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A cidade revelada sob a ótica poética de João do Rio
Ana Lúcia Moreira Rios (UNIOESTE)
Resumo: Os espaços urbanos e seus respectivos significados são transformados sob a ótica da
experiência por meio das narrativas. As cidades são redutos de sensibilidade para aqueles que
nelas habitam, muitas vezes, fruto da emergência de uma história cultural urbana capaz de
revelar as práticas e os atores desse espaço, permitindo ao leitor viver e apreciar a realidade
tangível. Este estudo tem a pretensão de compreender os espaços urbanos a partir da percepção
sensível e poeticamente revelada na crônica A alma encantadora das ruas de João do Rio. Não
é à toa que o título evoca um elemento da sensibilidade - a alma – responsável por captar e
registrar as vozes perdidas para revelar a cidade pela qual todos transitam, sem distinção, com
marcas culturais e imagens das experiências que são refiguradas temporalmente.
Palavras-chaves: Sensibilidade; cidade; imaginário.
Abstract: Urban spaces and their respective meanings are transformed from the point of view
of experience through narratives. Cities are a source of sensitivity for those who inhabit them,
often as a result of the emergence of an urban cultural history capable of revealing the practices
and the actors of this space, allowing the reader to live and enjoy the tangible reality. This study
intends to understand the urban spaces from the sensitive perception and poetically revealed in
the chronicle The charming soul of the streets of João do Rio. It is no wonder that the title
evokes an element of sensibility - the soul - responsible for capturing and to record the lost
voices to reveal the city through which all travel, without distinction, with cultural marks and
images of experiences that are temporally refigured.
Keywords: Sensitivity; City; imaginary.
1 Introdução
A cidade tem sido o cenário de grandes e pequenas histórias da literatura desde o século
XIX, atraindo a concentração de pessoas, desenvolvimento econômico, lazer, agitação nas ruas,
bem como um olhar diferenciado sobre as ruas e tudo o que ocorre nela.
Walter Benjamin, em sua obra Paris – capital do século XIX, ao abordar as observações
do flâneur sobre a cidade, abre-nos a possibilidade de um olhar mais íntimo sobre as ruas e os
acontecimentos que ali se apresentam. E é nessa perspectiva do flâneur que propomos um
estudo sobre a cidade, a partir da ótica poética de João do Rio, na obra A alma encantadora
das ruas (1951).
Jornalista e escritor, Paulo Barreto – conhecido pelo pseudônimo de João do Rio,
transita por uma cidade que se transforma rapidamente. De escrita irreverente reverte, através
da linguagem e da estética, textos reais em ficcionais que impressionam os leitores. A narrativa
literária juntamente com a narrativa histórica possibilitam visualizar e compreender as
experiências vividas pelos moradores das cidades e a construção das experiências urbanas se
dá em um plano subjetivo, que revela o modo como as pessoas amam, sentem, odeiam a partir
da percepção sobre a cidade.
Na ótica de João do Rio, os sentidos conferidos à cidade permitem ao leitor emergir
discursos e imagens para construir intepretações sobre as práticas sociais no espaço citadino.
Jornalista de profissão, soube colher os relatos, a linguagem e as observações sobre a cidade
do Rio de Janeiro e de seus moradores com um olhar atento e inovador, contrastando o luxo e
a decadência, durante o período de modernização.
A literatura, por não ter compromisso com o real, pode subverter a ordem e revelar o
fetiche na vida urbana. A junção da narrativa histórica à narrativa literária abre a possibilidade
ao leitor de visualizar e compreender como as experiências dos moradores se constroem ao
mesmo tempo em que projetam aspirações a partir do espaço urbano. A escrita de João do Rio
permite-nos, através da subjetividade, perceber como as pessoas sentem, amam, odeiam
espaços e valores urbanos inscritos a partir da própria linguagem. É com este olhar diferenciado
que propomos este estudo, um olhar sensível, poético sobre as transformações a que são
submetidos os espaços e os indivíduos que neles habitam.
2 A modernidade e os espaços urbanos
A modernidade é caracterizada por manifestações de inquietudes frente a fenômenos
sociais, políticos e culturais. Nietzsche apud André Berten (2011) já alertava sobre a ausência
de sentido e de valor gerada pelo desmantelamento de toda moral tradicional a que Marshall
Berman (1986, p.15) refere, “A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e de ideologia”.
Mas, como situar a modernidade? As primeiras manifestações do que é moderno estão
associadas ao aparecimento do Iluminismo Europeu, por volta do século dezoito. Berman
(1986, p17) aponta Jean-Jacques Rousseau como “o primeiro a usar a palavra moderniste”, a
qual seria empregada nos séculos XIX e XX. De acordo com Berman (1986, p.17- 18):
Rousseau aturdiu seus contemporâneos proclamando que a sociedade
europeia estava “à beira do abismo”, no limite das mais explosivas
conturbações revolucionárias. Ele experimentou a vida cotidiana nessa
sociedade – especialmente em Paris, sua capital – como um redemoinho, le
tourbillon social.
Esse turbilhão social associa-se à atmosfera de agitação, aturdimento psíquico,
destruição de barreiras morais, autodesordem.
Conforme Habermas (2002, p. 5),
O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos
cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de
recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da
produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado
e à formação de identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação
política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à
secularidade de valores e normas, etc.
Compreendida por Hegel como o despertar de um novo tempo, a modernidade
reconstitui a ruptura com o passado como um artifício de renovação contínuo, adquirindo novos
significados, como revolução, progresso, emancipação, desenvolvimento (HABERMAS,
2002). Neste sentido, toma-se consciência do problema de uma fundamentação da modernidade
a partir de si mesma. Para a crítica estética, é na experiência fundamental da modernidade que
se intensifica o problema da autofundamentação, cujo horizonte da experiência do tempo se
reduz à subjetividade descentrada, afastando-se das convenções cotidianas. Habermas (2002,
p.22) aponta ainda que os discursos de Walter Benjamin permitem concluir uma consciência
histórico-receptiva sobre os eventos culturais e sociais, ou seja, o de atribuir “a todas as épocas
passadas um horizonte de expectativas insatisfeitas, e ao presente orientado para o futuro
designa a tarefa de reviver na reminiscência um passado que cada vez lhe seja correspondente”.
Para Habermas (2002), a liberdade da subjetividade é o princípio segundo o qual todos os
aspectos essenciais da totalidade espiritual se desenvolvem para alcançar o seu direito. Desta
forma, a modernidade é vista como um entusiasmo cego e acrítico ou é condenada a uma atitude
de distanciamento e indiferença. Modernidade é sinônimo de um conjunto de atitudes perante
o mundo, o primado da subjetividade, o pluralismo.
Na perspectiva de filósofos como Adorno (BERTEN, 2011), a modernidade e essa
racionalidade moderna são vistas como um projeto de reificação crescente.
A rápida transformação da vida social moderna, segundo Giddens (1991), deriva de
uma complexa divisão do trabalho. Desta forma, para compreender adequadamente a natureza
da modernidade é preciso romper com perspectivas sociológicas existentes. Tais perspectivas
foram traçadas de acordo com as funções estabelecidas pelos indivíduos no interior das
sociedades e, ao mesmo tempo, são independentes destes. A modernidade é, portanto, a ruptura
com o passado, mas ao mesmo tempo, o enfrentamento deste rumo às experiências do tempo
em busca do próprio presente.
As cidades, de acordo com Oliven (2007), representam espaços de contradições por
desenvolverem vários processos e fenômenos sociais. Para compreender os processos que
ocorrem no meio urbano, faz-se necessário conhecer a cidade como uma potência social capaz
de gerar as mais diferentes consequências na vida social.
Oliven (2007, p. 18) ressalta que vários autores que se prestam a estudar os fatos sociais
urbanos atribuem à cidade “o poder de criar uma cultura urbana marcada fundamentalmente
pela desorganização social e cultural”, esta última implicaria no aparecimento de uma nova
forma caracterizada por papéis sociais. A cidade não é a causa dos processos sociais, mas a
consequência destes ou o lugar onde ocorrem, gerando o conflito e a desorganização.
A modernidade a que estamos acostumados é marcada por características distintas e
importantes, como a Revolução Industrial, o desenvolvimento do capitalismo, o avanço
tecnológico, promovendo transformações profundas vivenciadas pelos indivíduos que habitam
os centros urbanos. Essas transformações colaboraram para que os indivíduos se apresentassem
como novos sujeitos, com identidades e caracteríticas diferentes.
Santos (2014) lembra-nos que o simples fato do nascer faz do indivíduo um ser portador
de prerrogativas sociais, um cidadão. A urbanização impõe ao indivíduo uma competitividade
e um selvagismo crescentes, em que os males aparecem como se fossem uma solução, um
círculo vicioso e, o espaço vivido consagra desigualdades e injustiças. A conformidade com as
regras de um jogo, que mutila a consciência do homem gerando a submissão aos mecanismos
de manipulação, e os instintos inspirados por sua existência no mundo levam o indivíduo a
enxergar mais claramente o lugar que ocupa na sociedade.
São as cidades, espaços de revelação, que ampliam o grau de consciência dos
indivíduos. No cotidiano, conforme Santos (2014, p. 71), “o homem se recusa a reproduzir
como certos os comportamentos impostos pela sociedade de massa”.
Assim, as relações humanas estabelecidas no espaço urbano são percebidas num
processo permanente, resultantes da ação e dos condicionamentos humanos herdados. Desta
maneira, os sentidos conferidos à cidade na escritura de João do Rio permitem que discursos e
imagens emerjam, possibilitando a construção de interpretações sobre as práticas sociais
instituídas no espaço urbano.
Publicada em 1910, a obra A alma encantadora do Rio, de João do Rio, revela crises e
conflitos, bem como as contradições da vida citadina. Contudo, o autor consegue, em meio a
todos esses conflitos, transmitir a sensibilidade através das reflexões que traz sobre os guetos,
cortiços e ruas do Rio de Janeiro, Capital Federal naquele momento. É sobre essa ótica que nos
deteremos no estudo a seguir.
3 A ótica poética na cidade revelada
Eloísa Pereira Barroso (2012) afirma que o cronista João do Rio, ao refletir sobre os
eventos, grupos e ruas do Rio de Janeiro, reconstrói “o início do século e as paisagens da cidade
que viria a ser “maravilhosa” ”(p.90). As relações afetivas, que acontecem no espaço citadino,
formam a estrutura social de uma cidade que não é revelada em documentos oficiais e a
dimensão espacial não pode ser negada nem subestimada, pois é nesse espaço que o indivíduo
constrói suas relações sociais.
Ao demonstrar as transformações políticas e sociais decorrentes da instauração da
República, João do Rio expõe a cidade do Rio de Janeiro em intenso crescimento e que afeta
significativamente a vida dos moradores. Em meio a todo esse turbilhão, o cronista consegue
vislumbrar os eventos de maneira poética, como o advento da luz elétrica, a construção da
primeira avenida.
Ao falar da rua, o cronista coloca o leitor como coparticipante desse sentimento de
posse, convidando-o a partilhar do mesmo, como nos exemplos que seguem:
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado
por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim
absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos,
nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados,
não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque
nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento
imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às
idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o
egoísmo (RIO, 1951, p.2).
É possível perceber antecipadamente que o cronista revelará as belezas, mas também
as situações de injustiça, como afirma Barroso (2012, p.93), “grande parte dos fluminenses foi
pela primeira vez envolvida nos problemas da cidade e do país”. Mais adiante, durante a
narrativa, o cronista vai apresentando as vantagens e desvantagens que se pode obter da rua,
como ela pode ser favorável a miseráveis e a criminosos, mas também é o espaço dos
trabalhadores, das elites que por ela circulam e também da transformação linguística.
João do Rio passeia e observa os eventos citadinos como um verdadeiro flâneur e
convida o leitor a fazer mesmo. Segundo o cronista, só nesta posição de observador é que será
possível compreender a psicologia das ruas.
Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se
goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio
de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível,
é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes — a arte de flanar (RIO, 1951, p.4).
O flâneur não tem a preocupação em descrever os eventos tal qual a realidade, ele é
livre, conhece os ambientes, a rua, os becos e reflete sobre o que os outros não podem ver. Tal
qual o sentido que Walter Benjamin atribui às ruas e ao que Baudelaire reporta para descrever
as ruas de Paris, João do Rio faz semelhante trabalho de flâneur como narrador para retratar a
alma presente nas ruas da Capital Federal daquele momento. O cronista ressalta ainda que,
enquanto flâneur, não tem a obrigatoriedade de retratar a realidade tal qual se mostra, mas que
tem a vantagem de psicologar, como pode se observar no fragmento,
E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As
observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos,
as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma
lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar
os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar
da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia
de observação...
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim
um ser vivo e imóvel (1951, p. 6).
Através da imagem do flâneur, vai preparando o leitor para as reflexões que pretende
fazer a respeito das transformações pelas quais a cidade, em especial o Rio de Janeiro, está
recebendo. A ampliação da cidade, a construção de novas avenidas, a chegada de novas
pessoas, os altos custos das moradias, tudo isso força a população de menor poder aquisitivo a
se mudar para os subúrbios, gerando favelas, guetos e cortiços. Mas, não se trata somente de
revelar as transformações advindas da modernidade, há descrições poéticas, quando retrata
cada rua, cada beco e a que cada uma delas se presta, como faz na referência às ruas de Santa
Teresa, considerando-a como a rua dos amores e, que somente na posição de um verdadeiro
flâneur poderia realizar.
As ruas de Santa Teresa, é descobrir o par e é deitar a rir proclamando aos
quatro ventos o acontecimento. Uma das ruas, mesmo, mais leviana e tagarela
do que as outras, resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua do Amor lá
está na freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor,
deus decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho Velho uma
rua intitulada Feliz Lembrança e parece que não a teve, segundo a opinião
respeitável da poesia anônima:
Na Rua Feliz Lembrança
Eu escapei por um triz
De ser mandado à tábua.
Ai! que lembrança infeliz
Tal nome pôr nesta rua! (RIO, 1951, p.10).
No fragmento acima, percebe-se quão importante é o espaço da rua e como os eventos
rotineiros se transformam em inspiração poética para o cronista descrever todo o sentimento
que tem pela cidade. As ruas parecem adquirir vida própria, com pensamentos e palavras.
Conforme Barroso (2012), o cronista insiste em marcar a realidade, como pode ser
percebido no fragmento acima, simbolicamente representada pela alma de um povo que
cotidianamente tenta driblar as dificuldades a que estão submetidos.
Percorrendo as ruas e os becos da cidade, o narrador vai captando a alma da cidade e
descrevendo tipos e identidades que são forjadamente esquecidas pela elite carioca. A respeito
desse comportamento de flâneur, anteriormente referido, Barroso (2012, p.98) revela que “O
exercício de andar, de respirar, de farejar faz as imagens surgirem para a montagem dos
fragmentos e criação da fantasmagoria da vida cotidiana”. Essas imagens, segundo Walter
Benjamin (1967), são alegorias que se mostram como verdade oculta, que permite a construção
de uma versão de como as coisas podem ser representadas. Assim, falar dos eventos da
modernidade na transformação da cidade do Rio de Janeiro, especialmente da República,
permite ao cronista e narrador registrar um tempo histórico permeado de alegorias.
A narrativa dada aos eventos da rua são descritos pelo narrador alegoricamente
comparados a outros grandes eventos. Vejamos,
O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir cedo. À
noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu
bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos
parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são trapos da existência
almejando o fim próximo, ladrões sem pousada, imigrantes esfaimados...
Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que
lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras,
dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos
reflexos (RIO, 1951, p.11-12).
A revolução mencionada na segunda linha do fragmento remete o leitor às
transformações pelas quais os citadinos atravessam no momento da transição do antigo para o
moderno. Neste contexto, mais precisamente, ao advento da República. Mais adiante, o cronista
ainda nos lembra do pintor Rembrandt, o qual retrata a própria vida e os locais por onde
passava, como uma espécie de história mnemonicamente referenciada e que hoje é guardada
no museu Casa de Rembrandt, em Amsterdã. É este mesmo sentimento de memória que o
cronista remete ao leitor.
É fantástica a forma como João do Rio consegue transitar pelos becos cariocas e, ao
mesmo tempo, retratar espaços longínquos, comparando os mesmos e revelando uma cidade
que só pode ser percebida por um bom flâneur ou pela alma de um poeta.
A descrição dos espaços aliada aos eventos históricos enriquece a narrativa, ao mesmo
tempo em que dá ao leitor o espaço para divagar e questionar se a rua descrita é assim mesmo.
Neste sentido, João do Rio não poupa características que atribui às ruas.
Embora não fosse antropólogo de profissão, o cronista trata os eventos citadinos com o
mesmo olhar preocupado que a antropologia faz ao verificar os eventos urbanos, investigando
não só os eventos citadinos, mas os sujeitos que circulam por este espaço. Esse olhar cuidadoso
antecipou os eventos da modernidade no que se refere aos estudos antropológicos por assim
dizer. O olhar sobre presidiários, trabalhadores braçais, barões, prostitutas entre tantos outros,
deram à escrita de João do Rio um aspecto realista, inovador e sensível, “A rua é a civilização
da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande
cidade como a estrada está para o mundo. Em embrião, é o princípio, a causa dos pequenos
agrupamentos de uma raça idêntica ” (RIO,1951, p. 14).
A cidade do Rio de Janeiro é palco de uma realidade complexa e múltipla, de constante
transformação e que pode ser expressa nos traços pessoais dos habitantes, na vida cultura e que
resulta em separações nos espaços desses indivíduos. A ordem moral dissolve-se
gradativamente, comprometendo o relacionamento entre esses indivíduos que compõem a
estrutura social. A denúncia sobre os eventos é cuidadosamente retratada por João do Rio
através da visão que adota de flâneur; basta uma caminhada pelos centros urbanos, que se entra
em contato com uma diversidade de personagens.
Mas não são só os ‘esquecidos’ dos centros urbanos que João do Rio observa em sua
narrativa, a elite carioca também é ressaltada, bem como os hábitos:
A gente de Botafogo vai às “primeiras” do Lírico, mesmo sem ter dinheiro.
A gente de Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao Lírico. Os
moradores da Tijuca aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os
moradores da Saúde amam enternecidamente o Dias Braga. As meninas das
Laranjeiras valsam ao som das valsas de Strauss e de Berger, que lembram os
cassinos da Riviera e o esplendor dos kursaals. As meninas dos bailes de
Catumbi só conhecem as novidades do senhor Aurélio Cavalcante. As
conversas variam, o amor varia, os ideais são inteiramente outros, e até o
namoro, essa encantadora primeira fase do eclipse do casamento, essa meia
ação da simpatia que se funde em desejo, é absolutamente diverso (RIO, 1951,
p. 15).
Com este olhar sobre a cidade, os moradores e os eventos que ali ocorrem, o cronista
consegue dar voz aos moradores e mostrar uma cidade que não é visível à maioria dos citadinos.
Aproximando-se de George Simmel, João do Rio define os eventos da cidade do Rio de Janeiro
sob o prisma da modernidade, mas concebendo-a a partir do sensível. Definindo a modernidade
sobre as transformações físicas e psicológicas, mostrou que as mudanças urbanas que ocorriam
no Rio de Janeiro transformavam radicalmente as experiências do sensível, “Oh! sim, a rua faz
o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da existência na Rua
do Pau Ferro não se habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! Os intelectuais sentem esse
tremendo efeito do ambiente, menos violentamente, mas sentem” (RIO, 1951, p. 16).
Para Simmel (2000), as práticas urbanas cotidianas de quem passa pela rua e da flânerie
são consideradas fatores de socialização dos citadinos submetidos aos múltiplos estímulos do
espaço da rua e colocam seu equilíbrio psicológico à prova.
Embora a cidade esteja passando por transformações, a narrativa de João do Rio recria
a memória por meio dos eventos narrados. Percebe-se pela narrativa que o cronista tem uma
necessidade imensa de preservar os espaços de memória.
Acompanham-na a oração para a dentição e a de Nossa Senhora dos
Remédios, logo depois de nascido. Quando já fala, decora a oração para ao
deitar na cama: “Nesta cama me deito, desta cama me levanto, a Virgem
Nossa Senhora me cubra com o seu manto. Se eu coberto com ele for não
terei medo nem pavor, nem coisa que deste ou outro mundo for” e a oração
para levantar da cama, que se pronuncia mesmo ao ruminar os mais
horrendos delitos (RIO, 1951, p.45-46).
Estes fragmentos de memória não se tratam de memória individual, mas de uma
memória coletiva, que faz parte da construção social do indivíduo. Durante a narrativa,
percebe-se que a construção do texto reflete uma memória urbana, que também é real e que há
uma preocupação do cronista em marcar esses eventos.
Na perspectiva de flâneur, o cronista expõe em capítulos os pensamentos, crendices,
costumes de um povo ora em tom sarcástico, ora em tom de alerta sobre tudo o que acontece
nos subúrbios, nas ruas, nos locais de trabalho, ora em tom poético.
De certa forma, João do Rio revela uma ruptura na relação da sociedade com o seu
passado, esta, consequência da modernidade e, por isso mesmo, delineia um novo padrão de
segregação, acentuando as desigualdades sociais e exclusão.
Outro aspecto interessante na crônica é que os poemas ressaltados acabam por revelar
um concretismo por meio das poesias. Vejamos o exemplo a seguir, quando o narrador
descreve no capítulo intitulado Orações, algumas das crendices populares. Ao findar o poema,
podemos perceber o formato de uma cruz, símbolo religioso para os cristãos.
Desta casa me
aparto em boa
paz boa viagem.
Deus adiante, a
bela cruz atrás eu no meio, altos e montes para mim
sejam. Oremos bocas de cães e lobos sejam fechadas,
tenham olhos e não me vejam, tenham pernas e não me
sigam tenham boca e não me falem, tenham braços
e não me pe-
guem,
tão guarda-
do me vejam
como a Virgem
Maria guardou
o seu amado
filho desde as
portas de Be-
lém até Jerusa-
lém. — Amén...
Para cada pequeno capítulo desenvolvido, o cronista aponta uma camada social e,
sensivelmente vai revelando as vozes dos sujeitos, delineando um novo padrão de segregação
em reação ao espaço citadino e, ao mesmo tempo, acentuando as desigualdades sociais. João
do Rio vai mostrando as novas profissões que surgem com o avanço da modernidade: os
tatuadores, camelôs, ambulantes, livreiros, pintores, entre tantos outros.
Esse espaço público tornou-se o elemento segregador da sociedade modena, símbolo
do confinamento, isto porque quanto mais se expande, mais devora o que está ao redor. É
preciso perceber o que é essencial, o que é mais casual e cotidiano para se extrair o invariável.
O cronista não quer perder o vínculo com o passado, mas não pode ficar alheio ao futuro. A
modernidade que atinge o momento da cidade do Rio de Janeiro, obriga as pessoas a se
afastarem umas das outras, afetando o sujeito e sua identidade. O narrador não quer ver os
sujeitos perderem essa identidade e, por isso mesmo, retrata ambientes e pessoas nas mais
diversas circunstâncias, remontando e comparando aspectos, ambientes e situações entre o
passado e o futuro. Esse confronto leva o citadino a reconhecer sua condição e sua limitação.
Ao descrever a alma da cidade carioca, João do Rio quer aproximar a área mais sensível
do campo do conhecimento, valorizando nas práticas cotidianas as subjetividades; as
experiências de vida nessa cidade moderna devem conduzir o sujeito a uma concepção de
novos espaços e requer cidades mais humanizadas.
Paul Ricouer (1997) aponta como os eventos narrados, a experiência e o vivido, são
refigurados temporalmente, renovando através do presente, o passado da cidade e construindo
seu futuro, transformando seus espaços e significados.
Na perspectiva do flâneur, o cronista João do Rio não deixa nada para trás, nem deixa
a desejar. Sua narrativa detalhada e sensível remete o leitor a espaços antes inimagináveis.
Talvez por isso mesmo sua obra continua encantando a leitores e críticos.
4 Considerações
Este trabalho teve como pretensão compreender os espaços urbanos e sua
transformação a partir da percepção sensível revelada ma crônica A alma encantdora do Rio,
do jornalista e cronista João do Rio.
Sob a ótica do flâneur, o cronista soube, por meio da sensibilidade, visualizar uma
cidade em crescimento e transformações para os quais a população ainda não havia se dado
conta.
A narrativa dos espaços urbanos e seus respectivos significados são transformados sob
a ótica do narrador e a cidade do Rio de Janeiro passa a ser reduto de sensibilidade para aqueles
que nela habitam revelando, ao mesmo tempo, as práticas e os atores desse espaço, permitindo
ao leitor viver e apreciar a realidade tangível.
A alma é a responsável por captar e registrar as vozes perdidas para revelar a cidade
pela qual todos transitam, sem fazer distinção, apresentando marcas culturais e imagens das
experiências que são refiguradas temporalmente.
Toda a cultura, festas populares, crendices, orações são trazidas ao leitor com tal
sensiblidade, detalhismo e poesia que encantam e remetem a um passado de memória que ajuda
a construir o presente.
Embora a cidade com todos os seus eventos seja a protagonista da cena, não se pode
deixar de mencionar que os indivíduos que por ali transitam também são referência para captar
a alma do Rio de Janeiro. São ambulantes, imigrantes, ciganos, prostitutas, livreiros, a alta
sociedade, todos, indiscriminadamente ajudam na construção desse novo espaço que
transformam e são transformados.
A forma como o escritor capta e descreve a cidade do Rio de Janeiro contribui para a
compreensão do que ocorre nas ruas, não só da capital (naquele momento), mas de todas as
cidades. Isto só é possível pela perspectiva e posicionamento do cronista como flâneur. É este
posicionamento que trará a alma encantadora das ruas para o interior de cada habitante citadino.
A reinvenção do passado e a construção do futuro são renovadas pela narrativa do
passado, como nos relatos feitos pelo cronista ao rememorar as ruas do Rio de Janeiro antes
das transformações presentes. Ajuda a transformar os espaços e os indivíduos que por ali
transitam e como o próprio cronista afirma, “Sim, as ruas têm alma”.
Referências
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