertar. Nesse estudo, a autora
afirma que a palavra favela ―enfatizava as diferentes formas de violência incitadas pela
presença do tráfico de drogas armado nessas localidades, associando-as à noção de perigo‖.
Todavia, para Wania Mesquita (2012) o uso da palavra comunidade é bastante
apropriado ao domínio e atuação das seitas pentecostais. Estas travam uma batalha espiritual
contra a desordem da violência na periferia.
Segundo Patrícia Briman (2008) o vocábulo é usado por agentes do Estado na
perspectiva de relegar o passado de violência e exclusão da favela. A palavra comunidade
reforça o argumento entre os jovens, que o seu lugar detém boas qualidades morais, atribuída
ao modo vida e a cultura local.
As formas de construção sem planejamento, a falta de infraestrutura urbana: luz,
62
água, esgoto, segurança, assistência médica etc. não são peculiaridades da favela. Muitos
bairros periféricos contêm tal especificidades e são identificados como bairros. O prisma
homogeneizante sobre a favela fica sem sentido, dada o complexo de significados e símbolos
que singularizam cada uma delas.
Um bairro inteiro pode ser considerado uma favela. Uma favela pode ser chamada
de comunidade. Mas nem toda comunidade é uma favela ou um bairro. O conceito
de comunidade se estabelece a partir do momento em que pensamos num grupo de
pessoas com assuntos e interesses em comum. Bairros são regiões que se dividem
dentro da cidade e facilitam a localização de um indivíduo. Favela pode ser
entendida como os bairros que não possuem infraestrutura necessária, que mantém
em ordem o dia a dia dos seus moradores. A maioria das favelas não tem rede de
esgoto e as casas (chamadas também de barracos) são feitas uma em cima da outra,
sem os requisitos básicos de uma simples obra. Nos bairros e nas favelas, ou até
mesmo em toda uma cidade, cidade ou país, existem grupos com objetivos e
interesses em comum. A cada um desses grupos damos o nome de comunidade. No
Rio de Janeiro, um exemplo clássico de comunidade está naquele grupo de pessoas
que, juntas, se esforçam o ano inteiro para ver sua escola de samba ganhar o troféu
de campeã. O carnaval, o desfile, as fantasias e muitos outros, são os assuntos e
interesses em comum desse grupo de pessoas.
(Disponível em: <http://www.rafazildo.com/blog/diferenas-entre-favela-bairro-e-
comunidade>)
Na realidade as diversas referências nominais à favela refletem o desconhecimento da
sociedade. Os rótulos criados exprimem preconceitos realçados em aspectos negativos
resultante do menosprezo estatal.
Por fim, a análise da palavra comunidade remete a significado diverso. Novos
símbolos e significantes são determinados pelas classes dominantes. Analogamente a
comunidade religiosa em que os bens materiais e os espaços de circulação são em comum. A
favela entendida como comunidade, nessa perspectiva, determina aos seus moradores a
partilha de situações cotidianas criadas nas relações locais de troca de bens culturais e
materiais, bem como de circulação. O contato com o mundo do asfalto é restrito, porque a
ideia de comunidade induz a enxergar o mundo como oposto, desnecessário. A busca por
reconhecimento é um caminho para integração espacial e permanente câmbio entre as
diferentes culturas baseadas no respeito e na justiça social. (CONIFF, 2006; SILVA, 2005;
VALLADARES, 2013)
63
Geografia e reconhecimento
A intencionalidade dos sujeitos responde por práticas de formação do espaço
geográfico. A apropriação e dominação do território refletem as relações de poder, que grosso
modo, geram as desigualdades e as diferenças entre os sujeitos. A busca por reconhecimento
na instrumentalização do espaço geográfico revela movimentos que não são considerados nas
discussões sobre o direito à circulação, aos serviços etc.
A autonomia, a autoestima social, as ações afirmativas, meandros da busca por
reconhecimento, concebem a territorialidade ante as atitudes dos indivíduos. As
diferenciações internas a cada sociedade geram as contradições e as separações
socioespaciais. A exclusão de um grupo por outro mais poderoso fere os direitos universais, e
com ela haverá reivindicações não contempladas pela lei. A luta social preenche a brecha
deixada perante a ausência de legislação adequada em solucionar a falta de reconhecimento da
cultura simbólica dos sujeitos. (RICOUER, 2016)
O espaço social, delimitado e apropriado politicamente enquanto território de um
grupo, é suporte material da existência e, mais ou menos fortemente catalisador
cultural-simbólico – e nessa qualidade, indispensável ao fator de autonomia
(SOUZA, 1995, p.108).
A busca por reconhecimento é a bandeira defendida em lutas pontuais como o
ativismo de bairro, o feminismo etc. Estas são ações afirmativas ofensivas e materiais.
Existem buscas silenciosas como a que permeia o imaginário da favela. Conforme
discorremos neste capítulo, o uso alternado das terminologias: morro, favela, comunidade
servem a intencionalidades que ressaltam as diferenças entre os lugares e os grupos para
exercerem o poder. Em diálogo com a questão do reconhecimento, as vinculações horizontais
e verticais contribuem para entender as contradições e ações no espaço geográfico.
Horizontalmente, as trocas cotidianas fortalecem o lugar afirmando a sua identidade, e é a
reação questionadora às verticalidades, pois estas representam as decisões tomadas em lugares
distantes e que visam organizar o espaço local sem considerar o valor simbólico e cultural de
um grupo social.
64
3 O AUTORRECONHECIMENTO: DA ORIGEM DA FAVELA AOS DIAS ATUAIS
O histórico menosprezo conduziu os indivíduos pobres buscarem maneiras próprias de
sobrevivência, segundo suas capacidades. Assim, a favela tem seu surgimento no cenário
urbano relacionada à falta de atenção do governo com a população. O eixo paradigmático da
representação desse espaço popular é a noção de ausência. A favela é definida pelo que ela
não é ou pelo que não tem (SILVA, J.,2002).
Embora, a favela seja caracterizada por ―ausências‖, os seus moradores construíram, a
partir de seu modo próprio de vida, opções de lazer e conhecimento acerca da construção de
casas, além de um linguajar próprio, representado pelas gírias etc. Isto demonstra o poder
inovador e criativo que emana do local, contrariando a visão homogeneizante e simplificadora
deste espaço.
O olhar externo sobre a favela vê essas ações afirmativas passíveis de ações
transformativas provenientes da cultura dominante. Entretanto, as manifestações culturais
surgidas nas ruas do Centro, encontraram na favela seu lugar. O samba foi este elemento
agregador nas áreas periféricas da cidade. A razão disso tem a ver com a perseguição policial
na core urbana aos sambistas, então os lugares remotos dos anos de 1920 e 1930 serviram a
externalização das práticas culturais excluídas.
A favela também foi palco de articulação política de trabalhadores na busca por
reconhecimento. Movimentos que reuniram trabalhadores, reivindicavam o direito à terra na
encosta dos morros em que já moravam, bem como a melhores condições de boa vida. A
dignidade humana, perseguida por estes atores sociais, constitui a base do desejo de
reconhecimento mútuo.
Neste capitulo discorremos acerca dos variados elementos que evidenciam os
―fazeres‖ da favela na busca por reconhecimento pacífico. As formas de ações
governamentais encararam tal território como um problema. Dessa maneira, coube ao
morador da favela criar parcerias e pôr em evidencias símbolos da cultura popular reforçando
a busca por reconhecimento e legitimidade quanto ao uso do espaço urbano.
65
3.1 Do menosprezo ao autoreconhecimento
A exclusão socioespacial tem o pobre como alvo, a exclusão dos meios possíveis de
dignidade, marca os espaços populares pelo menosprezo. As elites desde sempre não se
importaram com a redistribuição das riquezas. A concentração de bens culturais e econômicos
materializou-se na cidade centralizando as benfeitorias nas áreas nobres, enquanto as áreas
obsoletas mantiveram-se abandonadas. As desigualdades socioespaciais aparecem
relacionadas nesse contexto.
Segundo Michael L. Conniff (2006), a estrutura social regida pelo Império Brasileiro
organizou-se semelhante a um corpo social orgânico. Os indivíduos dispunham de um papel e
um lugar no modelo hierárquico, herança da cidade colonial. Nesse tipo de organização os
habitantes e as instituições deveriam agir no escopo comum de efetivação das obrigações
religiosas comunitárias, bem como àquelas destinadas à realeza. O pobre era responsabilidade
da administração pública, cabendo discipliná-lo e controlá-lo. A assistência social ao carente
realizou-se através das irmandades como a Santa Casa de Misericórdia baseada na prática
católica de solidariedade. Igualmente os escravos e forros possuíam suas irmandades em
igrejas próprias com igual função social. A regulamentação das atividades de assistência
social cabia ao governo municipal.
A crise da habitação está relacionada com a história da favelização. O
negligenciamento com a população urbana pobre reflete o menosprezo das elites com o país.
Apesar de assemelhar a sociedade com um corpo orgânico, a monarquia se esquecia de cuidar
da saúde de alguns de seus membros. A estrutura escravagista caminhava para o seu fim e
gradativamente a pressão para alforria de negros atingia o seu objetivo.
Nesse sentido, o reconhecimento da dignidade do negro realizou-se parcialmente, porque
depois de alforriados, os escravos não tinham como recomeçar a sua vida funcional. A vida
urbana de então estava desenvolvendo-se, com postos de trabalho na indústria e na prestação
de serviços, sendo suficiente para atrair os negros livres para a cidade.
O governo imperial necessitando de soldados para a batalha na Guerra do Paraguai
promete liberdade aos escravos de toda parte, que se dispusera a defender o Brasil. Ao fim da
guerra, os negros egressos foram para a Côrte no Rio de Janeiro. Depois de concedida a
liberdade, muitos permaneceram na cidade e ocuparam-se de funções urbanas. O fim da
Guerra de Canudos e a Abolição da escravidão liberaram mais pessoas. Em todos esses fatos
não houve atenção do Estado a fim de dar moradia digna a esse contingente populacional.
66
(CAMPOS, 2011; VALLADARES, 2013)
A transição para sociedade republicana não implicou em diferente trato dos problemas
sociais urbanos. A nova forma de governo, de base positivista, levou a elite detentora do
poder a excluir ainda mais o pobre. Segundo a concepção filosófica em vigor, o recurso
público não poderia ser gasto com pobre, pois este não tinha conhecimento para conduzir a
sociedade ao progresso. Segundo Michael L. Conniff (2006) o darwinismo social influenciou
a política pública do Brasil durante do período 1810-1910.
Que os inteligentes e talentosos fossem encorajados a atingir a excelência por meio
de recompensas econômicas, enquanto aos inadequados, enfermos, obtusos e pouco
habilitados seria permitido enlanguescer e morrer pela seleção natural. (CONNIFF,
2006, p. 25)
As decisões políticas influenciadas pelo darwinismo social e pelo positivismo
acarretaram no alargamento das desigualdades sociais. Os ricos aumentaram as viagens pela
Europa, e ao retornarem copiavam o estilo de vida europeu. O abismo entre ricos e pobres na
cidade ampliou-se. A distinção entre os indivíduos, ―bem-nascidos‖ e ―bem-educados‖
daqueles ―sem berço‖ e ―sem educação‖, deixou suas marcas no território. A inspiração no
estilo de vida europeu impactou primeiramente a área central. A abertura de novas vias de
circulação largas e modernas serviu a intencionalidade de exclusão e expulsão das camadas
populares da área central.
No final do século XIX, a elite carioca temia uma rebelião das classes perigosas, que
era constituída por negros e mestiços. Entre eles estava o malandro, o ladrão, a prostituta, a
lavadeira, a doceira e os menores vendedores ambulantes, ex-combatentes, além de idosos e
deficientes físicos oriundo de guerras. A divisão do espaço por essas pessoas significou um
ambiente que constantemente deveria ser vigiado e controlado. A ação transformativa eficaz
seria dissipar pela cidade estes tipos, impedindo a sua organização. (AVRITZER; GOMES,
2013)
A primeira medida para afastar o estado permanente de alerta foi separação espacial,
que originou os requintados bairros nobres, desfazendo a colonial mistura de usos do solo na
área central. A procura por cortiços refletiu o descaso quanto à questão da moradia,
aumentando assim a demanda no setor imobiliário informal. Muitos casebres, casarões
tiveram seus cômodos alugados aos mais pobres. Sem a fiscalização do poder público, os sem
moradia, submetiam-se aos alugueis cobrados ao gosto dos proprietários. (ABREU, 1997;
VALLADARES, 2013).
O ambiente dos cortiços e das áreas degradas da área central favoreceu o
67
desenvolvimento da cultura urbana carioca na virada do século XIX para o XX. Os grupos de
choro, maxixe e sambas nasceram da alienação à cultura europeia e norte-americana
prestigiada pela elite. A falta de opção de lazer criou territórios de produção da cultura
popular no centro da cidade: rodas de capoeira e de samba faziam parte da distração das
classes perigosas. Além do que estas ações são entendidas como afirmativas porque constrói a
identidade dos pobres urbanos do Centro da Cidade. (CARVALHO, V., 2015)
O não reconhecimento da genuína produção de cultura popular brasileira resultou no
olhar desconfiando das classes dominantes. O deslocamento dos ricos para bairros afastados
das áreas de expressão do modo de vida das camadas populares não foi a solução satisfatória,
porque eles apropriaram-se da área central.
A cidade do Rio de Janeiro deveria ganhar ares europeus e se modernizar. O controle
do espaço exercido pela elite legitimou-se pela manutenção no poder estatal. Os intelectuais
médicos e engenheiros deveriam encontrar a justificativa para expulsão das classes perigosas
do Centro. A fundamentação para expulsão dos pobres pautou-se a partir de duas ideias que
norteiam a atuação do poder público em relação à cidade e seus habitantes: civilizar,
interferindo no espaço urbano e nos hábitos cotidianos; higienizar, através da assepsia
proporcionada pela vacina e pela saga apostolar do Doutor Oswaldo Cruz (SIMAS, 2005,
p.2).
A política de embelezamento da cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do
século XX via as habitações populares como excêntricas ao padrão de beleza proposto para a
cidade. O poder público municipal apressou-se em extinguir os cortiços. A submissão das
camadas pobres à vontade de europeização da cidade desconsiderou a identidade estabelecida
e os laços afetivos e de solidariedade construídos.
No Rio de Janeiro, assim como na Europa, os primeiros interessados em detalhar
minuciosamente a cena urbana e seus personagens populares voltaram seus olhos
para o cortiço. Considerado o lócus da pobreza, no século XIX era local da moradia
tanto para os trabalhadores quanto para vagabundos e malandros, todos pertencentes
à chamada ―classe perigosa‖. Definido como um verdadeiro ―inferno social‖, o
cortiço carioca era visto como antro de vagabundagem e do crime, além de lugar
propício as epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral. Percebido como
espaço propagador da doença e do vício, era denunciado e condenado através do
discurso médico higienista, levando a adoção de medidas administrativas pelos
governos das cidades. (VALLADARES, 2013. p. 24)
Os cortiços sofreram grande perseguição dos higienistas do fim do século XIX. O
celebre cortiço Cabeça de Porco tinha habitações que posteriormente foram reconstruídas no
Morro da Favela, esta é uma das explicações para a origem da favela. O resultado da falta de
68
uma ação eficaz do poder público, para resolver a demanda por moradia das camadas
populares os fez direcionarem-se para a vertente do morro da Providencia, no Centro da
Cidade. Nela estabeleceram-se um conjunto de casebres que recebeu a denominação de
―favela‖. Posteriormente, o mesmo padrão de habitação instalou-se, em outra área do Centro,
o Morro de Santo Antônio (CARVALHO, 1986; VAZ, 1994).
A guerra travada contra os cortiços desde os fins de 1900 transferiu-se para qualquer
forma de materialização do modo de vida dos pobres na cidade. O prefeito Pereira Passos
(1902-1906) entre outros objetivos ocupou-se em erradicar as moradias populares. Mas, a
permanência e a concentração da população pobre na área central justificou-se devido à oferta
de trabalho, na pequena indústria de fabricação de calçados, chapéus, roupas, bebidas e
mobiliário, que empregava muitas pessoas no Centro da Cidade e adjacências. (ABREU,
1997)
Com a quase totalidade da extinção dos cortiços, a favela, na virada do século XIX
para o XX, rearranjou-se como novo território da pobreza, no Morro da Favella. A sua origem
vinculou-se a história dos ex-combatentes da Guerra dos Canudos a fim de pressionar o
Ministério da Guerra a pagar-lhes os soldos atrasados. Esse espaço caracterizou-se pelo
conjunto de barracos aglomerados sem traçado de ruas e a ausência dos serviços públicos,
estabelecido em terrenos de propriedade do governo ou de particulares. Essa forma de morar
expandiu-se por todas as áreas da cidade. (CAMPOS, 2011; VALLADARES, 2013)
De acordo com Rafael Soares Gonçalves (2015) a favelização do Morro da
Providência é anterior ao acampamento dos soldados que retornaram da Guerra de Canudos.
A ocupação das encostas desse morro foi consequência da demolição do cortiço Cabeça de
Porco. O seu proprietário já tinha terras na Providência e com os escombros ergueu alguns
casebres e os alugou aos seus antigos inquilinos.
A consequência da política higienista e a de civilizar a cidade do Rio de Janeiro
resultou em agravamento do déficit habitacional. A favela ante esse contexto surge como
símbolo da ideia de luta e de resistência, dada a sua formação territorial está ligada aos
regressos da Guerra do Paraguai e de Canudos.
No Rio de Janeiro, os soldados desmobilizados da Guerra de Canudos e instalados
no Morro da Providência, ao mesmo tempo em que se colocavam numa posição
estratégica em relação ao Ministério da Guerra, permaneciam submetidos a ele, na
expectativa de receber soldos atrasados. (VALLADARES, 2013, p. 29)
O relato de Euclides da Cunha sobre a Guerras de Canudos influenciou o olhar da
69
intelectualidade sobre a favela. O discurso de Euclides da Cunha era favorável à mistura do
índio com o branco (o sertanejo) e embasado pelas teorias racistas rejeita o mulato. Seu
posicionamento encontrou muitos adeptos que passaram a analisar a favela com a mesma
ótica euclidiana em Canudos. A frase ‖progredimos ou desaparecemos‖ pedia a urgência do
progresso. As precárias moradias, a predominância de negros e mulatos não se adequavam ao
ideal defendido por este intelectual. Com base nesse discurso, a elite pretendeu eliminar os
entraves ao progresso à memória do passado colonial: a escravidão e suas derivações.
(MACHADO, 1995; VALLADARES, 2005)
Para os intelectuais do início do século XX, a harmonia social na favela era ausente
porque ali estavam malandros, lavadeiras, feiticeiras e seresteiros inseridos em um
ambiente caracterizado por um peculiar estilo de vida exótico, em pleno Centro,
colocando em risco o plano de embelezamento da cidade. A falta de conhecimento
do modo de vida desses indivíduos e falta de vontade do governo em resolver a crise
habitacional transformou a favela em problema. (VALLADARES, 2013, p. 155)
A pobreza, característica marcante das favelas cariocas, tornou-se sinônimo da
marginalidade social. Essas impressões permearam o debate acadêmico que apontaram como
solução à ética do trabalho e à repressão da vadiagem. Para Andrelino Campos (2011) a
favela é um espaço estigmatizado não somente por sua estética, mas porque são continuação
da estrutura de antigos quilombos no Maciço da Tijuca. De acordo com Lilian Fessler Vaz
(2002) no século XIX comumente algumas pessoas da classe pobre do Centro fugindo dos
preços altos das moradias e se direcionavam para os arrabaldes em sopé de montanha e
encosta de morros.
Muitos projetos para solucionar o problema chamado favela aconteceram durante a
década de 1920: o Programa de Casas Populares de Mattos Pimenta, além da atuação de
Alfredo Agache, arquiteto e sociólogo francês que propôs a construção de novas moradias
populares e a destruição dos casebres precários das favelas. Vale a pena ressaltar, que Agache
relacionou a questão da habitação popular às dificuldades impostas pela administração
pública, resultando na capacidade inventiva da população para resolver esta situação. O
Estado não esteve omisso na questão da favela, ao contrário estimulou a construção dos
barracos de zinco em áreas que, a princípio, não tinham interesse imobiliário. Assim, ficariam
perto dos postos de trabalho. Para o poder público era bastante cômoda essa situação, pois não
precisou investir na construção de moradias populares e no serviço de transporte público.
(VAZ, 2002; VALLADARES)
Para o Estado Novo a favela era o problema a ser controlado e administrado, num
70
momento marcado por forte nacionalismo e temor quanto à expansão do socialismo. Getúlio
Vargas defendia a ideia que era direito do trabalhador uma moradia digna e uma alimentação
saudável. Entre as classes populares, o prefeito Pedro Ernesto foi o maior mediador do
governo varguista, pois construiu hospitais e escolas para atender a camada pobre da
população carioca.
A política pública dos primeiros anos do governo de Vargas teve como inspiração os
reformadores progressistas norte-americanos do início do século XX. De acordo com eles, os
pobres seriam assumidos pelo Estado a fim de minimizar as relações desiguais e reduzir o
assistencialismo. Pedro Ernesto manteve inúmeros contatos com os habitantes das favelas
entre 1932 e 1934, intervindo como mediador nos conflitos sobre a propriedade do solo,
distribuindo as primeiras subvenções públicas às escolas de samba para o Carnaval e, em
alguns casos, decidindo sobre a instalação de serviços públicos. Em 1934, por exemplo,
organizou uma manifestação oficial na Favela da Mangueira para anunciar a abertura de uma
escola pública. A administração populista de Pedro Ernesto aproximou-se das favelas
resgatando a autoconfiança, o autorrespeito, a solidariedade e a autoestima, com a finalidade
de controlar e monitorar a favela.
O princípio em relação às favelas, era tolerar sem consolidar, ou seja, elas entraram
no cálculo político do trabalhismo, do pós-guerra, como uma das formas de acesso à
moradia, sem ser, no entanto, consideradas como uma resposta definitiva. Esse
controle por parte da prefeitura era, por certo, seletivo: mais rígido naquelas favelas
localizadas em áreas nobres e, mais leve, nas situadas em bairros operários
(GONÇALVES, 2015, p. 194)
Embora constituísse uma ação clientelista foi durante o governo de Getúlio Vargas a
atenção direcionada à favela deu-lhe visibilidade social. A intencionalidade de interação da
governabilidade com os favelados oportuniza a chance de serem ouvidos. A transferência do
samba para os morros cariocas, transformou as Escolas de Samba em símbolo capaz de fazer
a mediação pacífica com as classes sociais mais abastadas.
Talvez assim, tenha iniciado o interesse da classe média em conhecer a cultura
produzida entre os pobres. As instituições públicas interagiram organizando e patrocinando os
desfiles de escola de samba que parecem se inserir no cotidiano das camadas pobres, e assim
para estes decorre em autoestima social, resultado do reconhecimento do outro, daquele é de
fora da favela.
Quando o poder municipal vai ao encontro da favela não é uma ação desinteressada. A
intencionalidade com esse território foi o seu controle. A contínua expulsão da quantidade
expressiva de pobres do Centro aconteceu gradativamente. O samba, elemento cultural
71
reprimido, perseguido e excluído, acompanhou o deslocamento dos indivíduos. Esse ritmo
também subiu as encostas dos morros cariocas e os subúrbios da Central do Brasil.
A ação dos pobres da cidade não foi passiva. Para driblar a perseguição e a pressão das
instituições governamentais – polícia e saúde – a criatividade tornou-se grande aliada. Os
indivíduos favelados percebem que a musicalidade e o espírito festeiro seriam o caminho para
a estima social. O ritual, a festa e a música se reuniram na Escola de Samba. A exclusão da
área central não foi recebida de maneira conformista pelos sambistas que agora habitava as
áreas periféricas. Mas, no carnaval o Centro da Cidade era territorializado por eles. À medida
que o samba, os sambistas e as Escolas de Samba demonstraram seus talentos que foram
convertidos em fins produtivos para o mercado fonográfico e como opção de lazer e
entretenimento, as compensações financeiras, mesmo que mínimas, chegavam. No
Documentário Nelson Sargento no morro39
(1997), o entrevistado diz: ―o pobre andava de
calça remendada e de tamanco. A vaidade era menor. Hoje em dia a televisão aumentou a
vaidade‖. Por isso, o dinheiro pago aos sambistas pelas composições era pouco, mas é da
relação estabelecida entre o fato de ser reconhecido por seus parceiros de interação e a
autoimagem que constrói de si próprio que resulta a estrutura intersubjetiva de formação da
identidade pessoal (MORAES, 2006:7)
A favela seria o território no qual novas questões eram problematizadas e as antigas
formas de menosprezo apareceriam, atualizando o discurso das ações moral e esteticamente
inadequadas para extingui-la. O Código de Obras de 1937, no qual reconhecia formalmente a
existência das favelas constava a seção ―Extinção das Habitações Anti-Higiênicas40
‖. Nesse
documento, o Estado reconhece a forma urbana da favela e justifica a ausência de uma
política urbana para incluí-la, porque esta era um espaço ilegal. As ideias eugênicas41
do
início do século XX ganharam maior embasamento técnico após o recenseamento das favelas.
(VALLADARES, 2013)
Não é de surpreender o fato de os pretos e pardos prevalecerem nas favelas.
Hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências
sociais modernas, fornecem em quase todos os nossos núcleos urbanos os maiores
contingentes para as baixas camadas da população. (Prefeitura do Distrito Federal,
1949:8 apud VALLADARES, 2013, p. 55).
39
É compositor e atual Presidente de Honra do GRES Estação Primeira de Mangueira. Seu samba-enredo mais
conhecido é Quatro estações do ano do carnaval de 1955.
40
Título do Capitulo XV do Código de Obras de 1937 (VALLADARES, 2013).
41
O movimento eugênico brasileiro no início do século XX defendia temas da educação sanitária e higiênica, da
seleção de imigrantes e a problemática da mestiçagem brasileira. Conferir o trabalho de Lia Osório : Origens
do pensamento geográfico no Brasil.
72
A biologia e raça apareceram como suporte explicativo da inércia social. O Estado não
se reconhece responsável pela situação de miséria dos moradores da favela, reconhecem-nos
como autônomos no sentido de construírem os modos de vida particulares.
[...] O preto, por exemplo, via de regra não soube ou não poude aproveitar a
liberdade adquirida e a melhoria econômica [...] Renasceu lhe a preguiça atávica,
retornou a estagnação que estiola fundamentalmente distinta do repouso que
revigora ou então - e como ele todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem
amor próprio e sem respeito à própria dignidade – priva-se do essencial à
manutenção de um nível de vida decente, mas investe somas relativamente elevadas
na indumentária exótica, na gafieira e nos cordões carnavalescos, gastando tudo
enfim, que lhe sobrea da satisfação das estritas necessidades de uma vida no limiar
da indigência (Prefeitura do Distrito Federal, 1949:10-11 apud VALLADARES,
2013,p. 58).
Na década de 1940 a discussão eugênica foi retomada e alicerçada no preconceito e na
necessidade de atenuar os efeitos das práticas sociais dos negros e mestiços. Encarou-se a
favela como espaço da patologia. Iniciaram-se vários estudos com o propósito de mostrar que
os pobres viviam um estágio de transição entre os hábitos rurais para os urbanos, por essa
razão a favela estava destinada a extinção. (GONÇALVES, 2015)
Dentre os estudos conexos com as ideias eugenistas, Valladares (1991) menciona a
monografia de Maria Hortência do Nascimento Silva42
. A presença do discurso moral era
forte e até certa medida preconceituoso, mesmo reconhecendo que o efeito da escravidão
atribui as condições de miséria aos descendentes dos negros escravizados. Tal estudo foi um
contraponto ao trabalho proposto por Moura43
. Moura fez um recenseamento em quatorze
favelas e, após a pesquisa de campo, concluiu que as favelas não constituíam um todo
homogêneo, mas ainda descontroem o mito comum naquele tempo, associando esse espaço ao
crime, à marginalidade e falta de ordem social. Todos esses estudos e muitos outros serviram
para embasar a construção dos Parques Proletários em substituição às favelas. O trabalho
desenvolvido por Victor Tavares Moura em 1937 concluiu que a favela não era o território da
marginalidade, da criminalidade e da desorganização social. A favela tornou-se, na ocasião, o
objeto de estudo de jornalistas, engenheiros, médicos, assistentes sociais e urbanistas.
No ano de 1941, os participantes do 1º Congresso Brasileiro de Urbanismo44
excursionaram pela favela do Morro da Mangueira. Eles tiveram a finalidade de conhecer os
problemas urbanos locais. Mas, a Escola de Samba Estação Primeira chamou a atenção dos
42
SILVA, Maria Hortência do Nascimento e. Impressões de uma assistente sobre o trabalho na favela. Rio de
Janeiro : Instituto Social, Prefeitura do Distrito Federal /Secretaria Geral da Saúde e Assistência, 1942.
(Trabalho de Conclusão de Curso) Cf. VALLADARES, 2013.
43
Responsável por um estudo cujo escopo foi a solução do problema favela. Organizou em Pernambuco a Liga
Social contra o mocambo (VALLADARES, 2013)
44
Cf. Jornal Correio da Manhã, 24 de janeiro de 1941, p.3
73
urbanistas porque o assunto dos moradores remetia a ela. Os laços de solidariedade ajudam a
manter o símbolo do lugar vivo e contribui para a autoestima social dos moradores da
Mangueira. Para os urbanistas o ― modo de ser‖ dos favelados independia das ações da Esfera
Pública.
A estima social na favela do Morro da Mangueira representa as parcerias dos seus
moradores no fortalecimento do samba como símbolo e identidade local. A abordagem
técnica da favela impediu que os estudos preliminares reconhecessem a identidade formada
em cada assentamento desse tipo. Naquele instante, a perspectiva fechada dos congressistas,
carregada de preconceitos dificultou a sensibilidade quanto ao autorreconhecimento
vivenciado pelos moradores de Mangueira.
A favela alude, segundo os relatórios técnicos da época, ao símbolo da resistência
ligada à sua origem. Seja ela dos ex-combatentes da Guerra do Paraguai e de Canudos sem
amparo estatal ao retornarem ao país, seja a dos quilombolas. Entretanto, a favela vive
processos de etapas de reconciliação e de conflito ao mesmo tempo, as quais substituem umas
às outras.
No tocante às ciências sociais, a definição do termo favela foi apresentado pela
primeira, a partir do recenseamento de 195045
, seguiram-se, então, vários debates e as
reflexões giraram em torno do destino deste território. Tanto a Igreja Católica, por meio da
Fundação Leão XIII e da Cruzada São Sebastião, quanto os Jornalista Carlos Lacerda
utilizaram tais conhecimentos para defenderem seu posicionamento em defesa ou a contra a
existência deste espaço de moradia popular. A questão era: ― As favelas devem ser extintas ou
urbanizadas? ‖
45
No ano de 1950 pela primeira vez nesse documento a favela foi definida como parte do conjunto urbano, na
ocasião contabilizaram 105 favelas equivalente a 7% da população (VALLADARES, 2013).
74
3.2 Favela: um território visível
O discurso de muitos grupos sociais contemporâneos é embasado na busca por
reconhecimento, assim questionam a condição de subordinação aos padrões de interpretação e
comunicação associados à cultura do dominador (SUIAMA, 2007).
O sociocentrismo se materializou quando, a partir dos padrões de vida, valores e
crenças de um determinado grupo social, consolida-se um conjunto de comparações
com outros grupos situados, em geral, em condições de inferioridade. Os discursos
estabelecidos em relação aos espaços populares seguem esse padrão. Eles são
definidos por suas ausências, devido ao fato de não serem reconhecidos como
espaços legítimos. (SILVA, J., 2006, p.218)
O sociocentrismo46
no Rio de Janeiro resultou em exclusão e menosprezo aos pobres,
postura assumida historicamente pela elite carioca. O sentimento de proximidade com o modo
de vida europeu caracterizou a atitude dos segmentos abastados da cidade, e assim,
considerou invisível a presença das classes perigosas, os pobres, quando pensaram as políticas
sociais e urbanas. Atribuíram-lhe a responsabilidade quanto ao tipo de vida precária que
levavam em moradias improvisadas e em terrenos não valorizados pelo setor imobiliário. Por
essa razão, o interesse técnico e científico acerca da periferia só teve início em fins da década
de 1940, sendo uma reação à união dos trabalhadores, residentes em áreas excluídas das
cidades, retornando a ideia de classes perigosas da transição do século XIX para o XX.
Assim, o Recenseamento Geral de 1950 foi o primeiro documento oficial a apresentar
um conhecimento sistemático a respeito das favelas. Despertou-se o interesse pelo fenômeno,
dividindo a opinião entre aqueles que são a favor da urbanização das favelas e os que
defendem a sua extinção.
O contexto nacional voltado para superação da pobreza e a marcha do
desenvolvimento, criou oportunidade para os pesquisadores estrangeiros conhecerem o
fenômeno da exclusão e da pobreza. Abriu-se a chance para muitas ideias com a finalidade de
apresentar uma solução ao problema da favelização. A Igreja Católica foi pioneira em
aproximar-se das favelas cariocas, nos anos de 1940, através da Fundação Leão XIII. O Bispo
Auxiliar Dom Helder Câmara liderou a Construção da Cruzada São Sebastião, um conjunto
de prédios que recebeu os moradores removidos de favelas próximas, para dar
prosseguimento às ações afirmativas dos laços de solidariedade e vizinhança.
46
Atitude do grupo ou sociedade que pressupõe sua superioridade sobre os demais e examina acontecimentos e
conceitos unicamente desde só uma perspectiva. SILVA, J., 2006
75
(VALLADARES, 2013)
O trabalho da Igreja católica nas favelas não só considerou o direito e a igualdade,
como recuperou a autoestima e a satisfação de necessidades básicas, multiplicando a sensação
de bem-estar. A proximidade territorial dos sujeitos criou a oportunidade para pensarem
juntos acerca de sua situação de carência e miséria em comum. Dessa maneira indivíduos
insatisfeitos dos segmentos populares e despossuídos, criaram fortes vínculos locais
vislumbrando o reconhecimento mútuo e a legitimidade de seus espaços.
O livro de Manoel Gomes, “As lutas do povo do Borel (1980), apresenta o trabalho
operário como símbolo de busca por reconhecimento e de conquistas sociais. A luta de
resistência contra a ação estatal na promoção da remoção da favela de Mata Machado, União
e do Borel teve como articulador e mobilizador o Partido Comunista. A articulação se deu
para organizarem formas de resistência ao processo de despejo movido pela Borel Meuren
Ltda que legalmente era a proprietária da terra. A União dos Trabalhadores Favelados(UTF)47
foi criada nesse contexto, no ano de 1954, com sede no Morro do Borel.
Uma comissão de moradores recorreu a um advogado que aceitasse; defende-los
diante da ação de despejo movida pela Borel Meuren Ltda. Encontraram
receptividade em Antonie de Magarinos Torres Filho, membro de tradicional família
de juristas e que participara de movimentos democráticos e progressistas (GOMES,
M., 1980, p. 25)
A favela e a sua história se mostram como símbolo da luta e busca por
reconhecimento. A promoção da autoestima social também liga-se à manutenção das
memórias da favela e fortalece o poder de articulação de seus moradores, em mediações
pacíficas com a governabilidade. A vitória do ―segmento proletário‖ do Morro do Borel tem
vínculo com a Escola de Samba Unidos da Tijuca, pois, igualmente, o pavão desenhado na
capa de cigarros Borel, está estampado no pavilhão da agremiação tijucana. Posto isto, o
símbolo se presta a relembrar o passado de luta e conquista do reconhecimento quanto à
legitimidade espacial, pretendida pelos moradores da favela.
Durante o Governo Militar – 1964 – a UTF foi pressionada e transformou-se em
Associação de Moradores, que reunidas criam a Federação das Associações de Favelas do
Estado do Rio de Janeiro FAFERJ. O relacionamento entre as associações de moradores e a
prefeitura caracterizou-se pelo conflito em muitas circunstâncias em que as necessidades não
47
Pode- se constatar as seguintes favelas como participantes da União dos Trabalhadores, nos anos 1954 e 1955:
Morro do Borel; Morro do Jacarezinho; Favela do Esqueleto; Morro de Santo Antônio; Morro da Liberdade;
Morro do Alemão; Morro da Providência; Morro da Mangueira; Morro do Salgueiro; Rocinha; Mata Machado
(LIMA, 1989, p. 105 apud FRANCISCO,1990 ).
76
eram atendidas. (GOMES, M., 1980)
O Governador Carlos Lacerda rompeu com a visão comunitária e pautada no
reconhecimento promovido pela UTF, afastando-a do fomento na busca de melhor qualidade
de vida e ―direito a cidade‖. Na sua gestão, Lacerda incumbiu Jose Artur Rios da ação social e
criou o projeto Operação Mutirão entregando nas mãos dos moradores a responsabilidade pela
urbanização da favela. A contrapartida governamental consistia na oferta de resto de materiais
de outras construções e assistência técnica (GOMES, M., 1980).
O governador Negrão de Lima deu continuidade à iniciativa de seu antecessor e
ampliou o número de agentes envolvidos: arquitetos, urbanistas economistas em torno da
Companhia de Desenvolvimento das Comunidades (CODESCO) responsável pela assistência
de técnicos, além desse fator concederam empréstimos a juros baixos para aquisição de
materiais de construção pelos moradores, que participavam do projeto de urbanização, por
exemplo, decidiriam onde e como novas ruas seriam projetadas, e também, assegurou a
permanência dos moradores durante o processo de possível remoção, talvez mantendo o
vínculo e a solidariedade. (VALLADARES, 2013)
A indignação quanto às atitudes preconceituosas do passado, no tocante aos moradores
de favela, teve como reação a responsabilidade e a vontade de participação, reagindo de
maneira positiva aos sentimentos negativos gerados com o menosprezo. A Operação Mutirão
e a CODESCO representaram movimentos bastante avançados para os anos de 1960. Assim,
os interesses imobiliários tiveram eco na voz e na postura de Lacerda responsável por
―higienizar‖ a Zona Sul, ao remover grande quantidade de favelas desta área da cidade. Os
dois movimentos citados experimentaram a minimização de suas ações e impactos. O
primeiro chegou ao fim e a CODESCO sentiu a concorrência do programa federal CHISAM
(Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro)
encarregado por remover os moradores de várias favelas da cidade. O interesse desse órgão
estatal não foi de integrar através da urbanização, mas remover as famílias para os conjuntos
habitacionais distantes do lugar de origem, como aconteceu com os moradores da Praia do
Pinto (Gávea) realojados na Cidade Alta em Cordovil, Zona Norte da cidade, por exemplo.
Houve uma atitude de resistência contra a prática de remoções, vender a moradia para
outra pessoa e se mudar para outra favela. Muitos desses conjuntos se deterioraram em pouco
tempo, revelando mais uma vez que o problema não era o indivíduo, mas a prática do Estado,
que não se fazia presente, na assistência à classe pobre com os serviços básicos,
principalmente a moradia. A remoção de favelas nos anos de 1960 se valeu da repressão da
Ditadura Militar, sublinhando o tipo de reconhecimento negativo em relação ao favelado
77
(VALLADARES, 2013).
A estereotipia dos espaços favelados se faz presente não só na forma conservadora
apontada, mas também em uma forma pretensamente progressista. Na primeira,
forma, os moradores aparecem como criminosos em potencial e/ou como
colaboradores de forças criminosos. Na representação progressista, os residentes em
favelas, há algumas décadas, eram identificados por alguns setores sociais como
bons favelados. (SILVA, J., 2006, p.219)
A exclusão dos favelados para lugares cada vez mais distantes relacionou-se com a
desarticulação das lutas por reconhecimento. Assim, desestabilização da autoestima
conquistada com os movimentos organizados pela UTF transpareceu no medo pela perda do
território. Percebe-se, que a demanda das classes populares tem na própria existência material
da favela um símbolo permanente de busca por reconhecimento na paisagem da cidade,
porém encarada como o lugar por excelência da classe perigosa. Por essa razão, o controle do
território foi exercido pela Igreja Católica a fim de restringir a autonomia dos movimentos de
mobilização na favela. Os apartamentos prometidos pela Cruzada São Sebastião às famílias
impunham algumas condições para serem entregues:
Ainda sobre a intervenção da Igreja na conduta dos moradores os autores colocam:
A notícia de que a Cruzada construiria apartamentos e repercussão junto aos
moradores também figurava entre as fichas, permitindo notar suas exigências e
resistências diante da iminente mudança. Para ter direito ao apartamento, seria
preciso não somente assumir novos compromissos jurídicos, (mensalidades, luz,
água) mas também civis e religiosos: celibatários e concubinários: não poderiam
pleitear um imóvel no Bairro São Sebastião. Às 22 horas havia toque recolher e os
conflitos eram levados ao Serviço Social (FREIRE; GONÇALVES; SIMÕES, 2010,
p.23).
Reconhecer-se como morador da favela reafirma a ideia de pertencente ao lugar e
afirma a sua identidade. As práticas espaciais autônomas, entre as décadas de 1970 e 1980,
habilitou os moradores de favela a agiram ativamente em busca de resolver os problemas de
infraestrutura básica. Os mutirões organizados visaram construir casas, canalizar a rede de
água e esgoto, melhorar a circulação cimentando ruelas e beco, entre muitas outras ações,
alterando a paisagem da grande maioria das favelas cariocas caracterizadas pelas ―ausências‖
descritas no censo de 1950 (SILVA, J., 2006)
Porém, o projeto de construção de conjuntos habitacionais em substituição às favelas
não obteve êxito, indicando a necessidade de outras propostas de ação do Estado nas favelas.
Em 1972, a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ)
pediam o fim do projeto de extinção de favelas e a urbanização das mesmas.
78
O final dos anos de 1970 marca o retorno da militância católica a Teologia da
Libertação nas favelas em que a assessoria jurídica contribuiu para luta pela terra e reverter os
programas de remoção em 17 favelas. Israel Klabin, prefeito entre 1979 e 1980, supervisionou
o investimento da UNICEF em infraestrutura na Rocinha. A FAFERJ48
, a partir de 1981,
apresentou as necessidades cotidianas e básicas como a coleta de lixo, água e esgoto,
propriedade da terra, urbanização, pavimentação de becos, ruela, ruas (VALLADARES).
A abertura política no Brasil dos anos de 1980 tem Leonel Brizola como Governador
do Estado do Rio de Janeiro e, com ele o olhar voltado para os moradores pobres retornam,
concretizado nos projetos lançados em sua primeira gestão: Projeto Mutirão, um programa
municipal, e sua contraparte estadual, Cada Família Um Lote. Os moradores foram
empregados nessa iniciativa de urbanização de favelas recebendo pelo seu trabalho um salário
mínimo, além de se beneficiarem com os projetos de urbanização. O Projeto Mutirão pela
primeira vez pagou aos moradores um salário mínimo pelo seu ―suor‖ ou horas de trabalho, e
no total 17 comunidades se beneficiaram com projetos de urbanização (SOARES, 2002).
A transição da ditadura para a democracia acompanhou muitos ganhos para a
população, principalmente para o pobre. Com o fim do Regime Autoritário tentou-se
compensar as minorias historicamente prejudicadas, dando-lhe o acesso à vida cidadã. Em
1985, ao analfabeto o direito ao voto foi concedido, lembrando que na ocasião um quarto dos
eleitores morava em favelas. Na mesma década, a usucapião tornou-se lei e, na Constituição
Federal de 1988, assegurou a propriedade da terra a quem a ocupasse por mais de cinco anos.
Foi possível às associações de moradores e outras organizações sociais argumentarem
a favor da permanência dos moradores no seu lugar, na sua favela, barrando os progressivos
processos de remoção. A permanência, próximo ao local de trabalho, teve peso na
argumentação com a governabilidade. Caso seja necessária a remoção, que seja feita para um
local próximo, para que não cause instabilidade e fim da identidade.
Cesar Maia, o prefeito eleito em 1992 precisava do apoio das camadas populares,
criando assim o cenário propício para a execução do Programa Favela-Bairro, com maior
investimento financeiro e maior alcance em relação aos outros programas de urbanização em
favelas. A visão acerca da favela reducionista permanece no Plano Diretor da Cidade do Rio
de Janeiro em 1992, que em linhas gerais define a favela como área predominantemente
habitacional, com circulação e lotes irregulares.
Segundo Alex Ferreira Magalhães (2010) o Programa de Urbanização da gestão Maia,
iniciado em 1993, durou até 2008, e teve muitas implicações na favela. Uma delas referiu-se
48Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro
79
ao controle e à fiscalização das irregularidades das edificações. A fim de manter a presença do
poder público, além das obras de urbanização, a prefeitura tentou fiscalizar as obras
provenientes da autoconstrução de seus moradores.
De toda maneira, a prefeitura pretendia regularizar os tipos de construções, isto é, seu
tamanho, o local em que seria erguida, etc., além de resolver os conflitos entre os moradores
em litígio pelo avanço de sua obra no quintal do outro, por exemplo. A transição do governo
municipal em 2009 substituiu os POUSOS e outras modalidades de fiscalização atuando, nos
mais distintos espaços da cidade,
Uma das linhas de ação do Choque de Ordem tem consistido, precisamente, na
demolição de construções irregulares, muitas delas em favelas, sempre com apoio
das forças de segurança pública municipal e estadual. Assim, caso essa linha de ação
se mantenha, efetivamente, como o eixo orientador da atual administração
municipal, é provável que a aposta feita anteriormente seja revista, assumindo-se
uma nova postura diante das construções irregulares em favelas, na qual,
possivelmente, ganhariam mais ênfase os instrumentos de coação direta. Nesse caso,
a municipalidade passaria a ter que responder a problemas como as dificuldades
crescentes, ou até mesmo a inviabilidade, da continuidade dos trabalhos, por ela
executados nas favelas, entre eles, o POUSO, e da série de outros problemas, que
podem daí se desdobrar... (MAGALHÃES, 2010, p.501)
Em consequência disso, vê-se, que o reconhecimento estatal das práticas dos
moradores de favela resulta em conflito. O motivo está ligado a postura histórica de
menosprezo, do Estado Brasileiro, nos espaços habitados pelos pobres. Em tal contexto, as
regras próprias em seu modo de organização formaram o que Ricouer chamou de Percurso do
Reconhecimento. As edificações destoando do padrão vigente de construção, nos oportuniza
uma leitura de resistência, delimitação do seu espaço frente aos preconceitos, menosprezo e
ao projeto de nação que exclui o diferente.
A favela do século XXI reúne complexas realidades, resultado de diferentes conjuntos
de circunstâncias. A marginalização da favela é um tema recorrente. Na atualidade, o
reconhecimento desse território está ligado à organização do tráfico de drogas. O (re) arranjo
do comércio ilegal de entorpecentes corrobora para maiores investimentos com a finalidade
de manter essa atividade econômica, apesar de ligada a territórios diversos no mundo, atribui
80
à favela aspectos negativos. De acordo com o senso comum49
os moradores da favela viviam
em seus territórios isolados por opção a um estilo de vida direcionado a criminalidade,
aceitam-se como naturais eventuais práticas ilegais efetivadas por alguns moradores,
tais como a receptação de objetos roubados, a privatização indiscriminada de
espaços coletivos, a falta de pagamento de taxas e serviços (água, luz e impostos) e,
no limite, a prática de roubos e assaltos- atos considerados, de certa forma, meios de
distribuição de renda, diante da sua concentração, forma de denunciar a segregação
espacial da cidade (SILVA, J., 2006, p.219).
A criminalização da favela permanentemente está relacionada à criminalidade, como
que sua marca própria. Assim, mais uma intervenção realizou-se por meio do Governo do
Estado do Rio de Janeiro com o slogan de recuperar o espaço perdido ao crime. Em 2008,
criaram-se as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) com o objetivo de fazer uma
intervenção pacífica nas favelas, evitando o confronto com os criminosos, bem como proteger
os moradores no trajeto de seus afazeres cotidianos.
em relação às favelas, esse novo contexto político se voltou para a formalização
dessas áreas, facilitando a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora. As
favelas se tornam uma ―mina de ouro‖ para as concessionárias de serviços sem as
ameaças constantes do narcotráfico, e passam a atrair o interesse de mercados
imobiliário, de lazer e turismo. (GONÇALVES, 2015. p.197)
Entre 2008-2017 houve relativo sucesso do Programa de Segurança do governo do
estado porque despertou na sociedade carioca o sentimento de segurança, mas para os
moradores da favela não havia o mesmo conforto, pois, a atitude truculenta dos agentes da
Polícia Militar não se modificou. A ideia de policiamento de proximidade não teve êxito
porque o histórico de desrespeito e violência está associado a imagem da polícia se manteve.
Gradativamente, o projeto de pacificação fracassou em decorrência da crise econômica do
estado do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, o processo de militarização da favela reforça a
ideia da marginalização da população favelada, retirando de outros segmentos da sociedade
qualquer responsabilidade pela violência e pelo tráfico de drogas na cidade.
49
O estudo de Veronica Araújo Lima e Almir Oliveira Junior (2011) apresenta considerações acerca do racismo
institucionalizado: Hasenbalg (1979) destaca que a raça tem sido mantida como forte símbolo de posição
subalterna na divisão hierárquica do trabalho e continua a fornecer a lógica para confinar os membros dos
grupos raciais subordinados às condições que o código racial da sociedade define como seus ―lugares
apropriados‖. Segundo Santos (2012), o racismo institucional é velado por meio de mecanismos e estratégias
presentes nas instituições públicas, explícitos ou não, que dificultam a presença do negro nestes espaços ou a
presença do Estado onde há maior concentração da população negra. O acesso é dificultado não por normas e
regras escritas e visíveis, mas por obstáculos formais, presentes nas relações sociais que se reproduzem nos
espaços institucionais e públicos e/ou na formação dos agentes do Estado. A ação é sempre agressiva, na
medida em que atinge a dignidade humana, instaurando-se no cotidiano organizacional, gerando desigualdades
e iniquidades na implementação das políticas públicas (Ipea, 2007).
81
A representação dominante naturaliza as formas tradicionais de relações na cidade e
a partir daí define um determinado lugar para a favela e, assim, consequentemente,
um determinado tipo de política. Nesse sentido, o caveirão (equipamento móvel
blindado utilizado pela polícia militar em ações nas favelas) se torna absolutamente
natural. Assim, como se naturalizou que o principal crime a ser combatido é o
tráfico do varejo e o lugar de repressão é a favela. (SILVA, J, 2009, p.81)
Lembramos que as necessidades dos moradores da favela passam pelo direito de
igualdade e redistribuição das riquezas produzidas pelo país e pelo estado. As mazelas
nacionais não devem ser atribuídas aos lugares periféricos, pois não há neles autonomia a fim
de reverter as situações de desigualdades e a falta de boa vontade do Estado em ser atuante. A
breve história apresentada da favela nos auxilia para mostrar em certa medida os caminhos
para o reconhecimento.
A informalidade e a ilegalidade desde o começo acompanham a favela. A ideia de
moradia provisória porque a ação estatal poderia extingui-la também em longo prazo parece
ter destituído do morador de favela o vínculo com o lugar. De acordo com Silva (2006) há
dois tipos de visão do morador da favela: conservadora e progressista. A primeira é apontar
todo morador de favela como um criminoso ou colaborador das forças criminosas e a segunda
os veem como vítimas passivas de uma estrutura social injusta. Ambos os pontos de vista
acentuam os estereótipos em torno do espaço da favela.
Gradativamente reconheceu-se a favela por suas ausências, mas também pelas suas
presenças. A circulação em seu espaço pelos ―não moradores‖ num primeiro momento
aconteceu pelo interesse do poder público em conhecer e dominar o local, como citado acima
no relatório de Backheuser(1909) apud Valladares (2013), como também pela curiosidade
daqueles que queriam entender o movimento cultural produzido em torno do samba. Mas,
recentemente o comércio de drogas e os bailes funks são o grande atrativo para aqueles que
acorrem à favela.
A cultura produzida na favela ainda é bastante forte e com grande poder de atrair
adeptos. O samba e o funk são expressões culturais responsáveis pelo reconhecimento dos
moradores de favela. As músicas produzidas em tais áreas reforçam a ideia de lugar, tanto no
samba, quanto no funk. Talvez esse seja o papel da favela na Cidade do Rio de Janeiro, o que
contribuirá para o seu reconhecimento como espaço relacionado a sua história e ao seu
cotidiano. A música funk é um movimento de identidade dos sujeitos que materializam no seu
espaço a necessidade por reconhecimento. Mesmo os funks proibidões retratam a autoestima
social dos sujeitos inseridos e pertencentes ao seu contexto social.
82
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
[fé em deus, dj]
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
Mas eu só quero é ser feliz, feliz, feliz, feliz,
Feliz, onde eu nasci, han.
E poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre
Tem seu lugar.
Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer,
Com tanta violência eu sinto medo de viver.
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado,
A tristeza e alegria que caminham lado a lado.
Eu faço uma oração para uma santa protetora,
Mas sou interrompido à tiros de metralhadora.
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela,
O pobre é humilhado, esculachado na favela.
Já não aguento mais essa onda de violência,
Só peço a autoridade um pouco mais de competência.
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, han.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
Mas eu só quero é ser feliz, feliz, feliz, feliz,
Feliz, onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre
Tem seu lugar.
Diversão hoje em dia, não podemos nem pensar.
Pois até lá nos bailes, eles vem nos humilhar.
Fica lá na praça que era tudo tão normal,
Agora virou moda a violência no local.
Pessoas inocentes, que não tem nada a ver,
Estão perdendo hoje o seu direito de viver.
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela,
Só vejo paisagem muito linda e muito bela.
Quem vai pro exterior da favela sente saudade,
O gringo vem aqui e não conhece a realidade.
Vai pra zona sul, pra conhecer água de côco,
E o pobre na favela, vive passando sufoco.
Trocaram a presidência, uma nova esperança,
Sofri na tempestade, agora eu quero abonança.
O povo tem a força, precisa descobrir,
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar, eu.
Eu, só quero é ser feliz, feliz, feliz, feliz, feliz,
Onde eu nasci, han.
E poder me orgulhar, é,
83
O pobre tem o seu lugar.
Diversão hoje em dia, nem pensar.
Pois até lá nos bailes, eles vem nos humilhar.
Fica lá na praça que era tudo tão normal,
Agora virou moda a violência no local.
Pessoas inocentes, que não tem nada a ver,
Estão perdendo hoje o seu direito de viver.
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela,
Só vejo paisagem muito linda e muito bela.
Quem vai pro exterior da favela sente saudade,
O gringo vem aqui e não conhece a realidade.
Vai pra zona sul, pra conhecer água de côco,
E o pobre na favela, passando sufoco.
Trocada a presidência, uma nova esperança,
Sofri na tempestade, agora eu quero abonança.
O povo tem a força, só precisa descobrir,
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.
Eu só quero é ser feliz,
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar, é50
.
Da favela emerge novamente a música, o movimento funk, como mediação
simbólica e pacífica, também, questionadora das diferenças e das contradições sociais. A
favela é um lugar em permanente busca por reconhecimento e, nesse percurso a cidade não
enxerga o drama da violência de sua periferia como resultado da negligência do poder estatal.
Ao menosprezar a condição de vida boa do segmento pobre da população, o Estado lhe furta o
direito a autonomia e a liberdade.
A estima social compreende o mundo do trabalho e não se restringe a construção da
cultura como identidade. A ocupação necessariamente não precisa estar ligada a formas
tradicionais do capitalismo, mas em possibilidades criativas locais. As demandas que visam
dar condições dignas de vida boa surgem da autonomia da favela: cursos para capacitação de
mão de obra dos jovens, práticas esportivas e recreativas (nas Vilas Olímpicas) apresentam
aos jovens das favelas alternativas de profissionalização e lazer. As ações afirmativas na
favela, através de suas mediações pacíficas, transformam o favelado numa agente construtor
do espaço com a finalidade de se tornar visível na cena urbana. O reconhecimento não deve se
limitar ao ato de ―cartografizar‖ o favelado no tecido intra-urbano. Mas, um exercício para
autovalorização de identidade locais, bem como a capacidade e a autonomia do favelado em
delimitar a construção do território cultural e social.
Na cerimônia de abertura e de encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro,
em 2016, a favela toma a cena, na apresentação durante o evento a força cultura desse espaço
50
Cidinho e Doca, O rap da felicidade, 1995.
84
popular segregado representou a identidade cultura da cidade, colocando em relevo a força da
capacidade inventiva das classes populares. Vê-se com isso que cada favela possui sua
especificidade, assim como os bairros formais. A particularidade dos diferentes grupos deve
ser considerada no percurso de busca por reconhecimento. O morro da Mangueira atualiza a
memória referente a própria construção histórica, apresentando-a em outros níveis da
hierarquia social de modo singular a fim de fortalecer a sua capacidade de argumentação e
alcançar a redistribuição, ainda que em termos culturais.
85
4 MANGUEIRA E A BUSCA DO RECONHECIMENTO, UM EXEMPLO
Os tempos idos, nunca esquecidos, trazem saudades ao recordar
É com tristeza que relembro coisas remotas que não vêm mais
Uma escola na Praça Onze, testemunha ocular
E perto dela uma balança onde os malandros iam sambar
Depois aos poucos o nosso samba, sem sentirmos se aprimorou
Pelos salões da sociedade sem cerimônia ele entrou
Já não pertence mais à praça, já não é samba de terreiro
Vitorioso ele partiu para o estrangeiro
E muito bem representado por inspiração de geniais artistas
O nosso samba, humilde samba, foi de conquistas em conquistas
Conseguiu penetrar no municipal, depois de percorrer todo o universo
Com a mesma roupagem que saiu daqui
Exibiu-se pra Duquesa de Ken no Itamarati51
.
A letra da música tempos idos descreve as etapas do processo de reconhecimento do
samba e consequentemente dos sambistas. Esse reconhecimento da cultura popular reduziu a
distância entre os sujeitos e criou mediações simbólicas com vistas a boa convivência. Neste
contexto, a identidade do Morro da Mangueira construiu-se a partir das reuniões entre
sambistas locais: festas, resolução de problemas domésticos, auxílio a famílias em condições
precárias etc.. As relações horizontais criaram laços de solidariedade como valorização da
cultura do lugar: a religião de matriz africana, o canto, a dança, a festa. Os indivíduos em
Mangueira se apropriaram destes elementos e os transformaram para maior comunicação com
os outros espaços na cidade. A agremiação, inicialmente numa estrutura precária, abriu a
chance de apresentarem as demandas locais às classes dirigentes da cidade. O reconhecimento
cultural toma o lugar da redistribuição socioeconômica como remédio para a injustiça social.
(FRASER, 2001)
A escola de samba constitui-se em um novo modelo de comunicação nas festas de
carnaval. A reconfiguração, das formas de agremiações, talvez seja a possibilidade para
valorização dos pobres, através dos símbolos recriados com o esvaziamento dos cordões,
ranchos e blocos. A palavra escola parece ter dado o sentido de maior articulação local e
responsabilidade, porque nela há aprendizado, disciplina e organização. Isto porque todos os
indivíduos, do lugar, deixavam o ―terreiro‖ de uma pessoa determinada (líder do rancho,
cordão etc.) para se encontrarem no ―terreiro‖ da escola de samba, o que despertou a ideia de
pertencimento à favela, com isso houve a valorização da expressão territorial e cultural dos
espaços populares. A criação simbólica unifica a narrativa, na qual o epicentro é a escola, o
51
TEMPOS IDOS de Cartola / Carlos Cachaça, 1961. Composição apresentada no concurso de samba-enredo do
G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira, no qual ficou em terceiro lugar.
86
samba que deixou de ser a identidade restrita, mas coletiva de um grupo com elevada estima
social. A manifestação cultural do samba concentrada na área central se espraiou pela
periferia da cidade, em cada localidade havia o seu ―conjunto‖ com nome e endereço
representando um grupo. Se o rancho, o cordão e o bloco tinham nomes sem relação com o
lugar, a escola de samba constituiu-se como objeto simbólico de uma localidade, definindo
um território cultural de uma área ampla: ―conjunto Osvaldo Cruz‖, ―Conjunto Estação
Primeira de Mangueira‖, ―Unidos da Tijuca etc.
A busca por reconhecimento na Mangueira é mostrada neste capitulo recuperando a
história da formação espacial do bairro. A apropriação territorial se deu de modo criativo
resultado do contato dos moradores do morro de Mangueira com outros sambistas da cidade.
Assim, resultou na elaboração da tradição ligada ao samba na Mangueira com as articulações
de suas celebridades: Cartola, D. Zica, D. Neuma, Padeirinho entre outros. A favela da
Mangueira está localizada na Área de Planejamento 1 (AP1) do município do Rio de Janeiro,
em 2010 a Mangueira (mapa 1) possuía 17.946 habitantes e uma extensão de 487.317m²,
segundo Censo Demográfico IBGE, 2010.
87
Mapa 1 - Localização do Morro de Mangueira, na Área de Planejamento 1
Fonte: O autor, 2017.
88
4.1 A freguesia de São Cristóvão: do Morro dos Telégrafos ao Morro da Mangueira
Três fatos históricos contribuíram para a ocupação do Morro dos Telégrafos: a Guerra
do Paraguai, a Proclamação da República e a Abolição da escravatura. A organização do
Município da Côrte, o Rio de Janeiro, era em freguesias ou territórios paroquiais. A Freguesia
da Paróquia de São Cristóvão correspondia aos atuais bairros do Caju, São Cristovão, e
Benfica e suas imediações (figura 1). O novo território surgiu a partir do desmembramento da
Freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho. Esta esteve sob a administração dos
jesuítas até o governo de Pombal. Com a chegada da Família Real, tais terras receberam
muitos moradores, principalmente ao longo do II Reinado, incentivados pela relação de
vizinhança com os nobres do Império. Em 1857 houve a primeira comunicação telegráfica do
Brasil, entre o Rio de Janeiro e Petrópolis; desde então, o Morro de São Cristóvão passou a se
chamar de Morro dos Telégrafos, no qual se instalaram os postes e os cabos responsáveis pelo
moderno meio de comunicação brasileiro. Em consequência disso, parece terem se
estabelecimento poucas famílias em suas encostas ocupadas com esse novo serviço. Eram
terras públicas pertencentes ao Governo do Império e depois passou a propriedade da
República do Brasil. (BRASIL, 2004)
A residência oficial da Família Real atraiu para São Cristovão muitas modernizações:
aterros, arruamentos, loteamentos, serviço de transporte, iluminação a gás, telegrafia
(instalação de postes no Morro de São Cristovão), sistema de abastecimento de água (O
reservatório do Pedregulho). Em 1858 inaugurou-se a Estrada de Ferro Dom Pedro II,
incluindo a estação e a empresa de Bondes de São Cristovão, em 1870 (figura 3).
No território da freguesia haviam pequenas chácaras, comercialização de produtos dos
locatórios dos jesuítas no atual Campo de São Cristovão. Juntamente com outras freguesias do
município constituíram-se em áreas fornecedoras de gêneros agrícolas e pecuários, destinados
ao abastecimento da cidade até o século XVIII, mudando o uso do solo para residencial com a
consolidação do Império no século XIX.
89
Figura 1 - Decreto de Criação da Freguesia de São Cristóvão – Século XIX
Fonte: Senado Federal. Disponível em: <legis.senado.gov.br>. Acessado em : 25/3/17
Com a Proclamação da República, o interesse dos governantes direcionou-se para o
Centro e a Zona Sul, rompendo com o passado colonial e imperial, para implementar o projeto
de modernização da cidade. Assim, houve a deterioração das construções mais antigas e o
rebaixamento da qualidade de vida no bairro de São Cristovão.
A intervenção urbana de Pereira Passos52
atingiu o bairro negativamente. Os casarões
abandonados despertaram o interesse da indústria que se instalou em seus terrenos e induziu
mais moradores ao bairro que alugarem vagas nos cortiços locais, fixando moradia próximo
ao lugar de trabalho. O bairro comportou a sua função residencial, a industrial e a portuária.
Outro fato que contribuiu para o deslocamento da população de baixa renda para os
subúrbios foi a expansão da Estrada de Ferro. Houve com isso a formação dos bairros do
subúrbio e a formação de algumas favelas, inclusive a do Morro da Mangueira.
Segundo Abreu (1987) e Lícia do Prado Valladares (2013), entre 1890 e 1916 a capital
52
O engenheiro Francisco Franco Pereira Passos foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906,
nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. Em sua administração realizou obras de modernização estética da
cidade. Responsável pelo famoso bota a baixo, no qual derrubou vários cortiços e prédios históricos da área
Central.
90
da República viveu a crise do habitat53
. A construção civil voltou-se para atender as atividades
econômicas e os projetos de reforma urbana privilegiando a Zona Sul e o Centro, que
serviram de moradia para as classes mais abastadas, incrementando as contradições da cidade
que permanecem até os dias atuais.
A ocupação do Morro dos Telégrafos hoje conhecido como Morro da Mangueira
aconteceu como consequência desses fatos, isto é, os primeiros moradores chegaram ao
Morro dos Telegrafo em virtude de diferentes razões.
O Morro dos Telégrafos: do Império ao final da República Velha
Observando a Planta da Cidade do Rio de Janeiro de 1877 considera-se que a vertente
norte do Morro dos Telégrafos é a mais antiga. Nela há a inscrição de ruas, as quais
convergem para o seu cume, a partir da rua Dona Ana Nery (ainda existente no local). É bem
provável que nesta ocasião alguns moradores residissem neste morro, pois além de ruas na sua
porção setentrional, acreditamos que pouquíssimos funcionários do Telegrafo Aéreo do Brasil
habitassem o local para manutenção do equipamento dos Telégrafos e pela facilidade de
deslocamento por meio do Caminho Real de Santa Cruz, na localidade conhecida hoje como
Largo do Pedregulho.
A inauguração da Estação de Trem, em 1861, da Estrada de Ferro D. Pedro II, deu à vertente
Sul e oeste do morro maior dinamismo. Anterior ao processo de favelização, nas imediações
da vertente sul, do Morro dos Telégrafos, havia clubes voltados para elite, o Prado do Derby
Club e o Prado Fluminense. Assim, acreditamos que os segmentos mais abastados da
sociedade habitavam a localidade, dada a proximidade com a residência do Imperador
(PASSOS, 2008). A incipiente infraestrutura dos subúrbios se estabeleceu com o auxílio dos
proprietários de terras que cederam parcela de suas terras com intenção de serem servidos
pela estrada de ferro.
53
De acordo com Gonçalves (2015) a crise de moradia na cidade remonta ao final do Império. Escravos de
ganho( trabalhavam na cidade e dividiam seus ganhos com os seus proprietários), alforriados, brancos
despossuídos, mestiços estavam ocupados com trabalhos sem qualificação porém sem moradias próprias,
viviam da assistência das irmandades ou alugando vagas nos cortiços.
91
Figura 2 - Vias do século XIX em direção ao cume do Morro dos Telégrafos54
Fonte: Biblioteca Nacional. Disponível em:< http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart523904/cart523904.jpg>. Acessado em 30/2/16
54
Nova planta indicadora da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios: incluindo as linhas de ferro-carris, de 1877)
92
Na figura 2, a área envolvida pelo círculo vermelho indica a existência de caminhos da
planície ao cume do Morro dos Telégrafos, o que pode ter facilitado o estabelecimento de
moradias, em sua vertente norte. Outro argumento favorável para justificar a ocupação da
porção setentrional do morro foi a proximidade com o Caminho da Estrada Real de Santa
Cruz, facilitando a circulação e comunicação dos moradores e dos funcionários dos telégrafos
com o Palácio a Quinta da Boa vista e ao Centro da Cidade, por meio dos carris que já
circulavam ligando a área central.
Os primeiros moradores possivelmente chegaram ao local, em diferentes fluxos.
Segundo Marilia Barbosa T. da Silva et alli (1980) após o término da Guerra do Paraguai, o
Imperador D. Pedro II, permitiu aos soldados residirem na Quinta da Boa Vista. Estes
permaneceram no local até a Proclamação da República. Outro tipo de ocupação para a
localidade relaciona-se à atividade agrícola, comum às freguesias cariocas. Em nota do jornal
O Diário de Notícias de 1891 há a descrição do uso do solo no subúrbio carioca da
Mangueira.
―Prescindindo de recorrer a Irajá e Inhaúma, só da Estação de Mangueira á S.
Francisco Xavier, vereis uma dúzia de pequenos agricultores com suas famílias
entregues ao cotidiano labores de cultura de legumes, de fructa, de hortaliças e de
cereais em logares onde há ainda dois anos nem uma planta útil era conhecida!‖
(Diário de Notícias, 08/11/1891, p. 2)
Por outro lado, Silva et ali (1980) apontam como primeiro morador do Morro de
Mangueira o português Tomás Martins, que loteou terrenos e construiu barracos para alugar
em 1900. Este foi padrinho do sambista Carlos Cachaça, com o encargo de cobrar os aluguéis,
pois o padrinho era analfabeto. O padrinho de Cachaça liderou a organização dos novos
moradores. Com isso o português incentivou o processo de favelização no morro dos
Telégrafos, talvez com pessoas chegadas do centro da cidade expulsas dos cortiços e outros
do interior, encontrando trabalho nas redondezas.
Segundo Raymundo de Castro 55
seus pais, também portugueses, chegaram à
Mangueira em 1908. Eles eram proprietários de um estabelecimento de Secos e Molhados, no
começo do Buraco Quente (Travessa Sayão Lobato). De acordo com Marília T. Barboza da
Silva et al. (1980) a partir de 1900 outras atividades econômicas se desenvolveram na área: a
Olaria do Gama (1900), as Olarias do Diamantino e do Lage (1905), a Cerâmica Brasileira
(1907). A Fábrica de Calçados Tupã chegara também em 1907, e, na rua oito de dezembro
entre os números dois e vinte e oito, a Fábrica de Chapéus Fernandes Braga, que viria se
55
Cf. https://raymundodecastro.blogspot.com.br/ acessado em 25/12/2016
93
chamar anos depois de Fábrica de Chapéu Mangueira, margeando a Estrada de Ferro D. Pedro
II. As necessidades de consumo de bens perecíveis eram satisfeitas pelos armazéns: do
Francisco Castro (1908), do Jeremias e do José de Castro (1909), e em 1926 o Restaurante
Tripa, que ofereciam os serviços de restaurante, padaria, leiteria e armazém. É provável que a
instalação de indústrias de bebidas, tecidos, material de construção seja responsável por atrair
os moradores para a área de São Cristovao e com ela o comércio, por essa razão havendo
diversas origem dos habitantes de Mangueira.
Dado o avanço da indústria e de trabalhadores em direção ao subúrbio, o trecho da
estrada de ferro aumentou em fins do século XIX. Por essa razão houve a intervenção
urbana56
em 1903, para alterar o traçado(figura 3) da rua Visconde de Niterói57
e dar lugar ao
ramal da Leopoldina. A rua ocupou um corte feito na vertente sul do Morro dos Telégrafos.
Porém, a obra realizou-se muito lentamente. Os moradores da Rua Visconde de
Niterói reivindicaram através do abaixo-assinado a reabertura do caminho para São Cristóvão,
que fechado, gerava transtorno para a população. A conclusão da obra aconteceu em 1903,
onze anos depois da promulgação do decreto autorizando a sua execução. Mas isto ocorreu
devido ao impasse entre a Prefeitura do Distrito Federal e a Empresa Melhoramentos no
Brasil
56
Realizada pela ―Empreza Melhoramentos no Brazil” objetivou deslocar a rua Visconde de Niterói paralela a si
mesma para construir a primeira secção da Estrada de Ferro, da qual era cessionária entre a Parada da
Mangueira e de Belém (atual Japeri). O deslocamento da rua para área mais próxima ao Morro dos Telégrafos
garantiu a ampliação da linha férrea. No tocante, o decreto de 1892, liberou a concessão para obra, à diretoria
de Obras e Viação da Prefeitura do Distrito Federal no ano de 1894. Cf. BRRJAGCRJ PDF. LP 33.2.16 –
Coleção Prefeitura do Distrito Federal – Série Logradouros Públicos- Estação de Mangueira. 1892-1903).
57
Uma nota, no Jornal O Paiz, o Senhor Caetano Sayão Lobato, herdeiro do Visconde de Niterói doou parte das
terras a Câmara. A família já havia doado parte das terras que vão da estação de São Francisco Xavier ao Rio
Maracanã para passagem da linha férrea. E posteriormente doou mais terras à Câmara Municipal para o
prolongamento da rua Visconde do Outro Preto (atual Rua Oito de Dezembro) e construção da Rua Visconde
Niterói. No mesmo Jornal, o herdeiro deixa em aberto a possibilidade de doar mais terras para possível
reutilização da rua São Francisco Xavier. Cf. Jornal O Paiz, em 07 de fevereiro de 1890.
94
Mapa 2 - Localização das terras da família real e as do Visconde de Niterói
Fonte: O autor, 2017.
95
Figura 3 - Planta das obras da rua Visconde de Niterói e documento.
Fonte: Acervo do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro – BRRJAGCRJ PDF. LP 25.3.33 – Coleção Prefeitura do Distrito Federal – Série 1910
96
A reforma da Quinta da Boa Vista, em 1908, desabrigou muitos funcionários da
Família Real que direcionaram-se para o Morro dos Telégrafos. O Presidente Nilo Peçanha
mandou reformar a ex-residência imperial expulsando os moradores, que transferiram-se para
o Morro dos Telégrafos, edificando suas moradias a partir do material dos escombros de suas
antigas casas na vertente sul.
O prefeito Serzedelo Correa, em 1910, mediante pedido formal dos soldados do 9º
Regimento de Cavalaria, autoriza-os a construir moradias com todo material da demolição na
encosta do Morro dos Telégrafos, entre as estações de Mangueira e São Francisco Xavier.
Em 1916, outro contingente populacional chegou ao local, oriundo de um incêndio no
Morro de Santo Antônio, no Centro da Cidade. Os novos habitantes fizeram a entronização da
imagem de Santo Antônio no morro da Mangueira, contribuíram com as manifestações
culturais e religiosas no lugar. Na década de 1920 a favelização do Morro da Mangueira já
estava consolidada (SILVA et ali, 1980)
97
Mapa 3 - Traçado da rua Visconde de Niteroi século XIX/XX
Fonte: O autor, 2017.
98
Mangueira no teatro de Revista
Antes do interesse da intelectualidade pela cultura popular, o teatro de revista
notabilizou e veiculou a arte do povo. O samba de Manoel Dias58
,― o Morro da Mangueira‖
(Anexo A) esteve no repertório da revista59
“Amor sem dinheiro”, no Theatro Recreio, na
década de 1920.
Eu fui a um samba lá no Morro da Mangueira
uma cabrocha me falou de tal maneira:
não vai fazer como fez o Claudionor
pra sustentar a família foi bancar o estivador (2x)
Ó cabrocha faladeira que tens tu com minha vida?
vai procurar um trabalho e cortar esta língua comprida (2x)
não tem água na Mangueira é pau pra virar
é duro subir ladeira pra em seco namorar60
. (Anexo B)
De acordo com Gonçalves (2015) as revistas retratavam em suas peças o cotidiano das
classes populares. Os artistas igualmente discriminados deram visibilidade aos tipos sociais
que expressavam o jeito de ser do brasileiro. O Morro da Mangueira fora da área central foi
reconhecido e retratado na arte pela primeira vez, nessa ocasião.
Mangueira e a “Escola de Samba”
Os sambistas do bairro do Estácio, mais próximo do centro, tinham mais contato com
o ambiente da música profissional e por esse motivo seus sambas foram gravados61
por
cantores famosos da época. Este ponto de encontro deu oportunidade para que outros
sambistas tivessem suas composições gravadas. De certo modo, há uma valorização da
58
Manuel Dias, quase nada se sabe sobre esse compositor. foi o primeiro a cantar o Morro da Mangueira, que
depois serviria de pedra de toque de dezenas de sambistas. Também fixou a figura de Claudionor, o estivador,
que logo se integraria na música popular do Rio, como uma das figuras mais características e humanas." Esse
samba foi também um dos primeiros a tocar na questão do trabalho, nos versos que dizem: "Não vá
fazer/Como fez o Claudionor/Para sustentar a família/Foi bancar o estivador".
http://dicionariompb.com.br/manuel-dias/dados-artisticos acessado em 19/03/2017.
59
Conforme Gomes (2004) o teatro de revista também era um veículo de divulgação dos sambas.
60
Música gravada por Pedro Celestino, irmão mais novo de Vicente Celestino. Está música teve grande
repercussão no carnaval de 1926.
61
O Cantor Francisco Alves comprava a preços baixos as músicas de vários sambistas, além de se incluir na
parceria dos compositores. (SILVA, 2003; GONÇALVES, 2015)
99
capacidade artística dos pobres da cidade, porém não aconteceu a recompensa financeira
condizente com o trabalho de criação das composições.
A ligação da Mangueira com o Estácio de Sá é antiga, é muito antes de ser fundada a
Estação Primeira. É que lá em cima no morro nós tínhamos um terreiro muito bom,
defronte a tendinha do Nascimento e lá se fazia roda de samba. E no Estácio não se
podia fazer, o Estácio era cidade, a polícia não deixava, então o pessoal do Estácio
subia pra Mangueira toda sexta, sábado e domingo. Aí a gente fazia roda de samba a
noite inteira, com aquela turma toda do Estácio. (Depoimento de Cartola para o
documentário ―A turma do Estácio62
‖)
A autoestima dos sambistas decorreu da visibilidade que a instituição da Escola de
Samba deu ao grupo social formado por negros, mestiços e brancos despossuídos. Os
habitantes pioneiros da favela da Mangueira possuíam uma vida cultural bastante rica
decorrente da influência africana: música, religião e expressas no carnaval presente nos
cordões carnavalescos, ranchos e blocos. Essas agremiações internalizavam a divisão dos
moradores conforme a moral, o comportamento durante o carnaval. Os ranchos eram
formados por núcleos familiares, pessoas mais ―comportadas‖, ao passo que pessoas que
gostavam da batucada pesada, com rasteira, com queda de corpo, juntavam-se aos valentes no
brigão Bloco dos Arengueiros, fundado pelo pai de santo Zé Respingue-la e liderado por
Cartola e Carlos Cachaça (SILVA et ali, 1980). As diferentes intencionalidades das
agremiações embasaram a separação entre os foliões também durante o ano.
Com o intuito de unir os morados em uma só agremiação, após o carnaval de 1928, os
integrantes do Bloco dos Arengueiros optaram por brincar o carnaval de forma mais pacífica.
Com isso, em vinte oito de abril de mil novecentos e vinte oito, na Travessa Saião Lobato
(Buraco Quente) fundaram o Bloco Carnavalesco Conjunto Estação Primeira63
, conhecido nos
dias atuais como Grêmio Recreativo Estação Primeira de Mangueira. Apesar da existência de
rancho, bloco, cordão nos ―bairros‖ do Morro da Mangueira, a união almejada foi atingida aos
poucos.
De acordo com Nelson da Nóbrega Fernandes (2001) o bloco, o rancho, o cordão em
seu uso espacial estava como próximo de uma procissão, ´por sua vez a escola de samba
62
Documentário encontrado on line https://www.youtube.com/watch?v=1SFtaKpKkdQ, sem referência
provavelmente produzido nos anos de 1970.
63
Antes da fundação da Escola de Samba houve no Buraco Quente, Morro da Mangueira, dois cordões
carnavalescos: o Guerreiros da Montanha, com sede na casa da tia Chiquinha Portuguesa e o Triunfos de
Mangueira na casa de Seu Leopoldo, da Santinha. Nos anos seguintes, surgiram os ranchos (Pingo do Amor,
Príncipe das Matas, Pérolas do Egito) que se diferenciavam dos cordões. Estes os foliões brincavam
mascarados e eram mais violentos nas brincadeiras carnavalescas, já o segundo havia mais organização e
respeito, e passou a ser menos visado pela polícia. Houve posterior evolução para a denominação ―bloco‖: da
tia Fé, da Tia Tomásia, do Mestre Candinho entre outros. (SILVA et ali, 1980)
100
introduz uma mudança rítmica diferente das manifestações citadas, além do que padronizam
sua maneira de apresentação, baseando-se na estrutura da festa carnavalesca da aristocracia.
Além do que, a escola de samba introduz um novo modo de organização social a partir
da festa, do rito da liberdade. Em comparação aos blocos, ranchos ou cordão não obtiveram a
mesma capacidade de reunir pessoas ao longo de um ano, renovando no imaginário delas o
pacto como faz a escola de samba, é como um contrato, só que no âmbito da identificação e
do reconhecimento
O fortalecimento do GRES Estação Primeira aconteceu pela sua capacidade de
organização, esta escola de samba desde o princípio apresentou uma estrutura de clube com a
formação de sua diretoria64
. O nome do morro de Mangueira alcançou respeito no mundo do
samba e na vida cultural da cidade (anexo C). A agremiação Estação Primeira foi campeã do
desfile oficial das Escolas de Samba, em 1932, 1933 e 1934. A localização periférica do
Morro da Mangueira e o prestígio no mundo do samba levou o prefeito Pedro Ernesto
organizar uma manifestação pacífica, em 1934, a fim de pedir às autoridades a construção de
uma escola pública na favela, que foi inaugurada em 1935 (figura 4).
Figura 4 - Inauguração da Escola Municipal Humberto de Campos em 1935, na prefeitura de Pedro
Ernesto.
Nota: Ao centro o compositor Cartola em apresentação com componentes da Escola de Samba Estação
Primeira em 1935.
Fonte: O Globo. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/incoming/escolas-de-samba-poder-
20970285>. Acessado em 20 de janeiro de 2017.
64
Esse grupo de foliões, que conta assignaladas victorias em carnavaes passados, acaba de dar o gripo de
carnaval na rua, nomeando a comissão de carnaval, composta dos srs. Angenor de Oliveira, Angenor de Castro,
Arlindo Santos, Arlindo Conrado,Saint Clair Soares, Pedro Santos, Miguel Laurindo e Sebastião Souza. A sua
directoria está assim constituída: Presidente Saturnino Gonçalves, vice-presidente, Arlindo dos Santos, 1º
secretario, Pedro L. Camillo [...] Cf. Jornal Correio da Manhã, 13/01/ 1932, p.5.
101
A frequência do prefeito Pedro Ernesto, a ida de jornalistas ao morro de Mangueira
atraiu o interesse da classe média. Houve a aproximação com intelectuais, músicos65
e artistas
do asfalto, estes exerceram um tipo de influência na produção cultural da favela. Na realidade,
a favela do Morro da Mangueira se confunde com a própria ―Escola de Samba‖. Os sambistas
exerceram com suas propriedades culturais a capacidade de identificação local em Mangueira.
Recapitularam a experiência do ser reconhecido em vivências continuas, nas articulações
lideradas por Cartola e outros sambistas.
(...) Recebemos a seguinte comunicação. ―Bar Mundial‖ – o ―dr. Bôto‖ faz selente
que este ano (1930) tornou inabalável resolução fazer o carnaval no Morro da
Mangueira como sucedeu em 1928. Que seja bem sucedido... (Diário Carioca,
11/01/1930, p.3)
Algumas razões para o sucesso da modalidade ―conjunto66
‖ são: a aproximação do
governo de Getúlio Vargas das classes populares, e em particular da Mangueira, na qual o
prefeito Pedro Ernesto, na década de 1930, construiu a primeira escola de ensino primário
dentro de uma favela. Outro motivo seria a localização fácil que permitiu aos membros da
classe média frequentar o lugar e conhecer a cultura popular de uma área estereotipada por
muitos aspectos negativos já citados. Os cronistas do Jornal Diário Carioca mostraram a
importância dos preparativos do carnaval na favela de Mangueira:
...Subimos até a sede do ‗Estação Primeira‘, na rua Sayão Lobato, (...)Termina o
ensaio, Despedida. Oferecimento de préstimos. Vivas ao Diário Carioca e a
‗embaixada dos maiores‘ conduzem os rapazes da imprensa até a ponte da
Mangueira (Diário Carioca, 26/01/1933, p.5).
Se nas primeiras décadas do século XX, como salienta Valladares (2005), integrantes
das classes abastadas se dirigiam à favela a fim de rotulá-las como problema. Durante o
governo Vargas o propósito era de reforçar o apoio das camadas populares. A agremiação,
escola de samba, conseguiu nas áreas periféricas da cidade moldar um tipo de
autorreconhecimento e o reconhecimento do outro de fora, não visto em outro momento do
Brasil republicano de então.
Se antes, ―o Zé-Pereira‖, o entrudo, os cordões, os ranchos representavam arruaça,
violência, por outro lado a escola de samba se distinguiria pela maneira visual de organização,
65
Heitor Villa-Lobos foi amigo pessoal de Cartola. (SILVA, 2003)
66
Cf. Diário Carioca, 26/01/1933, p. 5. Muitos blocos também se denomiram conjunto. Talvez com a intenção de
mostrar uma forma diferenciada de brincar o carnaval sendo mais simpático do que o modo agressivo dos
cordões e blocos.
102
distanciando-se das formas mais antigas de apresentação. Numa cidade moderna, muito mais
próxima da Europa do que com seus pares brasileiros, qualquer aproximação com a vadiagem
seria reprimida.
Disso decorrem os traços marcantes que nessa busca por reconhecimento foram
fundamentais para firmar no calendário carnavalesco as escolas de samba: o samba moderno
relacionado a dança executada por um cortejo, um conjunto instrumental composto somente
por instrumentos de percussão (até então desconhecidos o surdo e a cuíca) e a obrigatoriedade
da ala das baianas, entre outros elementos herdados dos ranchos e cordões.
O reconhecimento cultural para os moradores de Mangueira já estava consolidado, que
não foi acompanhada pela redistribuição econômica e material. Assim, na década de 1950
criou-se através da União dos Trabalhadores de Favela67
, a rede de solidariedade entre as
favelas, incluindo a Mangueira. Entre os objetivos incluiu a lutar contra a remoção das
favelas, pois comumente apareciam ―donos‖ das terras em que estavam assentavam
reivindicando a posse do terreno. (PESTANA, 2013)
A gestão pública cogitou a extinção da favela da Mangueira e construir uma passarela
dos desfiles de escola de samba. Dois anos depois, o Governo do Estado da Guanabara
desapropriou a área e realizou pequenas obras de urbanização em algumas partes da favela:
esgoto, agua encanada e mutirão para construção de casa de alvenaria. Em fins da década de
1970 e início dos anos de 1980 as ações comunitárias prosseguiram com o apoio da Estação
Primeira de Mangueira (SILVA, 1980)
O Morro da Mangueira e o Programa Favela-Bairro
O Programa Favela-Bairro chegou ao Morro da Mangueira em 1996, com o objetivo
de melhorar o sistema de drenagem, da rede de esgoto e da coleta de lixo e espaços coletivos
de convivência. A opinião dos moradores quanto à intervenção urbana se dividiu. De um lado
aqueles que ficaram satisfeitos com a ampliação da área de lazer e de outros contrários com a
ampliação das vias de circulação. As frases de efeito utilizadas para legitimar o programa
foram: ―integração da favela à cidade formal‖ e ―objetivo de absorver características do
urbano‖. Conforme Vianna citado por Passo (2008), Tantinho – sambista e morador do Morro
67
A busca por reconhecimento começou no morro do Borel, que requeriam o direito de terem a posse da terra
reconhecida pelo tempo de existência da favela.
103
– a intervenção acabou com os ―bairros68
‖(mapa 3), pôs fim as referências.
Aos mais antigos, a intervenção do Favela-Bairro descaracterizou locais de ponto de
encontro dos sambistas locais. A tomada de decisões para urbanização da favela não levou em
consideração a participação dos moradores. A intencionalidade foi de aplicar modelos
externos de urbanização com vistas à integração da favela à cidade formal.
Os projetos de modernização da cidade são ações transformativas pois modificam
locais que possuem simbologias para os moradores, descontruindo o sentido de pertencimento
e identidade com o lugar (FRASER, 2001).
68
Buraco Quente, Chalé, Farias, Santo Antonio, Candelária, Olaria, Buraco da Poló etc.
104
Mapa 4 - ―Bairros‖ na favela do Morro da Mangueira
Fonte: O autor, 2017.
105
A UPP na favela do Morro da Mangueira
O estigma de território da violência decorrente da criminalização da favela, implica
em local de tensão e conflito, que requer constante vigilância como prática recorrente desde
sua origem. No estudo de Almir de Oliveira Junior et ali (2011), a segurança é uma questão
étnica, isto é, há uma distinção na distribuição desse serviço para brancos e negros.
Historicamente, segundo o autor, os negros carregam o fardo de serem associados ao mundo
do crime, e por isso, sofrem muito mais coerção do que os brancos. A instituição estatal
responsável por esse filtro é a polícia, por conta do atendimento direto à população. Ressalta-
se o fato da repressão e vigilância serem muito maior entre os negros e pobres. Porém, esse
fato não acontece nas ações policiais com outros segmentos da sociedade; o racismo acontece
de modo enviesado, através de ações de instituições públicas obstaculizando a presença do
negro, ou o Estado se tornando ausente em áreas com grande contingente de população negra.
O fruto dessas ações é agressivo porque não consideram a dignidade humana e recai,
assim, em menosprezo e nos seus desdobramentos: a alienação, a opressão e a exclusão. Esta
forma de reconhecimento negativo em que o policial vê o negro como suspeito a priori,
embora origem étnica seja a mesma69
.
Qualquer morte em favela, habitat histórico de negros e pobres, a justificativa para os
homicídios praticados por policiais consiste em associar a vida da vítima ao comércio de
drogas, O estereótipo da favela -lugar de violência e crime – e do favelado – bandido,
malandro - apresenta-se como prerrogativa para promoção de mortes.
Entretanto, os moradores reivindicam os serviços básicos e essenciais, além do desejo
de viver em paz, sem o conflito entre polícia e vendedores de drogas, e as outras formas de
tensão e conflito. A intervenção do Estado justifica a sua falência em oferecer serviços
básicos com qualidade educação, saúde, transporte e emprego, criminalizando a favela. E para
acabar com o clima de guerra foi instalada a UPP do complexo da Mangueira70
.
69
Almir de Oliveira Junior (2011) em seu estudo mostra a ação negativa para os negros e pobres o racismo
institucional fala sobre a ação velada do Estado em que sob o pretexto de segurança a força policial reprime o
deslocamento espacial, segundo a origem étnica.
70
―Mangueira ganha maior UPP do Rio de Janeiro‖, com 403 PMs. As localidades atendidas do Complexo da
Mangueira, pela UPP, além do Parque Candelária, foram o Morro do Telégrafo, a Vila Miséria, a travessa
Bartolomeu Gusmão, Buraco Quente, Olaria e Chalé. Compreendendo uma área total das comunidades de
487.317 m², situada nos bairros de São Cristóvão, Mangueira e Benfica, e, no raio de 2km² estão os bairros do
Engenho Novo, Tijuca, Andaraí, Jacaré, Jacarezinho, Sampaio, Vila Isabel, Riachuelo, Manguinhos, Rocha,
São Francisco Xavier, Maracanã, Caju, Vasco da Gama e Praça da Bandeira. A área é atendida pelas 17ª e 21ª
Delegacias de Polícia e pelo 4º e 22º Batalhões da Polícia Militar.
106
Segundo, Rute Imanishi Rodrigues; Eugênia Motta (2011) o policiamento comunitário
materializado pelas Unidades de Polícia Pacificadoras traria a diálogo entre os moradores de
favela e a polícia, que historicamente é reconhecida por sua ação truculenta. O objetivo dessa
prática foi relações de reciprocidade, de confiança, e aproximação. Mas, a favela não é um
espaço sem conteúdo, há grande atividade de organizações privadas filantrópicas a fim de
representar os interesses da população local. A multiplicidade de instituições revela os nexos
criados com a diversidade de circuito e redes sociais que colaboram para o tipo de argumento
com vistas ao reconhecimento e a sua legitimidade.
A UPP representa a ação da Esfera Pública que criminaliza a favela, ainda que, ao
levar serviços sociais, antes geridos pelas ONGs, não alcançam sucesso porque não se
preocupam em usar o potencial local. O fenômeno da Polícia Pacificadora revela o racismo
social, uma das vertentes do reconhecimento negativo como falamos anteriormente. O
controle e a repressão dos conflitos da favela representam uma contramão da estima social, na
qual os indivíduos são reconhecidos por estereótipos. O espaço não visto sob o prisma dos
contrastes e contradições internas. Pensar a favela, de fora, não contribui para o
desenvolvimento das formas de vida que nela existem.
Porém, um dos pontos positivos, segundo Rodrigues; Motta (2011) foi o decréscimo
do número de homicídios. Devemos pensar o seguinte, sem radicalismo, que essa redução não
se deveu somente ao programa de pacificação, mas sim à extinção dos confrontos, e
igualmente à dificuldade de explicação da prática de racismo institucional. Em sentido mais
amplo, a polícia pacificadora teria condições de agir no escopo de alargar o acesso à justiça
em seu aspecto legal, mas no que diz respeito a cidade e a cidadania. A inclusão de
presidiários à sociedade e a acessória às suas respectivas famílias. Com isso, de fato
viveríamos um pleno reconhecimento conduzindo a justiça social e o direito pleno a cidade ao
morador da favela.
A UPP representa impasses e conflitos, porque leva para a favela experiências
genéricas para promoção social, sem considerar a realidade local, ou até repetir projeto que já
existiram com histórias de eficácia e ineficácia. Com isso, surgiram os dilemas e conflitos. No
caso da Mangueira, há um histórico de ações com sucesso de inciativas próprias. O trabalho
de Vinicius Miranda Gentil (2013) mostra que a UPP na Mangueira encontrou a resistência de
antigas lideranças: Associação de Moradores, grupos da sociedade civil etc. A dificuldade
encontrada pela polícia reside no registro de ações violentas desta na favela. O autor reproduz
a fala de uma liderança ligada a associação de moradores, na qual o entrevistado não observou
mudanças significativas como a revitalização de áreas de lazer. O fracasso da UPP traz à
107
superfície questões não resolvidas na sociedade brasileira, o acesso igualitário aos recursos
materiais e que deem aos indivíduos independência e voz para discutir com as autoridades
públicas o tipo de política pública satisfatória.
O reconhecimento do morador permaneceu ligado ao ato de poder narrar-se, mantendo
viva a sua história, bem como, as ações afirmativas construídas nas relações horizontais: a
escola de samba e os moradores, que atraíram parceiros e constituíram os trabalhos sociais.
A Vila Olímpica da Mangueira
A Vila Olímpica, um complexo de serviços de saúde-educação-esportes realizou-se
trinta anos antes de qualquer ação do poder público. À medida que as ações visando o bem-
estar social foram minimizadas pelo Estado, as ações comunitárias despontaram no cenário
nacional. A assistência às crianças carentes da favela da Mangueira começa com o projeto
Recriança em 1972, na sede da Estação Primeira de Mangueira. Com poucos parceiros esta
iniciativa alia esporte e o fornecimento de alimentos.
A ideia do projeto é manter a autoestima social elevada durante todo o ano, além das
apresentações do carnaval. Inicialmente a Vila Olímpica atenderia as crianças da favela do
Morro da Mangueira, porém serviu às crianças e adolescentes da periferia de outras partes da
cidade.
Além do esporte a Vila Olímpica, possui o CIEP "Nação Mangueirense a preparação
de adolescente para o mercado de trabalho através do CAMP-Mangueira e o atendimento à
saúde no Posto "Tia Alice". Muitas dessas atividades aconteceram conforme citado, na sede
da Escola de Samba da Mangueira, na Associação de Moradores da Candelária e no Colégio
Estadual Professor Ernesto Faria. Os principais parceiros foram a empresa Xerox do Brasil e a
Golden Cross.
108
4.2 As mediações simbólicas e o reconhecimento pacífico
As mediações simbólicas
A minimização das tensões entre as camadas sociais acontece pela mediação do
símbolo. A alteridade dá a sociedade condições de ver os seu diferente com os olhos da
respeitabilidade. O preconceito obstaculiza a nossa visão, o símbolo tem o poder proporcionar
novos conhecimentos e mediar as tensões e os conflitos. Atualmente a alteridade é um viés
social bastante discutido, as escolas de samba são o lugar onde o diferente encontra
receptividade. Dito de outra maneira, as agremiações geram um produto de diversão, lazer,
ludicidade que estreitam os laços sociais e de solidariedade e, por conseguinte estreitam as
relações de reciprocidade.
A chamada ―turma do Estácio71
‖ é um divisor de águas na história do samba. Ao
cunharem a expressão Escola de Samba requerem para os sambistas o reconhecimento do seu
saber empírico, que resultou na diferenciação do maxixe, também cantado pelas classes
populares. A diferença acontece porque a Escola de Samba junta todos os elementos da
cultura popular no mesmo espaço.
A repressão ao samba na área central impeliu a sua realização nos bairros do subúrbio
como relembra o compositor Cartola. Os sambistas do Estácio iam para Mangueira fazer as
rodas de samba. São as relações de reciprocidade, solidariedade e reconhecimento mútuo,
antes da intuição GRES. O samba e as escola de samba aumentaram o grau de comunicação
com a classe média, constituindo num símbolo, que de maneira pacífica reconhece o talento
artístico das classes perigosas, despertando o interesse em conhecer o reduto dos sambistas,
evidenciando as necessidades materiais da favela e dos bairros do subúrbio. O samba da
década de 1930 em diante não influenciou somente na mudança do gênero musical, mas nas
trocas sociais porque liga as pessoas de diferentes camadas da população, ampliando a
possibilidade de interlocução modificando as relações de vizinhas.
As Escolas de Samba elaboram o território da autonomia no sentido de deterem o a
liberdade de expressar a sua arte, além de territorializarem os bairros como autênticos redutos
71
Era composto pelos sambistas: Ismael Silva, Bide, Mestre Marçal, Bucy Moreira, Baiaco, Brancura, Mano
Rubem e Mano Edgar. Cf. no documentário ―a turma do Estácio. s/referência. in
https://www.youtube.com/watch?v=1SFtaKpKkdQ&t=793s acessado em 23/04/2017
109
do samba e representação da identidade local. No primeiro volume do jornal local ―A voz do
Morro72
‖, a favela se afirma e se reconhece como Morro e opta por ser reconhecida pela
alegria e não pelas agruras do dia-a-dia.
Há de lhe causar dúvida que estas páginas hajam descido os caminhos íngremes do
morro da Mangueira ao lado dos sambas que ela canta entusiasmada [...] Mas a sua
identidade se estabelecerá de pronto, pois que elas, não lhe falarão dos sambas
dedilhados em pianos caros, mas só, só e unicamente do samba pobre e espontâneo
que ecoa no barracão como hino fácil ( BARBOZA; OLIVEIRA FILHO, 2005).
Percebeu-se desde cedo no morro da Mangueira, que o valor simbólico da Escola de
Samba funcionaria como ação afirmativa, necessária à comunicação vicinal a fim de
fortalecer a união dos ―bairros‖ da favela. O Jornal ―A voz do morro”(anexo 2) serviu como
veículo articulador e de divulgação das composições dos sambistas locais. Os laços de
solidariedade aumentaram a sociabilidade e reconhecimento mútuo, constituiu-se instância
local para resolver as questões locais.
O samba deu às relações entre classes a chance de trocar experiências e vivências e fez
do morro da Mangueira um território de cultura. As ações diversas têm nesse contexto a
relação com outros espaços da cidade. A valorização dos símbolos da periferia73
leva às
classes mais abastadas o entretenimento e o retorno à favela se estabelece em formas de
serviços básicos ainda que precários: escola primária, posto de saúde, bica para abastecimento
da comunidade na década de 1930.
A mediação simbólica nos leva a ver nas agremiações carnavalescas um elemento
político além de cultural. De maneira pacífica o samba deu visibilidade aos problemas sociais
vivenciados na favela da Mangueira. A preocupação do GRES Estação Primeira com os
problemas de sua comunidade tem referências na vida doméstica. Os vizinhos, amigos e
parentes reuniam-se em momentos dominados pela brincadeira, diversão e/ou licença, ou
seja, situações em que o comportamento é dominado pela liberdade decorrente da suspensão
temporária das regras de uma hierarquização repressora (DaMatta, 1997. p.49).
72
Foi um jornal idealizado pelos sambistas de Mangueira, liderados pelo Compositor e cantor Cartola na década
de 1930 com a finalidade de divulgação da escola de samba Estação Primeira. O jornal teve vida curta e
retornou nos anos de 1980 a partir de inciativa de Marília Barbosa da Silva, com poucos exemplares e não indo
adiante. Da metade para o fim da década de 1990 até o ano de 20.
73
Na década de 1940, o maestro e compositor erudito Heitor Villa-Lobos admirado de Cartola o incumbiu de
reunir sambistas para gravarem suas músicas para o famoso maestro norte-americano Leopold Stokowski (que
percorria a América Latina recolhendo músicas nativas). Outros sambistas participantes foram: Donga,
Pixinguinha, João da Baiana. O evento aconteceu no navio Uruguai, ancorado no Pier da Praça Mauá. O disco
foi lançado nos Estados Unidos pela gravadora Columbia. (SILVA, 2003).
110
As festas aumentaram a união dessas pessoas gerando laços de amizades favoráveis a
resolução das dificuldades experienciadas por seus pares sem nenhum apoio externo.
Provavelmente, o voluntariado tem nessas condições a sua origem e, assim, o reconhecimento
mútuo ajudou os indivíduos a se reconhecerem irmanados na interseção chamada Escola de
Samba.
Cada comunidade cria seus símbolos e suas formas de mediação, isto é, os grupos
dependendo da situação política e da sua localização podem também estabelecer mediações
não pacíficas, sendo a bandeira de sua busca por reconhecimento.
Figura 5 - Edições do Jornal ―A voz do morro‖
Nota: Edição 1, ano 1935
Fonte: Marcelo Reilly. Disponível em: https://issuu.com/marcelooreilly/docs/a-voz-do-morro-001-1935.
Acessado em 18/6/2017 as 15:53
Dito de outra maneira, a ―aceitação‖ do samba nos espaços centrais seguiu uma
tendência de acomodação a fim de encontrar um padrão territorial que minimize o convívio
social entre os grupos com distintos valores culturais e sociais, reduzindo as probabilidades de
discórdias facilitadas por tais exteriorizações.
Edição 44, ano 2005
111
Figura 6: Editorial da Edição nº1 do Jornal ―A voz do Morro‖
Fonte: Marcelo Reilly. Disponível em:https://issuu.com/marcelooreilly/docs/a-voz-do-morro-001-1935.
Acessado em 18/6/2017 as 15:53
O jornal a ―A voz do morro‖ (figura 5) se coloca como uma espécie de carta de
apresentação da recém-criada „Escolas de Samba‟ aos moradores do Morro da Mangueira. O
texto (figura 6) parece intencionar o distanciamento da imagem negativa associada à
vagabundagem, marginalidade correlata aos favelados. A importância dada às músicas no
jornal local demonstra a preocupação em dar visibilidade aos compositores do lugar.
Nos anos posteriores, o reconhecimento foi acentuado pelos valores compartilhados e
os sujeitos de fora do ―morro‖ reconhecem as propriedades e capacidades dos compositores
das camadas mais baixas da sociedade. O que aconteceu foi a interação entre os moradores do
asfalto com os da favela, muitas vezes interferindo em suas composições.
As mediações simbólicas recriam a redistribuição que não é econômica, mas de
valorização social e cultural. Estar com a fantasia verde e rosa e ser admirado ou até invejado
no cortejo de carnaval, redistribui os valores que historicamente não são compartilhados. Ao
112
menos numa escala geográfica menor, a do lugar do indivíduo em que fincou raízes. Em
termos urbanos, a mediação pacífica do samba funciona como um acordo invisível, um padrão
de organização territorial a fim de reduzir as discrepâncias sociais com o papel de questionar a
segregação socioespacial entre indivíduos de diferentes padrões de conduta e minimizar as
tensões geradas pela deficiência da redistribuição econômica. Todavia, as iniciativas locais
tendem a chegar onde o Estado deixou brecha, criando e recriando os laços de solidariedade.
Segundo Milton Santos (2015) a cada nova transformação social os signos são
reconfigurados para manter a comunicação com a sociedade. Refletindo sobre a Mangueira
percebemos que na sua trajetória, ela tem apresentando nova leitura do seu papel simbólico.
Antes a mediação proposta pela verde e rosa foi o samba com símbolo da afirmação da
expressão cultural do negro nas festas oficiais.
A Mangueira de hoje possui a propriedade afirmativa de associar a sua imagem
positivamente nos meios de comunicação atuais, incorporando outros signos. A preservação e
o status dado aos baluartes74
, a valorização da Velha Guarda e da sua tradição simbolizando o
depositário da sua história. A tradição do samba é associada a Escola de Samba da Mangueira,
por sua antiguidade e seu papel relevante na história do carnaval. O marketing pessoal,
alicerçada nessas simbologias, desperta a confiabilidade, conquistando parcerias nas agências
do Governo e na iniciativa privada para o desenvolvimento de seus projetos sociais. A
contrapartida disso é a confiabilidade que a instituição verde e rosa dá como retorno à
sociedade. O poder simbólico do morro da Mangueira é significativo, que até hoje a palavra
morro direciona ao visitante a imagem icônica, referência na história da Escola de Samba.
Nos tempos atuais, este tipo de atuação é significativo, pois é um paralelo a relevância da
dada à denominação morro, ao invés de favela, no passado.
O território que compreende o morro da Mangueira, antes de tudo é reflexo da
articulação política dos seus moradores, com importante peso do seu poder simbólico. As
políticas sociais locais têm sucesso por essa força catalizadora da Escola de Samba. O
território dessa forma é entendido através dos valores simbólicos e afetivos, muito mais que o
sentido político. Entretanto, o território só pode ser entendido em sua perspectiva integradora
– como exemplo a ações sociais que fazem parte da história da Mangueira: Projeto Recriança
(1972) e a Vila Olímpica da Mangueira (1987)
74
Os signos dispostos em nossa memória fazem parte de nossa herança cultural, pois o sujeito não se reconhece
sozinho. No morro de Mangueira esses símbolos nos rementem as cores verde e rosa, o brasão, a bateria com
uma levada diferente. Além das figuras emblemáticas da ―Escola de Samba‖: Cartola, Carlos Cachaça, D.
Neuma, D. Zica, Jamelão etc. Todas essas características direcionaram o caminho escolhido para a busca do
reconhecimento.
113
Enfim, Mangueira é nação, é comunidade! Cantou o morro em um dos seus carnavais.
O orgulho de fazer parte de uma história em que, mesmo anonimamente, o sujeito se torna
público numa pequena roda de conhecidos e desperta-o para estima social que representa para
ele o sentimento de pertencimento a um território cultural que evoca grandes nomes do
passado do samba em Mangueira
114
4.3 A importância dos compositores na construção do reconhecimento da favela do
Morro da Mangueira
A música tem forte laço com a história do Morro de Mangueira, embora fosse um
lugar periférico, na década de 1920, já era cantado no teatro de revista. Além do que, a visita
da ―turma do Estácio‖ à localidade construiu laços de solidariedade resultando no
reconhecimento mútuo.
Muitos são os estilos dos compositores do morro e do GRES Estação Primeira. Para
exemplificar a ação afirmativa de autorreconhecimento, escolheu-se dois deles para apresentar
a relevância da música para a Mangueira: Cartola e Padeirinho. O primeiro contribuiu para a
troca de saberes musicais com outros espaços da cidade e buscou o reconhecimento do samba
no morro de Mangueira. O segundo, por sua contribuição com sambas-enredo e os sambas de
terreiro. O compositor Padeirinho teve a intenção de explicar a realidade da favela por meio
de suas composições. Todavia, a música de ambos favoreceu a elevação da autoestima social
dos moradores do Morro da Mangueira por meio da Escola de Samba Estação Primeira. Outra
característica na obra desses dois compositores é a visibilidade dada ao morro de Mangueira,
seja ressaltando aspectos bucólicos, seja retratando a realidade local.
O talento de Cartola e Padeirinho coincide com um modo próprio para se colocarem
dentro de uma determinada realidade cultural, da favela do Morro da Mangueira. Em tão
pouco tempo, a linguagem (o samba) e a cultura penetram em outros territórios em que o
sujeito não domina. Quando o indivíduo apropria-se de seu entorno cultural, se reconhece
contido no seu lugar, ao distanciar-se perde as referências e deixa de ser quem é. No seu
lugar, em suas relações sociais diárias, a pessoa define sua identidade, e ajusta-se no fluir de
uma realidade mais ampla, a da cidade. Isto porque, a favela é um território da cidade em
constante interação e transformação. (TAYLOR, 2000)
O território tem as duas funções, funcional e simbólica e, atuam em maior ou menor
grau, dependendo da intencionalidade dos agentes sociais envolvidos. Em Mangueira, o
simbólico é muito mais expressivo, porem a funcionalidade existe em menor peso para o lugar
e não para cidade. O indivíduo ou grupo tem no território o valor simbólico mais aguçado,
pois há referência como lar, abrigo, etc.
A importância de Cartola para a favela da Mangueira liga-se a sua capacidade de
interlocução com outros territórios. Cartola mantinha contato permanente com o pessoal do
bairro do Estácio, próximo ao centro. Estes eram os indivíduos ligados a música profissional e
115
aos cantores das rádios que recorriam aos compositores das camadas populares para comprar
músicas a preços baixos. A partir disso, o compositor Cartola construiu laços de solidariedade
com políticos, artistas, jornalistas entre outros (GOMES, 2004).
Do Estácio partiu todas as inovações rítmicas relevantes para o desenvolvimento do
samba como conhecemos hoje. O bairro do Estácio exerceu a polaridade no mundo das
escolas de samba, pois foi nesse espaço que surgiu a primeira do país. De lá que partiu o
incentivo para fusão dos blocos carnavalescos do morro de Mangueira a fim de fundarem a
Estação Primeira.
Enfim, a frequência de Cartola nas rodas de samba de outros lugares da cidade, serviu
de base para conceber um grupo de compositores, incumbidos de cantarem o seu morro, com
a finalidade de fazer dele uma favela reconhecida não pela ausência, mas como um território
fértil de cultura. Nele, o compositor Padeirinho conviveu com a rodas de samba, onde se
cantava Partido Alto. O conhecimento construído sobre o cotidiano do Morro da Mangueira,
serviu-lhe de material para a compor as suas canções, caracterizada por muitas reflexões sobre
seu lugar e sobre o samba.
Cartola e Padeirinho: compositores de “dentro” – autonarrar-se e o reconhecimento
afirmativo
A favela é onde desenvolve a arte e todas as suas dimensões, provenientes do contato
face a face, do potencial criativo de seus moradores. Decorre disso, a busca de
reconhecimento do favelado graças ao samba no Morro de Mangueira. As rodas de samba
eram responsáveis por congregar os moradores em momentos de festa e de lazer na favela,
desde o início do século XX. Estas reuniões eram vistas negativa e pejorativamente, e
associadas à vadiagem e à malandragem. Assim, as formas de menosprezo, no qual o direito a
circulação e uso do espaço público para manifestação cultural e social eram restritos,
representada pela repressão às classes sociais minoritariamente representadas.
No Morro da Mangueira, a favela transformou-se em referência para os sambistas da
área central se encontrarem, em decorrência da sua distância do centro da cidade, sofrendo
menor repressão, o que possibilitou a frequência de sambistas como Noel Rosa, Ismael Silva
entre outros. O compositor Cartola veiculou em suas canções traços distintivos da agremiação
verde e rosa, talvez, com a intenção de reivindicar para si e para o seu grupo o
116
reconhecimento. Os primeiros sambas apresentados pela agremiação traduziram o forte
vínculo da favela e do seu morador, como no samba de Cartola de 1929, “Chega de
Demanda”, para a disputa entre as agremiações75
da época:
Chega de demanda, Chega,
Com este time temos que ganhar
Somos da Estação Primeira
Salve o morro de Mangueira
O primeiro samba de Cartola convoca os moradores dispersos em ranchos, cordões e
blocos pelo morro a se unirem e a deixaram as diferenças para trás. Somente a união daria ao
lugar o reconhecimento cultural devido. A condição de sambista não se restringia a tocar
algum instrumento, cantar, dançar ou somente apreciar o ritmo. A participação da vida
cultural envolvia os gestos, a comida, a bebida, as vestimentas e os instrumentos. Os
encontros de samba a priori marcavam a busca pelo reconhecimento de indivíduos em mesma
condição social. O lugar palco da vida cotidiana do indivíduo, continha particularidades que
os outros não possuíam. Na canção Sala de recepção (Cartola), há um convite para aqueles de
fora da favela, se irmanarem aos moradores de Mangueira. O morro é um espaço aberto,
propenso a troca, a comunicação e respeito ao diferente.
Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?
Pois então saiba que não desejamos mais nada
A noite, a lua prateada silenciosa, ouve as nossas canções
Tem lá no alto um cruzeiro onde fazemos nossas orações
E temos orgulho de ser os primeiros campeões
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram invejando a tua posição
Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo como se fosse irmão...
O samba uma expressão musical e social intermediou o contato, as parcerias e disputas
entre os sambistas de lugares diferentes. A aproximação do governo das favelas fortaleceu a
estima social, um primeiro passo para o reconhecimento. A realidade presente, em
composições musicais do ―morro‖, teve como elementos básicos as biroscas, os caminhos de
subida, os terreiros de macumba, bem como a forte identidade fortalecida pela Escola de
Samba. Uma das etapas do reconhecimento, a comunicação, entendida como todos os ritos
75
O primeiro concurso aconteceu no dia de São Sebastião, em 20 de janeiro de 1929, no bairro do Engenho de
Dentro na casa do pai de santo Zé Espinguela. Além da Estação Primeira, participaram a Deixa Falar e a Vae
como pode (atual Portela)
117
ligados ao samba. Este é um elemento próprio, na busca por reconhecimento, em que media a
tentativa de relações igualitárias na sociedade carioca.
Os encontros de sambistas não se restringiam a elaboração do samba-enredo para o
desfile de carnaval. Muitas composições ao longo do ano tiveram a função de afirmar a
realidade do morador da favela, a isso chamamos de autorreconhecimento.
O compositor Cartola teve grande papel de articulação dos moradores do lugar
estreitando os laços de solidariedade. O primeiro samba76
defendido pela Estação Primeira
tinha o refrão fixo e os outros versos eram improvisados, convocando a participação dos
demais componentes da Escola de Samba. Nesse sentido, Cartola deu a chance para outros
atuarem. Pode-se caracterizar a postura do compositor como uma ação afirmativa, com a
intenção de criar elos de identificação com a cultura local, através do reconhecimento mútuo.
O estreitamento dos laços de sociais, tem na fundação da Ala dos Compositores da
Estação Primeira (figura 7) em 20 de janeiro de 1939, a ideia de continuidade do samba no
morro de Mangueira. Cartola pretendeu ensinar os preceitos do samba que ele aprendeu com
os ―professores‖ do Estácio, porém com liberdade criativa aos novos integrantes desta ala.
(NOGUEIRA, 2005)
76
O samba oriundo de um grupo de iletrados conquista o gosto popular devido as novidades harmônicas: surdo,
tamborim, cuíca. O sambista e compositor Bide do Estácio criou o surdo para manter a marcação dos sambas
porque o número de pessoas que acompanhou as Escolas de Samba chegava a 300 componentes, muita gente
para época. Cf. documentário ―A turma do Estácio‖. https://www.youtube.com/watch?v=1SFtaKpKkdQ
118
Figura 7 - Primeira formação da ala dos compositores da Estação Primeira
de Mangueira em 1939.
Nota: Cartola é o sétimo da esquerda para direita em pé. A ala dos
compositores da Estação Primeira foi precursora ao aceitar
mulheres.
Fonte: O Globo. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/gente-
boa/post/centro-de-memoria-da-mangueira-reabre-neste-sabado.html
acessado em 13/11/2016
A intencionalidade de busca por reconhecimento de fato deu a Escola de Samba o
caráter de símbolo para mediação pacífica, no escopo de estabelecer relações com outros
segmentos da sociedade. Os temas nacionalistas não eram obrigatoriedade imposta pelo
Estado Novo, mas uma estratégia de mostrar que a camada iletrada da população não fazia um
cortejo carnavalesco vazio e, sim com a capacidade de apresentar os aspectos da formação da
história e cultura nacional. A começar em meados da década de 1935, os temas nacionais se
firmaram com finalidade de maior comunicação com outros estratos da sociedade. Antes
desse período, os sambas versavam sobre situações cotidianas, como amores mal resolvidos,
por exemplo, relatando o dia a dia de sua comunidade ou de seus autores. (FERNANDES,
2001; NOGUEIRA, 2005)
A participação efetiva do compositor Cartola na Estação Primeira termina no fim da
década de 1940. Seu samba de melodia mais lenta não foi do agrado dos novos dirigentes e
não acompanhou a evolução dos sambas-enredo, inspirados na mercantilização da cultura
popular. A ideia do compositor era manter-se enquanto simples afirmação da identidade
através da manifestação cultural e de integração social. (SILVA; OLIVEIRA FILHO, 2003)
A ala dos compositores instituída na Estação Primeira por Cartola foi responsável pela
articulação local. Muitos sambas de exaltação ao Morro da Mangueira surgiram dessa
119
inciativa. A riqueza nas composições foi relevante para a agremiação. Entretanto, escolheu-se
o compositor Padeirinho77
para mostra outra influência marcante para o morro. As suas
composições não se restringiram ao samba-enredo, mas ao frutífero número de sambas de
terreiro. Foi um dos primeiros de Mangueira a fazer samba de gíria: Linguagem do morro e
Deixa de moda.
Figura 8: Compositores Cartola e Padeirinho
Fonte: Johnson. Disponível em: http://www.fotolog.com/johnson/9694092/ acessado em 15/04/2016
O compositor Padeirinho teve papel importante para a cultura do samba em
Mangueira. A vivência no morro o fez compreender a importância simbólica do GRES
Estação Primeira para a vida no lugar. As duas composições citada, entre as 300 de sua
autoria, representam a proposta de comunicação com os indivíduos de fora do território da
favela. O uso de gírias do lugar apresenta o conhecimento, saberes e falares dos becos e ruelas
do Morro de Mangueira. Traduziu em música os sentimentos e o dia a dia do ambiente que
77
Padeirinho viveu uma infância clandestina, sem lugar fixo para morar. Abandonado pela mãe, dormia nas
padarias em que seu pai trabalhava, até que aos 12 anos foi morar num barraco no morro da Mangueira,
quando seu José Vitalino lhe arrumou uma madrasta. Entrou para Ala dos Compositores da escola em 1947
quando apresentou o samba "Mangueira desceu pra cantar"(Na ocasião para integrar a Ala era necessário
apresentar um samba de terreiro, caso aprovado por outros membros, estava admitido). Sua primeira música
gravada foi "Mora no assunto" (parceria com Joaquim dos Santos) num disco de Jamelão no início da década
de 50. Com Joaquim dos Santos fez também "Fofoca no morro" e "Vida de operário". Foi funcionário do Cais
do Porto e da Limpeza Pública do Rio de Janeiro. Participou do show "O samba pede passagem" no Teatro
Opinião no Rio. Em 1974 gravou como intérprete o samba "A mais querida" e o samba-enredo "O grande
presidente" (ambos de sua autoria), para o selo Marcus Pereira, no LP "História das escolas de samba:
Mangueira". Seus sambas tem um estilo sincopado e Padeirinho foi um grande partideiro. (Franco Paulino,
2005)
120
viveu. A contribuição de Padeirinho é compreendida como autorreconhecimento e capacidade
de auto narração, isto é, ele teve como propriedade a autonomia em interpretar as relações
sociais do Morro de Mangueira e sintetiza-la em suas composições. Como ação afirmativa
considera-se a exaltação ao lugar, a Escola de Samba, que para o qual eram uma coisa só.
Outro fato muito importante
e também interessante é a linguagem de lá
Baile no Morro é fandango, nome de carro é carango,
discussão é bafafá. Brigas de uns e outros dizem que é burburinho
velório é gurufim, erro lá no morro chamam de vacilação
grupo do cachorro em dinheiro é um cão
papagaio é rádio, grinfa é mulher
nome de otário é Zé Mané78
.
Nesta, o compositor coloca como música a reflexão sobre a dificuldade das pessoas
letradas em entenderem o vocabulário das pessoas do morro, que retratavam a linguagem da
malandragem de Mangueira. A explicação se fazia necessário para manter a comunicação
com o indivíduo do asfalto, facilitando a interação e o reconhecimento mútuo. Além do que, o
compositor procurou salientar que não há barreira às pessoas de fora que tenham interessem
em conviver com os pobres.
Numa vasta extensão onde não há plantação
Nem ninguém morando lá cada pobre que passa por ali
só pensa em construir seu lar e quando o primeiro começa
os outros depressa procuram marcar seu pedacinho
de terra pra morar e assim a região sofre modificação
Fica sendo chamada de a nova aquarela
E é aí que o lugar então passa a se chamar favela79
.
A percepção da favela como possiblidade de moradia está descrita nesta composição.
A auto narração contribui para a ação afirmativa, apontando à falta de reconhecimento do
poder público com a falta de moradia. Padeirinho, descreve a razão de existência da favela: a
necessidade de um pedacinho de terra pra morar. De modo implícito, o compositor aponta o
problema da habitação na cidade e o crescimento sem planejamento do Morro de Mangueira.
A obra desse compositor não é uma reflexão particular, mas sim voltada para
percepção da realidade em que viveu. Dessa maneira, a busca pacífica pelo reconhecimento se
estabelece na medida em que outros indivíduos reconhecem a capacidade e propriedade
particulares, há uma reconciliação com a coletividade, rompendo a segregação espacial.
78Linguagem do Morro, composição de Padeirinho foi registrada por João Nogueira (―Boca do Povo‖,
Polydor/1980).
79
Favela, composição de Padeirinho. LP "Manhã de Liberdade" (Philips/1966), de Nara Leão.
121
A obra de Padeirinho não deve ser resumida ao esquema de tradução do vocábulo do
morro as pessoas do asfalto. O objetivo do compositor é dar-se a conhecer ao outro, como que
uma carta de apresentação à cidade do cotidiano no Morro da Mangueira. Há nisso a
necessidade de manter a comunicação com a cidade. A própria linguagem segrega, identifica
a classe social e o lugar de morada dos indivíduos, entretanto, padeirinho buscou inverter essa
condição.
E vem pro morro sambar
Ele até já foi presidente de nossa escola
Quase fez um samba junto com Cartola
E diz que no morro é que é seu lugar
Bom para se morar e o doutor
Para entrar no samba não tem embaraço
Mete aquele velho passo
Que o passista lhe ensinou
E quem vê
Ele desfilando em plena avenida
Com sua fantasia multicolorida
Ninguém diz que é um doutor
A música composta retratando o relacionamento de Roberto Paulino (ex-presidente da
Estação Primeira) com o morro, Padeirinho se opõe à lógica do reconhecimento corriqueiro.
Em geral é a pessoa de fora do morro/favela que faz a narração do comportamento dos
moradores. Porém, nessa situação é o compositor do morro quem inverte as hierarquias
sociais: Padeirinho passa a posição de narrador, ele quem dá o tom da interpretação da
realidade, apresentando o símbolo da favela como fator de integração de pessoas de classes
sociais distintas, a Escola de Samba. Mantém no samba a ideia do passado, em que consegue
fazer com que a vida no morro seja motivo de inveja aos que são pessoas de fora, faz emergir
a estima social. Segundo, Juliana do Santos Barbosa (2011) o que Padeirinho faz é outro
mundo emergir, orgulhoso de si. Percebendo que a “ordem natural” não o contempla, nem
foi elaborada por ele, elabora outra ordem e a apresenta com legitimidade (p.314). O
reconhecimento mútuo no Morro da Mangueira o distingue dos outros lugares no sentido que
cada lugar se define tanto por sua existência corpórea, quanto por sua existência relacional.
É assim que os subespaços existem e se diferenciam uns dos outros (SANTOS, 2005, p.159).
A ação afirmativa na favela do Morro da Mangueira construiu-se no empenho de
fortalecer os elos de solidariedade e reconhecimento mútuo de seus moradores. A
intencionalidade de elaborar no território uma identidade simbólica construiu um tipo de
mediação pacífica, com a finalidade de buscar o reconhecimento do ―asfalto‖. Os
compositores apresentam-se como interlocutores entre a cidade e a favela, isto se evidencia na
122
necessidade de o sambista traduzir ou esclarecer as gírias do morro para os de fora, no caso de
Padeirinho.
Cartola considera-se o arquiteto do processo de construção da identidade do morro da
Mangueira, tendo no samba o elo dessa ação. De toda forma, o morro também é portador de
um conhecimento utilizado como modo de sua inserção histórica, em diálogo constante com
outras esferas visando circunstâncias de igualdade.
Portanto, não somente a preocupação com distribuição que nos fala Honneth é
importante para a busca por reconhecimento. Mas, as formas comunicativas de vida servem
para fazer o caminho inverso das trocas culturais, que geralmente o saber dominante
determina a condição do indivíduo na sociedade. O lugar e o reconhecimento estão em
constante transformação e em nexo com o mundo, pois, ambos estão no âmbito da realidade
global. O reconhecimento mútuo dá aos indivíduos a autoestima elevada. Assim, o Morro da
Mangueira é um espaço criador da solidariedade e da interdependência obrigatória gerada
pelas situações cara a cara [...], pois é essencial para esse resultado que “você e eu
tenhamos o mesmo entorno” já que “somente nessa situação [...] posso assumir, com maior
ou menor certeza, dentro da realidade diretamente vivida (experimentada) que a mesa que
estou vendo é a mesa é a mesma, e a mesma em todas suas situações perspectivas”(SANTOS,
2005, p.160-161).
Por fim, os compositores do morro contidos na lógica do reconhecimento subvertem a
condição real que sociedade brasileira lhes impõe. Em suas composições a vida da favela do
Morro da Mangueira é exposta como um bem inatingível e invejável por aquele que vive a
loucura da vida no ―asfalto‖. Parece, assim, que há uma tentativa de reconhecerem-se
portadores de uma inversão nas relações entre classe diferentes. Em outras palavras, o morro
recebe o indivíduo classe média e apresenta-lhe a cultura popular. O movimento, nesse caso,
parte do pobre em direção ao mais abastado, no intuito de encurtar as distâncias, apresentando
um linguajar compreensível, mesmo que momentaneamente supere as diferenciações
espaciais, revertendo, com isso, o histórico menosprezo, colocando em relevo as qualidade e
propriedade, já citadas acima. A pessoa externa a realidade do morro, também o transforma-o,
levando o conhecimento do mundo letrado, com intencionalidade de reorganizar o espaço da
favela segundo os padrões da cidade formal.
123
Os compositores de “fora”- narração do outro
A realidade da favela ao ser interpretada superficialmente produz estereótipos. O
teatro de revista, conforme citado, representou os tipos populares em suas apresentações de
modo superficial, o que facilitou a construção de um reconhecimento parcial da realidade das
camadas pobres. A tipificação de personagens comuns caiu no gosto popular. A favela
também foi representada no teatro de revista, e pela primeira vez o morro da Mangueira na
década de 1920 foi citado em uma música. Na música aspectos comuns à vida na periferia
foram descritos: cabrocha, o trabalhador simples (estivador), a falta de agua e o samba.
O reconhecimento do Morro da Mangueira na Cidade a coloca num patamar em que o
lugar se torna ponto de encontro na rota dos sambistas pela cidade nos anos de 1930. O
consagrado Noel Rosa cantou a localidade em sua música,
Lá no morro da Mangueira
Bem em frente a ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu não sei que
Numa linda madrugada
Ao voltar da batucada
Pra dois malandros olhou a sorrir
Ela foi se embora
Os dois ficaram
E depois se encontraram
Pra conversar e discutir
Lá no morro
Uma luz somente havia
Era lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba se escondia
Na segunda batucada
Disputando a namorada
Foram os dois improvisar
E como em toda façanha
Sempre um perde e outro ganha
Um dos dois parou de versejar
E perdendo a doce amada
Foi fumar na encruzilhada
Passando horas em meditação
Quando o sol raiou
Foi encontrado
Na ribanceira estirado
Com um punhal no coração
Lá no morro uma luz somente havia
Era Sol quando o samba acabou
De noite não houve lua
ninguém cantou
124
O morro da Mangueira foi cantado numa fase de reconhecimento romantizado da
favela. As disputas amorosas eram resolvidas em torneio de sambistas. O vencedor teria o
amor de Rosinha. Neste período, outras músicas propõe uma aura divinizada do lugar, talvez
com intenção de preserva-lo no cenário urbano.
Os fatos que ocorrem na cidade têm reflexo no morro e se torna preocupação de
muitos. A intervenção urbana na área central do Rio de Janeiro descaracterizou muitos
redutos dos sambistas. Então o compositor Herivelto Martins compôs no clima de extinção da
praça XI, compôs Mangueira não! (Herivelto Martins/Grande Otelo), na qual fez um apelo
para não extinguirem a referida favela: “ [...] podem até acabar com o Estácio, o velho
Estácio de Sá, derrubem todos os morros, derrubem meu barracão, silenciar a Mangueira
não”! Parece que manter a existência do morro da Mangueira significou preservar a memória
da busca por reconhecimento do samba e do sambista. Dessa maneira, a música de Herivelto
Martins apela para uma ação política legítima de reconhecimento público das diferenças,
pedindo a manutenção e a sobrevivência das comunidades culturais presentes na sociedade
por estarem vinculadas à formação das identidades humanas.
A classe média ao reconhecer a arte construída na favela, o samba, atribuiu-lhe um
formato com a finalidade de torna-lo vendável. O samba no Morro da Mangueira é divinizado
como símbolo e referência para o samba brasileiro. Na Estação Primeira abre-se a chance para
que membros da classe média participem da liderança da escola de samba. A ala dos
compositores da Estação Primeira teve como presidente Nuno Veloso80
entre 1957 e 1960.
Sua composição de estreia na escola verde e rosa foi:
Esta é a cidade dos castelos de zinco
Aonde eu sou feliz com meu amor
Com ela a minha vida está completa
Não sendo alegre nem triste, eu sou poeta
A mediação pacifica por meio do samba, em Mangueira, deu-lhe o reconhecimento de
compositores externos ao morro e a Escola de Samba, denotando não somente o
reconhecimento mútuo, mas um espaço democrático. Ao Morro da Mangueira atribuíram-lhe
uma referência simbólica de uma tradição inventada, na qual Caetano Veloso remete a ligação
80
Descendente de José Linhares, ex-presidente da República. Filho de Elesbão Veloso e Beatriz Linhares Veloso.
Em 1932, a família transferiu-se para o Rio de Janeiro. Aos nove anos, ficou órfão de mãe. Estudou no Colégio
Pedro II. Formou-se em Filosofia. Morou na Alemanha, onde foi assistente do filósofo Herbet Marcuse. Fez
Mestrado em Filosofia na Inglaterra, voltando ao Brasil em 1951. Por essa época, frequentando o morro da
Mangueira, conheceu D. Zica e, mais tarde, Lúcio Rangel, que o apresentou a Cartola. Em 1954, por incentivo
de Cartola, ingressou no curso de Direito, formando-se em 1959. Professor Titular da Escola Superior de
Guerra. Cf. http://dicionariompb.com.br/nuno-veloso/biografia acesso em 23/01/2017
125
da Estação Primeira às ―Ciatas‖ que trouxera da Bahia o samba. O território do samba, em
Mangueira, compreende um peso identitário relevante, no qual imagens diacrônicas a ele são
associadas.
A Bahia,
Estação primeira do Brasil
Ao ver a Mangueira nela inteira se viu,
Exibiu-se sua face verdadeira.
Que alegria
Não ter sido em vão que ela expediu
As Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio
(Pois o mito surgiu dessa maneira).
E agora estamos aqui
Do outro lado do espelho
Com o coração na mão
Pensando em Jamelão no Rio Vermelho
Todo ano, todo ano
Na festa de Iemanjá
Presente no dois de fevereiro
Nós aqui e ele lá
Isso é a confirmação de que a Mangueira
É onde o Rio é mais baiano.
O compositor se dirige a favela atribuindo-lhe sentido e significado, distanciando da
visão dos técnicos da administração pública. O autor da música consegue ver os processos
históricos e culturais presentes no Morro de Mangueira. Recupera relações espaço-temporais
para explicar a relevância do samba para localidade: as Ciatas trazem o samba para o Rio e
na Mangueira há um pouco da Bahia por esse motivo. E no dizer de Ricouer é a busca da
identidade que nunca estará completa, pois que se constrói em contínua intersubjetividade.
Tal procedimento acena com o reconhecimento mútuo, e é admitir que os territórios
simbólicos definem as apropriações e as dominações feitas no espaço. Há no morro uma
funcionalidade dada a sua função como opção de lazer, no período pré-carnaval, mas como
símbolo dessa tradição inventada.
A valorização de personalidades ligadas ao território está como uma compensação ao
não reconhecimento social e político. A ação afirmativa para esse caso é dar visibilidade ao
morro da Mangueira, mostrar a importância de suas lideranças para manutenção do samba
neste espaço, bem como para construção da identidade local. O interessante é notar que desde
muito tempo, a ideia de classe esteve suplantando o interesse de manutenção e construção
identitária e a preocupação com sua perpetuação.
Um menino da Mangueira
Recebeu pelo Natal
Um pandeiro e uma cuíca
126
Que lhe deu papai Noel
Um mulato sarará
Primo-irmão de dona Zica
E o menino da Mangueira
Foi correndo organizar
Uma linda bateria
Carnaval já vem chegando
E tem gente batucando
São meninos da Mangueira
Carlos Cachaça, o menestrel
Mestre Cartola, o bacharel
Seu delegado, um dançarino,
Faz coisas que aprendeu
Com Marcelino
E a velha-guarda
Se une aos meninos lá na passarela
Abram alas que vem ela
A Mangueira toda bela
Ô pandeirinho, cadê Xangô
Ô preto rico, chama o sinhô
E dona Neuma, maravilhosa
É a primeira mulher da verde-rosa
E onde é que se juntam
O passado, o futuro e o presente
Onde o samba é permanente
Na Mangueira minha gente81
A leitura elaborada pelos sujeitos não é considerada destituída de intencionalidade.
Refletem as relações sociais de poder, há nessa ação um conjunto de lógicas sociais. A música
Mangueira é uma mãe, de Serginho Meriti resume muitos aspectos simbólicos, sociais e
geográficos, constituindo uma ação afirmativa do lugar.
Só peço a Deus que me acompanhe, me abençoe onde quer que eu vá
Eu tô na vida, eu tô no mundo, eu tô aonde o destino mandar
Tô aqui no pé da ladeira de frente pro morro da mangueira
No trailer da mina, tô quase na esquina do buraco quente
Embaixo do viaduto, e como tem gente
Gente que fica de zoeira no samba, no baile a noite inteira
Que sai de manhã com sorriso lindo, largo que não tem tamanho
Pra quem tem juízo. Mangueira é uma mãe(3x)
E aqui estamos juntos no trailer da mina reverenciando o Palácio do Samba, pensar
que daqui saíram tantos bambas, que a gente até treme no pé da colina. Daqui
debaixo vejo o morro, uma comunidade (e que comunidade!) E quando chega
fevereiro é carnaval na cidade
É verde e rosa as cores da primeira estação e quando desce a ladeira
Sacode a poeira e anima o povão (2x)
O sobe-e-desce é constante. Gente do bem e do mal, tá servidão
O comentário é geral. Também pudera, tô falando de Mangueira
81
Os Meninos da Mangueira (Rildo da Hora/Sergio Cabral)
127
De gente que vive à beira da avenida Visconde de Niterói
é tanto beco, é tanta boca de siri nesse negócio: O morro é nosso!
Mas a pobreza é que dói! Tô no Chalé, na Candelária, na Olaria, Fundação, eu tô na
área!
Tem funk in lata, tem suingue, tem pagode Na mangueira tem de tudo
Mas só para, só para quem pode! 82
O trecho da música Mangueira é uma mãe, denota o caráter democrático e receptivo
do lugar, mas inserido no contexto da ―precaução‖ necessário para circular em qualquer
lugar da cidade. Sem deixar de exaltar a importância histórica do Morro de Mangueira: E
aqui estamos juntos no trailer da mina/Reverenciando o Palácio do Samba/Pensar que daqui
saíram tantos bambas/Que a gente até treme no pé da colina
Os compositores de foram do morro reconhecem em Mangueira a construção de uma
identidade local em torno do samba. Preservar a memória e a continuidade dessa manifestação
cultural é importante, na música os Meninos da Mangueira o propósito era de mostrar que no
Morro o tempo presente era só teria sentido na convivência com o passado. O sentido de
permanência é simbolizado pelo tamborim dado ao menino que em seguida organiza uma
linda bateria e convoca gerações passadas de atuais para representarem na avenida o seu
lugar. Com isso, está não é uma identidade fechada no morro, mas é um território que
influencia e recebe influência representada pelo poder simbólico da cultura, definindo as
relações de apropriação do espaço da favela. (PESAVENTO, 1995).
82
Mangueira é uma mãe, composição de Serginho Meriti/Claudinho. CD de Tudo que eu gosto, Alcione, 2007.
128
4.4. Estimas social e o reconhecimento em Mangueira
O reconhecimento parte do princípio da capacidade dos sujeitos em autonarrar-se, ao
externalizar para o mundo o seu modo de vida como afirmação da própria identidade. A
relevância simbólica do lugar é edificada pelos seus moradores ou por pessoas externas. Esses
agentes são criadores e usuários de significações. A estima social é edificada a partir de três
pilares: o amor, o direito (justiça) e a eticidade. Estas não devem ser vistas separadamente,
mas em conjunto presente nas ações afirmativas.
A cultura popular permite que a estima social resulte da subversão que acontece no
espaço e na sociedade. De acordo com Damatta (1997), nas reuniões em torno do samba, a
empregada doméstica é invejada pela patroa, que não possui a mesma desenvoltura, e a
mesma autonomia para exibir o corpo. O motorista ou o pedreiro é admirado pela habilidade
com os instrumentos de percussão, arte que seu patrão não possui. Nesse sentido, o
reconhecimento se proclama através de três níveis que se articulam entre si, a autoconfiança,
o autorrespeito e a autoestima capazes de inverter o quadro social em que se encontram de
desprestígio.
É por essa razão que os ricos e pobres, pretos e brancos se reúnem nesses instantes
para celebrar a vida. As relações cotidianas, partilhadas a mesma mesa substituem a sociedade
hierarquizada, na qual cada um tem uma posição determinada, em função da escolaridade,
profissão, local de residência etc. (DAMATTA, 1997). Isso nos permite falar, que a princípio,
o percurso do reconhecimento se dá na esfera do lugar, isto é, a partir relações do cotidiano. O
perceber-se no espaço é o resultado dessas trocas que implicam em atitudes originárias das
vontades dos indivíduos. Por sua vez, eles possuem vínculo com outras pessoas de camadas
sociais diferentes, fortalecendo a dinâmica do escambo de informações e modos de vida.
Assim, o intenso diálogo gerado no lugar, favorecem os arranjos sociais, em suas trocas
simbólicas na elaboração de um cotidiano alternativo,
a possibilidade de ver o mundo de cabeça para baixo, ainda que seja por um
momento muito breve. Assim, o malandro brasileiro introduz no mundo fechado da
nossa moralidade a possibilidade de relativização. No nosso mundo burguês
individualista, somos sempre ordenados por eixos únicos (da economia e da
política), mas o malandro nos diz que existem outras dimensões e outros eixos. ―sou
pobre, mas tenho a cabrocha (mulher), o luar e o violão‖. O seu mundo intersticial, é
aquele universo em que a realidade pode ser lida e ordenada por meio de múltiplos
códigos e eixos. (DAMATTA, 1997; p. 177)
129
A figura do malandro carioca carrega muitos significados nas relações do dia-a-dia e
das estratégias, como nas estratégias de apropriação do espaço. Um dos sentidos para essa
personagem é representar o ideário de desprendimento da sociedade, inspirado no modelado
dado pelo contexto social em que vive. O momento posterior da articulação no lugar em que
vive, se dá onde os sujeitos delimitam seu território, a começar com seus meios próprios de
elaboração de sua cultura popular e por isso admirado.
Segundo Charles Taylor (2000) o indivíduo está contido em ordens mais amplas, as
quais ele não transcende, podendo apropriar-se e ajeitá-la pontual e marginalmente. Em outras
palavras, o sujeito está dentro de um sistema social em que ele deve trabalhar, formal ou
informalmente, pagar suas contas etc., embora tenha condições de transcender a essa norma
geral no lugar em que vive, como é o caso do malandro.
Este construiu com outras personagens do mundo do samba a possibilidade
comunicativa de autorrealização, distinguindo-se no cenário urbano das outras formas de vida.
As figuras emblemáticas desse ambiente cultural delimitaram seu espaço desde muito tempo
na urbe. Os desfiles na extinta Praça XI (área central do Rio de Janeiro) simbolizaram essa
busca por reconhecimento pacífico, realçando a capacidade inventiva da camada da população
menosprezada, na afirmação e concepção de um lugar de resistência e igualmente território,
porque houve uma apropriação de um espaço na área central com a finalidade das camadas
pobres exprimirem sua cultura popular.
Mas, o menosprezo explícito pelo poder público contra a participação dos pobres no
carnaval, relacionou-se com a ideia de conter as classes ditas perigosas. Como exemplo, entre
os anos de 1910 e 1913, os foliões do bloco carnavalesco de Mangueira se vestiam de índios e
carregavam animais vivos: cobras, lagartos, bichos de pena, e faziam coreografias indígenas.
Na década seguinte, a principal associação carnavalesca do lugar foi o Bloco dos Arengueiros,
conhecidos pelas brigas e por uma forma hostil de brincar o carnaval. Os foliões de
Mangueira cansados83
das confusões envolvendo os grupos que rivalizavam durante o
carnaval, se uniram para fundarem o Grêmio Recreativo Estação Primeira84
no final da década
de 1920 (SILVA et alli 1980). Entretanto, a fundação da ―Escola de Samba‖ não aconteceu de
modo pacífico na favela, houve alguma resistência dos líderes dos blocos remanescentes,
83
Teria sido cansaço das brigas ou a repressão incansável da polícia que fez mudar a atuação durante o carnaval?
84
A primeira disputa carnavalesca que se tem notícia foi no dia de São Sebastiao do ano de 1929. Para o
jornalista Sergio Cabral a Estação Primeira foi fundada em abril de 1929. Como poderia ser fundada posterior
ao concurso organizado no dia 20 de janeiro por Zé Espinguela no bairro do Engenho de Dentro.
130
Aos poucos, os blocos foram compreendendo, como os times de futebol em tempo
de jogo da seleção, que Estação Primeira era a Seleção Brasileira do morro da
Mangueira, todo potencial individual canalizado numa só direção e com um só
objetivo: mostrar a esta cidade, ao país, ao mundo, o que era o samba verde e rosa
no morro da Mangueira. Sob a batuta, ou melhor sob o diapasão afinado do mestre
de harmonia da escola, o grande Mestre Cartola. (BARBOZA; OLIVEIRA FILHO,
2003, p.59)
Decorre desse fato, a união dos moradores locais em torno de um elemento imaterial a
agremiação, atingindo o objetivo proposto: a unidade aos moradores da favela.
Encontra primeiramente no espetáculo das lutas pelo reconhecimento conduzidas
por grupos minoritários ou subalternos uma confirmação da tese segundo a qual
nossa identidade é parcialmente formada pelo reconhecimento ou por sua ausência,
ou ainda pela percepção errônea que os outros possuem dela. (CHARLES TAYLOR
apud RICOUER, p. 227, 2004)
A construção de identidade dos moradores da Mangueira, tem a ver com o
reconhecimento interno, principalmente das disputas carnavalescas, onde os componentes do
Bloco do Arengueiros, mal vistos pelas confusões, buscaram se estabelecer como sambista
primeiramente dentro da favela, mais precisamente no Buraco Quente85
(Travessa Saião
Lobato).
De acordo com Nancy Fraser (2001) os grupos lutam por representatividade, criam
estratégias diferenciadas, que podem ser afirmativas ou transformativas. Em Mangueira, por
exemplo, as estratégias afirmativas se delinearam através da cultura popular, como que autor
reavaliação positiva da identidade estereotipadas (favelados, marginais, vadios etc.) e não
valorizadas pelo senso comum coletivo social. Particularmente, os moradores do Morro da
Mangueira decidiram reorganizar a sua estrutura carnavalesca86
para serem reconhecidos, e
assim como delimitarem o seu espaço de visibilidade na área central da cidade. Mas, essa
busca por reconhecimento não aconteceu isoladamente, ela consistiu em luta contra a
repressão policial e a segregação direcionada ao morador da periferia.
O autorreconhecimento e gradativamente o reconhecimento do outro traduzem a
forma de poder dos pobres que se congregaram em trono da sigla GRES (Grêmio Recreativo
de Escola de Samba). Esta diz respeito à especificidade própria do morador de áreas
periféricas da cidade, na qual a reunião traduz o seu modo festivo de enfrentar a vida. Então
85No Buraco Quente havia terreiros da religião afro-brasileira (candomblé) e as batucadas. Também os ranchos e
blocos carnavalescos todos liderados por alguma família e com atuação pacífica durante o carnaval destoando
dos cordões e o bloco dos Arengueiros.
86
Não foi um movimento único no Morro da Mangueira, mas das camadas populares. As expressões
carnavalescas populares anteriores a década de 1930 eram perseguidas (cordões, ranchos etc.). E
gradativamente foram se estruturando para obterem o direito cultural a cidade (Fernandes, 2001).
131
os atributos apresentados por Ricouer (capacidade e propriedade) nesse caso podem ser
sintetizados como,
Uma demonstração do ―poder dos fracos‖ quando revelam que sua força está numa
alta criatividade, num poder inegável de organização e mobilização social, e na alta
capacidade de reinventar todo ano na própria estrutura social. E mostram talvez o
grande paradoxo da harmonização da desigualdade que, sem eles como atores e
plateia, jamais poderia ser realizada. Por isso, ordenam-se sempre nas rimas e ritmos
dos seus desfiles, onde figuras mágicas dançam e cantam personagens históricos.
(DAMATTA, 1997; p178-179)
A organização social da favela do Morro da Mangueira desenhou-se com forte ligação
com o ―Samba‖, e a partir disso surgiram as suas lideranças. Estas conseguiram em torno do
ritmo aumentar a capacidade de articulação com os interlocutores de outros níveis da
hierarquia social, não deixando de participar do cotidiano local nas rodas de samba, festas etc.
Isso representou uma maneira de apropriação espacial tornando a favela do Morro da
Mangueira o território do samba87
e da tradição inventada.
Trata-se, pois, da identidade, mas no plano coletivo e em uma dimensão temporal
que abarca discriminações exercidas contra esses grupos em um passado que pode
ser secular, como na história da escravidão, até mesmo multissecular, como na
condição feminina (RICOUER, p. 227, 2004).
A capacidade de sistematização das formas agremiativas em Mangueira teve como
liderança inicial o compositor Cartola88
. Posteriormente, as guardiãs da narrativa da cultura89
da favela, por muito tempo foram Dona Neuma, filha de um dos fundadores do ―GRES
Estação Primeira de Mangueira‖, além de Dona Zica, viúva de Cartola entre outros. Ambas
são exemplos de liderança local, que perfizeram o diálogo com outros níveis da sociedade. E
assim, o papel dessas personalidades foi importante para manter a união em torno da escola
de samba, e conseguir benefícios para seus moradores. A favela do Morro da Mangueira
distingue-se de muitos dos seus pares. Por exemplo, Alfredo da Costa, do GRES Prazeres da
Serrinha não tinha mobilidade, conhecimento e poder para tornar sua agremiação campeã do
87
De acordo com Carlos Cachaça que levou o samba para Mangueira foi Mano Décio que havia se mudado do
extinto Morro do Castelo para lá e depois para o Morro da Serrinha. A tradição inventada, conceito de
Hobsbawn já foi citada acima.
88
O compositor Cartola tem grande importância para a construção da identidade da favela do Morro da
Mangueira. Talvez liderança constituída pelo seu talento como compositor procurado por Francisco Alves e
Mario Reis por exemplo.
89
Fazemos a distinção porque não havia o ativismo político, porém como defendemos as medições simbólicas
feita pelo samba, deram conta de agregar reconhecimento para a favela do Morro da Mangueira.
132
carnaval na década de 1930, como muitas outras que até deixaram de existir ou se juntaram
dando origem à outras agremiações.
O reconhecimento, como nos fala Ricouer (2004), atinge a estima social. Esta é
alcançada através do conhecimento e do poder que os sujeitos usam para alcançarem o
reconhecimento pacificamente. A articulação do indivíduo ou do seu grupo como níveis mais
altos da hierarquia social permite ao lugar algum tipo de recompensa. Para as ―Escolas de
Samba‖ o campeonato nos concursos de carnaval implicou desde o início em autoestima
social. (BARBOZA; OLIVEIRA FILHO, 2003)
Durante longo período, a agremiação representou a resistência a modernidade dos
desfiles de carnaval, reafirmando a característica de guardiã da tradição do carnaval. O ponto
forte da passagem da ―Escola de Samba verde-rosa‖ na avenida não era a sua estética perfeita
e acadêmica, mas a ginga dos seus componentes, o orgulho de dominar a arte do samba. O
Cartola relembra com orgulho: ―a sandália das baianas da Estação Primeira era ouvida ao
longe, bem como sua bateria‖. Essa é uma propriedade e ao mesmo tempo uma capacidade,
que as lideranças utilizaram para manter em alta a estima social de sua comunidade. Talvez,
uma alternativa para driblar dificuldade financeira do GRES.
De modo geral, muitas agremiações substituíram seus antigos ―donos‖ por
representantes da classe média ou por contraventores do jogo de bicho, as novas ―lideranças‖
da agremiação, retirando o sentido da busca por reconhecimento, associado ao movimento
cultural do seu lugar. Mas o elemento humano de sua favela é vivo e um dos símbolos do
mundo do samba. Esse fato pode comprometer a autoestima e a autonomia do grupo.
O respeito ao seu passado de glória deu à Mangueira a capacidade de construiu a
imagem do baluarte do samba autêntico com trunfo no carnaval. Em Mangueira a ideologia
do samba encontrou espaço, definindo o seu papel social de guardiã da tradição do carnaval e
apropriando objetos simbólicos dessa manifestação cultural. A autoestima deixa, dessa
maneira, a sua marca no território, a favela do Morro de Mangueira foi apropriada pelas
tradições populares ligada ao carnaval assinalada por uma conexão identitária. No espaço
urbano essa diferença histórica e a capacidade dos indivíduos em construir uma identidade
reconhecida marcam a valorização do lugar.
Ressaltamos, que o universo do samba não é particularizado pela Mangueira ela está
em perfeito encaixe e complementariedade com a cidade, exemplo disso são os concursos de
carnaval, que não tem razão de existir sem um número específico de agremiações disputando
o título de campeã do carnaval
133
Outro aspecto a ressaltar da contribuição do ―G.R.E.S90
‖ para o reconhecimento é a
situação na qual o grupo e o lugar se apresentam de modo coeso: morro-favela-samba e se
confundem no Morro da Mangueira. O indivíduo ganha o anonimato, mas o que está em jogo
é a representação do seu lugar, que remetem as relações cotidianas, no preparo de fantasias,
alegorias, música para o desfile etc. vale a pena ser anônimo em prol de um reconhecimento
maior, o da ―Escola de Samba‖.
O movimento constituído pela atitude de auto narração e autorreconhecimento resulta
em agir de ―dentro para fora‖ despertando no outro o desejo de conhecer uma realidade
diferente. Como nos diz da Matta (1997) as ―escolas de samba‖ tem dupla organização, ordem
e padrão. Um lado voltado para o desfile de carnaval e outro relacionado a sua atuação no
restante do ano, em que agem como um clube, com atrações para turistas e moradores da zona
sul e em políticas sociais. No período dos ensaios e desfiles há uma inversão na hierarquia
social porque os negros e pobres da favela são os doutores e professores para os turistas e
membros da classe média letrados, há nessa situação uma notória superioridade carnavalesca.
Os moradores da favela da Mangueira são atores de dois tipos de apropriação do
espaço. Primeira diz respeito a construção de seus barracos (como canta Nelson Cavaquinho:
―nossos barracos são castelos, em nossa imaginação‖) situação incerta e conflitante com a
organização interna da cidade, e a segunda possui interação com o samba, um articulador com
outros atores do espaço urbano carioca, além do que expressão do seu modo de vida, a cultura
popular.
O samba representa também um poder na medida em que controla e media as relações
sociais. Para os moradores da Mangueira e sua torcida o ápice da consolidação de sua
identidade como ―nação mangueirense‖, aconteceu na década de 1970 quando foi inaugurado
o Palácio do Samba. Com a sede administrativa, a Escola de Samba Estação Primeira ao
houve o ápice da estima social. A partir de então, o samba de Mangueira teve um teto e, o
morro adquiriu uma materialidade que serviu de referência aos sambistas de dentro e de fora.
Constitui-se um fixo simbólico, de acordo com Roberto Lobato Correa (2012) pois as relações
sociais, a circulação em determinado momento constitui como referência dessa dinâmica. Para
o morador é um momento de orgulho encontrar-se com o diferente e o contato social se
atenuado pela mediação do símbolo Estação Primeira.
A autoestima elaborada foi cuidada por suas lideranças, como por exemplo, Dona
Neuma. No mundo capitalista os atributos individuais não são valorizados, o papel do
indivíduo tem relevância inserido no contexto social de seu grupo. Coube a ela a
90Sigla que significa Grêmio Recreativo de Escola de Samba.
134
responsabilidade de avaliar o seu ambiente social e confirmar sua identidade ligada à favela
em que morou91
Dona Neuma da Mangueira foi uma das primeiras faveladas a ter telefone no
barraco, doado pelo Embaixador Negrão de Lima, ela passou a ser o principal elo de
comunicação da favela com o resto da cidade. ( Jornal do Brasil, caderno 1,
25/11/1973, p.5)
Tanto D. Neuma quanto D. Zica tiveram o compromisso de serem o depositário de
memórias dos ―tempos idos‖ de Mangueira. As benfeitorias entregues ao uso da população da
favela, eram representadas pela presença de ambas. Quando houve a inauguração do Centro
Integrado de Serviços de Comunicação (CISCO92
), o Ministro Antônio Carlos Magalhães
esteve presente, entregando à comunidade tal serviço, e sendo representada por Dona Neuma
e Dona Zica.
A visibilidade das personalidades em Mangueira é significante. Isto reforça a
autoestima ligada ao morro e fortalece a identidade relacionada ao samba, a partir dos laços
de família (figura 9). O depoimento de Dona Neuma é bastante emblemático: ―A criança que
nasce em Mangueira a primeira roupa que veste é um mandrão verde e rosa. Até os
sapatinhos são verde e rosa. É assim que ela aprende a amar o lugar93
”.
91
No telefone a divina providência, os cabelos desarrumados de quem está ocupada com o cotidiano do lugar, e
os barracos representam os fios do telefone, indicando a permanente comunicação de Dona Neuma com a
Mangueira.
92
Serviço de telefones públicos e de postagem de carta.
93
Entrevista de Dona Neuma para o Caderno B – jornal do brasil, Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1979.
135
Figura 9 - Moradores do Morro de Mangueira, desde jovens participando dos desfiles da
Estação Primeira
Nota: Minha tia e minha mãe na infância e na adolescência fantasiadas para participação
do desfile da Estação Primeira anos de 1950/1960
Fonte: Álbum de retratos de família
Assim a ―Escola de Samba‖, com sua capacidade de penetração na sociedade, é um
instrumento político (Damatta, 1997). Todavia, no caso da Mangueira, a agremiação, exerce
com peso esse papel de articuladora para a favela na qual se originou. A sua popularidade não
a retirou do contato com o local em que surgiu. Os moradores do lugar lutam para se
manterem vinculados a este símbolo de reconhecimento pacífico. Também, não é possível
falar da ―Escola de Samba‖ sem falar da sua história ligada a formação da favela do Morro da
Mangueira.
Os serviços e a infraestrutura na favela do Morro da Mangueira, estiveram
relacionados com a instituição ―Escola de Samba‖. Esta, por sua vez, ampliou a participação
social e política, de parte dos seus moradores. Como aponta o título de reportagem do Jornal
do Brasil em 11/05/1973 - ―Carteirinha da Mangueira (figura 10) é hoje documento de
gabarito‖:
Os assuntos no lugar acabam por terminar no carnaval, em samba. Quando as filhas
vão registrar os filhos na escola pública, as professoras logo procuram assuntar para
saber as novidades da escola. Dona Neuma é que mais sabe, é uma espécie de
relações públicas junto a imprensa. Dona Neuma diz que foi falar com deputado
Hilton Gama no Palácio Guanabara, foi impedida e tão logo apresentou a
―carteirinha‖ de membro da escola de samba, e rapidamente o deputado apareceu na
sua frente. Também foi falar com o secretário de educação sr. Celso kalli e usou do
mesmo artificio. Para as sambistas do morro da mangueira pertencer a escola de
samba significa valorização profissional, melhores salários também. Encaram com
136
desconfiança a visita das madames aos ensaios por temem perder seu protagonismo.
(Jornal do Brasil, 11/5/1973, p.7)
No áudio em k-7 ―Tempos idos‖ Cartola relatou que pouco se saía de Mangueira para
ir ao Centro da Cidade, somente para o carnaval, procurar emprego, documentação etc. A
carteira de sócio, nesse contexto, serviu como elemento para identificação civil, os membros
da Escola de Samba se reconheceram como pertencentes a uma identidade relacionada às
raízes da cultura de seus antepassados, por isso ser tão importante participar e ter um
comprovante de filiação à Estação Primeira.
Ao afirmar sua identidade vinculada com a Escola de Samba o morador de Mangueira
parece minimizar a sua condição de favelado. A musicalidade oriunda do Morro foi muito
mais fácil em ser absorvida do que a desordem da estrutura da favela. A maneira de ser
tolerada e ser menos excluída talvez tenha sido camuflar a pobreza, pondo em relevância
propriedade artísticas mais toleradas pelas classes dominantes. (RICOUER, 2004)
A ―carteira de identidade‖ traduz o tipo de organização dos sujeitos no Morro de
Mangueira, o sentimento de pertencimento é tão profundo que o vínculo e os laços de
solidariedade se estreitam. Reconhecer-se mangueirense e com uma carteira de identificação
(figura 10) dá ao indivíduo as benesses do reconhecimento dado a agremiação e que
anonimamente seria difícil. Trata-se de um sentimento instituído na busca por reconhecimento
resultando na estima social dos moradores do morro de Mangueira, que é um lugar
impregnado de manifestações culturais populares.
Reivindicar a identidade mangueirense pode ser pensada como um movimento dos
atores sociais para resolver possíveis injustiças sociais. O indivíduo deixa de ser anônimo e
tem sua identidade vinculada à escola de samba do Morro da Mangueira. Reduz-se, dessa
maneira, a imagem negativa do morador da favela. No paradigma do reconhecimento, a favela
do morro da Mangueira é vista como parte dos padrões sociais de representação, interpretação
e comunicação, e requer mudança cultural ou simbólica que reavalie as identidades e os
produtos culturais valorizando grupos por ora discriminados e questionando os padrões
dominantes (SAAVEDRA; SOBOTKA, 2009)
137
Figura 10 : Carteira de sócio da Estação Primeira
Nota: Carteira de sócio do G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira, pertencente a tia do autor deste
trabalho.
Fonte: álbum de retratos de família
A estima social tem a ver com os valores compartilhados através do GRES Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira. Assim, os valores preservados referentes à tradição
constituem em uma ação afirmativa de autopreservação da agremiação. A estima social deve
estar em movimento, em integração com as necessidades da atualidade. O itinerário simbólico
não pode restringir a ideia de identidade para os moradores do Morro da Mangueira, mas sim
contribuir para a reinvenção dos elementos que dão coesão entre a escola de samba e os
moradores do Morro de Mangueira. Os projetos sociais fruto da capacidade de articulação
política da Escola de Samba, configuram mais um elemento para a estima social porque
mostra ação diferenciada, ampliando a capacidade de envolver a sua comunidade e tendo em
vista a dignidade humana.
A Vila Olímpica da Mangueira: a estima social além do samba
Os laços de solidariedade no Morro de Mangueira se confundem com a própria Escola
de Samba, um símbolo de reconhecimento e autoestima para seus moradores. Na fábrica
Cerâmica tais demandas, em certa medida, foram satisfeitas: lazer (Cerâmica Esporte Clube,
com time de futebol), creche e assistência médica. A assistência aos funcionários era
vantajosa porque muitos residiam no morro da Mangueira. A sede antiga no Buraco Quente
138
não comportava grande número de pessoas; então, a garagem da fábrica foi adaptada para os
ensaios da escola de samba. Essa indústria reconheceu a importância em suavizar a
precariedade da favela em favor de seus funcionários e vizinhos. Muitos componentes da
Estação Primeira trabalharam na ―Cerâmica‖, como o compositor Tantinho, arrimo de família
aos 14 anos, onde foi recepcionista da fábrica, o que lhe ajudou a concluir os estudos.
(PAULINO, 2003)
As obras sociais na Mangueira eram um desejo antigo que demorou, mas se realizou.
O Palácio do Samba erguido na década de 1970 marcou a história dos moradores do Morro de
Mangueira, pois, constitui-se em forma simbólica. Isso porque, além dos ensaios da Estação
Primeira, começou-se a delinear projetos sociais a fim de envolver as crianças da favela,
como por exemplo o Projeto Recriança em 1972. A Mangueira buscou o reconhecimento da
cidadania dos habitantes do morro numa perspectiva de justiça social.
E somente através da mistura samba e esporte, que talvez possa ter chegado até a
localidade alguns benefícios na década de 1980, como a Vila Olímpica. Com ela, além dos
esportes, os cursos profissionalizantes, por exemplo puderam atender aos anseios da
população local, uma vez que na ocasião o esporte era visto como alternativa aos jovens
desviando-os do caminho do crime. Os projetos sociais da Vila Olímpica não estão restritos à
prática esportiva, há também ações voltadas para educação básica e para a profissionalização
e atendimento médico.
A Vila Olímpica da Mangueira contribui desde sua origem para expandir o espaço de
atuação da Escola de Samba, que dessa maneira não restringe a sua atuação aos preparativos
para o carnaval. Ela, por meio da sua ação social, é reconhecida também fora do país, fato que
permite a articulação do nível local com o global.
Entende-se que, pelo fato do nome Mangueira perpassar espaços de escalas distintas,
pode colaborar para que parcela da população estigmatizada pela moradia em favela possa
exercer melhor a sua cidadania. Assim, a experiência da Vila Olímpica do G.R.E.S. Estação
Primeira de Mangueira (Figura 11), alia reivindicações locais às demandas mais amplas
voltadas para a conquista da cidadania no plano nacional. (GONÇALVES, 2002)
139
Figura 11: Site do GRES Estação Primeira de Mangueira – Programas Sociais
Fonte: G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira. Disponível em:
http://www.mangueira.com.br/programas-sociais/. Acessado em 27/05/2017
A Vila Olímpica possui importância para os moradores da Mangueira porque
oportuniza-lhes a chance de efetivação dos direitos sociais, promovidos pela atuação no
campo social da escola de samba, que foi pioneira na diversificação do seu papel social, dada
pela ampliação de sua ação para além do carnaval e do samba. Parece que essa função recriou
a relação de seus moradores com o fato de morar em favela. Reconhecer-se mangueirense é
perceber-se como contido em um espaço rico em história do samba carioca e, que para além
disso, contribui para formação cidadã dos moradores de Mangueira. Tudo isso cria uma
especificidade na organização e no processo de reconhecimento das favelas na Cidade do Rio
de Janeiro.
Roberto Paulino (2003) relembra que nos anos de 1950 e 1960, já havia a preocupação
das lideranças da agremiação com as dificuldades financeiras e sociais de seu grupo. Discutia-
se qual o tipo de ação possível para envolver os jovens da favela. Em termos nacionais,
percebeu-se que muitos esportistas eram oriundos das camadas pobres. No cenário nacional,
então, o esporte ganhou valorização e notoriedade como meio de transformação da vida dos
jovens da periferia. Segundo Tubinho (2001) apud Machado 2012, o esporte torna-se
relevante para o reconhecimento porque:
o esporte é como um instrumento fundamental no auxílio ao processo de
desenvolvimento integral das crianças, dos adolescentes e dos jovens; respeitando as
experiências e expectativas individuais, democratizando o acesso a espaço esportivo,
valorizando o esporte como complementar a técnica de saúde preventiva, incutindo
valores éticos e sociais, resgatando a cultura esportiva (p.91).
140
O esporte demonstrou-se, desde então, uma ação afirmativa na contemporaneidade, no
escopo de minimizar os problemas sociais, constituindo em estratégia para envolver as
crianças e os jovens da periferia em atividades que lhe preenchesse o tempo ocioso. Dessa
forma, o Projeto Sócio Esportivo não surge como proposta governamental, mas da busca de
perspectiva para elevar a autoestima local, dentro de tal sugestão, iniciou-se na cidade do Rio
de Janeiro este projeto pioneiro. A Estação Primeira de Mangueira foi a precursora deste tipo
de ação buscando parcerias com o setor privado e público, concretizando o desejo de
assistência permanente aos jovens da periferia, por meio da Vila Olímpica da Mangueira, isto
é, o objetivo era apresentar o esporte como uma alternativa de socialização do morador de
favela e dos bairros populares, sendo igualmente o grande responsável pela receptividade do
projeto junto ao público infanto-juvenil‖, na expectativa de propiciar benefícios no âmbito
social, diante do esporte como agente efetor (REZENDE, 2012).
Segundo Charles Taylor (2000) a busca por reconhecimento dos indivíduos visa
requerer o valor do homem enquanto homem, sem considerar a sua condição social. A
realização pessoal ou do grupo advém da escolha de cada um. Então, no contexto do Estado
de Direito, o enfrentamento das questões sociais direciona o movimento constante na
legitimação da cidadania.
A novidade é que a agremiação não fechou seus objetivos no aspecto cultural. Houve a
iniciativa das lideranças da Escola de Samba em proporcionar a expansão de oportunidades
para os jovens, além do atendimento na área de saúde, demanda antiga dos moradores da
favela. Em outras palavras, a visibilidade do samba em Mangueira constitui-se em mediação
simbólica para dialogar com diferentes segmentos da sociedade, a fim de cumprir o papel de
atender necessidades no campo das políticas sociais.
É interessante notar que o Projeto Social da Vila Olímpica do G.R.E.S Estação
Primeira de Mangueira configurou-se em modelo para outras áreas periféricas da cidade. O
reconhecimento da iniciativa local no Morro de Mangueira teve notabilidade no exterior,
ganhou dois prêmios internacionais: da BBC de Londres e outro da UNESCO. Em território
nacional, houve reconhecimento do presidente Fernando Henrique referenciou esta iniciativa
como exemplo para o país. O Ministro dos Esportes, Pelé, aconselhou às áreas periféricas
replicarem tal modelo. Em 1997, o Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, esteve na
Vila Olímpica da Mangueira, onde fez um gol de pênalti, beijou a bandeira da Escola de
Samba, se declarando mangueirense e ficou surpreso com a organização local visando à
cidadania.
141
Atualmente existem outras ações sociais, desdobramento da atuação iniciada na Vila
Olímpica da Mangueira. O reconhecimento mútuo em que os indivíduos reconhecem sua
propriedade e capacidades são possibilitados pela atualização permanente das novas gerações
com a verde e rosa, através da Mangueira do Amanhã. Esta é a escola de samba mirim da
Estação Primeira. Nela, as crianças têm contato com a dança, a percussão e o samba
valorizando a identidade e a cultura local.
Há também projetos profissionalizantes (figura 12) em que jovens e adultos têm a
oportunidade de aprenderam um oficio no qual podem trabalhar por conta própria, sendo este
um estímulo à autonomia. Os cursos são: cabelereiro, manicure, pedicura, maquiador,
bordador, customização, eletricista, encanador instalador predial, NR10 Norma
Regulamentadoras e pintor de imóveis. As aulas acontecem nos camarotes da agremiação que
funcionam como sala de aula e na Vila Olímpica da Mangueira. Atualmente a
profissionalização acontece em parceria com a FAETEC (Fundação de Amparo à Escola
Técnica).
142
Figura 12: Cursos profissionalizantes oferecidos no GRES Estação Primeira de Mangueira
Fonte: G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira. Disponível em:
http://www.mangueira.com.br/programas-sociais/. Acessado em 27/05/2017
A agremiação assiste as crianças do 1º ao 5º do Ensino Fundamental com o projeto
―Segundo Tempo‖ (figura 13), contribuindo com o apoio e reforço escolar focando nos
conteúdos de matemática e língua portuguesa, consideradas com desempenho crítico dos
alunos. As aulas acontecem em dois turnos diariamente. A terceira idade é acompanhada pelo
posto de saúde e no espaço de atletismo fazem as atividade físicas.
Figura 13: Projeto de apoio escolar
Fonte: G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira. Disponível em:
http://www.mangueira.com.br/programas-sociais/segundo-tempo-da-
educacao/ acessado 27/05/2017
143
As ações da Vila Olímpica da Mangueira ampliaram-se com vistas a atender às
necessidades dos moradores locais e do entorno. Há nesse sentido o reconhecimento da verde
e rosa, não apenas por seu desempenho no carnaval e pela cultura do samba. Percebe-se a
capacidade de articulação e organização de suas lideranças em ampliar as atividades além dos
ensaios e dos preparativos para o desfile. O reconhecimento mútuo de seus moradores
alcançou visibilidade atraindo parcerias no intuito de atender demandas antigas da localidade.
Com isso, houve o aumento da estima social da favela do Morro da Mangueira.
Estima social e a mediação da cultura de paz
Como já falamos, a favela do Morro da Mangueira fez uma opção desde os primeiros
anos da fundação de sua Escola de Samba, pelo contato com outras classes sociais por meio
da arte. As atitudes culturais diferentes da área central construíram um caminho de acesso a
outros territórios dentro da cidade.
A favela da Mangueira, mesmo com a sobreposição de outras territorialidades como as
das drogas, mantém-se na perspectiva da cultura de paz, alimentada pela estima social
herdada dos pioneiros do samba. Aliás, o comércio varejista de drogas é responsável pela
ruptura no território dominado pelo samba.
No território são expressas e materializadas a vida cultural dos indivíduos. A quadra
da Mangueira, o Buraco Quente, as cores verde e rosa e o próprio ―morro‖ são investimentos
culturais feitos no território e nele estão estas formas cristalizadas como símbolos, memórias e
valores que encaram o sentido da cultura (CORREA, 2012).
Os projetos sociais a partir da Escola de Samba constituem a porosidade das relações
verticais no espaço e que dão conta minimamente de redistribuir em nível social os bens
culturais para parte dos moradores da Mangueira, seja através do esporte na Vila Olímpica,
seja nos cursos profissionalizantes oferecidos e mantidos pela estrutura ofertada pelo G.R.E.S
Estação Primeira de Mangueira.
A Mangueira constitui uma identidade simbólica para o morador do Morro. Defender
as cores verde e rosa é defender o lugar que os antepassados pisaram e construíram a história
da favela e da agremiação, a Estação Primeira. Em tempos de políticos conservadores, o
samba tem em Mangueira um depositário no qual é defendido e guardado, além de evocar do
passado a busca por reconhecimento que a transformou em sinônimo e resistência pacífica.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura consultada viabilizou a análise do tema contribuindo para o estudo de
espaços segregados. Dada, a proposta em questão há de se desenvolver maior reflexão sobre
as relações da geografia e a busca por reconhecimento das minorias representadas
politicamente.
A relevância dos trabalhos que se debruçam sobre a busca por reconhecimento adquire
importância para afirmação de identidades. Os grupos sociais excluídos desejam usufruir do
direito à cidadania, por meio da visibilidade das suas particularidades. O conflito acontece
quando as ações transformativas vindas de fora, impõe o modo dominante de vida, furtando às
minorias a dignidade humana e os meios para alcançar a vida boa. Apesar da ausência de
política públicas visando o reconhecimento, este constitui-se em busca no sentido, dos grupos
excluídos criarem ações afirmativas para pôr sua identidade e sua demanda em evidência. A
cultura tem papel importante nesse trajeto, porque através dela os grupos menosprezados
conseguem mostrar suas capacidades e propriedades enquanto coletividade segregada. Os
símbolos criados revertem-se em instrumentos de mediação entre as classes perigosas e as
instâncias da administração pública no intuito de adquirirem a valorização das culturas
marginalizadas, bem como o direito à cidadania.
Neste percurso, as formas de exclusão são materializadas no espaço. A segregação
socioespacial deixa evidente as apropriações territoriais feitas pelos diferentes segmentos
sociais. Pensar a função do território e seu poder simbólico induz a analisar os
desdobramentos que isso tem, visto, sob a ótica do reconhecimento. No espaço urbano o
símbolo pode ter força suficiente para atrair ou repelir os indivíduos, retardando as relações
sociais entre grupos diferentes. A leitura geográfica do reconhecimento visa mostrar como as
palavras com as quais nos referimos à determinado território são signos que aproximam ou
distanciam os indivíduos. De certa maneira, o uso de determinada nomenclatura, para fazer
referência a determinado lugar, pode constituir uma estratégia ou ação afirmativa para a busca
do reconhecimento, de modo pacífico.
A valorização da cultura popular constitui-se nesse elemento de articulação entre os
diferentes segmentos sociais. As inversões no mundo da cultura popular criam relações nas
quais os indivíduos com melhor posição econômica se rendem ao saber daqueles
desfavorecidos economicamente. Assim, os sambistas rompem os obstáculos e criam relações
sociais com os bem-sucedidos. Mas, isso acontece enquanto o indivíduo excluído estiver
145
transitando em espaços seletos, somente em nome do seu grupo a Escola de samba. Caso
tente circular em tais espaços individualmente será impedido.
A favela em geral é a materialização da busca por reconhecimento desde sua origem.
A crise da habitação do século XIX e XX retrata a resistência dos segmentos pobres da
população pelo direito ao uso da cidade. Soma-se ao fato a negligência quanto às formas de
lazer para os segmentos pobres. O permanente temor das elites quanto a ações dos
despossuídos na cidade, fez com que reprimissem qualquer forma de aglomeração, por esta
razão o samba foi proibido, assim como, o culto das religiões de matriz africana. A falta de
interesse em reconhecer a composição étnica e social da população carioca resultou na
permanente criminalização do espaço popular utilizado pelos pobres na cidade. A extinção de
tais lugares tornou-se uma das prioridades dos prefeitos até meados da década de 1970.
Os favelados transferidos de uma favela para outra, ou de um cortiço para uma favela
acolheram neste novo espaço as manifestações culturais perseguidas pela polícia nas
primeiras décadas do século XX. O samba cantado e dançado nas áreas de obsolescência do
Centro da Cidade e adjacências encontrou relativo descanso na periferia da cidade. Nas áreas
menos nobres, constitui-se em ações afirmativas quanto a formação das identidades locais.
Entretanto, conforme assinalado, cada favela possui elementos distintos que configuram
formações singulares na urbe. Por exemplo, no Morro do Borel da década de 1950, os
trabalhadores reuniram-se para lutar pela permanência no lugar, criando um símbolo de
resistência em área excluída. Por outro lado, no Morro da Mangueira, o samba teve papel
determinante para construção da identidade de seus moradores.
Percebe-se que as diferentes formas de organização nas favelas resultam em distintas
maneiras de apropriação do espaço e em símbolos que constituem modos particulares de
mediação e de busca por reconhecimento. Ainda hoje a favela e os termos diverso que a elas
são atribuídos revelam a intencionalidade em reconhecer ou não o seu conteúdo urbano. A
Favela e o favelado são categorias que se relacionam a formas negativas para alguns e, para
outros remete às lutas que parcela da população travou com o objetivo de verem reconhecidas
as suas formas de vida. Por outro lado, a palavra morro para se referir a favela, nos aproxima
da imagem que muitos compositores da música brasileira criaram: a cabrocha, o luar e o
violão. Nesta perspectiva, a favela é separada dos problemas sociais e é caracterizada a partir
de elementos românticos.
Por fim, a comunidade remente ao lema da Igreja Católica: ―devemos subir a favela,
antes que ela desça comunista‖. A palavra comunidade associa o favelado à ideia de vida em
comum, de tarefas compartilhadas para acesso à cidadania e à valorização de sua cultural.
146
Hoje em dia, o termo comunidade mantém o sentido de vida em comum como no passado,
mas deve-se atentar para que tipo de vida comunitária. A ideia poderá incorrer em formas de
vida que se mantem no nível das relações locais sem contato e sem troca de valores e
experiencias com o resto da cidade. Assim poderá incorrer em enclausuramento dentro da
favela, desfavorecendo as relações solidárias das trocas culturais e dificultando o
reconhecimento mútuo dentro do espaço intra-urbano.
A busca por reconhecimento na favela do Morro da Mangueira surge como exemplo,
pois a partir da necessidade em estreitar os laços de solidariedade local, houve a união dos
moradores através do samba. À princípio a história do lugar é relembrada para explicar a
possível formação dos ―bairros‖ do Morro da Mangueira, bem como, se deu a configuração
territorial da favela.
A proximidade do Morro da Mangueira com o bairro do Estácio favoreceu as trocas de
conhecimento em relação ao samba, formado laços solidários para lutarem por
reconhecimento da produção musical feita pelos sambistas Ismael Silva, Bide etc. do Estácio,
e na Mangueira este anseio foi fomentado por Cartola, Carlos Cachaça entre outros. As ações
de afirmação destes músicos favoreceu o reconhecimento do samba como elemento da cultura
popular e serviu, também, ao propósito nacionalista do Estado Novo. Particularmente, a
projeção no campo da cultura popular para o Morro da Mangueira traduziu-se em identidade.
O samba verde e rosa, elemento catalizador por meio do GRES Estação Primeira deve
ser entendido como manifestação cultural com poder simbólico de promover o
reconhecimento mútuo, porque antes do dia 28 de abril de 1928, na favela do Morro da
Mangueira existiam distintas formas agremiativas que rivalizavam entre si. A liderança de
Cartola conseguiu reunir todo o samba do morro numa só agremiação. O samba dessa maneira
perpassa as formas domésticas dos ranchos, cordões e blocos e envolve além dos moradores
da Mangueira, pessoas externas, construindo relações mais amplas fortalecendo o
reconhecimento cultural para o lugar. Em contexto do populismo, as classes pobres são
convocadas a terem visibilidade no cenário político.
Com isso, houve a oportunidade para que os moradores da Mangueira, representados
pelo GRES pudessem ser escutados em suas reivindicações. Em 1935, a prefeitura, dado o
valor cultural da favela da Mangueira, fundou uma escola primário na localidade e que
recebeu o nome de Humberto de Campos.
A escola de samba Estação Primeira foi plenamente aceita e incorporada a realidade
dos moradores e a vida da cidade promovendo os seus habitantes a legítimos representantes
da cultura nacional. Houve, desde então o aumento da estima social. Esta decorre da
147
valorização do patrimônio cultural forjado no interior da localidade por seu grupo social. O
samba, então, desdobra-se em símbolos que põe em destaque as propriedades e capacidades,
além de evidenciar o tipo de reconhecimento requerido pelos indivíduos. Os símbolos do
GRES Estação Primeira são a forma organizativa coesa dos seus moradores, além das
diversas formas de comunicação, particularmente o Jornal voz do morro de 1935 que dá aos
compositores locais um espaço para divulgação de suas composições. Por essa razão, em fins
da década de 1930 o Morro da Mangueira era bastante reconhecido devido as reuniões para
sambar, comer e celebrar.
Toda essa simbologia deu a Mangueira o status de portadora da tradição do samba.
Fortalecendo o seu papel de articuladora, a fim de favorecer a vida dos seus moradores. O
papel dos seus compositores foi de apresentar um tipo de interpretação do lugar. Escolheu-se
dois compositores representativos para análise do reconhecimento: Cartola e Padeirinho.
Cartola por sua função de líder no morro da Mangueira e de articulador para fundação de uma
Escola de Samba. A obra desse músico, inicialmente serviu ao GRES Estação Primeira, sendo
cantadas nos primeiros desfiles. A primeira composição de Cartola conclama os moradores
para se reunirem e formarem um grupo imbatível no mundo do samba. Por sua vez, o
compositor Padeirinho, retratava em suas músicas a realidade da favela em que vivia, a
Mangueira. Seu objetivo era em propor a comunicação fácil com os moradores de fora da
favela. Nesse sentido, a ação afirmativa do compositor não se resumiu em mostrar ao de fora
os sinônimos das expressões locais, mas mostrar a capacidade de construção cultural.
Entretanto, a estima social não se resume as apresentações da Mangueira no mundo do
samba e do carnaval. A estima social consiste em reconhecimento cultural e por consequência
em redistribuição social. Em outras palavras, a Escola de Samba Estação Primeira alcançou o
reconhecimento por meio da mediação simbólica pacífica. As personalidades da verde e rosa
construíram uma identidade sólida respeitada e reconhecida. Este tipo de estratégia que
consiste em ações afirmativas reverteu para sua comunidade, em fins da década de 1980, na
implantação de projetos sociais.
A interlocução com atores do Estado e da iniciativa privada resultou em parcerias para
manutenção de projetos sociais proposto por lideranças da Estação Primeira. A contrapartida
disso, é a autoestima social, que constitui em imagem positiva da favela, na valorização dos
baluartes de sua velha guarda, bem como, da tradição que são consequência de quase um
século de história. Esses símbolos servem como contrapartida na captação de parceiros para
realização de seus projetos sociais.
148
A permanente busca por reconhecimento ultrapassou o mundo do samba. A
preocupação com sua juventude originou a dobradinha samba/esporte, por acreditar-se que a
prática esportiva serve como alternativa para afastar os jovens da vida do crime. Identificar as
fragilidades de sua comunidade e viabilizar maneiras de auxiliá-la são formas próprias de
redistribuição social e valorização individual.
meu amor pela escola começou não sei bem quando. Mas acho que antes dela ter
sido criada, com minha chegada ao morro. Mangueira escola e Mangueira morro pra
mim é a mesma coisa. Lá, pelo menos, a luta pela sobrevivência e pelo prazer
aproximava as pessoas, embora os pactos de solidariedade estivessem ainda se
esboçando" (BARBOZA; OLIVEIRA FILHO, 2003).
O samba afirmou no morro uma identidade ligada ao direito em permanecer na favela
porque morro e escola de samba se fundem a ponto de não distinguir o que é um e outro. O
reconhecimento mútuo na esfera do lugar em 1928 se estendeu em toda a história da Escola
de Samba e da favela, na qual preservou-se os laços de solidariedade e respeito entre seus
moradores. Segundo Damatta (1997) faz-se um recorte na ideologia dominante, onde impera
um sistema social estratificado, há nesse sentido um estilo próprio do morador da Mangueira
em nexo permanente com o entorno. Não se constituindo um movimento social, a Estação
Primeira promove por meio de sua ação associativa um quadro de autoestima social no intuito
de vida boa para os moradores e oportunidade de dignidade humana.
O projeto da Vila Olímpica da Mangueira é o resultado desse percurso na busca por
reconhecimento. Ela comporta os programas básicos de: saúde, educação e trabalho, esporte e
lazer. O público alvo são as crianças e os adolescente motivando-os a mudar a história de
exclusão da população favelada.
As iniciativas de mudança de paradigma de modo de vida são pensadas a partir de
lideranças locais a fim de reforçar a representação da tradição da Mangueira com sua história
de lutas e resistência no campo do reconhecimento das manifestações culturais. Assim, a
tradição da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira mantém-se permanentemente
necessária como atualização da identidade da gente do morro e das práticas socioespaciais
visando o reconhecimento.
O exemplo do Morro da Mangueira mostra o valor simbólico em movimento constante
e não adorado estaticamente. O reconhecimento da cultura favoreceu o diálogo com o mundo
capitalista, revertendo para o grupo social a redistribuição social e econômica, no intuito de
favorecer melhores condições de vida no campo da dignidade humana: trabalho, saúde,
149
educação, lazer. Com efeito, este estudo não pretende esgotar o tema vislumbrando outras
possiblidades de leituras geográficas do reconhecimento.
Ponto fundamental do sucesso parece ter sido a formação de uma equipe de pessoas -
idealizadoras e realizadoras do projeto que, ou são da própria comunidade, ou têm profundas
ligações e conhecimento com ela. Em outras palavras, pode-se afirmar que a equipe sempre
esteve integrada à realidade local, compartilhando os ideais e valores herdados.
150
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159
ANEXO A - Peça do Teatro do Revista – história ambientada no Morro da Mangueira década
de 1920
Nota: Nesta peça a favela do Morro da Mangueira foi retratada mostrando a vida de três malandros do
lugar.
Fonte : Biblioteca Nacional. Disponível em:
Jornal correio da manhã 1 de dezembro de 1926 p 7. Disponível em: <
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o%20da%20Mangueira>
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ANEXO B - Disco com a gravação da música Morro da Mangueira, 1926
Fonte Biblioteca Nacional. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_03&PagFis=24912&Pesq=Morr
o%20da%20Mangueira.(site da Biblioteca Nacional) Jornal Correio da Manhã, 28 de março de
1926, p.12
161
ANEXO C - Na década de 1930 a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira participa
das peças do teatro de revista.
Nota: Contrariamente a peça do teatro de revista da década de 1920, a peça dos anos de 1930 tem a
participação no elenco de moradores do Morro da Mangueira.
Fonte:. Site Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader
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em: 28/03/2017
162
ANEXO D - Primeiro exemplar do Jornal ―A voz do Morro, 1935‖
163
164
Fonte: Sidney Rezende. Disponível em :
http://www2.sidneyrezende.com/noticia/241559+centro+cultural+cartola+inaugura+exposicao+cenarios+
da+mangueira acessado em 18/04/2017
165
ANEXO E - Primeira sede do G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira – localizada no Buraco
Quente
Fonte: Sidney Rezende. Disponível em :
http://www2.sidneyrezende.com/noticia/241559+centro+cultural+cartola+inaugura+exposicao+cenarios+
da+mangueira acessado em 18/04/2017