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Adonai Sant'Anna Matemática e Sociedade sábado, 26 de julho de 2014 A ciência indisponível na internet Acabo de ler a seguinte notícia na internet: " Nos próximos dez anos, a expressão “não sei” vai desaparecer. O mundo todo estará conectado, com internet banda-larga gratuita distribuída por drones, balões, ou microssatélites, e qualquer dúvida será resolvida quase instantaneamente. A previsão é do venezuelano José Cordeiro, professor da Singularity University, localizada em uma base de pesquisa da Nasa, no Vale do Silício (EUA). “Poderemos usar nosso cérebro para coisas mais importantes, mais interessantes e mais inovadoras. Para tarefas repetitivas, teremos os robôs e a inteligência artificial”, resume." Tento crer que o texto acima citado é apenas mais uma das incontáveis confusões que jornalistas e editores fazem ao tentar transcrever as palavras de um entrevistado. Tento crer que o corpo docente da Singularity University tenha uma mentalidade mais madura do que se sugere na entrevista com José Cordeiro. Tento crer que o mundo não está tão #&@!@&. Quando John Horgan lançou seu polêmico livroThe End of Science , em 1997, John Maddox apresentou uma estonteante resposta dois anos depois com o seu poético livro What Remains to be Discovered . O fato é que não há indícios de que algum dia a expressão "não sei" possa desaparecer; muito menos em dez anos, por conta da internet. E não estou falando apenas sobre visões científicas que ainda não surgiram, como discute Maddox. Mesmo ramos consolidados da atividade científica apresentam lacunas e até erros que não podem ser resolvidos com uma simples consulta à internet. Isso porque senso crítico, um dos pilares da atividade científica, não é algo que se aprende em textos, vídeos ou quaisquer outras engenhosas mídias. Senso crítico é algo que se desenvolve com prática. Só aprende ciência quem efetivamente Início

A Ciência Indisponível Na Internet

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Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

sábado, 26 de julho de 2014A ciência indisponível na internet

Acabo de ler a seguinte notícia na internet: "Nos próximos dez anos, a expressão “nãosei” vai desaparecer. O mundo todo estará conectado, com internet banda-largagratuita distribuída por drones, balões, ou microssatélites, e qualquer dúvida seráresolvida quase instantaneamente. A previsão é do venezuelano José Cordeiro,professor da Singularity University, localizada em uma base de pesquisa da Nasa, noVale do Silício (EUA). “Poderemos usar nosso cérebro para coisas mais importantes,mais interessantes e mais inovadoras. Para tarefas repetitivas, teremos os robôs e ainteligência artificial”, resume."

Tento crer que o texto acima citado é apenas mais uma das incontáveis confusões quejornalistas e editores fazem ao tentar transcrever as palavras de um entrevistado.Tento crer que o corpo docente da Singularity University tenha uma mentalidade maismadura do que se sugere na entrevista com José Cordeiro. Tento crer que o mundonão está tão #&@!@&.

Quando John Horgan lançou seu polêmico livro The End of Science, em 1997, JohnMaddox apresentou uma estonteante resposta dois anos depois com o seu poéticolivro What Remains to be Discovered. O fato é que não há indícios de que algum dia aexpressão "não sei" possa desaparecer; muito menos em dez anos, por conta dainternet. E não estou falando apenas sobre visões científicas que ainda não surgiram,como discute Maddox. Mesmo ramos consolidados da atividade científica apresentamlacunas e até erros que não podem ser resolvidos com uma simples consulta àinternet. Isso porque senso crítico, um dos pilares da atividade científica, não é algoque se aprende em textos, vídeos ou quaisquer outras engenhosas mídias. Sensocrítico é algo que se desenvolve com prática. Só aprende ciência quem efetivamente

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faz ciência. O domínio de conhecimento científico não ocorre com atitudes passivas desimples leitura e meditação. A interação social com pares é fundamental. Pois é estainteração que ajuda a desenvolver senso crítico.

Cito abaixo quatro exemplos de conhecimentos científicos relevantes que não sãoencontrados na internet justamente por serem contrários a uma suposta sabedoriacomum ao conhecimento consolidado e meramente repetido em livros e... na internet.Espero que apareçam leitores que contestem a minha tese. Afinal, certamente nãoexaminei todos os sites da internet, para defender a ideia de que a rede mundial decomputadores ainda está muito longe de se tornar uma base completa de informaçõese conhecimentos, mesmo quando nos delimitamos àquilo que já se conhece nos diasde hoje.

Exemplo 1: Órbitas planetárias podem ser quadradas

De acordo com a primeira lei de Kepler, a órbita de um planeta ao redor do Sol é umaelipse, na qual o Sol ocupa um dos focos. Existem milhares de textos em livros, artigose sites, em que esta lei é supostamente demonstrada a partir da equação dagravitação universal de Newton e da segunda lei de Newton.

Pois bem. Consideremos um caso ideal, no qual há apenas dois corpos no Universo: oSol e um planeta qualquer o orbitando. Desta forma ignoramos perturbaçõesprovocadas por outros astros. Ainda idealizando, consideremos também que Sol eplaneta sejam corpos não elásticos, para evitar perturbações orbitais provocadas porfenômenos de marés. Ainda assim é impossível demonstrar a primeira lei de Kepler apartir da equação da gravitação universal e da segunda lei de Newton, sem cair emcontradição. Por quê?

A resposta é simples. A concatenação entre a segunda lei de Newton e a gravitaçãouniversal implica em um sistema de duas equações diferenciais acopladas (equações4.2 e 4.3 desta referência). Essas duas equações podem ser reduzidas a uma únicaequação diferencial que descreve uma dinâmica dependente da massa total dosistema. Para que seja possível demonstrar a primeira lei de Kepler faz-se necessáriauma aproximação física na qual se considere que o Sol tem massa muito maior do queo planeta que o orbita. E tal aproximação (que intencionalmente negligencia a massado planeta), na prática, implica em considerar o Sol como um sistema inercial dereferência. No entanto, considerar o Sol como um sistema inercial, neste contexto,contradiz justamente a segunda lei de Newton (usada na própria demonstração). Issoporque o planeta exerce uma força sobre o Sol que, apesar de muito pequena (porcomparação), não é nula. Portanto, as demonstrações da primeira lei de Kepler sãofeitas a partir de uma contradição. Ora, e se alguém espelhar tais demonstrações emum sistema formal axiomático? Assumindo que este alguém use como lógicasubjacente a lógica clássica (não creio que físicos fizessem oposição a isso), talpessoa será obrigada a incluir na demonstração a tal da aproximação (que assume o

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Sol como um sistema inercial) na forma de novo axioma ou premissa, além dosaxiomas que impõem a gravitação universal e a segunda lei de Newton. Como estenovo axioma (ou premissa) será necessariamente inconsistente com a segunda lei deNewton, não haverá surpresa alguma na demonstração da primeira lei de Kepler. Issoporque, no âmbito da lógica clássica, contradições permitem inferir qualquer fórmulada teoria como teorema. Portanto, é também teorema que as órbitas planetárias sãoquadradas. Neste mesmo contexto, também é teorema que as órbitas são triangularesou simplesmente retilíneas.

E, para piorar este quadro todo, há também demonstração das leis de Kepler que nãofaz uso sequer do conceito de força.

Se o leitor estiver motivado pelo aspecto intuitivo desta discussão, recomendo asanimações que aparecem neste texto da Wikipedia. São bonitinhas.

Exemplo 2: Quando uns são mais iguais do que outros

Anos atrás Décio Krause, Aurélio Sartorelli e eu publicamos no tradicionalíssimoperiódico belga Logique et Analyse um artigo no qual testamos os limites do conceitode igualdade em teorias aparentadas com a usual teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Enfraquecemos a noção de igualdade de modo a ainda manter aspropriedades usuais de igualdade. E mostramos a partir de que ponto esse processode enfraquecimento conduz a uma "relação binária" que deixa de ser a igualdade. Masa questão realmente importante é a seguinte: será que nós conseguimos contemplartodos os casos possíveis que separam igualdade de outras "relações" que não seidentificam com igualdade? Não sei.

Exemplo 3: Recursivos sim, mas nem tanto

Desde séculos atrás o ser humano vem tentando encontrar evidências (científicas ounão) que o coloquem como uma espécie intelectualmente privilegiada entre as demaisexistentes neste planeta Terra. Uma das mais recentes é o uso de recursividade nalinguagem. Grosso modo, recursividade em linguística se traduz como o emprego deuma quantia finita de elementos de um alfabeto para gerar uma quantia infinita defrases. Definições recursivas são muito comuns em matemática e, particularmente, emlógica. Além disso, porções significativas da matemática podem ser formalmentetratadas através do emprego de uma linguagem formal conhecida como cálculopredicativo, o qual faz uso dos quantificadores existencial (EXISTE um x tal que P(x),sendo P uma propriedade, intuitivamente falando) e universal (PARA TODO x temosque P(x), sendo P uma propriedade, intuitivamente falando). No entanto, até onde sei,nenhum teorema relevante da matemática pode ser traduzido para o cálculopredicativo de modo a fazer uso de mais do que quatro ocorrências alternadas dequantificadores. Por quê isso? Há alguma limitação cognitiva no ser humano que oimpeça de compreender mais do que quatro ocorrências alternadas de

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quantificadores? Ou seja, os matemáticos caíram em uma armadilha, criandoformalismos que encerram conhecimentos inacessíveis pelo intelecto humano? Ondeestá a tão louvada recursividade? Por isso publiquei, anos atrás, o texto sobre oestudante brilhante.

Exemplo 4: Entender sim, mas nem tanto

Todo bom livro de cálculo diferencial e integral apresenta a definição usual de limite deuma função real. E, a partir de intuições, teoremas, exemplos e exercícios, espera-seque o aluno se familiarize com tal conceito. No entanto, existem infinitas maneiras dealterar a definição de limite, ainda mantendo os mesmos teoremas. E existem infinitasmaneiras de alterar a definição de limite de modo a manter alguns teoremas, masoutros não. A escolha historicamente definida para o conceito de limite de uma funçãoreal (conforme se apresenta em livros sobre o tema) atende a certos propósitos muitoespecíficos e de caráter metamatemático. Em suma, toda definição em matemáticatem um caráter de arbitrariedade. E tal caráter de arbitrariedade sempre tem umcontexto histórico, social e pragmático. Como discutir sobre isso sem a efetiva, intensae sistemática interação entre o interessado e seus pares?

Conclusão

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados, mas espero ter deixado claro omeu ponto.

Quem deseja educar, deve semear dúvidas sobre o que está falando ou escrevendo.Extinguir a expressão "não sei" é matar o espírito humano. Quem deseja segurança apartir do conhecimento científico certamente procurou o caminho errado. Certezas,respostas e verdades não são alicerces da ciência, mas superficiais discursos queacalentam leigos e meros usuários dos benefícios e confortos da ciência e datecnologia.

Se alguém deseja cultivar algum sonho com a internet, que seja o sonho da dúvida eda incerteza, mas não o delírio das respostas prontas e inquestionáveis.

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3 comentários:

Joao Luiz Faria 28 de julho de 2014 10:43“Quem deseja educar, deve semear dúvidas sobre o que está falando ou escrevendo. Extinguir aexpressão "não sei" é matar o espírito humano. Quem deseja segurança a partir do conhecimentocientífico certamente procurou o caminho errado. Certezas, respostas e verdades não são alicerces daciência, mas superficiais discursos que acalentam leigos e meros usuários dos benefícios e confortos

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Respostas

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da ciência e da tecnologia”.

Este parágrafo já mostra a falta de coerência que nós seres humanos às vezes mostramos. Senãovejamos: a afirmação acima já e um paradoxo, pois afirma veementemente, que devemos semeardúvidas; assim, é bastante lógico que pensemos que talvez semear dúvidas seja uma atitudeequivocada! Aqui já está uma dúvida!

Talvez nosso sistema mental, como está estruturado, possa apresentar momentos de ineficiência eassim nos levar a situações onde nada podemos afirmar.

Será que a natureza de nossa mente é assim ou é possível desenvolver uma nova estrutura mental maiseficiente? Outra dúvida!Responder

Adonai 28 de julho de 2014 13:50João

É um alívio perceber que há seres pensantes neste mundo. Excelente a sua colocação. Fazerciência é muito mais fácil do que discutir sobre ela. Existem aqueles que defendem a tese deque a ciência não busca verdades, mas apenas horizontes de verdades. Uma excelentereferência sobre o tema é

https://ndpr.nd.edu/news/23708-science-and-partial-truth-a-unitary-approach-to-models-and-scientific-reasoning/

No entanto, eu mesmo tenho dúvidas sobre esta concepção. Ontem submeti para publicação(em parceria com dois colegas meus) um trabalho que pode apontar para uma direçãodiferente da noção de verdade em ciência. Se conseguirmos publicar (foi submetido em umimportante periódico), divulgarei neste blog.

SEBASTIÃO FRANCISCO DE PAULA VIANA 30 de julho de 2014 00:42Sinceramente, não sei qual é a desse povo da Singularity University. Tenho minhas dúvidas sobre essapreocupação toda com o futuro da humanidade.Responder

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Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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